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FERRAMENTAS DAS LUTAS
ACAMPADAS Sarah Nery AMOR Matilha Amorosa ARTE Christopher Jones BIOLUTAS Giuseppe Cocco BLOG Hugo Albuquerque BRASIL MUNDO, MUNDO BRASIL (capa): Frente de Fevereiro e Afrofuturismo; Neste projeto: Daniel Lima e Felipe Teixeira. CAMPANHA Adriana Britto CARAMUJO MAN Alê Souto CARNAVALIZAÇÃO Cacá Fonseca e Pedro Britto CIVILIZAÇÃO COMO BARBÁRIE Eduardo Baker e Julia Baker NÃO CIVILIZADA Pedro Victor Brandão COPESQUISA Bruno Cava COREOGRAFIA Dani Lima e Paola Barreto CONCATENAÇÃO Christopher Jones DESEJOS Marcelo Wasem FRENTE, PROTESTO Pablo de Soto ESQUIZOPOÉTICA Pedro Laureano Sobrino ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA Gabriel Alvarenga FAVELA Eduardo de Oliveira Rodrigues e Vladimir Santafé FAVELONÇA Barbara Szaniecki GENERAL INTELLECT Bárbaro Tecnizado HIP HOP Rociclei da Silva HOMEM CONTEMPORÂNEO Davy Alexandrisky INDISCIPLINA Marina Bueno INTERVENÇÃO Daniel Lima INTERVENÇÃO URBANA Entre Sem Bater / Foto Léo Lima INVERTER A ORDEM DO NEGÓCIO Traplev INVESTIGAÇÃO-AÇÃO Daniel Lima MARCHA DAS VADIAS Adriana de Azevedo MARCHAS E ANTIMARCHAS Talita Tibola OLIMPI(C)LEAKS http://olimpicleaks.midiatatica.info/wikka/HomePage ORDEM SEM CHOQUE Bernardo Damasceno PADÊ Mariana Novaes PRUDÊNCIA Sindia Santos QUILOMBISMO Laura Olivieri RADIOFONIA CARTOGRÁFICA Marcelo Wasem e Mariana Novaes RECUSAR Fabricio Toledo SUMIÇO Simone Tomé Continuação na página/21. Acompanhe: TEIA DOS PONTOS DE CULTURA Macarena Leticia Pou http://petitionsemanifestos.wordpress.com/2009/07/13/a-questao-da-habitacao-eTROCA Sala Dobradiça:a-regulacao-dos-pobres-no-rio-de-janeiro-”choque-de-ordem”A. Giovanella, D. Tibola, E. Maroso e G. Araújo / Fotos Paulo Fernando Machado ou-”choque-de-cidadania”/ sumário 1 GLOBAL
ACAMPADAS No anoitecer do dia 15 de maio de 2011, quando mais de cinquenta cidades espanholas tiveram suas praças tomadas por milhares de cidadãos indignados, um pequeno grupo de quarenta manifestantes que estava na Praça Puerta del Sol, em Madri, no que parecia ser o término de um dia intenso de manifestações contra o sistema político e econômico, decidiu autonomamente acampar no local. Via chat, um ativista recebe assim a notícia: “Hemos acampado en Sol, Democracia Real Ya es un virus y ha impregnado a la sociedad y nosotros vamos a quedarnos aquí y ya veremos que pasa” (TORET, 2012). Assim começava uma situação não prevista pelo movimento – que há três meses articulava-se principalmente através das redes digitais – e que veio a se tornar uma de suas práticas mais importantes e a inspirar muitos outros a fazerem o mesmo: a acampada. “Toma la calle”, “Yes, we camp”, “Occupy”, “Ocupa” se tornaram as palavras de desordem desde então. Inspiradas por levantes recentes, como a resposta popular à crise na Islândia, a Primavera Árabe no norte da África e no Oriente Médio, e a Geração à Rasca em Portugal, as acampadas dos Indignados multiplicaram-se pelas praças da Espanha e por países vizinhos que também respondiam de maneira similar às crises econômica e política que se intensificavam desde 2008. Tudo isso aconteceu impulsionado pelo poder da comunicação em rede, que sem dúvida vem modificando a vida em sociedade neste novo milênio. Por isso, quatro meses depois do 15M, a ideia da acampada como ferramenta de luta chegava aos Estados Unidos praticamente pronta no mote “Occupy Wall Street”, quando os manifestantes já convocavam os cidadãos com essa finalidade clara: ocupar o centro financeiro global para dar visibilidade à lógica cruel de um sistema que beneficia apenas 1% da população, em detrimento dos 99%. Mais uma vez, multidões nas ruas, barracas nas praças e zonas autônomas são instauradas para apresentar ao mundo a urgência de se repensar o GLOBAL 2
AMOR
Sarah Nery
sistema capitalista e a democracia representativa, nomeados então como os principais vilões dessa história. Assim, as acampadas desta segunda década do século XXI passaram a constituir, através de suas práticas cotidianas, um novo espaço de interrelações verdadeiramente democráticas no espaço urbano, em busca da chamada “democracia real”. De forma dialógica, consensual e horizontal, definiram-se os protocolos para discussão e decisão, criaram-se os Grupos de Trabalho e as Comissões para tratar de assuntos específicos, realizaram-se inumeráveis ações/intervenções online e offline, promoveram-se incontáveis assembleias que se espalharam pelos bairros e cidades, tudo isso sem a presença ou cooptação de qualquer instituição, partido ou sindicato, como havia sido consensuado. Nesse fluxo contínuo de aprendizagem-eensinamento do novo (ou de desaprendizagem e desensinamento do velho) emergiram mini-cidades autogestionadas em meio às grandes cidades automatizadas do capitalismo neoliberal, apresentando-se então como verdadeiros laboratórios de experiências humanas/urbanas/ democráticas possíveis. A relação com outros tão diversos como moradores de rua, aposentados, punks, estudantes, desempregados, feministas, dentre muitos outros, é uma das forças do movimento que encarna como poucos a máxima de “politizar o cotidiano e cotidianizar a política”. Mesmo em escalas menores, as acampadas que têm sido promovidas no Brasil nesse contexto recente, especialmente a partir do movimento Ocupa (que teve no país uma primeira chamada para ocupação no dia 15 de outubro de 2011 – o chamado 15O – quase um mês após o Occupy Wall Street, ocorrido em 17 de setembro), também têm se apresentado como espaços autônomos e autogestionados de lutas e resistências, seguindo grande parte dos métodos utilizados nas experiências de outros países, guardando as devidas proporções.
Além dos ocupas, temos visto por aqui cada vez mais estudantes ocupando as universidades, índios ocupando canteiros de obras de Belo Monte, professores em greve ocupando a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, dentre incontáveis exemplos que apresentam a permanência no espaço como uma eficaz tática de desobediência civil pacífica. Em contrapartida, as respostas do Estado têm sido cada vez mais violentas, com soldados excessivamente armados e geralmente agressivos, atacando desnecessariamente cidadãos comuns exercendo seu direito de manifestarse em espaços públicos. Sendo que uma das principais estratégias das acampadas, como pregam as plataformas colaborativas desses movimentos, é o fato delas serem pacíficas, limpas e bem organizadas, não dando margem a argumentos oficiais que pudessem dissolvê-las. Sendo assim, as cenas de violência promovidas pelo Estado se tornam cada vez mais incoerentes frente à lucidez dos que falam pelo bem comum. Certamente um caminho milenar pode ser imaginado para traçar as origens da acampada enquanto prática de resistência, particularmente a partir das culturas nômades da humanidade. As relações mais próximas com essa prática aparentemente estariam com os movimentos de luta pela terra, as ocupações de latifúndios e imóveis, cujo ícone mais conhecido no Brasil são os acampamentos do MST, considerados uma "nova forma de luta e resistência" (ABRAMOVAY, 1985). Podemos até arriscar uma associação com certos levantes da história, como, para citar exemplos brasileiros, Canudos e Coluna Prestes, que em diferentes momentos também constituíram suas zonas autônomas temporárias (BEY, 2001) de espírito revolucionário e nômade. Por hora, tudo isso não passa de especulação dialética. Pois, de ciganos a quilombolas, da cultura hippie à cultura punk, dos festivais de contracultura às raves, dos êxodos rurais e urbanos, tudo pode estar interligado à atual atmosfera das acampadas numa teia tão imensa e complexa quanto à que conecta os indivíduos pelo globo atualmente.
Matilha Amorosa (Texto colaborativo feito numa matilha amorosa em constante reagrupamento e experimentação)
Não se trata aqui de dizer que o amor é isso ou aquilo, que esse tipo interessa, mas aquele não, e sim de, diante de suas múltiplas facetas, encontrar terrenos férteis onde ele aparece como o contrário da morte, ao invés de simples dimensão da vida: o que torna possível diferenciar a vida da morte é o amor! Diante disso, propomos o amor enquanto ferramenta de luta – como razão de ser mesma das ferramentas, e das lutas: terreno onde são semeadas as possibilidades de amar a vida, ou seja persistir na existência e de viver amando, lugar onde é semeada a experimentação da vida. Contra duas visões do amor: a arma que transforma sem ferir dos movimentos “peace and love” dos anos 70 que – como os saudosistas não se cansam de dizer – transformaram profundamente o mundo, sem tomar o poder. E o pragmatismo político que não deixa espaço para o amor: a negatividade que sustenta que a luta é sempre violência e objetividade. E que, por isso, a dimensão afetiva atrapalha e desvia o foco do combate. Queremos nos afastar do amor compassivo, identitário, base incondicional da filantropia dentre tantas outras formas caridosas de ação política. No pressuposto reiterado do “lutar por amor”, este é colocado como sinônimo de solidariedade, espécie de altruísmo em benefício dos iguais: quase sempre homens, brancos, heterossexuais, trabalhadores e “respeitáveis”; que se “ajudam” mutuamente ou “ajudam” os outros fazendo o trabalho de conscientizá-los e de organizar suas formas de vida. Procura-se impor ao outro um modo de ser a partir de uma forma de amor homogeneizante e excludente que exige um comportamento, uma forma de vida prédeterminada e uma identidade que justifiquem as suas relações. Como foi o caso da França revolucionária, que reprimiu brutalmente os bravos haitianos que, inspirados nos ideais da revolução francesa, fizeram a revolução em seus próprios termos; ou dos indígenas no Brasil, tratados como grupos de segunda classe por não serem “como nós” – e que por isso não tem direito à terra e às vezes, mesmo à vida.
Um corpo que não ama é um corpo morto. Nesse sentido o amor se materializa nos encontros, pelo simples e poderoso fato de encontrar o outro. O outro negro, a indígena, a outra travesti, mulher e/ou jovem, a vadia, o artista, o operário, o camelô, o maconheiro, a hacker, o militante, a favelada, o estudante, a punk, o viciado, o hippie da praça. O amor nesse sentido é marginal e é o comum que nos une a todos contra os ritmos e determinações das pulsões de morte do capital. Que recentemente e em última instância se materializam em Fukushima, Pinheirinho, Belo Monte, Guerra do Iraque, nos celulares e laptops manchados com sangue dos trabalhadores chineses etc. É no amor enquanto força que excede o campo do dado, do constituído, do aceito – que é normalmente e normativamente imposto – que o amar a vida e o viver amando florescem, admitindo os riscos, a relação com o desconhecido, o desviante – aquilo que faz desviar – o deslocamento, o inesperado, a nomadização: insistindo em outros roteiros diante de formas já estabelecidas (e capturadas) de repressão assim como de resistência. O amor enquanto abertura ativa para a diferença, expressão da criação e da invenção, que se opõe às formas de amor pelo semelhante, pelo conhecido – como forma de dissolução das diferenças e apaziguamento dos conflitos, que levadas ao extremo, despotencializam o amor e se tornam amor pela guerra, amor enquanto guerra. Contra os planos de morte do capital, e escapando deles, os planos de vida atravessados pelo amor em que a luta pela vida é necessariamente perpassada pela criação e/ou manutenção da vida em suas muitas formas: como o “ecologismo dos pobres”, expresso nas lutas de resistência praticadas cotidianamente por caiçaras, tambaquis, quilombolas, guairobas, indígenas, capivaras, caipiras, palmeiras, tatus, agroecologistas e tantos outros. Um amor pela terra, leia-se insistência da vida e crença na própria terra, nos homens, nas coisas e nos sentimentos. Luta que se materializa também na atitude dos jovens das periferias das grandes metrópoles que, num gesto prenhe de paixão, ateiam fogo e
destroem tudo o que encontram a sua volta, o que lhes lembra o amor que a cidade lhes nega! Na estratégia experimentada por estudantes gregos e chilenos que nos protestos utilizam-se do amor para conter os ataques truculentos da polícia. O beijo na boca na linha de frente das manifestações que imobiliza a repressão e faz o poder se ver desprovido das suas rotinas e protocolos totalmente baseados no já esperado confronto e disputa de força com os manifestantes. Plano de vida expresso pelo amor gay dos beijaços praticados mundo afora, e que em São Paulo paralisaram um grande centro comercial da cidade em resposta à repressão de um casal homossexual por agentes de segurança do shopping: beijaço que envidenciou que gays somos todos os que vivem (contra e) apesar das normas. O amor é a força que produz o comum pela diferença: das diferentes espécies, mitos, tempos, ambientes... das combinações singulares – cada qual um mundo distinto com seus diversos conflitos, mas que nem por isso deixam de compor a multidão de corpos e que, ao partilharem a força do amor são capazes de coabitar o mesmo espaço não pela subordinação, hierarquia ou guerra, mas através da luta pela vida e por sucessivos atos de devoração do outro desejado. Voracidade! Luta pela vida que é o oposto da fome, assim como o amor que se coloca é o oposto da morte: desejo que nos toma plenos e nos atira além, em busca daquilo que queremos e desejamos. Aqui a luta por amar se torna amor pela vida... pelas vidas, no plural! As vividas e as imaginadas: força que nos atravessa e que, nos atravessando, nos liga uns aos outros; força que desestabiliza ao mesmo tempo em que agrega. Como partículas que tanto se atraem mutuamente como se repelem, compondo aqui e ali com outras partículas e formando novos corpos. Sempre com grande violência. Nenhuma partícula é indiferente à outra, assim como nenhum corpo passa despercebido a outro corpo. O amor nos leva assim a novos lugares, novas situações, a alternativas e alternâncias, a variações sucessivas, sempre escapando da previsibilidade e do movimento linear. Afinal, que pode um corpo senão, entre corpos, amar? Editorial 3 GLOBAL
ARTE
Christopher Jones
THE ART SCENE IS SO FUCKED
BIOLUTAS
Giuseppe Cocco
Biolutas. As finanças estão por toda parte e funcionam como mecanismo perverso de uma inclusão generalizada que mobiliza os pobres enquanto pobres, enquanto excluídos: inclusão dos fragmentos e exclusão das singularidades constituem duas faces de um mesmo investimento paradoxal da subjetividade. As lutas de classe hoje definem esse limiar entre autovalorização do trabalho dos pobres e nova escravidão. Autovalorização: os informais que todo dia inventam sua vida e suas condições de trabalho; os precários que, como anjos, desdobram-se nas atividades de cuidado das crianças, dos idosos e dos enfermos e proporcionam flexibilidade aos processos produtivos; os trabalhadores cognitivos que remixam permanentemente os saberes e os fazeres em novas e potentes soluções tecnológicas e culturais. Nova servidão ao capitalismo mafioso de ontem (as milícias) e de hoje (os donos das patentes, do copyright e dos serviços privatizados); às prestações pessoais de tipo servil que caracterizam as sucessivas relações de terceirização; ao totalitarismo afetivo do projeto de empresa que leva seus empregados ao suicídio, como aconteceu nos centros de pesquisa da France Telecom, da Renault ou do fabricante chinês do iPhone. As lutas de classes no capitalismo contemporâneo são biolutas: elas ocorrem justamente em torno do duplo e paradoxal processo de inclusão e fragmentação da vida no trabalho. O sujeito dessas lutas é a multidão dos pobres. No governo Lula, eles passaram a ser chamados de “classe C”: com seu telefone celular, na favela pacificada, com o Bolsa Família, o acesso ao crédito e aos ensinos técnico e superior. Enquanto os pobres são reconhecidos como a mais nova jazida de um novo ciclo de acumulação, não são reconhecidas suas dimensões produtivas. O horizonte das políticas de distribuição de renda continua sendo o emprego e o mercado.
A massificação do Bolsa Família não rompe com sua dimensão neoliberal: todos os meses, milhares de famílias – as mais vulneráveis, aquelas que mais precisam − são expulsas do benefício, sacrificadas no altar da condicionalidade. Da mesma maneira, os Pontos de Cultura são sacrificados no altar da restauração do deus ex machina: o “artista” criador. Os megaeventos (Mundial de Futebol, Olimpíadas) e até o programa de moradia popular Minha Casa Minha Vida são usados para “remover” (de maneira ilegal e autoritária) favelas e favelados de determinadas áreas em nome de uma valorização imobiliária que estremece as já dramáticas formas de segregação espacial dos pobres.
Pontos de Cultura e dos hackers que colaboram gratuitamente em rede. Em contrapartida, indicam uma batalha fundamental, aquela do reconhecimento da dimensão de classe da “classe C”: não uma faixa de consumidores definidos pelas curvas do poder de compra de “mundos” impostos pelo capital, mas o trabalho dos pobres que produz uma nova terra e um novo povo: sua cultura, brasileira e antropofágica. Dos êxitos dessa batalha em prol do reconhecimento das dimensões produtivas da vida dependerá, pela instituição de uma Biorrenda (uma Renda Universal de Existência), a solidificação das instituições do comum.
Os megaempreendimentos são planejados segundo a mais pura lógica instrumental – exatamente como se fazia no regime militar do qual os economistas neodesenvolvimentistas gostam de fazer apologia: nem os índios e ribeirinhos de Belo Monte, nem os moradores de Santa Cruz (no Rio de Janeiro) da Companhia Siderúrgica Atlântica, nem os moradores de favelas e vilas, nem os operários de Jirau e tampouco os Pontos de Cultura entram nos cálculos a não ser como “obstáculos” a serem “removidos” ou pré-moldados nas pracinhas culturais que a Casa Civil impõe por meio do MinC restaurado. Mas os índios que resistem a Belo Monte, os moradores que defendem suas comunidades no Rio de Janeiro, os operários que se revoltam em Jirau, os ativistas dos Pontos de Cultura, dos pré-vestibulares e da cultura digital afirmam em suas lutas as dimensões produtivas da vida. Nesse sentido, as biolutas são, ao mesmo tempo, produtivas e reivindicativas. Na luta contra a fragmentação, elas produzem o comum: os territórios da mestiçagem entre cultura e natureza; a cidade dos pobres; um emprego decente; a rede dos movimentos culturais; o trabalho de amor dos professores dos prévestibulares, dos animadores dos 5 GLOBAL
BLOG
O Blog, ou Weblog, é um instrumento curioso: criado, a rigor, como uma plataforma para diários virtuais, uma fábrica de banalidades próprias ao individualismo liberal, ele termina por sofrer, gradualmente, uma (des)apropriação que o torna um ser potente no debate político; a própria potência tecnológica do blog traiu sua destinação, tal como acontece com o capitalismo cognitivo (que o criou) em sua relação (problemática) com a produção da multidão. Se o capitalismo cognitivo depende do conhecimento comum expresso em redes para conseguir funcionar, por outro lado, as mesmas redes são os modos definitivos de resistência contra ele próprio; o blog -- que deveria ser um pequeno gadget voltado para alguém falar sobre si mesmo -- possui uma estrutura interativa, por meio dos links, além da capacidade de publicar textos, imagens e vídeos instantâneos que servem à traição da sua teleologia egóica. Ele, portanto, é o lugar onde se bloga, no qual se exerce a arte da bloguística, cuja relação com a política é umbilical. No entanto, é fato que se assim como é possível usar a televisão para transmitir fotos em vez de vídeos sincronizados com som, é igualmente possível fazer jornalismo em um blog, o que, por mais bem-intencionado que seja, consiste em subestimar sua capacidade: a bloguística consiste em algo mais, na atividade ela mesma de articular textos -- escritos (na prosa e poesia, na alegria ou no lamento), fotografados, pintados, filmados etc – em um contexto político -- historicamente situado, mesmo no que toca aos assuntos mais singelos -- imersos em um grande hipertexto virtual com o pretexto de produzir bons encontros; o post de um blog não é como uma reportagem, ele não está dobrado na forma de um triângulo formado por um fato inteligido e aceito, o selecionador-emissor e, por fim, seus receptores mudos -ao contrário, ele está desdobrado na medida em que possui uma abertura imanente: está em constituição, seja pela caixa de comentários ou pelas interação possíveis e variadas, restando jamais constituído ou termidorizado. A passagem do blog egóico e estéril para o blog commonista e fecundo não é um processo objetivo, por suposto. A tecnologia e a técnica não são dotadas de qualquer (auto)funcionamento transcendente -- do mesmo modo que ninguém morre de contradição. Esse processo não é fruto de qualquer progressismo à la filosofia da história, tamGLOBAL 6
CAMPANHA
Hugo Albuquerque pouco eclode da condição sui generis do blog por si só: é o próprio desejo de ir para além, investido num agir militante, à busca de agenciamentos nas terras para lá do horizonte que, quando referido ao blog, produz esse efeito; sem meios e fins, mas sim causas e efeitos -ir para lá, desbravar novas terras sem deixar de pisar nelas e, assim, ter em mente que o horizonte não é alcançável como tal, o atual do virtual. A blogagem termina por ser solidão (bem) acompanhada em um noite erma, na qual nem os grilos fazem barulhos, embora de uma faísca postada aqui ou ali, uma crônica de um presente esquecido, as brumas devêm lembrança do aqui-agora e se faz rizoma. O blogueiro é, dessarte (e por sua arte), um solitário em permanente encontro, destinado a topar com a multidão, cortado por uma transversalidade que é própria de como, e onde, atua, o que faz emergir a própria multiplicidade do mundo e das coisas do mundo, dos muitos mundos dentro do mundo. Blog, grosso modo, pode se dizer mídia, mas certamente não é meio, é causa que leva a linguagem ao limiar permitindo o político devir real no comum das redes. O problema posto, retomamos, é o mesmo que Tarkovsky estabeleceu para o Cinema: muitas vezes, uma arte jovem carece de uma linguagem própria e, assim, é lícito buscar o que está ali, à mão; o mestre russo, por sua vez, optava pela linguagem da pintura -- e fazia a opção pelas linhas livres e virtuosas do Renascimento --, enquanto cá, no que toca à bloguística, sugerimos a linguagem da literatura filosófica – agenciada com a própria pintura e a fotografia – como um modo de, para fazer uso de um exemplo já citado, não transmitir uma sequência de fotos sem som ao fundo em uma televisão, ainda que reconheçamos estar bem longe do movimento das imagens e da sincronia com o som. O bloguismo revolucionário é a adoção dessa atividade como luta material, constituindo o real realizante pela atualização do virtual – e, também, pela virtualização do atual como forma de, do deslocamento do seu ser, fazer com que ele encontre algo ou alguém pelo caminho – como exercício prático do comum -- que lhe é prévio e no qual ele está imerso --; a blogagem é iconoclasta, destrói, na imanência, a doxa jornalística (e tantas outras, a acadêmica inclusive) para atingir as paixões tristes em cheio, vergando-lhes.
Adriana Britto P roduz indo imagens
VIVA A VILA AUTÓDROMO! RIO SEM REMOÇÕES!
Foi realizada uma oficina de cartazes, para pensar na produção de imagens da campanha, e a partir do que foi discutido – com a participação (sempre) de integrantes da comunidade, foram criados, numa colaboração entre uma designer e moradores, logotipos em duas versões: preto e azul (melhor custo-benefício para impressão em camisetas) e colorido (para internet e banners). Também foi criada uma série de cartazes virtuais “modalidades esportivas”, com o objetivo de mostrar quanta vida existe na comunidade e, com isso reforçar os aspectos positivos que existem também nas favelas. Utilizando o logotipo criado – Viva a Vila Autódromo – Rio Sem Remoções, foram confeccionadas 200 camisetas que foram vendidas ou distribuídas e utilizadas por um grupo repre-sentativo que participou da manifestação em apoio à Comunidade, sendo que algumas delas foram distribuídas a moradores da comunidade. O impacto visual causado foi importante, e tem efeitos contínuos, já que continuam sendo usadas pelas pessoas em seu dia-a-dia, constituindo uma forma de divulgação permanente da campanha, apta a atingir os mais diversos destinatários.
A comunidade de Vila Autódromo existe na cidade do Rio de Janeiro há décadas, e foi se desenvolvendo às margens da lagoa de Jacarepaguá, sendo inicialmente formada por pescadores, chegando hoje ao número aproximado de 400 famílias. É um exemplo de luta para dezenas de outras comunidades que tem sido ameaçadas ou despejadas em razão de políticas públicas que desrespeitam frontalmente o direito à moradia e à cidade. Isso porque, apesar das diversas tentativas de remoção ao longo de quase vinte anos, vem se mantendo e se fortalecendo diante de cada novo desafio enfrentado. O paradigma de resistência dos moradores da comunidade Vila Autódromo, e de suas lideranças incansáveis motiva não só a outras comunidades mas tem possibilitado a formação de uma enorme rede de apoio formada por movimentos sociais, pesquisadores, integrantes do sistema de justiça, estudantes, militantes de direitos humanos autônomos e cidadãos(as) que não se conformam com a injustificada remoção. Para dar maior visibilidade à história da Vila Autódromo e de outras comunidades que têm enfrentado ameaças de remoções, impulsionadas enormemente pelos projetos relacionados aos megaeventos que terão lugar na cidade do Rio de Janeiro, o GT Remoções do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas – Rio de Janeiro começou a discutir a criação de uma campanha “Rio sem Remoções”.
coordenação centralizada, e de uma forma muitas vezes improvisada e sempre bastante criativa e participativa, foram sendo fundadas e executadas as ações da campanha.
cia Rio +20) e que contou com a participação de cerca de 5000 pessoas. Alem dos participantes presenciais, várias pessoas acompanharam a mobilização pela internet acessando ao vivo através de streaming.
Alguns banners também foram produzidos, em tamanhos diversos e utilizando todos os modelos criados, e foram essenciais para a produção de imagens da campanha e para impactar positivamente todos os atos e manifestações dos quais a comunidade já participou. Um exemplar também ficou em local de destaque na Associação de Moradores, contribuindo para reafirmar aos moradores a potência da comunidade e de sua luta por permanência. A partir de recursos do Ponto de Mídia Livre – Revista Global, foram confeccionados 600 adesivos utilizando todos os logotipos e modelos de cartazes, que foram distribuídos aos participantes do ato.
Lan ç ame nt o of ic ia l
O Conselho Popular, movimento que reúne comunidades ameaçadas de remoção, também produziu um manifesto e ajudou na organização das atividades do ato. O Movimento Nacional de Luta por Moradia, que acompanha a luta da Vila Autódromo, realizou uma vigília na noite anterior e trouxe para a comunidade militantes de todo o Brasil.
Os custos financeiros para produção desses materiais foram supridos pela venda de camisetas e também financiados por recursos do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, contribuições voluntárias de defensoras públicas integrantes da Articulação Fórum Justiça (espaço aberto para movimentos sociais, academia e integrantes do sistema
C o mo f oi c on st ru ída a c am panh a? Além das lideranças da comunidade e do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, somaram-se outros voluntários e apoiadores que se identificaram com essa luta e tomaram para si a missão de participar ativamente de mais esse importante capítulo da história da Vila Autódromo. Assim, sem um planejamento estratégico ou mesmo uma
A Campanha Viva a Vila Autódromo. Rio sem remoções! foi lançada oficialmente no dia 20 de junho de 2012, dentro de uma grande manifestação global em apoio à comunidade, organizada como uma das atividades da Cúpula dos Povos (evento paralelo à conferên-
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CARAMUJO MAN de justiça discutirem o tema da participação popular no sistema de justiça) e outros tipos de contribuição.
propagados e outras ideias ainda a serem elaboradas.
Alê Souto Registro da ação na Cidade do México, 2010.
P lano P opular P ágina no f ac ebook Mais de 1000 pessoas já curtiram a página da campanha Viva a Vila Autódromo no facebook (www.facebook. com/vivaavilaautodromo) que adota a mesma identidade visual e é um instrumento ágil de divulgação permanente de notícias relacionadas à comunidade, além de atividades e eventos a ela relacionados. A administração da página é compartilhada por várias pessoas, possibilitando que seja constantemente atualizada sem sobrecarga de nenhum dos apoiadores; e também que seja enriquecida com as contribuições distintas que cada um pode aportar. Ainda no facebook, embora sem uma campa-nha oficial, por iniciativa de algumas pessoas que lançaram a idéia, o logo-tipo da campanha acabou sendo adotado como foto de perfil de vários apoiadores, que conseguem também dessa forma, reforçar a luta em favor das comunidades e contra as remoções! P ort al da c ampanha na int ernet O portal da campanha (http://www. portalpopulardacopa.org.br/vivaavila/) pretende dar visibilidade à história da Comunidade e de sua luta e, para tanto, traz relatos com a memória de moradores, declarações de apoiadores, histórico dos diversos argumentos que já foram utilizados ao longo dos anos para tentar justificar o injustificável: a remoção dos moradores. Encontramos também no portal o Manifesto “Vila Autódromo: um lugar marcado para viver”, que pode ser acessado em http://www.portalpopulardacopa.org.br/ vivaavila/index.php/manifesto, e que já recebeu o apoio de mais de 2.500 pessoas! Um dos pontos centrais da campanha, inclusive, é a obtenção de adesões ao manifesto, o que tem sido o principal aspecto de divulgação da página do facebook. É também é uma ferramenta “em construção”, pois pretende-se ampliar o conteúdo para incluir notícias que vem sendo publicadas em todo o mundo abordando a luta da comunidade, os logotipos da campanha para serem replicados e GLOBAL 8
Outro aspecto que deve ser destacado na história de resistência da Vila Autódromo é o aspecto da luta pela urbanização e pelas melhorias para a comunidade, e que avançou de forma significativa com a construção de um PLANO POPULAR, elaborado em parceria com duas universidades pública (Núcleo Experimental de Planejamento Conflitual do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro NEPLAC/ETTERN/IPPUR/UFRJ e Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos da Universidade Federal Fluminense do NEPHU/UFF). O Plano Popular da Vila Autódromo é um plano de desenvolvimento urbano, econômico, social e cultural que oferece uma alternativa democrática (contou com amplo debate e participação popular), econômica (é muito mais barato do que o custo com a remoção) e que garante a efetivação do direito à moradia adequada, que pressupõe condições de infraestrutura e acesso a serviços públicos, e outros direitos humanos correlatos. No dia 16 de agosto de 2012 houve uma reunião de integrantes da comunidade com o Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro, ocasião em que entregaram o Plano Popular juntamente com o manifesto e as assinaturas coletadas até aquele momento. No mesmo momento, houve um twitaço convocado por internautas contra as remoções, com a utilização das hashtags #remoçãonão e #vivavilaautodromo e sugestão de mensagens contra as remoções. Foi mais um capítulo na história da comunidade. E outros virão. Queremos conquistar novos apoiadores e buscar a adesão da população carioca para essa causa, que diz respeito à preservação do direito à moradia e demais direitos humanos de dezenas de famílias, que vem sofrendo os impactos drásticos dos megaeventos e megaprojetos. P or uma c idade para t odos! V iva a V ila A ut ódromo! 9 GLOBAL
CARNAVALIZAÇÃO
Cacá Fonseca e Pedro Britto
Carnavalização da corda: sobre rua e mobilização em Salvador
Desce do trono, rainha Desce do seu pedestal De que te vale a riqueza sozinha Enquanto é carnaval Desce do sono, princesa Deixa o seu certo rolar De que adianta haver tanta beleza Se não se pode tocar? Hoje você vai ser minha Desce do cartão postal Não é o altar que te faz mais divina Deus também desce do céu Desce das suas alturas Desce da nuvem, meu bem Por que não deixa de tanta frescura E vem para a rua também ARNALDO ANTUNES COMISSÃO DE FRENTE ::: A cidade encapsulada em tapumes; suas entradas, portões, praças, postos de gasolina, escolas, igrejas, hospitais, mercados, TUDO emparedado por muros provisórios de madeirite, que bloqueiam a tênue permeabilidade dos limites entre público e privado. Estes cercamentos se alastram por toda a região inserida nos circuitos “Barra – Ondina” e “Centro – Campo grande”, eixos hegemônicos do carnaval de Salvador; e amotinam-se também sobre o seu entorno. Um ermo de cidade, encerrada no fechamento para a segurança dos imóveis contrapõe-se à voluptuosidade dos camarotes, repletos de marcas de cerveja, de bancos, de GLOBAL 10
emissoras de televisão, de jornais e revistas, de cantoras, fechados para a segurança dos turistas e pagantes. O empresariamento da folia significa a indigência do espaço urbano, o reboque da dimensão pública pela privada, num assolamento das múltiplas espessuras foliãs intrínsecas à experiência cultural da vida urbana. A avidez pelo espaço ata à aspereza dos muros a efusividade de estruturas gigantes que pairam sobre o chão urbano com aderência pontual e metálica. Os pés dos andaimes pousam sobre a rua, empurram sobre sua superfície um espaço inacessível, os camarotes, e expropriam dela a sua existência insólita. Insultam a efusividade com a privação, de forma que a instauração da indigência do espaço público constrange a pulsão foliã dos corpos. Em 2012 a retração da dimensão pública das ruas de Salvador durante o carnaval passou por um efeito de amplificação e de radicalização dos instrumentos no momento em que a cidade se confrontava com mais uma aliança perversa entre capital público e privado. A praça de Ondina, localizada no final do circuito “Barra-Ondina” foi concedida pela prefeitura para a empresa Premium Produções Artísticas, responsável pelo agenciamento do Camarote Salvador. Tal empreendimento a princí-
pio reformou a referida praça a fim de obter o direito de uso, e para tanto orientou a conformação do espaço ao pressuposto de que tudo deveria desaparecer, tal como a tábula rasa moderna, entre os meses de dezembro a março. Todos os elementos do projeto mobiliário, traçado urbano, iluminação, equipamentos de esporte – e a própria inexistência da vegetação atestam a orfandade da praça e a desertificação da sua dimensão pública. PASSISTAS::: É quinta-feira de véspera de carnaval na cidade da Bahia, primeiro dia dos blocos na avenida, quando um grupo de foliões, agrupados pela insígnia de PIPOCA INDIGNADA, perfura a ordem pré-estabelecida do desfile e adentra o circuito “BarraOndina” antes de qualquer trio oficial e patrocinado. Levam cartazes militantes, denunciam nomes de vereadores corruptos, um dragão chinês traveste-se de metrô (aquele projeto fiasco que já soma 12 anos de construção), apitos, bloco das viúvas do prefeito João, da máfia do “busu”, enredam o corpo-acorpo, a irreverência, o inesperado no circuito e o transfiguram momentaneamente em rua. Ali onde o carnaval expõe o ápice da saturação de processos urbanos – mercantilização, empresariamento, privatização da vida e até mesmo da alegria – uma contração
súbita e transitória brinca a rua, instaura porosidade nas reentrâncias coletivas e públicas da sua alteridade. A folia reinveste sobre as marchinhas carnavalescas gritos: _ “É na rua carnaval, é na rua carnaval”, direcionados para os espectadores do circuito, que escorados no peitoril dos camarotes, estampados no peito a bandeira-abadá dos seus patrocinadores. Curto-circuito, rua, atravessamento, esbarrão, conflito, suor, emoção, atropelo, grito, polícia, “A rua é pública”, estranhamento, a comissão de frente puxa. O delírio desacelera a rítmica circuito-trio-elétrico, um arremesso de confetes pontilham e pulverizam R-U-A. A cadência é do caminhar, do pular, do contato, pés, chão, os passistas da pipoca indignada tomam a rua ... Eu quero é botar meu bloco na RUA Brincar, botar pra gemer Eu quero é botar meu bloco na rua Gingar, pra dar e vender Eu, por mim, queria isso e aquilo Um quilo mais daquilo, um grilo menos disso É disso que eu preciso ou não é nada disso EU QUERO É TODO MUNDO NESSE CARNAVAL... (Sérgio Sampaio)
ALEGORIA: a CORDA _ A corda! Olha a corda! , logo virou _ A cobra, olha a cobra. A cooooorda, Acorda a corda a corda Cordacordacordaacordacordacordac orda acorda a orda....... A arquitetura da segregação carnavalesca elabora-se com as hiper estruturas metálicas dos camarotes e a ínfima estrutura da corda, barreira de restrição implantada ao rés da rua, que fratura a multidão foliã em dois grupos, pagantes e não pagantes e aos primeiros reserva-se o privilégio da proteção erigida por uma corrente humana, os cordeiros. No motim dos pipocas, passistasindignados, a matéria plástica e fibrosa de uma extensa corda de 10 metros movimenta-se pelas mãos de dois foliões, que se revezam constantemente. Cada um alça uma das pontas e na estreiteza da sua linearidade fabulam círculos giratórios. Batem a corda, ondulam sua rigidez em elasticidade, fantasiam a corda-cobra e a corda pra pular. Atravessam na planura do asfalto uma flutuação propagadora dos sentidos da brincadeira e da infância. O espaço conformado pelas duas extremidades da corda em movimento é ocupado por grupos de 5, 6, 3 pes-
soas, convertendo-a num campo de atratividade intensivo e desfigurando sua expressão hegemônica, a barreira proibitiva. Intercepta camarotes, circuito, asfalto e de forma magnética, as crianças, arrebatadas pelo entusiasmo de existirem como tal, como crianças. Elas, pequenas operárias da folia, catadoras de lata em sacos às vezes do seu próprio tamanho, agem em bandos, às vezes duplas, por vezes visivelmente irmãos, uma ou outra só. É comum notar um espanto no seu rosto, parecem não acreditar que ali se pode pular corda. E entregam-se com um viço pulsante e um ímpeto de urgência à folia da corda, cantam, gesticulam saltos, misturam golpes de capoeira. Com a maestria de passistas, jogam de forma encantadora com a alegoria: pipocando a rua, pipocando R-U-A:: _ o homem bateu em minha porta e eu abri. Senhoras e senhores põe a mão no chão. Senhoras e senhores pulem de um pé só. Senhoras e senhores deem uma rodadinha. E VÁ PRO OLHO DA RUA! CANTIGA DE CORDA – (Domínio público) 11 GLOBAL
CIVILIZAÇÃO COMO BARBÁRIE
NÃO CIVILIZADA
Pedro Victor Brandão
Eduardo Baker e Julia Baker Uma recente propaganda da empresa Petrobrás vinculada na mídia impressa mostrava uma representação aérea do Rio de Janeiro na qual as favelas haviam sido digitalmente retiradas dos morros. Parte da população se manifestou contra a presença de um grande número de favelas no Google Maps. Eco-limites e muros de contenção em algumas favelas cariocas. Diversas comunidades sofrem ameaças de remoção por supostamente ameaçar o meio ambiente, mesmo não apresentando nenhum crescimento relevante e já existindo há décadas, como o caso da Vila Autódromo, Santa Marta e comunidade do Horto. Além dessas iniciativas radicais, a Prefeitura do Rio de Janeiro já tentou implementar outras formas de mascarar as favelas como pintar todas as casas de uma única cor; uma espécie de Grécia perdida entre os morros cariocas. Apesar de já fazerem parte da paisagem urbana, as favelas parecem não existir no imaginário ideal do Rio de Janeiro. Uma cidade imaginada como um oásis de praias e pessoas alegres tem que desvincular a sua imagem da pobreza e sujeira. Por isso a extração deste habitat tão tipicamente carioca das paisagens quando queremos vender o Rio. Da limpeza dos morros à limpeza das ruas. Um suposto processo civilizatório avançando sobre os grupos vulnerabilizados. O progresso e o crescimento. As imagens não civilizadas de Pedro Victor Brandão apontam para o elo e a problemática que atravessam estes episódios da nossa história recente e ainda em curso. A série Não Civilizada do artista simula passado imaculado invocado na imagem das montanhas virgens. A restauração de uma pureza fictícia e a denúncia da fabricação de um mito de origem. Empreendendo manipulação semelhante à da gigante do petróleo, Pedro Victor aponta em outra direção. O Corcovado sem Corcovado, O Pão de Açucar sem Pão de Açucar. O retirado é o componente civilizatório. Ausência que oculta. Esconde famosas paisagens não sobrepondo a imagem original com outra superfície, mas retirando daquele espaço o que o torna GLOBAL 12
diferencial. Pasteurização do espaço comum frente à multiplicidade como ameaça. A homogeneidade como meta. A imagem original de um espaço natural pré urbanização é a imagem criada do que nunca existiu. É um ideal que existe apenas no imaginário coletivo. A verdadeira natureza selvagem. Pensar em uma cidade de volta ao primitivo. A não-cidade onde a presença do homem foi anulada. O olhar porém denuncia a existência do espectador. Aquele que vê a imagem da série vê um cenário através do ponto de vista da câmera e adulterado pela manipulação daquele que a operou. O homem tenta fabricar a ilusão da sua não existência, mas ela está lá. O ideal do espaço natural originário é a apologia do ambientalismo contra o homem. A ficção de que o natural não é produzido e trabalhado pelo homem. Que devemos restituir à Terra sua verdadeira face. A natureza não é natural e jamais pode ser naturalizada, diria Harman. Este apagamento da contaminação da natureza pelo homem, apresentado por Pedro Victor, não é um ode ao estado natural mas a denúncia desta ideologia que, baseada em um imaginário de retorno ao puro, defende o fim de alguns homens em prol da preservação de um mundo para outros homens. A série nos provoca à refletir acerca da relação entre o discurso desenvolvimentista e certas práticas violentas e violadoras perpetradas por agentes públicos e privados em nome desse lugar de fala. A questão ambiental – cujo espaço na arte, economia e política vem crescendo – não pode ser analisada de forma estanque e destacada, mas como plataforma através da qual podemos pensar sobre os diversos dilemas da vida contemporânea. Sem cair na falácia do capitalismo verde e afirmando a dimensão comum desta luta. O social colado ao ambiental compondo um espaço de atravessamento. Questão ambiental como questão socioambiental – e não socioambiental. Sem hiato. Como pensar o discurso do desenvolvimentismo através de sua incidên-
cia e seu ser incidido múltiplos e multitudinários? Desde o tratamento urbano das favelas cariocas até a construção de hidrelétricas no norte do país. Da restrição cada vez maior à entrada de refugiados no Brasil à criminalização daqueles que resistem à implementação de indústrias poluidoras em suas comunidades. Stengers, em 2009, afirmou “não me perguntem que ‘outro mundo’ será possível... A resposta não nos pertence, pois pertence a um processo de criação.” O não civilizado de Pedro Victor desnuda o embate ideológico que tenta ser ocultado pelos proponentes da solução desenvolvimentista ao apresentar a utopia (distópica) de um futuro tecnológico sustentável por um lado e pelos defensores do encolhimento irrefletido da distopia (utópica) do futuro primitivo. A série expõe a céu aberto as ranhuras destes discursos que circulam no nosso imaginário e inconscientes coletivos. As formas de se ver e experimentar a questão socioambiental e a violência do discurso desenvolvimentista. Propõe às subjetividades em resistência um agenciamento transversal e atravessador. (Re)articula a arte com a política menor. No prefácio ao Mil Platôs de Deleuze, Massumi afirma que “um conceito é um tijolo. Pode ser utilizado para construir um tribunal da razão ou pode ser arremessado em uma janela.” Acreditamos que a série Não Civilizada é como obra-conceito que pode, e deve, ser arremessada contra as janelas espelhadas e opacas que tentam esconder de nós o apagamento da nossa alteridade.
SÉRIE NÃO CIVILIZADA LAGOA RODRIGO DE FREITAS #1, 2010, impressão em jato de tinta sobre papel de algodão, 25 x 20 cm. 13 GLOBAL
COPESQUISA Teoria e prática se distinguem, mas não se separam. Não há teoria que não esteja nutrida de práticas, nem prática que não seja animada por teorias. É caso de perceber os atravessamentos. A prática eficaz pode ajudar a mobilizar teorias até então infecundas, tanto quanto uma boa teoria pode desbloquear práticas ineficazes. Uma prática pura é tão impossível quanto uma teoria pura. Erros simétricos: voluntarismo e intelectualismo. Teoria e prática que não se percebem entre si significam teoria ruim e prática ineficaz. Em geral, separar teoria e prática é um procedimento associado a uma prática e uma teoria elitistas. Estas hierarquizam os saberes, estabelecem lugares de enunciação, interditos e campos invisíveis, e dessa forma integram dispositivos de poder. Dissociam sujeito e objeto, põe o objeto como coisa a assujeitar-se pelo sujeito teorizador, objetificam o sujeito. A copesquisa se faz de outra forma: entre sujeitos abertos à mudança de perspectiva. Nesse sentido, ela é perspectivista. O portador do método dispara uma perspectiva de libertação. À tendência descritiva ou sociológica, tem-se uma tendência política voltada à ruptura. A copesquisa militante toma como ponto de partida a relação entre teoria e prática. Seu problema está em exercer uma teoria prática e uma prática teórica, onde produção do conhecimento e ativismo se dobram e redobram. É uma pesquisa das lutas nas lutas. Investiga um horizonte alargado de insatisfações, tensões, recusas, antagonismos e diferenças no modo de viver e gerar juntos. Ela investiga a composição política dos sujeitos produtivos, seus modos de auto-organização e liberdade. Pesquisa os momentos de autonomia por dentro do "modo de produção", enquanto constituição material dos tempos e espaços. Analisa a produção do espaço e a libertação do tempo. Instala-se na emergência dos novos sujeitos produtivos, nos cronótopos do trabalho vivo. Perscruta pelo que se movimenta, se expande e propaga, pela franja movente e constituinte de novos direitos, formas de vida e subjetividades. Os saberes que interessam à copesquisa circulam nesse comum produtivo. São saberes vivos. No fundo, a copesquisa já está, os sujeitos que habitam a franja já a realizam. A resistência ou pobreza já implica um pensamento organizado pela própria condição. Isso já exprime uma estética e uma poética. A copesquisa não é algo a se fazer, mas uma práxis coletiva de comGLOBAL 14
Bruno Cava
partilhamento, inovação e enxameamento de saberes vivos, que todavia pode ser potenciada. Por isso, a copesquisa tem um "tempo longo". Sua temporalidade se faz no paciente emassamento do sujeito revolucionário, ou melhor, na paciente produção de subjetividade revolucionária. Esta se condensa com a paulatina organização da autonomia, dentro e contra o "modo de produção" capitalista, sem fazer planos de sociedade futura ou aspirar a foras utópicos. A negatividade por si só nada cria. A recusa à subjetividade do capital está assentada numa positividade maior, a vontade de viver além da sociedade capitalista, vontade que é imediatamente ação coletiva, potência em ato. A trama dispersa desses atos, as alternativas, sabotagens, astúcias e recusas, tudo isso vibra junto numa rede. A copesquisa circula nessa rede. Aos poucos, é estimulado o aparente "espontaneísmo" das resistências e reexistências, mesmo cotidianas.
quiçá "terroristas", bem como a juízos normativos, juízos a respeito do grau de anticapitalismo dos outros, de quão à esquerda se situa este ou aquele. A vanguarda da denúncia não procria. A copesquisa assume que o comunismo não sucede o capitalismo. Precede-o em todos os aspectos, e continua vivo apesar das dentadas do vampiro. Tudo o que fora homogenizado e metrificado pelas sínteses ainda pulsa. Essa pulsação excede a forma do capital e se converte em imaginação. E imaginação real, o processo imanente de fabulação que a copesquisa acelera. O que fortalece é a positividade. O que interessa é a materialidade das lutas. Nenhuma pesquisa ou análise fora da franja.
COREOGRAFIA
Dani Lima e Paola Barreto
Coreografia para prédios, pedestres e pombos
com participacão do Brecha Coletivo e foto de Lopes
O processo como um todo revela o caráter abstrato da classe, o caráter global da luta, a possibilidade de as diferenças se comporem no mesmo plano político. Isso sem se reduzir à identidade, sem renunciar à própria distância constitutiva entre os sujeitos, numa autêntica unidade do movimento real. Essa abstração não é negativa. É construtiva do real. Trata-se da abstração determinada. O capital também abstrai. Por exemplo, abstrai a propriedade da posse, o valor do trabalho vivo, o indivíduo do conjunto das relações sociais, em suma, as relações de produção das forças produtivas. Sem abs-tração, os termos não entram em relação e o processo como um todo não se move. O termo abstraído está mais longe do concreto, mas desse jeito participa do processo mais complexo e sofisticado de acumulação, o capitalismo. Essa síntese do capital, contudo, arrasta consigo uma riqueza enorme de determinações materiais. Quer dizer, toda a luta de classe, a multiplicidade viva que anima a produção capitalista termina aterrada pela lógica capitalista. O trabalho da copesquisa consiste em descer às forças produtivas e reverberar as determinações sintetizadas, mas incandescentes. Está em fazer aflorar as diferenças, os antagonismos, as singularidades, aflorados juntos, um arquipélago de microrrevoluções, um enxame de híbridos. Sem esse enriquecimento de determinações, a vivência do antagonismo resulta não só impotente, como conduz a uma teoria e uma prática ineficazes e contraproducentes. A abstração indeterminada só pode levar a golpes toscos, 15 GLOBAL
CONCATENAÇÃO
GLOBAL 16
Christopher Jones
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DESCARTOGRAFIAS
Mariana Novaes
Descartografias visuais, sonoras e audiovisuais: uma experiência coletiva no Recôncavo Baiano Rádio Interofônica é um coletivo que surgiu em 2010 pela fusão de dois outros grupos – Ondas Radiofônicas (RJ) e Rádio Amnésia (BA/PE/PB) – e criado para realizar atividades de rádio-arte durante o Circuito Interações Estéticas, promovido pela Funarte. Atuou nas capitais São Paulo, Recife, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Em 2012, pela primeira vez, o coletivo atuou em uma cidade do interior. O presente texto trata desta experiência em Cachoeira (BA). O projeto “Rádio Interofônica #5: Descartografias visuais, sonoras e audiovisuais” produziu um mapeamento diferenciado da cidade e região, consistindo em uma cartografia livre das artes visuais, sonoras e audiovisuais em Cachoeira. Foram utilizados sons, imagens, espaços e idéias como dispositivos relacionais, em um processo compartilhado com artistas locais, artesãos, estudantes e outras pessoas da comunidade. O trabalho consistiu na criação de uma rádio temporária e no desenvolvimento de uma cartografia mais subjetiva da cidade. Desenvolvemos estratégias para instaurar espaços de encontro e realizamos tais atividades com ações catalisadoras como: ter a sede das duas atividades (mapeamento e rádio) em um mesmo espaço físico; conciliar atividades conjuntas com a programação do 3o. Festival de Intervenções Artísticas do Recôncavo (FIAR); e agregar ao coletivo de trabalho pessoas já residentes na cidade, criando um grupo interdisciplinar. Partimos do princípio de que a linguagem radiofônica entra em ação como uma plataforma relacional de encontro, contaminação e diálogo entre habitantes e estrangeiros, entre tradição e contemporaneidade. Na transmissão ao vivo, além de colocar em contato os conhecimentos e musicalidades trazidas por artistas visitantes, pudemos explorar a dimensão da palavra falada, possibilitando o acontecimento de entrevistas e debates. A prática cartográfica foi apropriada para, no projeto, funcionar como um caminho para repensar e propor outros usos para os espaços públicos. Viabilizou a reflexão sobre estar no mundo e, GLOBAL 18
também, sobre as relações que se entrelaçam para formar um território propício para produções multidisciplinares. Na sede do projeto montamos a rádio e foi daí que transmitimos programas de música com artistas locais e do cenário nacional. A programação musical convidou artistas da região, que já conta com um amplo cenário: dos grupos de samba duro aos artistas de reggae. Também realizamos entrevistas e bate-papos ao vivo, através de ondas FM, nos 88,5 MHz, e pela internet, através do link no blog do projeto <http://radiointerofonica. wordpress.com>. No mesmo espaço físico onde estava a rádio, fixamos na parede uma lona (2 x 7 metros) que serviu como suporte para o exercício de cartografia. O mapa foi iniciado contendo somente algumas ruas e acidentes geográficos. Depois, cada pessoa intervinha e o ampliava com novas ruas, pontos do seu campo de interesses ou mesmo desenhos-ícone – colocando-se, assim, na cartografia. Com a rádio transmitindo 24 horas por dia, alguns participantes passaram a realizar intervenções pela cidade, espalhando grafites com a frequência e sintonizando a rádio no espaço público. Estas ações objetivaram não somente trazer pessoas para a sede da rádio, mas derivar pela cidade, encontrando seus moradores em seus territórios, experienciando outras temporalidades e ampliando nossas percepções da cidade. Alguns temas para este movimento nômade foram: mapeamento fotográfico dos grafites já existentes; explorações sobre territórios periféricos, como a favela do Viradouro; passeio pelo rio Paraguassú, observando Cachoeira e a cidade vizinha de São Félix a partir do ponto de vista do rio; visita a diversos terreiros, de diversas nações de candomblé; descobrimento de tampas nas calçadas com a insígnia Aldebarã; entre outros. O resultado dessas vivências, transposto para o mapa na lona, agregou outra camada de intervenção no mapeamento físico da região, que já vinha sendo construído com todos que passavam pela sede do projeto.
Estabelecemos uma parceria com o grupo de pesquisa Link Livre, da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), que já vinha realizando um trabalho de mapeamento digital da região, tendo como plataforma o projeto OpenStreetMaps, uma vez que a cidade não possui mapa na plataforma Google Maps. Enquanto o mapa de Cachoeira era ampliado na lona através desta colaboração processual, o grupo Link Livre atualizou a representação virtual da cidade no projeto OpenStreetMaps. E partir desta atualização, a plataforma MapaRec (projeto do Link Livre) foi ampliada, permitindo que qualquer usuário possa marcar seus pontos ou trajetos no mapa virtual, com informações multimídia. No processo, portanto, as referências dos participantes foram expressas através de fotos, áudios, textos e vídeo e transpostas para a plataforma MapaRec <http://maparec.ufrb.edu.br/>. Os recursos artísticos, comunicacionais e tecnológicos foram utilizados como dispositivos para enriquecer as relações identitárias durante o processo, reforçando o protagonismo de quem retrata e é retratado no mapa produzido coletivamente. O encontro entre diferentes pôde afirmar identidades enquanto construía novas possibilidades de reconhecimento, sem subjugar ou negligenciar as diferenças presentes entre agentes de contextos diversos. Neste sentido, promoveu-se a contaminação – onde contaminar-se pelo outro não é confraternizar-se, mas deixar que a aproximação aconteça e que as tensões se apresentem. E foi deste estranhamento que o encontro se estabeleceu. http://mariananovaes.wordpress.com/
DESEJOS
Marcelo Wasem
Desejos, imprevistos e improvisos no projeto Rádio Interofônica #5 Planejamento e improviso. Entre estes dois pólos o projeto “Rádio Interofônica #5: Descartografias visuais, sonoras e audiovisuais” aconteceu. Por um lado, as atividades artísticas previstas foram realizadas de acordo com o que foi previamente pensado pelo coletivo Interofônica. Por outro lado, somente durante a execução das ações é que elas puderam ser realmente efetivadas e ativadas, já que a participação do contexto era fundamental e moldou as próprias formas de realização do trabalho colaborativo. E é justamente neste momento de efetivação que se faz necessário saber improvisar. Antes de discorrer sobre o tema, explicarei resumidamente o projeto.
fundidas em metal com a insígnia “Aldebarã” e um ano (sempre entre 1980 e 1984). A quantidade destas tampas em comparação com outras era bem menor e cada encontro tinha peso significativo, quase como descobrir uma linguagem secreta inscrita entre o nível da rua e o subsolo. Cada tampa era fotografada, batizada e inserida na Constelação de Aldebarã – um grupo imaginário de estrelas, desenhado sobre o mapa da cidade. Com o público, foram criadas diversas interfaces lúdicas para que novas tampas/estrelas fossem descobertas, primeiramente em Florianópolis, e depois em Criciúma (SC), Porto Alegre (RS), Maringá (PR), Rio de Janeiro (RJ).
Os dois eixos de atuação foram a criação de uma rádio temporária local e a construção processual de uma cartografia colaborativa, em uma lona de 2 x 7 metros e na internet, através da participação dos diversos moradores de Cachoeira (BA) e região. Conforme coloca Mariana Novaes, outra integrante do coletivo Interofônica, no texto “Descartografias visuais, sonoras e audiovisuais: uma experiência coletiva no Recôncavo Baiano”, estes dois eixos foram articulados para criar um espaço de encontro, convívio e troca, possibilitando uma produção de desejos em comum.
Ao chegar em Cachoeira, pela primeira vez deparei-me com uma maior quantidade de Aldebarãs já presenciada. A cada 5 metros, uma tampa/estrela era encontrada. A busca, antes uma procura minuciosa, ali se tornou um exercício banal. Tentei usar a localização da tampa/estrela para iniciar conversas na rua (como na frente da loja “Miscelânea Iemanjá”) ou mesmo comparar as pequenas diferenças entre elas, através da fotografia. Durante duas semanas de vivências presenciais, usei diferentes táticas, tal qual um músico que improvisa sobre um mesmo tema, sem chegar a um formato fechado conclusivo.
Esta prática coletiva, no entanto, parte e dialoga com os desejos e intenções pessoais de cada envolvido. O envolvimento dentro dessas práticas de arte é amplo e diverso, desde os integrantes do coletivo até os artistas, artesãos, estudantes e articuladores culturais, nascidos ou não em Cachoeira. No meu caso, enquanto artista propositor e à frente dos objetivos práticos do projeto, vivenciei duas experiências distintas durante a realização do meu desejo de estabelecer um diálogo entre as pessoas deste contexto específico e minhas vivências artísticas anteriores. A primeira delas foi quando encontrei mais uma tampa/estrela da constelação de Aldebarã. O trabalho “Descobrindo a constelação de Aldebarã” teve início em 2003, em Florianópolis (SC), quando comecei a encontrar e pontuar sobre o mapa da cidade tampas de incêndio
Porém, a proposta onde o improviso realmente se efetivou foi no Diário Cartográfico – fruto do diálogo entre eu, Mariana Novaes, Ronaldo Eli e Luciana Tognon com um dos participantes do projeto, Roni Bon. Foi este último quem trouxe sua experiência do trabalho em gráfica e deu início à uma publicação tamanho A3, criando capa com tipografia artesanal e encadernação manual. O Diário teve como objetivo registrar a passagem do público pelo espaço da Rádio Interofônica, interferindo nas suas páginas com desenhos, textos, poemas ou simples comentários. Mas tal proposta surgiu como uma indefinição da artista Luciana Tognon dentro do projeto. Inicialmente ela ministraria uma oficina relacionada à prática videográfica. Contudo, durante a implemen-
tação da rádio e da cartografia na lona, a oficina deixou de ter um propósito definido. A partir do desejo de interação com as pessoas que estavam freqüentando diariamente o espaço da rádio e, principalmente, através de uma escuta atenta às possibilidades em potencial, que se pôde pensar e viabilizar colaborativamente tal proposta. O Diário surgiu com o intuito de criar diálogos, circulando entre os moradores de Cachoeira, mesmo depois do término desta etapa presencial, tornando-se, assim, um dispositivo cartográ-fico móvel. Estes diálogos trouxeram surpresas já nas primeiras interações. Outro residente de Cachoeira e participante de algumas atividades do projeto foi Rufino. Ele é restaurador e estava trabalhando na igreja ao lado da sede temporária da rádio. Dentro do Diário, fez desenhos do que para ele é significativo: atabaques, vasos cerâmicos de comidas, mulheres com típicos trajes baianos e uma antiga luminária de rua. Quando perguntei sobre este elemento, ele me falou da intensa presença delas pela cidade – um indício da sua longa história, com 481 anos desde sua fundação. Esta informação poderia ser enumerada como mais um dado histórico do local, porém novamente me deixou surpreso. Depois da conversa com Rufino, encontrei luminárias na câmara municipal, em uma casa antiga abandonada e até na igreja em restauração. Diferente das tampas/estrelas, que se comunicaram com minhas experiências urbanas anteriores e minha proposta artística, a luminária colocou em relação as múltiplas temporalidades presentes na configuração da cidade pela arquitetura e mobiliário urbano, mas principalmente criou um vínculo compartilhado entre eu, passageiro, e Rufino, residente. Relação que surgiu desta mescla entre ter o desejo objetivo de realizar algo e manter abertura para que os fatores imprevistos e não calculados ocorram. É neste sentido que o improviso se apresenta como um saber específico das propostas que buscam o diálogo vivo e afetivo entre propositores e participantes de projetos artísticos colaborativos. 19 GLOBAL
EM FRENTE, PROTESTO
Pablo de Soto
Lucha antinuclear en Japón desde Fukushima
¡No tenemos trabajo, no tenemos dinero, pero tenemos radioactividad (indignación)! ¡Vamos a estar acampados hasta que paren todos los reactores nucleares en Japón! ¡Vamos a cambiar la política energética! ¡Reclama la vida, fin al capitalismo nuclear! (Proclamas antinucleares escuchadas en las calles de Tokio entre noviembre 2011 y febrero 2012.]
La crisis nuclear originada a partir del accidente de múltiples reactores en la Central Nuclear de Fukushima – situada a apenas 200km del área metropolitana más poblada del planeta – ha producido un enorme conflicto social y político con ramificaciones globales. La protesta antinuclear está caracterizada por 1/ ser una protesta en el campo reproductivo, liderada por las mujeres que se resisten a la naturalización de la catástrofe nuclear de la que ellas son las mas afectadas; 2/ ser en esencia, una demanda por una democracia más participativa donde, comenzando por el modelo energético, la población tenga una participación más directa de los asuntos fundamentales. Desde las movilizaciones contra el tratado de seguridad con EEUU de finales de los años 60s no tenían lugar en Japón protestas multitudinarias. Antes de Fukushima el disenso no estaba socialmente aceptado e imperaba un estricto control social. Las movilizaciones, con distintas demandas y problemáticas nunca alcanzaban más de unas centenas de participantes. La repolitización de la sociedad japonesa comenzó un mes después de la explosión de los reactores, cuando se convocó la primera manifestación para protestar contra la falta de información pública sobre la dimensión de la catástrofe. La indignación ciudadana creció a partir de la declaración de TEPCO – la compañía propietaria responsable de la Central Nuclear de Fukushima – en diciembre de 2011 de que el accidente ya estaba solucionado y al temor de la posibilidad de nuevos accidentes. GLOBAL 20
Aprendiendo y superando el estigma de finales de los años 60s, cuando una parte de los movimientos sociales implosionaron con violencia dentro de su seno y fueron la excusa para a una enorme represión policial, las formas de protesta actual están marcadas por ser radicalmente no violentas, al mismo tiempo que confrontan físicamente e ininterrumpidamente los centros de poder. De entre las innumerables marchas y acciones llevadas a cabo, Occupy Kasumigaseki y Acción frente a TEPCO han sido posiblemente las más simbólicas e incisivas. Occupy Kasumigaseki es una acampada de protesta frente al triple Ministerio de Industria, Comercio y Economía, el corazón administrativo de Japón en el distrito gubernamental de Tokio. El campamento comenzó el 11 de septiembre de 2011 como apoyo de tres jóvenes que se pusieron en huelga de hambre para demandar la paralización de las obras de un reactor en su ciudad. La demanda del campamento, que ya ha cumplido un año, es la paralización de todos los reactores del archipiélago. El grupo de ación Anti-TEPCO organiza acciones mensuales de protesta a modo de escrache frente a la sede central de la compañía en Tokio. El climax del conflicto se alcanzó en junio cuando el gobierno decidió reactivar dos reactores nucleares en la prefectura de Fukui después de que en mayo todos los reactores del archipiélago se pararan por primera vez debido a las pruebas de seguridad a raíz del accidente de Fukushima. Esta decisión llevó a la multitud a intensificar las protestas y concentrarse
frente a la oficina del gabinete del primer ministro en Tokio. La acción fue organizada por la Coalición Metropolitana contra las Nucleares, un enjambre de redes y organizaciones creado para cristalizar la lucha del movimiento antinuclear, y que llegó a alcanzar 200.000 personas el día 29 de junio. Ante el apagón informativo por los medios de comunicación corporativos y estatales, que afirmaban que se trataba de una protesta minoritaria, un grupo de periodistas independientes consiguieron alquilar un helicóptero para filmar desde el aire la magnitud de la movilización. Bautizaron la acción como “proyecto de grabar desde el cielo” (Heri kusatsu projecto) y es posiblemente la primera experiencia conocida de “helicóptero ciudadano” mediactivista. Las concentraciones frente a la sede del primer ministro se han institucionalizado como “protestas de los viernes” y se han extendido frente a las sedes del gobierno y la industria nuclear en muchas otras ciudades del país. Los gritos “Saikado Hantai!” (¡Contra la reactivación!), “Kodomo o Mamoro!” (¡Protejamos a los niños!), “Genpatsu iranai!” (¡No queremos centrales nucleares!), “Genpatsu Hantai!” (¡Estamos contra la energía nuclear!) y “Genpatsu Hanzai” (¡La energía nuclear es criminal!) resuenan en toda la geografía del archipiélago. En unos de los corazones de la matrix industrial capitalista, la rebelión contra la mafia nuclear está en marcha. Para más información y contexto sobre este artículo pueden visitar http:// scoop.it/t/cartas-desde-fukushima
ESQUIZOPOÉTICA A esquizopoética não tem método. Ela faz aquilo que Deleuze pedia a respeito do procedimento da filosofia: se contenta em rosnar, coçar, convulsionar-se como um animal, e não em aprender a bem pensar. A esquizopoética rosna, convulsiona-se, grita, uiva, articula sopros e palavras conforme um estranho alfabeto em que o corpo é tatuado pelos signos. Corpo da cidade, do negro, do mulato, do analfabeto, do “Classe C”, do mauricinho, do trabalhador precário. Mas a esquizopoética é um pouco míope a essas figuras ainda demasiadamente sociológicas; e da psicologia ela só retém o essencial: nada. Ela não se interessa por seus sentimentos, por sua compaixão, mas se conjuga com o animal que há dentro de você, e devém animal, ela mesma, no processo. Nenhuma bestialidade, entretanto. A esquizopoética é ciência, e, como tal, precisa. Mas fractal, antes que geométrica; ambulante, antes que sedentária. A esquizopoética não tem orgulho nenhum de ser nômade: ela o é por necessidade, e conforme ao axioma da estética da Fome, de Glauber Rocha, de que tudo de bom que a humanidade (mas a esquizopoética desconhece a humanidade) foi capaz de produzir nasceu do estômago. A esquizopoética é uma culinária política, como nos ensina um de nossos pais (o que mais amamos devorar no banquete totêmico), Oswald de Andrade. Culinária dos corpos e dos signos disjuntos, da parcialidade intensa de um corpo fabricado, artificial, queer, travesti, gigolô. Somos parciais, nunca relativos. Tatuamos nossos signos sobre os corpos urbanos, indígenas e ambientais. Então, o que é um signo, para a esquizopoética, qual a sua política dos signos? Sabemos (quem sabemos?) que o que de interessante aconteceu em arte, no século XX, desde Baudelaire a Rimbaud, desde Francis Bacon aos surrealistas, desde o modernismo brasileiro aos pontos de cultura(!), referiu-se a elevação do signo (escritural, colorativo, linguístico, plástico, etc.) para além da representação. Se Baudelaire cantava – ainda com a máconsciência do tormento romântico, é certo – o sublime em uma puta, um mendigo, ou num menino diabolicamente travesso, Oswald cantará o
Pedro Laureano Sobrino
Brasil menor dos mulatos, dos acrobatas do asfalto, dos Índios sem nenhuma indianidade. O selvagem assiste indiferente às líricas que tentam qualificá-lo de bom, e sereno janta Olavo Bilac em sua taba. A esquizopoética conjuga o sublime ao grotesco, portanto, e seu signo porta a violência de um encontro, não de uma representação. De fato, perdemos qualquer capacidade de representar o que quer que seja. Nossos itinerários são ambulantes (daqueles ambulantes que atravessam a cidade e compõe sua poesia móvel) e encontramos nossas palavras nas bocas dos mendigos, dos vagabundos, mas também dos doutores, das peruas, dos políticos. Nossos signos são capazes de vestir os reis de sua nudez, e como diz um artista que já militou na esquizopoética em algum momento de sua carreira, contentamonos em perceber “que o rei é mais bonito nu”. A esquizopoética é uma política dos signos. Ela ama o feio, mas não tem qualquer fetiche por ele: atingir nosso próprio ponto de subdesenvolvimento, como diria o outro (Deleuze). A esquizopoética conecta-se à política nos lugares mais insuspeitos: no ato falho de um governante (poesia das avessas), no delírio de um esquizofrênico liberto do hospício, nos dizeres pichados em muros pelas cidades. Trata-se de fabricar uma língua nova que fuja dos clichês que nos aprisionam em respostas prontas. Nossa língua não se reparte mais em uma obra, ou um autor: trata-se de dessacralizar o lugar da arte para surpreendê-la no heterogêneo. A esquizopoética existe aonde existem redes produtivas que fazem poesia a partir da Multidão (Negri e Hardt): uma épica urbana, indígena e ambiental sem autoralidade. Se Homero é o poeta anônimo do mundo mítico pré-filosófico, nós somos os poetas anônimos do mundo pós-moderno que nunca foi moderno. A esquizopoética não é um nome: podemos chamá-la de qualquer coisa. Não advogamos qualquer anarquia, apenas amamos o que não é nosso. Só me interessa o que não é meu (Oswald): roubamos, não trocamos. E as citações são como assaltantes nas estradas (Benjamim). Reivindicamos uma política dos signos que nasce do estômago e a ele deve retornar. 21 GLOBAL
ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA Após Foucault, como não radicalizar a estética da existência? Em todo seu percurso de construção de um esquema de pensamento paradoxalmente desconstrutor e criativo, Foucault aporta no cuidado de si e na estética da existência numa atitude afirmativa: a busca do cultivo de possibilidades. Uma cumulação de todo seu trabalho, no delinear de jogos de verdade, na produção ativa da realidade, no diagrama político energizado por uma ética. Desafia tudo isso dentro de uma estética viva, com resistência e liberdade inflexionadas em cada dobra realizável. Não há sujeito, e sim uma prática constante e complexa – não imanejável, mas exigente. Como suportar e habitar com a estética da existência de Foucault? Como tal noção aciona lutas e embates no contemporâneo? Qual seu corte, sua contundência? É preciso, antes de tudo, retirar decalques e nós estáticos, e ativar a proposição dentro das lutas – da vida –, tendo como propulsão as considerações de prática de liberdade e criação vital. Estética da existência não desenrola somente escritos e abstrações conceituais. Sua potência é de atuação, é pragmática, e trazer seus tensionamentos para dentro do real é catalisar nossas resistências e proposições por um possível. Tal postulação cunha brechas de ação. O plano da estética e sua imensa potência de criação, que traz em arrasto as dimensões políticas e éticas das ações no real. E a noção de existência como constituição de um si, longe de individualidade ou mesmo grupo delineável, e sim processo constante de criação de modos de vida e práticas de liberdade. E com Deleuze e Guattari temos mais combustível nesse enfrentamento que Foucault inicia. Temos: fuga, ruptura e guerra, num nomadismo que busca agenciamentos e parcerias confabuladas. Heterogeneidade plural de conceitos, obras artísticas, análises políticas, numa POPanálise engenhosa. A quebra é profunda e a superfície heterogênea. O pensamento processual invade a pretensa divisão racional do real e faz rupturas afirmativas. Arte, ciência e filosofia são divisões de especificidade de procedimento do pensar, não de hierarquia. Há de se filosofar artísticamente, artefactuar com conceitos, e isso sempre a empreender a afirmação do novo. Com que pretensão poderíamos recolocar tais paradoxos avivados por nossos intercessores dentro de caixas confortáveis e digeríveis? Como viver como obra de arte? De postulações a armas de luta, da filosofia à GLOBAL 22
Gabriel Alvarenga Da postulação ao ato
prática, do livro à rua. Estamos a engastar uma estética da existência, um nomadismo, uma máquina de guerra onde se busca brecha de ação, de criação dentro do sistema. Estética – dimensão de manejo e potente de criação. Arte – pensamento no traçado de inusitadas maneiras outras de interferir na produção do real, mas interferir pela afirmação do diferente, do arranjo novo e mutante. Existência – queda do sujeito individual, cunhando uma liberdade que deve ser reiteradamente praticada e com resistências criativas e vivas. E temos o encontro, o agenciamento como ponto de ação. No agenciamento, seja ele entre um leitor e uma palavra ou num numeroso levante contra sistemas de opressão, devemos ativar o plano da estética e tantas outras noções que resgatamos aqui por serem noções-arma de embate, de transformação. Trazemos a estética da existência para rua. A arte para fora das galerias e obras finalizadas. Trazemos para rua individualidades que se decompõem e criam novas composições em múltiplos encontros. Fazer do contato uma obra de arte. Não peça artística tão só, mas a criação de um novo possível com o que temos num agenciamento: afetos que emergem e fluem, tudo o que temos à mão e o movimento vital que não estanca. Isso é politizar a ética pela criação estética do novo. Fazer do agenciamento não somente encontro, e sim campo de batalha. Ataque no traçar de fugas no real, em inusitadas maneiras de interferir nos processos capitalísticos produtores de dominação e morte. Ativar a radicalidade da estética, saindo de abordagem cristalizada na arte ou em conceitos avaliativos, e trazer seu desenrolar nos micromovimentos da vida. A estética da existência habita muito mais o estômago dos transeuntes que ruge de fome e ânsia, do que as pontas dos dedos de pretensos dândis com artifícios inofensivos e por vezes incrustados dentro de um sistema que já os fabrica aos montes. Estéticaataque nesse catalisar da criação do possível por entre as formações contemporâneas sempre muito atentas no reproduzir da vida em graus imensos de dispersão e captura. Difícil não, custoso. A transmutação da estática inerte (seja na sisudez de ações dum movimento, na construção asséptica de críticas reacionárias ou mesmo num conformismo que adia o embate), em prol de uma estética
consistente e ativa. Um pouco mais de contato e contundência, baixar a guarda e suportar o barulho do mundo, escutar, virar e compor com ele. A máquina do mundo em cada centímetro de pele. Mais velocidade, lâmina e tato. A criação como nosso fluxo – prática, pragmática. Esse o paradoxo que buscamos habitar com grande potencia, sempre entre a mili-tância e a filosofia, entre a arte e a vida, o traçado e a fuga, os obstáculos e o processo. Desconstruir as capturas e reproduções capitalísticas de consumo da vida desde a academia. Radicalizar os conceitos de tais autores enchendo-lhes de energia de criação, fugindo de debates vazios e abstratos que tanto arrefecem tais noções. Movimentos sociais, uma pessoa que se revolta, políticas de estado, textos, uma intervenção urbana – são energia e prática de tais postulações, e temos de enchê-las com isso: com vida. Foucault, Deleuze e Guattari na praça, no meio do indistinto coletivo, como tirar da biblioteca os livros que sempre querem penetrar outras vidas. Um livro de poesia na gaveta não adianta nada, lugar de poesia é na calçada. Um cuidado e si nômade, uma estética da existência tão afiada e disruptiva como a arte. Catalisar os conceitos, buscando sua performance criativa, seu traçado estético e contundente. A vida como obra de arte sendo o cuidado de criar seu si como o traçado de uma linha em meio ao caos, mas esta sempre linha de fuga praticada numa fina liberdade comum e indistinta. Transformar a arte com o sangue que corre das veias dos pobres aos esgotos das sarjetas. Novos regimes de sensibilidade, maleabilidade e elasticidade vital. Ativar a alça comum que nos energiza, o campo de força catalisado pelo encontro que nos liga sem criar limite, mas sim superfície de contato e coloridos outros. Guerrilha, na surdina, coletiva e de deslocamentos múltiplos, e por aí o movimento de criação de possíveis perde seu sentido individual ou artístico como adereço. Ganha matizes de multiplicidade e desmonte pela afirmação do inusitado e alegre encontro com as diferenças. O fortalecimento pelo contato, a criação dentro de cada segundo transcorrido em calçadas comuns, o toque do enamoramento que enganchanos ao ponto mais tenro do real – o encontro em que estamos a todo instante. What better place than here, what better time than now ?
FAVELA
Eduardo de Oliveira Rodrigues e Vladimir Santafé Favela: "paz sem voz não é paz, é medo"
Quando, nos anos 30 do século XIX, o general prussiano Carl Von Clausewitz proferiu a célebre frase “a guerra é a continuação da política por outros meios”, não imaginaria que, quase dois séculos depois, ela deveria ser corrigida. Hoje, dentro do contexto vivente na cidade do Rio de Janeiro, a “paz”, e não a guerra, desponta enquanto a nova face de continuação da política. Falamos aqui de outro tipo de “paz”. Nos referimos a uma paz armada, análoga ao processo organizado por Israel contra os palestinos, mas com outra roupagem e objetivos. No lugar da exclusão marcada pelas delimitações fronteiriças e as prisões em massa dos líderes da resistência palestina, a favela, na cultura e no imaginário da sociedade carioca e fluminense, é o limite do “processo civilizador”, a última linha a ser conquistada. A favela está para além do controle e das codificações hegemônicas do Estado que requalifica o indivíduo na contemporaneidade pela sua dimensão produtiva e capacidade de consumo. O favelado é devir minoritário, poder de criação e resistência ao metro-padrão estabelecido pelos aparelhos de ressonância e as relações disseminadas pelo poder estatal. E mesmo quando ele reforça os microfascismos tão comuns nas comunidades, a sua origem não se encontra na favela, mas no medo e humilhações organizados pela desigualdade social e econômica da sociedade capitalista. O Estado é desde sempre um imenso aparelho de ressonância que centraliza as subjetividades e organiza os signos que produzimos e nos engloba em nosso cotidiano, somos aquilo que ele determina, e quando afirmarmos a nossa voz contra os seus dispositivos, surgem as prisões e a violência policial. Não é à toa que a maioria dos presos vem das favelas e da periferia, não é à toa que quase todos são negros ou mestiços, o poder estatal age por seleção e captura, ele produz suas máquinas duais (homens e mulheres, burgueses e proletários, trabalhadores formais e informais, palestinos e israelenses, negros e brancos...) e quando nos desviamos, quando rompemos a sua linha ou fronteira, a máquina estatal sobrecodifica os espaços e as subjetividades rebeldes marginalizando-os ou inserindo-os em sua dinâmica, sujeitando a multiplici-
dade do devir à unidade do cidadão bem comportado que as elites econômicas almejam para as suas cidades. A favela transforma os espaços homogêneos da cidade em labirintos indecifráveis, nomos no lugar da lei, espaço liso que não se mede, e só existe em função dos fluxos inventivos que alimenta (puxadinhos, lajes-coberturas, quadras de samba que se transformam em campos de futebol...). Seu poder de hibridização é revolucionário, no sentido em que confronta as máquinas duais do Estado e toda exploração e dominação que elas comportam à ocupação e criação de territórios livres. O ser favelado é acima de tudo um grito contra o intolerável. Seria preciso um devir-favelado de todos nós para ultrapassar a miséria existencial dos nossos dias, pois como nos lembram os filósofos da resistência estudantil e operária de 68: “O devir minoritário como figura universal da consciência é denominado autonomia” . Entretanto, desde 2008, o compasso segundo o qual a segurança pública carioca é regida mudou. Seu andamento foi ajustado para um ritmo diferente, que sugere não mais o enfrentamento direito à violência atrelada ao tráfico de drogas. Os métodos agora são outros – a sonoridade agora é outra. Desde dezembro de 2008 temos em curso a instalação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), cujo objetivo consiste em, inicialmente, resgatar antigos territórios da cidade antes dominados pelo tráfico de drogas. A política da “pacificação” pressupõe a ocupação permanente de algumas favelas por parte da polícia, deixando de lado o enfrentamento direto ao tráfico armado, através das incursões sazonais homicidas, de caráter belicista, que a própria polícia até então praticava. O resultado da política é uma mudança substancial no cotidiano das favelas, que deixam para trás a época onde o estampido das balas era sua música ambiente. As armas, as balas – o som da guerra – é substituído pela “paz”. E a “paz” aqui possui um preço caro, e bastante peculiar. Ela custa e reverbera antes de tudo o silêncio. Sabemos dos inúmeros casos de violência, abuso policial e tentativas autoritárias de normatização dos
espaços das favelas “pacificadas” por parte do poder público. As denúncias se avolumam na mídia, seja ela corporativa ou não, e podem ser vistas por qualquer leitor interessado. Os abusos não fazem distinção nem no tempo e nem no espaço da pacificação: eles são “democráticos”, ocorrem num grau maior ou menor em praticamente todas as comunidades já ocupadas pela polícia. Só que, tais abusos, indicam também uma tentativa de manter aqueles que encontram-se hoje sob o domínio da “paz” em um silêncio fundamentalmente conciliador. A “pacificação” não admite críticas. Ela parte de uma luta enredada entre as “forças do bem” contra o mal, como profetizou o governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Toda voz que seja dissonante, e que ecoe fora da alegoria fardada do coro entusiasta da “paz”, é vista enquanto argumento em defesa da manutenção do status quo das favelas, da conjugação dos fenômenos da exclusão, pobreza e violência. Se o argumento é verdadeiro, se a crítica às UPPs é inválida, a “paz”, neste sentido, é a negação da política, uma vez que a política pressupõe antes de mais nada a possibilidade de debater e questionar. Despolitizar o debate acerca da política de “pacificação” é retirar dela seu conteúdo enquanto política, e transformá-la assim em uma simples e míope doutrina. Os enunciados nunca são inocentes, eles são marcadores de poder e alimentam agenciamentos maquínicos que precipitam desigualdades sociais, hierarquias seculares, políticas públicas. Falar em paz quando uma comunidade é permanentemente ocupada por homens armados, evocar a luta do bem contra o mal, identificar as mães dos filhos da favela como “parideiras de bandidos”, todos esses discursos emanam de um governo que anima em sua composição política a velha e sempre reatualizada segregação étnica e social que enformou o Brasil. Agora não é diferente. Eu fico imaginando um cenário diferente, onde a polícia ocuparia os condomínios da Barra, as ruas do Leblon, o boêmio bairro da Lapa para evitar a “desordem social” e o caos que se propaga. Será que as UPPs teriam um apoio tão enfático da grande mídia? Para não dizer da assustada classe média que com as UPPs teve o seu imóvel mais valorizado e hoje pode dormir tranquila, frequentar suas praças sem o 23 GLOBAL
FAVELONÇA aparato repressor das grades que a separavam dos moradores da favela e da população de rua que sofre violentamente com a “limpeza urbana” promovida pela Prefeitura, além das covardes remoções às ocupações do movimento sem-teto. A classe média dorme tranquila porque a favela hoje está sitiada! Porque o morador da favela finalmente encontrou a sua cidadania pelas mãos daqueles que durante anos foram os seus maiores carrascos. “Uma macropolítica da sociedade para e por uma micropolítica da insegurança” , administrando seus pequenos medos, apontando o inimigo a ser vencido, moldando as selvagens anomalias que escapam aos seus tentáculos. Mas as UPPs não objetivam somente a retomada territorial das favelas antes dominadas pelo tráfico de drogas. Seus objetivos são mais profundos, sendo dotados de uma dimensão complementar, de caráter “social”. Essa dimensão do projeto foi batizada, não por acaso, de “UPP Social” pelo poder público. Sua atuação compreende a realização de projetos em parceria com a iniciativa pública e privada, com o objetivo de promover melhorias no espaço das comunidades, indo desde projetos educacionais, esportivos e culturais, até mesmo a cursos para a capacitação profissional, empreendedorismo ou iniciativas para a melhoria da infraestrutura urbana das favelas. O lado “social” das UPPs, conjugado com a ocupação permanente e simultânea da polícia, constituem o verniz de “novidade” que o projeto possui. O que parece passar desapercebido sobre as UPPs é sua proposta de integração das favelas ao restante da cidade. A retomada territorial, em conjunto com as ações sociais, abrem possibilidades para o costuramento do tecido urbano carioca, há muito tempo esgarçado. Mas de que integração estamos falando? Até agora, as ações sociais levadas a cabo pelo poder público orbitam em torno de uma lógica de mercado, que pretende requalificar o exército de excluídos das favelas em microempreendedores e consumidores de bens e serviços públicos e privados, além de fomentar a especulação imobiliária dentro e no entorno dos espaços da “pacificação”. O homo economicus legalista sobe assim o morro, e GLOBAL 24
estende sua mão para integrar o espaço da exclusão ao espaço do mercado. Tendo em vista uma população favelada que ultrapassa a cifra de 1 milhão de pessoas na cidade do Rio de Janeiro, as UPPs são claramente um ótimo negócio. Para além da esfera econômica, a UPP convida todos ao “debate” e se alimenta da participação dos moradores das favelas para seu próprio desenvolvimento. Os moradores e suas casas são regularizados e cadastrados, suas demandas são ouvidas, os ativismos sociais dentro das comunidades são mapeados. Constrói-se todo um arcabouço de conhecimento sobre aquele espaço e sua população, que permite o desenvolvimento de tecnologias de poder muito mais sofisticadas por parte do Estado. A UPP objetiva não só disciplinar a favela, pela ocupação e normatização do seu espaço pela polícia. Ela objetiva, além disso, integrá-la, de acordo com determinados interesses, ao restante da cidade, tornando-a mais útil, sem que a integração signifique perda de controle sobre ela. O significado de tudo isso é a emergência de uma nova tecnologia de poder, que se exerce justamente sobre a vida que a favela tem. A expulsão do tráfico armado possibilita assim a criação de um biopoder para as favelas cariocas. De um poder que detinha o direito de morte sobre a população favelada, passamos a um poder que reivindica a posse do direito sobre a vida da favela. Pela novidade da mudança, seu significado ainda paira sobre um campo de incertezas acerca do projeto da “pacificação”. Todavia uma coisa nos parece clara: a integração pela via do mercado aponta seríssimos limites para a constituição de valores realmente e radicalmente democráticos nas favelas. Em uma de suas palestras, o presidente do Instituto Pereira Passos e responsável pelo projeto da “UPP Social”, Ricardo Henriques, apontou o projeto enquanto “estratégia para recomposição dos vetores de 'república' nas favelas”. No entanto, para se constituir enquanto “coisa pública”, é fundamental que a favela seja feita segundo os desejos dos seus próprios moradores, transformando essa política sobre a vida numa política pela vida. Ou então, teremos a construção de um novo império pautado pelo autoritarismo e pela farda da “paz”.
Barbara Szaniecki
#GENERALINTELLECT Sobre o possível encontro impossível entre o Antropólogo e a multidão
@BárbaroTecnizado Sobre o possível encontro impossível entre o Antropólogo e a multidão Em seu ensaio de antropologia simétrica, Bruno Latour apresenta sua crítica ao que chama de constituição moderna, para em seguida nos apresentar uma outra perspectiva: jamais fomos modernos! Usa a expressão anti-moderna ou a-moderna para caracterizar “esta atitude retrospectiva, que desdobra ao invés de desvelar, que acrescenta ao invés de amputar, que confraterniza ao invés de denunciar.” Em suma, é não moderno “todo aquele que levar em conta, ao mesmo tempo, a Constituição dos modernos e os agrupamentos de híbridos que ela nega.” E de fato, a perspectiva de Latour é das mais interessantes. Mas, pensando bem, pouco importa a nós, bárbaros tecnizados, saber que as ciências naturais, as ciências sociais e políticas e as ciências humanas foram incapazes de apreender isso que se chamou modernidade. Assim como pouco nos adianta saber que, por parte de notórios intelectuais, há dúvidas acerca de sua existência. Pois se para eles é possível afirmar que “jamais fomos modernos”, nós afirmamos que “sempre fomos modernos”! Certa modernidade – fascista, nazista, racista, colonialista entre outras formas da modernidade hegemônica sendo a mais atual a capitalista – , nós, bárbaros tecnizados, a sofremos na pele. Nos é portanto impossível negá-la. Mas dela não nos consideramos vítimas pois sempre lutamos. Sob o capitalismo de hoje, consumimos o consumo. Do colonialismo de ontem, por exemplo, talvez seja injusto afirmar que o antropólogo foi cúmplice, mas muitas vezes dele foi um observador um tanto distante, quase frio. Como então acreditar que “o mais racionalista dos etnógrafos, uma vez mandado para longe, é perfeitamente capaz de juntar em uma mesma monografia os mitos, etnociências, genealogias, formas políticas, técnicas, religiões, epopéias e ritos dos povos que estuda”? A extensão do seu estudo e a profundidade do seu entendimento jamais cobrirá a expressão da nossa língua e a intensividade da nossa pele. A antropologia jamais será simétrica se não considerar a hipótese de se des-antropologizar. Não nos consideramos pré-modernos, nem pós-modernos. Nem anti-modernos nem a-modernos... e sim modernos, altermodernos! Mas, claro, concordamos com a proliferação dos híbridos que o antropólogo aponta: híbridos que a modernidade hegemônica sempre produziu mas sempre arranjou um jeitinho de tornar impensável. Ora, a emergência de “terceiras Luzes” onde a antropologia seria guia não faria, desses híbridos, não-pensadores? Mas aí é outra história pois nosso interlocutor já não é mais o antropólogo da Gália e sim o Super Antropólogo de Pindorama. Não estudamos ou pensamos os híbridos, e sim nos constituímos e vivemos na nossa hibridação, na diferença enquanto diferença no corpo e na fala. Do Leviatã já muito se falou, do Caliban podemos aqui lhes falar: ao se liberar física e psicologicamente da monstruosidade – subdesenvolvimento, subcompetência, subpensamento, sub ... – que lhe fora atribuída pelo colonizador, a figura de A Tempestade de Shakespeare se transforma pelas mãos do poeta Aimé Césaire (quase índio de tão negro e de tão branco, de tão martiniquenho e de tão francês) em símbolo da resistência anti-colonial no Caribe do século XX. 25 GLOBAL
#GENERAL INTELLECT (continuação) @BárbaroTecnizado
E eis que, em pleno século XXI, o colonizador ressurge sob a forma do intelectualizador. Contudo, além das figuras híbridas criadas pelo intelecto – Calibans, Golens, Cyborgs entre outras potências criadoras que se movem além da oposição entre modernidade e anti-modernidade, mas que, de fato, sempre correm o risco de recair na dialética sujeito versus objeto – , interessam-nos os monstruosos processos de hibridação. Deixemos para trás os subterfúgios da retórica acadêmica e vamos de papo reto: se ao Antropólogo colonizador de intelectos incomodam as revoluções (processos que supõem concepções tidas por ele como demasiado modernas), falemos pois de nossas monstruações intelectuais. Do Oiapoque ao Chuí, nós, bárbaros tecnizados, hibridamos por toda parte: nas aldeias e nas cidades, nos quilombos e nas quebradas, nas lan houses, nos moto taxis e nos róseos salões de beleza black, nas redes e nas ruas, nas universidades e nas lutas, sejam elas rurais ou urbanas. Sujeitos, objetos e cacarecos; animais, vegetais e minerais; índios, negros e brancos; velhas e novas tecnologias: gambiarras de nós mesmos, monstruamos por toda parte e desde a noite dos tempos. Não contemplamos românticamente a morte, isso é coisa de quem vive em Cronos. isso é coisa de quem tem passado, presente e futuro. isso é coisa de quem tem café da manhã, almoço e jantar garantido. Não morremos de amores; vivemos nos afetos. Nosso tempo é Aion. E, quando decidimos, é Kairòs! Diante de Belo Monte, não hesitamos... exodamos. Queremos um monte de “Amarok, Hilux, L 200, F 4.000, caminhões, carros de passeio, ônibus, motos, barcos, contas gordas no banco e mais 1,3 mil cabeças de gado - de preferência, 500 delas da raça Nelore.” E queremos muitos i-phones, i-pads e outros “i”s de A a Z. A saída não é um exit pois do império não há fora. A saída é êxodo. Éxodo com os melhores produtos de consumo em nossas mãos! Sim, queremos discutir a relação. Sim, queremos pensar você e pensar a nós mesmos. Que o “ão” de multidão não o leve a nos confundir com macro sujeitos adoradores do Estado ou de governos ou com o modelo de identificação majoritária "homem branco-ocidental-macho-adulto-razoável-heterossexual-habitante das cidades" do qual o Antropólogo – gaulês ou tupiniquim – não escapa. Minoritariamente devimos multidão. Nem Uno, nem Número: multiplicidade. Nosso nome é Bárbaro Tecnizado. Nossa monstruação é o General Intellect. (“Oh, Céus!” escandaliza-se o Super Antropólogo diante do conceito marxista sem perceber que já o devoramos, o deglutimos e o devolvemos) Nosso atuação – corpo&mente – é a do materialismo da imaterialidade. Nós, sem terra, sem teto, sem trabalho, sem universidade, sem mídia, sem consumo, queremos tudo! Nesse SEM desejante que não é ausência, nos COMstituímos e afirmamos nossa potência. Muito prazer, estamos apresentados! Para além da tua antropologia extensiva, o nosso c o n s u m o i n t e n s i v o . Sob a tua antropologia simétrica, a nossa a n t r o p o f a g i a s u b t e r r â n e a . Ao lado da tua constituição moderna (na qual você ainda crê), a nossa m o n s t r u a ç ã o a l t e r m o d e r n a . Mas que fique o Super Antropólogo sabendo que, quando se despir de sua arrogância e se libertar de sua histeria tuíteira, será bem vindo a se juntar ao General Intellect. Deixe de ser o Messias que anuncia as terceiras Luzes e venha conosco molecular por aí, nu e cru, nas lutas da nossa vida Sub!
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HIP HOP
Rociclei da Silva A resistência de um monstro chamado Hip Hop
O monstro adormecido despertou do sono e seu brado ecoa para além das bordas da periferia tomando de assalto o centro e invadindo universidades e mídias. Um brado carregado de dor, sofrimento, injustiça e abandono. O monstro está de pé, mais que isso, está em movimento, agindo e criando, e assim resiste e se insurge em um exercício pela liberdade e reivindica o que lhe é de direito. O monstro concebido em ruas, becos e vielas se nutriu de arte e conhecimento, recebeu o nome de hip hop, cresceu e se tornou cultura. Como todo diamante, veio da lama, foi lapidado e hoje é a voz, a forma de vida e a expressão de milhares de jovens que fazem dele um caminho para transformação de seus mundos. Originário dos guetos nova-iorquinos aportou em terras brasileiras no início da década de 1980 sendo acolhido pelas periferias e favelas onde encontrou o solo fértil para se desenvolver, reproduzir e se multiplicar. Adotado de corpo e alma por jovens na sua grande maioria negros e pobres incorporou características locais, desenvolveu uma linguagem própria e passou por uma releitura ao abrir diálogo e interagir com outros grupos ligados à contra cultura. A arte que constitui a cultura (rap, DJ, break e grafite) é o instrumento que esse monstro utiliza para não só atrair, mas também para dar voz aos jovens e fazer emergir suas potências criativas resgatando sua autoestima, alegria os conduzindo à ação. É na arte do canto falado ritmado e poético do rap (Rhythm and Poetry), nas habilidosas manobras dos DJs, nos traços multicoloridos do grafite e nos movimentos envolventes do break que os jovens se encontram, se libertam, se reconhecem e fazem o exercício da prática política e de formação cidadã. É justamente na arte onde está seu poder de transformação, articulação e produção. É na arte e pela arte que a cultura resiste. Mas não é uma arte qualquer, é a arte forjada das ruas, que fala a linguagem dos esquecidos. A linguagem que fala o que eles sentem e vivem e por isso se identificam, compreendem e se apropriam. A arte é a linguagem, é a voz e a forma de manifestação que faz o monstro movimentar-se e sentir as correntes que o prende. Eis o nascimento da resistência.
Mas o monstro hip hop resiste através do ato criativo, da produção e da inovação em ações coletivas ou grupais. Seus integrantes estão sempre agregando outros elementos artísticos e culturais a seus quatros elementos em busca do novo. Na busca pelo novo transbordam, desterritorializam produzindo novas lutas, novas linguagem, novas formas de vida a cada instante e em novos lugares, onde antes nada se via. E é assim que escapam das tentativas de captura, das cristalizações e normalizações. É por isso que é monstro, porque atua na invenção que é monstruosa porque é excessiva. Produzindo, criando e inovando, assim caminha o monstro. A cultura é uma máquina geradora de artistas, gerando a todo instante DJs, grafiteiros, dançarinos (B-Boys e BGirl), escritores, produtores musicais, cineastas, roteiristas, e profissionais na área gráfica, áudio e informática, fazendo emergir novos mediadores e produtores culturais. Mediadores e produtores que se tornam protagonistas de uma economia informal baseada em processos colaborativos que transformam seus territórios de atuação em territórios produtivos geradores de renda, trabalho vivo e entretenimento. Uma economia que se movimenta sobre uma produção frenética de diversos produtos e serviços. É o monstruoso precariado urbano contemporâneo em constituição. Em muitos desses territórios o hip hop ocupa a lacuna deixada pelo Estado e promovem eventos musicais, teatro, dança, cinema, sarau de poesia, literatura, biblioteca, oficinas diversas, internet gratuita e muito mais. E são nesses momentos de interação que o monstro mostra sua força e compartilha conhecimento, informação, formas de vida, linguagens e afetos que permitem a expansão do comum e a resistência em rede. O Monstro não para. Móvel e mutante está em toda parte atuando em diversas frentes. O monstro atua em presídios, casas de recuperação de menores infratores, em centros de tratamento, como na favela da Rocinha no Rio de Janeiro, onde o Grupo de Break Consciente da Rocinha trabalha o break como terapia ocupacional no Centro de Atenção Psicossocial. Atua de forma solidaria com campanha de doação de sangue,
ou no caso do festival para ajudar os moradores da favela do Moinho entre tantos outros. A internet é o espaço sem fronteiras. São sites, portais, blogs, rádios webs e TVs web que fazem a periferia fugir para além das bordas. É através dela que as periferias de todo o mundo interagem, compartilham. Mas também é o espaço da mobilização e articulação. Mas nem tudo são flores. Na prática, muitos discursos e atitudes se contradizem. Apesar de denunciarem a desigualdade e o preconceito, o machismo e a homofobia estão presentes nas palavras e gestos de alguns integrantes. Não raro, encontramos a exploração capitalista dentro das relações da cultura. É isso, o monstro traz em sua carne as marcas dos conflitos, contradições e ambiguidades. Mas isso não significa o caos e sim elementos que possibilitam múltiplas formas de construção do monstro hip hop e promove reflexão sobre as divergências comuns no movimento. Fluido e dinâmico está sempre conectado a qualquer instante, em qualquer lugar. O monstro hip hop está em toda parte. Multiplicando relações e intercâmbios faz surgir novas agregações, novas formas de trabalho, de aprendizagem, de produzir, de criar e viver, ou seja, uma potência de produção de sentidos. A cada ruptura seus integrantes encontram sempre linhas que os remetem uns aos outros instaurando novos laços, ou seja, uma potência de interação. No meio da guerra cotidiana pelo direito de viver, o monstro acordou para a vida, e pela vida, e soltou seu grito não para atingir o tímpano, mas a alma de todos aqueles que o emudeceram e paralisaram. O monstro cansou de esperar para ver, cansou de sofrer calado, enxugou as lágrimas e descobriu a potência da vida e do corpo. Segue o monstro seu caminho afetando e sendo afetado, transformando vidas, mundos e mentes. E é assim que se dá a metamorfose, se a vida lhes oferece armas, drogas, álcool, violência e miséria eles desenvolvem poesias, música, ritmo, cores, alegria e sorriso. E o sorriso e a alegria supõem a dominação do medo. O sorriso e a alegria são a celebração da vida. Então vamos celebrar a vida, pois tudo que o monstro quer é ser feliz. Vida longo ao monstro hip hop! 27 GLOBAL
HOMEM CONTEMPORÂNEO Ao receber um e-mail da Barbara com o convite para escrever um artigo para a edição da Global sobre "ferramentas de lutas" hoje, de imediato me veio uma resposta à cabeça: o homem contemporâneo! Obviamente que estou consciente dos riscos de defender esta afirmação em um pequeno artigo de Revista, com um público leitor tão exigente, como o da Global, sem nenhuma matriz teórica de sustentação. Mas, afinal, no convite estava embutida uma ousada decisão dos editores da Revista de conhecer e publicar a opinião de um militante – não acadêmico – de muitas lutas também lutadas pela Global. Uma opinião. Ou, se preferirem: um artigo opinativo. Um texto sem maiores consequências além de concordâncias ou discordâncias. Até mesmo porque, para ser mais epistemológico, antes de tentar dissertar sobre as “ferramentas” seria preciso avaliar com muita cautela o(s) verdadeiro(s) sentido(s) da expressão “lutas”, que tem sido tratada com a profundidade de um prato de sobremesa. Mas como a reposta fluiu com a velocidade do disparo de um flash de máquina fotográfica e de pronto não me ocorre nenhuma ferramenta que, hoje, se destaque em relação às de ontem, quero correr este risco de conversar com você, leitor da Global, sobre o que chamei de homem contemporâneo, “ferramenta de lutas hoje”. Nem sou tão velho assim. Não seriam meus 63 anos cronológicos que haveriam de me autorizar a comparar o homem de hoje com o homem do passado. Acontece que desde os dois anos de idade fui criado por uma mãe viúva, que se atribuiu o compromisso de ser mãe e pai do casal de filhos que lhe restou de um casamento de pouco mais de três anos. Uma mãe que foi criada por um judeu turco sefaradin, que impôs aos seus seis filhos uma rígida e retrógrada educação européia judaica do século XIX (com base no século XVIII). Atropelada pelo infortúnio da viuvez precoce, minha mãe teve muito poucas oportunidades para ajustar esta educação para o século XX. GLOBAL 28
Portanto, de idade tenho 63 anos, mas de formação, mais de dois séculos. De qualquer maneira, não foram poucas as mudanças que testemunhei nesses 63 anos. Mudanças materiais e humanas. Nas materiais incluo, de forma esquemática, como recurso didático pedagógico, desde as tecnológicas até as climáticas, passando pelas econômicas e ideológicas. Nas humanas, desde as fisiológicas até as comportamentais, passando pelas psicossociais, ainda de forma esquemática. Mudanças, materiais e humanas, cuja compreensão poderia sugerir que sou um gênio, com grande conhecimento nas áreas da antropologia, sociologia, psicologia, medicina, geografia, astronomia, entre outras. Não sou. No máximo, caso sejam realmente necessários esses conhecimentos para que eu possa discorrer aqui sobre o que chamo de homem contemporâneo e como ele se transformou em uma “ferramenta de lutas”, atribua isto, por favor, a uma irresponsabilidade protegida pelo Estatuto do Idoso ou, meramente, uma lustrosa cara de pau. Quando adolescente, fazia parte do meu uniforme escolar uma peça de roupa inimaginável nos dias de hoje: gravata. Como um advogado, um executivo ou político em plenário, saía todos os dias, de casa para o colégio, devidamente engravatado. Os meninos e as meninas. Alguns uniformes das meninas eram com gravata borboleta. Mas com gravata. Aliás, antes que algum(a) militante das causas relacionadas a gênero se insurja contra o uso da palavra “homem” para designar a espécie humana, peço, com mil desculpas e reiterando minha total solidariedade às causas feministas, que atribua isso a um estilo de escrita mais preguiçoso. Uma despretensiosa licença literária. Enfim, voltando ao assunto, o que poderia ser uma mera citação anedótica saudosista, para dar graça à redação, encerra um significado simbólico de como se davam as relações
INDISCIPLINA
Davy Alexandrisky
de poder entre os que eram donos do conhecimento, do saber, e os que tinham que se subordinar a esses proprietários das verdades absolutas. Professores e pais podiam repreender e até humilhar o homem daquele tempo, não tão distante assim, bem diferente do homem de hoje, que estou chamando de homem contemporâneo, com um simples olhar de reprovação, facilmente compreendido por qualquer um de nós, daquele tempo. Contestar uma ideia “dessas autoridades” era uma transgressão passível de severos castigos como punição. Atenção! Não estou falando da Idade Média, não. Esses episódios são do início da segunda metade do século XX. Por certo não trago essas informações para comparar com a Escola dos dias atuais, dias do tal homem contemporâneo, em que alunos agridem fisicamente aos professores(as), aos olhos de uma sociedade tão complacente quanto inerte, diante de um quadro de exceção que dia a dia se transforma em regra. Mesmo porque, não identifico este traço de violência nesse homem contemporâneo que é “ferramenta de luta”, hoje. Cito a questão da violência nas Escolas apenas para acentuar mudanças comportamentais significativas. Embalados por este texto, alguém poderá se lembrar de 1968. Do maio de 68 na França. E da “violência” episódica registrada na ocasião. Aceitando com resignação e modéstia às críticas de que possivelmente serei alvo, em relação ao que estou rotulando de homem contemporâneo, “ferramenta de lutas” hoje, aquele homem (mulher - humano) de 68 era o “homem deslumbrado”. Que se descobrira novo e dissociado do homem da primeira metade do século XX. O homem da Guerra Fria, mas, também, das delícias da revolução sexual, detonada pela Pílula Anticoncepcional. Um homem que era usuário de “ferramentas de lutas”, não a “ferramenta de lutas”. A Pílula e a revolução sexual, a Guerra Fria e o seu fim, o Viagra, a longevi-
dade patrocinada pela medicina, os rearranjos geopolíticos e outros fatores relevantes vão forjar o homem que vai se encontrar com a revolução tecnológica na área da telecomunicação instantâneas, do início do século XXI. Ainda que nem todos vocês, leitores(ras) deste artigo, tenham tido contato físico com uma máquina de escrever, conhecem perfeitamente aquele revolucionário equipamento em que a gente digitava e o texto já saía impresso. Mas dificilmente você acreditará que, não faz muito tempo, ter um telefone em casa ou no trabalho era um luxo. E o simples fato de você ter acesso a uma linha telefônica não te garantia plena capacidade de comunicação, uma vez que o seu pretenso interlocutor poderia não ter o mesmo privilégio. Pode até lhe parecer uma ironia, mas juro que é verdade, que muitas pessoas tinham cartões de visita com o número telefônico seguido pela expressão “por favor”, entre parênteses, que significava que o telefone em questão era de um vizinho ou parente, que anotava o recado para lhe passar depois. O lapso de tempo entre um acontecimento e o seu conhecimento pelo conjunto da sociedade, é inimaginável para os padrões atuais. O que eu defendo neste artigo, como potente “ferramenta de lutas”, hoje, é justamente este homem que passou por todas as mudanças, que subverteram a lógica das relações interpessoais, sociais e familiares, o que eu chamei esquematicamente de mudanças humanas, e se encontrou, neste início de século XXI, com o que estou considerando mudanças materiais, que se consolidam ou chegam ao ápice com a revolução tecnológica, que nos dá uma extraordinária capacidade de telecomunicação instantânea. Deste fantástico encontro do humano transformado por processos múltiplos com a revolucionária tecnologia da informação, nasce o que chamo de homem contemporâneo, com exuberante capacidade de desenvolver massa crítica sobre qualquer tema: a grande “ferramenta de lutas” hoje!
Abril de 2011. Adentra uma escola da zona oeste do Rio um ex-aluno, aparentemente inofensivo. O rapaz de 23 anos se dirige à secretaria, onde solicita seu histórico escolar. De posse do documento, vai até a sala de leitura, alegando o desejo de rever uma ex-professora. Pouco tempo depois, doze pessoas seriam mortas e uma grande comoção nacional se instauraria em torno daquela manhã de quinta feira. O ocorrido na Escola Municipal Tasso da Silveira abriu espaço para um clamor por medidas de segurança nas escolas, seja de cunho preventivo (desarmamento da população), seja de cunho diretamente punitivo, na direção da construção de uma escola de segurança máxima. A partir daí, escola e medo se juntaram no imaginário das pessoas. Indisciplina passou a ser constantemente identificada com violência. Conceitos e legislações foram criados na tentativa de compreender e intervir nas manifestações de violência na escola. Professores foram convocados a identificar tendências violentas nos alunos, tornando secundárias as possibilidades de uma resposta propriamente pedagógica. O convívio democrático passou a ser pensado a partir da necessidade de tornar as crianças e os jovens seres obedientes, pacíficos e resignados. Não que tais ideias já não estivessem presentes antes do ocorrido, mas nele puderam ser potencializadas, ganhando certa legitimidade social. Ampliaram-se os dispositivos de vigilância e controle nas escolas – do reforço das grades e cadeados à instalação de câmeras. O episódio da escola de Realengo convoca os profissionais que atuam na educação do Rio a pensar em formas de trabalho com aquilo que se tornou sua principal demanda: as questões que envolvem a indisciplina dos alunos. Duas possibilidades se colocam neste âmbito: de um lado, práticas que tentam criminalizar alunos indisciplinados e suas famílias, e de outro, aquelas que consideram a indisciplina enquanto fruto do processo mesmo de disciplinarização. Esta última carrega uma grande potência de democratização do espaço escolar, uma vez que não toma o aluno indisciplinado como problema, mas as relações autoritárias e rigidamente hierárquicas em que ele está inserido. Este é, pois, o ponto de partida que defendemos aqui: a transformação das “relações assimétricas institucionaliza-
Marina Bueno
das (estados de dominação)” da escola em “relações fluidas e reversíveis, abertas à experimentação de subjetivações que escapam aos estados de dominação” nos termos de Maurizio Lazzarato. Ao contrário de impedir a emergência do conflito, pensamos justamente no seu oposto: produzi-lo, deixá-lo acontecer enquanto um momento do emergir das falas, de novos movimentos, da rebeldia que se opõe à forma como estão socialmente organizadas as escolas, baseadas em “uma relação de autoridade legitimada antes pela desigualdade e hierarquia do que pela negociação” segundo Joyce M. A. de Paula Silva. A indisciplina pode assim ser pensada enquanto parte constitutiva da própria estratégia do poder que se exerce nas relações da escola, sendo gerada pelos mesmos mecanismos que visam o seu controle. Tal ideia se assenta na consideração de que à dimensão negativa do poder, responde sua face positiva. Isso quer dizer que ao lugar do domínio, uma pressão sempre móvel se exerce – a resistência. Embora institucionalizados em legislações nacionais e municipais, os canais de participação efetiva dos alunos e famílias na escola (grêmios estudantis, conselho escola-comunidade, representantes de turma) são concebidos na prática enquanto cumprimento de regras pré-estabelecidas, sendo seus representantes escolhidos, na maioria das vezes, entre aqueles que apresentam bom comportamento. Considerando que os valores, crenças e princípios que norteiam a cultura escolar são construídos pelo movimento das relações dos diferentes sujeitos, é preciso que estes espaços sejam (re) apropriados e extrapolados, revelando práticas que possibilitem a resistência enquanto um processo afirmativo, entendendo que esta “não é unicamente uma negação: é um processo de criação; criar e recriar, transformar a situação, participar ativamente do processo, isto é resistir” segundo Lazzarato retomando Foucault. Ações que possam facilitar a participação na escola, contribuem desta forma, para a construção de estruturas menos rígidas e para o enfraquecimento gradual de determinados aspectos culturais cristalizados na educação, que mantém seu modelo disciplinar original (próximos da disciplina das prisões e dos quartéis). Estas ações têm, a nosso ver, um importante papel democratizador no espaço escolar. 29 GLOBAL
INTERVENÇÃO
Daniel Lima
INTERVENÇÃO URBANA
http://entresembater.org.br/ Coletivo Entre Sem Bater / Foto Léo Lima
A intervenção é uma estratégia de criação. Um antiprincípio. Uma aparição a tremer o Real, a abalar a noção de normalidade. É uma abertura inesperada da vida. Para criar passagens para fora do território estável é preciso uma ruptura. Corte, fissura, fratura, rasgo. Ruptura somente possível por um processo de contradição com o que vigora, com o que domina, com o preponderante. Promover o nascimento de uma microcrise. Uma microcrise que faz brotar algo da situação, mas que não pertence àquele terreno. Um nascimento mutante. Um nascimento extra-ordinário. Um nascimento do fantástico provocado na e pela estrutura mais estreita do cotidiano. A intervenção é uma aparição disparadora do encontro e disparada pelo encontro. É distinta da cena. Nunca sabemos se é completamente real. Existe uma translucidez da aparição. É possível ver através. É no encontro, fora do tempo cronológico, que se produz este "algo" inesperado. Mas de que encontro falamos aqui? O encontro entre pessoas? A intervenção seria, então, um "dispositivo relacional" que reúne pessoas que normalmente não convivem? Importante perceber que isso pode apenas estar em função de uma reiteração de papéis sociais – e da satisfação de representar estes personagens. Intervenções como dispositivos relacionais tem potência quando promovem a destruição dos papéis pré-estabelecidos pelo roteiro do mundo. Germinar o encontro com um outro em si mesmo. É uma urgência de liberdade. É através do encontro que podemos nos deixar achar pela intervenção. Desta maneira, a intervenção não está na exterioridade de um projeto, de um dispositivo, mas no encontro que é aberto pelo dispositivo. Que linhas nascem desses encontros? Como podem ser sustentadas? E afinal, estas linhas expandem ou contraem a vida? Como se movimentar diante dessas questões? Devemos nos deixar guiar por uma intuição. Não se trata de uma ideia esquemática de "identificar elemento com potencial de ruptura", como pode pregar um esquema racional de intervenção. A intuição, aqui, serve para nos aproximar com algo que não tem nome, que não tem contorno. Ser sensível ao que ainda não conquistou os sentidos. Como, então, falar disto? Como compartilhar impressões sobre esse “algo”? Encontramos dispositivos que mantem o silêncio, mas que podem indicar estas forças. Encontramos maneiras de compartilhar sem reduzir ou es-quematizar. Lutamos para manter o indizí-vel. Manter a tensão, em relação a qual deve-mos evitar, a todo custo, a tentação de re-solver. É preciso manter a intervenção como vibração o máximo que possamos aguentar. A intervenção é um ponto de interrogação. GLOBAL 30
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INVERTER A ORDEM DO NEGÓCIO
Roberto Traplev
INVESTIGAÇÃO-AÇÃO
Daniel Lima
O conceito de investigação-ação foi criado pelo coletivo Política do Impossível para nomear o que fazemos: pesquisa como intervenção e intervenção como pesquisa. O caminho da investigação-ação pede a invenção dos passos, reinvenção constante das práticas, dos instrumentos e do roteiro de pesquisa. É necessário livrar-se do método (protocolo normalizado, procedimento técnico) para colocar-se à espreita do que pode ser criado. Estar atento às pequenas alterações nos procedimentos conhecidos. Ao tentar reproduzir uma prática, criamos adaptações, desvios, mutações, são estas diferenças que buscamos. Algo sempre se altera. Destas percepções, podemos refazer a língua com a qual perguntamos ao mundo. Para isso, a cada passo da investigação-ação, precisamos sentir as forças que foram dinamizadas. Constitui-se uma trama de dispositivos disponíveis que se atraem entre si. Gravidades que produzem junções inesperadas, construindo uma espécie de quebra-cabeças disforme. Buscamos dispositivos que possam animar estas forças.
A investigação-ação é extradisciplinar, ou seja, só propõe sentido quando vira-se para fora de si mesma. Funciona somente se pensada como processo transversal que opera nas bordas das categorias disciplinares, contrabandeando os elementos de um campo a outro. As fendas no terreno podem servir de esconderijo. As irregularidades no território podem abrigar a fuga das noções categorizantes. É, afinal, a recusa aos processos de paralisia e alienação que contaminam a movimentação afetiva-pensante. Mente versus Corpo; Forma versus Conteúdo; Observador versus Observado; Objetivo versus Subjetivo; Imaginação versus Real; Coletivo versus Individual. Todas maneiras de dividir a superfície. A investigação-ação tem que se colocar num plano anterior a esta obsessão, um plano subterrâneo a estas dualidades. É necessário convocar uma força ante-rior à separação na superfície da sensibilidade e da razão. Neste sentido, a gênese da investigação-ação deve ser observada a partir da percepção do que está se formando no nascimento destas diferentes partes. É uma intuição que assenta um caminho, não a análise detalhada de cada linha. É importante uma atenção ao desenvolvimento de uma arquite-tura orgânica. Esta estranha unidade, formada a partir da ressonância entre partes díspares. Como agentes somos impelidos à construir pequenas pontes, atalhos entre as peças irregulares. Não um preenchimento mas, antes, uma costura. Investigação-ação propõe um imaginário real. Uma política do impossível. Uma maneira de (re)conhecer a nossa maneira de conhecer. Assim, nosso território da pesquisa vai sendo cavado em diferentes pontos. Uma prospecção em diferentes áreas com diferentes máquinas. Em alguns cavase pouco e logo na superfície jorram incontáveis forças represadas. Muitos buracos levam a uma árida geologia. Nós arquitetamos complexos labirintos. Nos apertamos em túneis estreitos para, às vezes, abrir passagens para novos mundos. Está por se inventar uma escola que poderá pensar-se a partir da investigação-ação. Uma escola entre um curso livre de arte e uma think tank. Uma escola enredada pelos seus infinitos educadores nômades. Uma escolaintervenção. Uma intervenção-escola.
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MARCHA DAS VADIAS Adriana de Azevedo
O policial canadense Michael Sanguinetti, em janeiro de 2011, proferiu a frase que mudaria o cenário do ativismo feminista contemporâneo em uma esfera global. Após casos repetidos de abuso sexual na Universidade de Toronto, em seu país, Sanguinetti aconselhou às mulheres que “evitassem se vestir como vadias (slut, em inglês), para não serem vítimas” de abuso sexual. Cerca de três mil pessoas foram às ruas de Toronto protestar contra a frase do policial.
MARCHAS E ANTIMARCHAS Esse ato foi chamado de Slut Walk, uma passeata feminista contra o tipo de discurso misógino que culpa a mulher como sendo a provocadora dos estupros. Desde então, a Marcha das Vadias, como é chamada no Brasil, se proliferou e já ocorreu em diversas partes do mundo, como em Amsterdã, Buenos Aires, Los Angeles, Chicago, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, João Pessoa, Salvador, dentre outras. No Brasil resultou em uma rede feminista bem articulada através da internet e, em 2012, a Marcha aconteceu concomitantemente em diversas regiões do país. Ao contrário do movimento feminista da metade do século XX, o feminismo que ressurge com força no século XXI através do movimento Slut Walk, faz com que outros feminismos ganhem visibilidade, mais em sintonia com o chamado “pós-feminismo” – uma perspectiva crítica ao feminismo tradicional. A começar pela ressignificação da palavra “vadia”. O movimento feminista do novo século é das “vadias”, e não o da feminilidade em oposição à masculinidade (a figura do homem e do “masculino” como inimigos). A afirmação do termo “vadia” se assemelha ao movimento homossexual, ao positivar o termo gay, propondo um modo de vida indiferente à norma. “Gay” era o termo utilizado pejorativamente para, nos Estados Unidos, se referir às “viúvas alegres” na década de 1950. As viúvas alegres eram as mulheres que gozavam a vida após perderem seus maridos e se virem livre da vida matrimonial compulsória. As vadias são mais do que putas em seu sentido estrito – mulheres que vendem seus corpos. É uma parcela da população que goza do seu corpo a seu bem entender. O termo “vadia” não se limita à conotação sexual, é a proposição de um modo de vida criativo, que se quer livre das amarras do patriarcalismo e do machismo – que engessam os corpos tanto das chamadas bio-mulheres como dos bio-homens. Os corpos querem gozar, mas com quem aceitarem gozar. A voz das vadias grita que a culpa dos estupros não é das mulheres que mostram seus corpos, mas dos estupradores e da sociedade que ensina aos homens que devem abusar de mulheres que não se encaixam nos moldes da vida doméstica e coberta que o corpo feminino deve obedecer.
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Em muitos corpos, nas divulgações das fotos das passeatas, estava escrita a frase “Meu corpo, minhas regras”, que, a meu ver, se tornou o slogan desse novo tipo de feminismo que está surgindo. O que faz com que algumas proposições do, ainda tímido no Brasil, movimento queer, recluso nas universidades, ganhe às ruas, como alternativa às Paradas LGBT, desintonizadas com as propostas teóricas daquele primeiro grupo. O termo queer, assim como o termo gay e o termo vadia, também passou por uma ressignificação política. Antes utilizado como xingamento aos homossexuais nos Estados Unidos, foi apropriado pelos próprios homossexuais como forma de pastiche à pró-pria injúria e mais tarde passou a dar nome a uma produção teórica que pro-põe a dissolução da chamada “heteronormatividade”. Monique Wittig, feminista francesa famosa por trazer à discussão a questão homossexual, diz que a heterossexualidade não é só uma questão de sexo, mas é um regime político que, em conjunto com o patriarcalismo, rege o funcionamento dos corpos na sociedade. A chamada Teoria Queer propõe o combate a essa noma e um modo de vida que esteja mais vinculado à convivência da pluralidade, da multiplicidade dos corpos. A proximidade da Marcha das Vadias com as discussões sobre corpos minoritários e periféricos – que se fortalece de forma singular desde a virada do século XX para o XXI – é estreita. Acredito que ela vá se tornar mais evidente com os diálogos que as passeatas e os sites da Marcha estão proporcionando – e com a abertura política característica das próprias Marchas, que são orgânicas e acolhem protestos relativos à dominação dos corpos, sem ortodoxias ideológicas (pelo menos não inicialmente). Vivemos um momento de otimismo, de primavera política do antinormativo. Estamos saindo de um período regido pelo pensamento apolíneo, racional, lógico, com vistas a um momento dionisíaco, onde o corpo quer ser criativo e gozar a seu bem-querer – e não em vista do prazer machista e do sistema patriarcal. Não sabemos se de fato esse dia chegará. Só nos resta e sair às ruas, fazendo evidente a potência de todos os corpos que sofrem violência e afirmando que as mulheres decidiram deixar de serem vítimas – sem precisar cobrir seus corpos para isso.
Sabe alegre leve de doer? Ele me disse, ao sair do cinema: “um filme necessário”. E eu continuo: É isso, A febre do rato (Cláudio Assis, 2012), e seus personagens fumando maconha como qualquer um de nós, e seus personagens, coragem de amor reto como seria bom que aprendêssemos. Amor em branco e preto. Pra se viver. (Já isso) Coragem de poucos. Sábia, alegre, leve, não é sem peso que a poesia atravessa a cidade, com as verdades de um poeta, a franqueza dos corpos imperfeitos, e o sexo que os sustenta. Sabe, alegre e forte porque presente de corpos, presente de poros quando os corpos desnudos em praça, os corpos, não estão se desnudando em coro, mas estão juntos. E eles andam, gritam, incomodam, fazem barulho, mas não fazem massa compacta. Há poetas loucos que gritam na praça. Mas não há heróis. Na Recife de sete de setembro do filme, há um grupo que anda a despeito das comemorações da marcha, um grupo anarquista que se posta na rua ao lado, de modo que quase nem conseguimos ver as viaturas oficiais. Ali a marcha é uma grande presença ausente, assim como a nova cidade de Recife, a Recife higienizada com seus condomínios, que avança sobre o manguetown. Corrente “lateralista” (a expressão é do artista Paz Berti), eles não estão contra, mas à deriva das grandes ideologias e bandeiras, e como outros elementos do filme – sexo, gestos, coisas do mundo – simplesmente estão! existem, não trazem uma pauta pela qual lutar que não seja o próprio flanar e o exaltar da poesia, os versos escancarados na rua. “As pessoas ficam falando em futuro, em mudança, mas não estão nem aí pras coisas que realmente estão no mundo, perderam a capacidade de espernear pras coisas que estão no mundo” (Zizo, em A febre do rato). Existem marchas e antimarchas. Fluxos e contrafluxos, correntes e contracorrentes, transbordamentos, turbilhões. “Como alguma coisa pode, rara, surgir do ruído? Ou de uma desordem radical, e não já ordenada”, pergunta Michel Serres. Uma antimarcha não é feita apenas para negar, mas está baseada na afirmação de uma alternativa. Essa alternativa se justifica como recusa, ao se colocar como desvio do poder constituído. Porque o poder também precisa de
suas marchas, de seus escoamentos forçados, precisa confirmar a sua validade mediante representações. Exemplo máximo disso é a marcha do dia sete de setembro, disciplinada para reafirmar o Estado. Mas não só. Marchas também eleitorais e partidárias, marchas religiosas, marchas convocadas pelos próprios governos para defender os interesses majoritários disfarçados de “interesse geral”. Marchas com bandeiras, verticalização, trios elétricos e uniformes, em suma, marchas dentro da lógica representativa, pré-formatadas, verdadeiras “missas brancas” que não incomodam ninguém. Ou, como a marcha do “exército anticotas”, ocorrida na cidade de Santa Maria (RS) que, com essa pauta insólita requer a conservação da desigualdade, trazendo de comissão de frente uma faixa com a frase “somos todos iguais”! Um bom exemplo de vanguarda do atraso. Uma antimarcha pode se contrapor diretamente a uma marcha oficial. No sete de setembro de 2012, o Bloco Livre Reciclato, o Bloco Pula Roleta e o Museu de Colagens Urbanas realizaram a “marcha antimarcha” que, além de contestar a data oficial, aproveitaram o período das eleições para reforçar a campanha do não-voto. Se as marchas oficiais representam interesses ou grupos de interesses, a antimarcha é de outra natureza. Nesse sentido, não é pelo fato de adotar o nome “marcha” que ela deixa de perturbar a ordem, a marcha das vadias e a marcha da maconha são bons exemplos disso. A antimarcha “parece a liberdade porque é justamente a turbulência que recusa o escoamento forçado”, afirma Serres. Ofegantes, alegres e ásperos, os corpos estancam o cortejo, há gritos e há silêncio. A paisagem, um pouco diferente, já não mais Recife, Rio de Janeiro, Av. Rio Branco: A revolução já começou silenciosa e barulhenta. Vamos lutar pela natureza e pelos povos deste planeta. Rio + 20 não nos representa. Economia verde é capitalismo pintado. Somos os 99%. Queremos democracia real já. Foram as palavras de ordem da Ocupa dos Povos, acampada nas imediações do Aterro do Flamengo, tumultuando a Marcha dos Povos, um dos principais eventos da Cúpula dos Povos, “evento organizado pela sociedade civil global paralelo à Conferência das Nações
Talita Tibola
Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (UNCSD), a Rio+20” (site oficial da Cúpula). Com uma barraca suspensa, cartazes e a indignação expressa na nudez de alguns dos corpos, a antimarcha da Ocupa firmou uma alternativa de forma e conteúdo. Éramos seis e depois éramos muitos, um festim de revolta e afeto. O que se deu ali foi uma desordem que não se sabia muito bem a direção exata, tanto um enfrentamento como uma composição com outros elementos, no sentido da radicalização de pautas que eram discutidas e atravessavam a Cúpula. A recusa de um sistema que se reproduz inclusive sob a forma de sua crítica, quando filtrada pela lógica representativa. A economia verde, a consciência global, a mudança genérica de mentalidade: slogans em falsete com que a ordem dominante se apresenta mais palatável e sustentável, a mais recente novidade na marcha do progresso da civilização. Uma indignação que não cabia na Cúpula dos Povos virou a Ocupa, por onde passaram e misturaram-se Ocupas do Brasil e do mundo todo, assim como moradores de rua, artistas de rua, ativistas, estudantes e vários outros grupos e pessoas. 20 mil ou 80 mil eram as estimativas dos noticiários do número de pessoas na avenida nesse dia. Independente dos números precisos, era o que se poderia chamar de “muita gente”. Quantas marchas cabem em muita gente? Quantos caminhos cabem em uma marcha? Quantas cúpulas em muitos povos? Quantos povos sem bandeira, povos sem estado, povos do futuro ausente, quantas raças rudes de rua, alucinadas, imoderadas, grávidas do mundo, quantos poetas e quantas crianças? Sabe alegre e forte porque presente de corpos, presente de poros quando os corpos desnudos em praça, os corpos, não estão se desnudando em coro, mas estão juntos. E eles andam, gritam, incomodam, fazem barulho, mas não fazem massa compacta. Há poetas loucos que gritam na praça. Mas não há heróis. A antimarcha é sempre algum tipo de tumulto. Tumultua a direção dominante, a lógica representativa em movimento, que a disciplina tenta ordenar e garantir. Afirma outro viver, outras peles, outros fluxos amorosos, na generosidade e revolta de quem luta. Libertos de pautas que caem do céu, impostas de cima, elas encarnam pautas na superfície dos corpos, na nudez da cidade viva. 35 GLOBAL
OLIMPI(C)LEAKS
http://olimpicleaks.midiatatica.info/wikka/HomePage
O Olimpi(c)leaks foi criado a partir da indignação diante de injustiças que vem ocorrendo na cidade do Rio de Janeiro. Apesar de não ser um fenômeno novo, as remoções de favelas para a especulação imobiliária, turismo, guerra às drogas, controle de territórios e portos, somando-se agora os megaeventos – a cidade tratada como empresa – e usando justificativas como a abertura de vias, o risco de terrorismo e outras peripécias políticas. No intuito de abrigar entretenimento e turismo (lucro!) para os ricos, expropria-se mais uma vez os depauperados. Propomos com este projeto transparência e dignidade. Transparência ao revelar os discursos oficiosos que brotam nas ações jurídicas e políticas, em que comunidades com décadas de história viram subitamente áreas de risco na tentativa de justificar as práticas de reurbanização em curso. Dignidade em expor cartas escritas à mão pelos próprios moradores, fotos de remoções, demolições, resgatando as vidas daqueles que se encontram nas bordas das narrativas oficiais. A estratégia: proporcionar um vazamento midiático, no sentido de tornar evidente o bloqueio da mídia carioca e nacional sobre o tema – a face nada iluminada da fanfarra coberta de patriotismo, visibilidade internacional e oportunidades de negócios.
So bre as re moç õ es em c ur so Na inexistência de um diálogo entre Estado e moradores, as pessoas não têm acesso aos planos criados para os lugares que habitam. Territórios são leiloados como se houvesse da parte do governo ou das instituições internacionais uma propriedade legítima sobre comunidades criadas coletivamente, fazendo-nos constatar a falta quase total de direitos. Os moradores têm que adentrar o futuro imaginário das classes dirigentes, o jogo do gringo, a roda financeira global, o novo iate do político. Com tratores e emboscadas na calada da noite, casas geminadas são removidas das favelas colocando em risco centenas de outras moradias; comércios e áreas de lazer são totalmente destruídas sem indenização; entulhos abandonados caracterizam um estado de guerra; móveis transportados em caminhões de lixo exprimem o valor dado às vidas de inúmeras famílias, privadas de seu direito à manutenção de relações, histórias, vivências. Em se tratando de territórios em disputa, a questão se repete em muitas outras cidades do Brasil a receber megaeventos, assim como em outros países que já passaram por isso. Atravessa-a ainda a questão da propriedade imaterial, com a prisão de milhares de camelôs e trabalhadores informais. O direito à cidade: os sem-dinheiro, além de GLOBAL 36
sofrer todos estes transtornos, não conseguem desfrutar sequer de um jogo pelo qual sua casa foi trocada. Novos centros urbanos são criados à custa de novas remoções e mais pobreza. Como são decididas as prioridades urbanísticas da cidade? Para quem e quê se configura a cidade do Rio de Janeiro? Os milhões gastos com estádios e subsídios, financiamento de obras para fundações privadas (como museus, parques, vilas olímpicas), terrenos comprados por mais de 20 milhões, mais outros tantos investidos em tratores para destruição. E se apenas parte desse dinheiro fosse revertidos para a melhoria de uma comunidade e não em prol de uma ocupação temporária para um evento global?
S obre os do c um ent o s Os documentos disponibilizados são de acesso público, no entanto, não tão acessíveis quanto deveriam. São mediados por sistemas jurídicos, omissão midiática e alguma falta de engajamento cultural, histórico e social. Olimpi(c)leaks é, portanto, um resgate: de territórios, mídia, direitos. A transparência como sul (em contraponto ao norte) comum dessas áreas hoje isoladas. Isso se reflete no projeto de algumas formas – o acesso público à informações produzidas pelo estado e pelos próprios moradores, estímulo à produção de matérias sobre o tema, reflexões sobre o espaço em que vivemos, criação de novas narrativas acerca do processo, debate sobre a questão da moradia digna e os efeitos das megapolíticas na vida das pessoas. Mesmo que a internet não seja um espaço plenamente ocupado pela maioria destas comunidades, façamo-las ocupar imaterialmente através desses vazamentos, os leaks entendidos como transbordamentos de comunidades em resistência, engajadas na produção de sua própria cartografia, desenhos afetivos sobre seus territórios ocupados fisicamente de forma autônoma. O sombreamento dos nomes dos autores, incluso das pessoas que trabalharam sobre os documentos, foi a garantia de anonimato que encontramos para resguardar os envolvidos. Utilizamos neste projeto exclusivamente plataformas e programas livres pois apoiamos a autonomia dos dados. O sistema wiki utilizado é o wikkawiki que permite a adição de arquivos de forma rápida e descentralizada. Estudamos ainda a opção de subir arquivos relacionados ao tema moradia e territórios em época de megaeventos de forma segura, anônima, em sistemas que não guardem logs ou ips. Incentivamos a difusão das informações publicadas e o uso de redes sociais livres. Até o momento, o site reúne
ORDEM SEM CHOQUE
Bernardo Damasceno
documentos das comunidades Restinga, Vila Harmonia, Vila Recreio e Vila Autódromo. Todas foram ou são ameaçadas de remoção em virtude de obras urbanísticas ligadas aos megaeventos. De forma geral, são comunidades da zona oeste, oriundas de ocupações que surgiram antes do desenvolvimento da região. As três primeiras comunidades se situavam ao longo e às margens da Av. das Américas, onde havia residências e comércios, e mesmo unidades mistas. Devido à implantação da via expressa Transoeste, obras foram realizadas na extensão do logradouro público, alargando-o ao ponto de atingir Restinga, Vila Harmonia e Vila Recreio. Por tal motivo, a Prefeitura desencadeou a remoção de centenas de moradores e a demolição dos comércios locais do final de 2010 ao início de 2011. Os moradores que não aceitaram o reassentamento, em razão da longa distância entre a comunidade e o conjunto habitacional proposto foram despejados sem indenização prévia. Já a comunidade Vila Autódromo, formada por pescadores que moram em torno da lagoa, luta pela sua permanência há mais de trinta anos. Com a construção do Autódromo, juntaram-se os trabalhadores das obras e pessoas que migravam de outras comunidades – algumas removidas. Desde o início da década de 90 foram várias as tentativas de removê-la, inclusive por “dano estético”. A região vem sofrendo crescente valorização, alvo de especulação imobiliária. Entretanto, ao longo dos anos, os moradores de Vila Autódromo obtiveram a concessão real de uso e o direito de permanecer no local. No contexto atual da região, o poder público tenta mais uma vez remover a comunidade, agora em troca do reassentamento em um condomínio de apartamentos de 40 m², sem local conhecido. Muitos moradores rejeitam a ‘proposta’: primeiro porque muitas vezes suas casas possuem áreas várias vezes maiores que a oferecida; segundo, porque defen-dem o valor histórico da comunidade e das vidas que ali construíram. Nos documentos disponibilizados, é possível compreender o modo como foi conduzido tal processo, bem como a posição da Prefeitura, de pessoas da comunidade e da Defensoria Pública do RJ. Chamam atenção os relatos dos moradores que expressam a violência nas ações do poder público. Atualmente, muitos se encontram endividados pois não conseguem sequer trabalhar e até mesmo com depressão. Finalmente, estão em fase de tratamento documentos relativos às (ameaças de) remoções de outras comunidades: Horto, Morro do Bumba, Favela do Metrô. Seguiremos enquanto a política de (des)habitação do Rio de Janeiro não mudar. Vazemos. 37 GLOBAL
PADÊ
www.mariananovaes.wordpress.com Mariana Novaes
Padê do Amanhã: amanhã de quem? GLOBAL 38
39 GLOBAL
PRUDÊNCIA Estou indo longe demais. O alerta apareceu nos primeiros passos. Linhas 457 e 239. Da zona sul direto para Engenho de Dentro. Engenho de dentro para fora, uma valsa: Dentro fora, dentro fora, dentroforadentroforadentro a rodopiar. Seria um caminho sem volta? – C'est l'hôtel de folie! Entrem, comam tudo o que quiserem. Mas não pode levar nada para casa. Je suis Judith, le gérant de l'hôtel. Judith-Reginaldo-Naná, homem-mulher de uma perna só, enfeitada de perucas coloridas, aleatoriamente combinadas com boás de penas sintéticas, igualmente coloridas. É assim que ela recebe os hospedes, entre a alegria e o safanão. Entro. Essa viagem só faz sentido se for possível me desfazer das camadas duras, sedimentadas, da rocha que instaura o Eu. Se puder me destituir dos passos pesados, arrastados, se puder largar o fardo. A mulher negra pára à porta de entrada do hotel. Faz uma prece e entra. Ela é um demônio que fala 150 línguas e se tranca no banheiro ou se amarra com os próprios braços às camas dos quartos do hotel. Ela mente e confunde: – Vocês acham que estão fazendo diferente das pessoas do quinto andar? Vocês são como eles! Andam com o demônio! Vão me bater!? E ela espera o golpe, que não vem. Chamo-a pelo nome: Rosa. – Não permito que você diga o meu nome. Sua boca é suja. Então, Rosa entra pela cozinha, e rouba tudo o que pode: um saco de goiabinha, bebidas, copos, talheres. – Meu! Meu! Meu! Ela diz. Pergunto como posso chamá-la. – Me chama de você. E então, ela retorna à ala de crise no quinto andar. É o labirinto. Me seguro repetindo incessantemente: Até aqui, tudo bem. Até aqui, tudo bem. Até aqui, tudo bem. Ter um único nome a nos acompanhar pelo resto da vida é uma maneira de impor uma forma fixa a um corpo, a uma subjetividade em constante movimento de diferenciação. Incontáveis estados do ser, como dizia Nise da Silveira. Numa passagem bíblica, ao fazer um exorcismo, Jesus pergunta: qual é o seu nome? E o demônio responde: Legião é o meu nome, porque somos muitos. O demoníaco é ao mesmo tempo eu e nós. Uma multidão que confunde o sujeito singular com o sujeito plural, destruindo a própria distinção numérica. É o que Negri chama de o lado sombrio da mulGLOBAL 40
QUILOMBISMO
Sindia Santos tidão. Essa capacidade que a multidão tem de confundir, de ser um e muitos ao mesmo tempo, numa indefinição que ameaça todos os princípios de ordem política. A multidão é coisa do demônio. Quantos eu´s podem habitar um corpo? Não importa. Deleuze já dizia: não se trata de chegar ao ponto em que não se diz mais eu, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer eu. Aqui, neste labirinto, o pronome pessoal não reclama pessoas, mas forças e quereres. Ah, esses homens do desejo, capazes de partir. Nomadismo que escapa das identidades, algo tão simples quanto nascer e morrer. Tão simples quanto falar em nome próprio, sem impedir permissão. Desejo a que nada falta, fluxo que atravessa barragens, códigos, nome que não mais designa eu algum. Talvez porque nesta jornada, importa menos a queda do que a aterrisagem. A queda: “Cavalos são bichos selvagens. Não se doma um cavalo pela força, mas pelo espirito”. As palavras de Nise não cessavam de correr em meus ouvidos. Sê prudente, Ariadne, tens pequenas orelhas, tens minhas ore-lhas... Quem além de mim, sabe quem é Ariadne?... Sou teu labirinto. Como montar o cavalo do desejo, cavalo selvagem que exige montador de corpo forte, capaz de se construir, de ser um e muitos, capaz de ser constantemente atravessado por forças vitais? Um corpo capaz de correr os riscos da experiência de ser possuído por demônios. Experiência que envolve vertigens, deslocamentos horizontais, os terrores e as alegrias do desconhecido. E não romantizemos, é possível falhar, é possível morrer nesse processo. Milton Freire: _ Minha primeira crise aconteceu quando eu tinha 15 anos. Fui me fragmentando e descendo, descendo. Às vezes a gente desce tanto, que não tem mais como voltar. Isso é a doença. Outras vezes a fragmentação é para cima. Ao longo de 10 anos, Milton se fragmentou e se constituiu diante de inúmeras internações em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro. A literatura o ajudou a superar as sequelas deixadas pelos tratamentos que recebeu: “eletrochoques e comas insulínicos, intensificados pelo sadismo e pela perversão de uma cultura da mortificação”. Ele conseguiu retomar sua vida e se recuperar após um tratamento em
serviço aberto com Nise da Silveira: “A vida, a convivência, a arte e o afeto, foram os melhores remédios”. Afeto incondicional, sem pedir nada em troca, fragmentação para cima, celebração. Quando a fragmentação é para cima, Milton explica, vivemos a potência da nossa própria força, livre daquilo que a ensejou. Deixamos de nos ensimesmar sozinhos. Então, esta fragmentação não é vivida na solidão. Ela é um desvio. É a segunda morte. Morte impessoal que se vira contra a própria morte e gera um segundo acontecimento: o surgimento do “plebeu”, do homem sem qualidades, do novo homem do eterno retorno, ou do super-homem. Mas é preciso cautela na escolha dos meios do procedimento. Samuel Enoque: – Eu sou a sua mãe. Ao invés de apertar o meu pescoço, como costuma fazer com muitos visitantes do Nise, Samuel segura meu pescoço e me beija a boca e vai embora. É do desejo construir um corpo-sem-órgãos. Foi ai que percebi: sou um cavalo em disparada, que morreu numa praça pública, babando espuma, cansado de tanto desejar. Dissolução, estilhaçamento do eu. Como passar do corpo-sem-orgãosdestruidor, do corpo peneira, ao corposem-órgãos-criador? A aterrisagem: Vitor Pordeus: – Você precisa cuidar da sua espiritualidade. Vitor era um menino no carro me dizendo em tom de bofetada. Espiritualidade? Espiritualidade é corpo, respondi raivosa. Ele concordou e ao mesmo tempo jogou uma mulher ferida em meu colo. A jovem mulher estava estirada na calçada, cansada demais para chegar na UPA. Vitor a colocou no carro, ela queria vomitar. A passamos para o banco de trás para evitar que o motorista se atrapalhasse. Ela era uma jovem mulher que dizia ter tanta raiva de si mesma que bateu a cabeça na parede, inúmeras vezes, até sangrar. Seus olhos estavam roxos de dor. Ela dizia querer enlouquecer e deitou a cabeça em meus ombros. Aterrorizada pelo medo de não poder acolher a mulher que sentia dor, busquei o olhar do menino no carro. Vitor olhava pela janela, como se não tivesse nada a ver com aquilo. Ele me deixava sozinha com a desconhecida mulher que tinha dor. Foi quando senti o cheiro dela. Era um perfume de corpo, estranho ao olfato, como uma rosa que fica por muito tempo num vaso com água, seu caule de desfaz e aquele esfacelar-se pastoso espalha-se pelos dedos, e o cheiro da
rosa sobe. Toquei seu rosto: Tudo era pele, cabelos, olhos roxos, esparadrapo e lamento. E havia também o latente desejo de enlouquecer. É possível tocar a vida pulsando? Judith-Reginaldo-Naná me pergunta: o que você sabe sobre o amor? Estou viva, então sei do amor, lhe respondi ressabiada. Ele riu da resposta certeira em tom de pergunta. Se estou viva, sei do amor? Era óbvio, Judith-ReginaldoNaná era um deus que podia pisar na terra, deus pleno em corpo, deus cansado de subir os degraus, deus cujos músculos não suportavam mais o peso dos passos. Mas ele seguia impiedoso: O que você sabe do amor? Mais uma vez, busquei o menino no carro, Vitor ainda olhava pela janela. Ele fazia de propósito, corifeu de Nise, seguia me enlouquecendo com seus sussurros: “cavalos são bichos selvagens. Não se doma um cavalo pela força, mas pelo espirito”. Um homem que cura com planta se aproxima. Peço um cigarro. Fumo. Vomito. Mexericas. Fecho os olhos para enxergar e vejo o preciso momento em que uma mulher de longos cabelos loiros, se transforma em borboleta, o exato segundo em que ela sai do casulo e voa. “Espiritualidade é corpo, tem que cuidar”, Vitor agora olha para mim. Choro e toco meu corpo no rosto da jovem mulher ferida em meu colo. Sim, posso acolher a mulher ferida que sente dor e deseja enlouquecer. Afeto incondicional. Ocupar é se deixar invadir, se deixar tomar, é também tomar, invadir. Segundo o dicionário, ocupar é encher um espaço de lugar e de tempo. Ocupar é uma afirmação, é afirmar-se, é afirmação da presença de um povo que nos habita. Foram três semanas de intensas atividades e convívio durante a Ocupação do Instituto Nise da Silveira. Artistas de rua, loucos, poetas, cientistas, cada um dos nove quartos do Hotel da Loucura foi tomado, invadido, ocupado. Gente de todo o Brasil. Uma multidão ardente, desejosa de sol, do quente das relações. Nas paredes do hotel, o registro: As únicas pessoas para mim são as loucas. Loucas para amar. Loucas para viver. Loucas para serem salvas. Que querem tudo ao mesmo tempo. E que bocejam diante do comum. E que ardem, ardem e ardem, como fabulosos fogos de artifício. E que explodem, em mil centelhas, entre as estrelas.
Laura Olivieri
O Horto Florestal do Rio de Janeiro é uma comunidade tradicional que possui uma história de mais de duzentos anos e que gerou uma população detentora de certa cultura criadora de valores, símbolos e crenças. Uma população tradicional que é conhecedora de suas raízes e tradições e transformou esse conhecimento e toda a sua sabedoria ancestral num projeto social de memória, o Museu do Horto.
com terras mais a sudeste, na Gávea, fundando o Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, onde hoje é o Jardim Botânico do Rio de Janeiro (Casa Grande e Capela de mesmo nome).
Acompanhamos a implementação desse projeto organizacional e fizemos a nossa tese de doutorado em serviço social (PUC-Rio) sobre o processo de criação e ação social deste museu comunitário de territorialidade – o Museu do Horto – e da associação de moradores à qual está associado, a Amahor.
Em paralelo, na atual rua Faro no bairro Jardim Botânico situava-se o Engenho Nossa Senhora da Cabeça, à margem do Rio Cabeça, recurso hídrico importante naquela época para a cidade, assim como ainda hoje o é, desaguando na Lagoa Rodrigo de Freitas (antiga Sacopenapã).
Conhecemos a fundo os moradores do Horto e sua territorialidade porque convivemos há dez anos, estreitamos vínculos durante a nossa pesquisa de doutorado, e algumas famílias seguem contribuindo para o desenvolvimento do Museu do Horto e se relacionando conosco. Tratam-se de estruturas de parentesco bastante antigos que se misturam com a natureza e os aspectos simbólicos da cultura dessa territorialidade conhecida, desde 1875, como Horto Florestal do Rio de Janeiro. A população que reside nesse local está ali há tantos anos que a memória social local está sempre referenciada ao “tempo dos escravos”. Sua cultura remonta às senzalas e aos quilombos e trilhas quilombolas das matas da Gávea (freguesia em 1800). Lugar de memória da cidade, o Horto já sediou a Casa grande e a Senzala do Engenho Del Rey, fundado por Mem de Sá em 1575. Ficava no Morro das Margaridas, coração da localidade, às margens do Rio dos Macacos, importante recurso hídrico desde então. Em 1645 o engenho foi vendido para Diogo Amorim que unificou essas
Um século depois sediou o Solar da Imperatriz, construção que já remetia ao padrão arquitetônico do ciclo imperial do café, com casarões neoclássicos e senzalas nos porões.
Os sopés todos do Maciço da Tijuca eram povoados, nas faces norte e sul. Historicamente, São Conrado, Gávea, Horto, Lagoa, Botafogo, Laranjeiras, Tijuca, Vila Isabel, Grajaú, Jacarepaguá, Alto da Boa Vista, Canoas... eram povoados e trocavam serviços e relações. No topo, o Sumaré, de onde vêm muitos dos rios que descem o maciço até os bairros da cidade, desaguando em lagoas e mares. No Horto do século XIX, o morro das Margaridas abrigou o Mocambo da Margarida, rota de fuga de quilombolas em transito entre Sacopã, Camélias do Leblon e os da Floresta da Tijuca, que eram vários. O Museu sankofa da Rocinha estuda a possibilidade de se ter formado um quilombismo na roça onde se ergueu a comunidade de mesmo nome: Rocinha. E por aí seguia-se até a Vila Canoas, e outras localidades às margens dos morros do Rio de Janeiro. O que é certo hoje na historiografia sobre escravidão e quilombismo é que onde havia escravos havia resistência e portanto aquilombamento, reunião de quilombolas, aqueles que resistiam ao sistema escravistas. Heróis afro-brasileiros durante muito tempo alijados dessa honra pela história oficial. 41 GLOBAL
RADIOFONIA CARTOGRÁFICA www.radiointerofnica.wordpress.com
Mariana Novaes Marcelo Wasem
RECUSAR Fabricio Toledo Fugir, desviar, mentir, recusar, silenciar, paralisar, ceder, esconder, esquivar. Toda uma série de gestos que diríamos negativos, que nos parecem mais um recuo do movimento do que propriamente uma ação. O refugiado que foge, o operário que recusa, o condenado que se esquiva, a criança que mente, a mulher que desvia, o louco que silencia. Diriam alguns que são movimentos da impotência porque motivados por forças alheias. Será mesmo? Chegamos a supor que sejam recuos porque se destinam apenas à sobrevivência imediata e à preservação do corpo biológico. Mas já não é o bastante? Cada um destes movimentos, no entanto, está repleto de outros tantos gestos: caóticos, prenhes, desviantes. É possível então imaginar outras séries: o refugiado que mente, o operário que foge, a mulher que recusa, o louco que desvia... A mulher que foge, o operário que mente, o louco que recusa... Infinito. O amigo filósofo já nos dava a dica: fugir, mas na fuga procurar uma arma. Mas há casos em que a fuga já é a arma, acionando implosões, distúrbios, choques, caos. Lembramos de Melville e do escrivão enigmático: “eu preferia não”. E também lembramos de Geni, o excesso de devir minoritário da mulher, a histeria levada ao extremo absoluto, destroçada no desvio esquizo, a mulher-rainha, ainda e sobretudo, rainha dos detentos, das loucas e dos lazarentos, aquela que preferia amar com os bichos. O que importa não é que Geni tenha salvado a cidade do zepelin gigante, mas que ela esteja fundando a mulher-além-da-histeria, além-da-falta, a vadia em excesso, a além-mulher. Experimente beijar um louco na boca. A respeito da fuga, o que importa menos é o seu caráter involuntário. A fuga já é resistência e como tal é potência ontológica. Não apenas sobrevivência. É mesmo mais vida, uma vida maior, adicionada de outros movimentos, expansões, alianças. O corpo do congolês que foge tende a compor em sua fuga novas forças, um novo pensa-
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RECUSAR
mento, um povo inteiro no lugar do Estado-parasita e de sua guerra de perversões com os rebeldes. Há uma imensa multidão fugindo dos Congosdo-mundo, estes lugares onde o capitalismo se revela em toda a franqueza e falta de sofisticação, decepando braços, abrindo ventres, estuprando mulheres, suicidando ativistas. Mesmo dentre o pobre povo congolês, o capitalismo não para de inventar minorias: há os mais pobres, há as mulheres, os pigmeus e todas as minorias de uma minoria, os mais assassinados que outros, um infinito de perversidades. E nós sabemos que Congo, Haiti, Ruanda, Pinheirinho e Os Sertões estão em toda parte. E sabemos que não há tempo para metáforas. E o q ue t en h o a v er c om i s so ? O jovem refugiado congolês me interpelou docemente. Era já um velho conhecido. Estava visivelmente contrariado, mas não perdia a doçura. Contrariado com as notícias sobre o pequeno número de congoleses que foram reconhecidos como refugiados no Brasil. O Brasil que cresce. Brésil, Brazil. Diria que estava mesmo indignado, mas mantinha-se doce, como é seu jeito. Dirigia-me perguntas duras e simples, diretamente para mim, com seu sotaque familiar, de “erres” puxados. Contou com impaciência os problemas de seu país. A guerra, o estupro indiscriminado de mulheres e meninas, o recrutamento forçado dos meninos, as mutilações, a exploração nas minas, a impunidade, a corrupção generalizada, a falta de justiça, tudo aquilo que lemos nos relatórios e que ouvimos de muitos e muitos congoleses antes dele. Não sei se ele falava em nome próprio, em nome de outro ou em nome de seus conterrâneos. Aliás, não sei se havia um que falava por outro. Quanto a mim, apenas concordava, forçando os traços do rosto para compensar a dificuldade da fala. Fazia questão de demonstrar minha compreensão, minha solidariedade e, acima de tudo, minha cumplicidade. Estava ao seu lado, é o que queria dizer. E forçava mais os traços do rosto. As histórias eram velhas conhecidas, mas havia algo de muito novo. Um incômodo crescente. Queria que terminasse logo, queria sair dali. GLOBAL 44
SUMIÇO
[Continuação] Fabricio Toledo
Simone Tomé
Queria explicar que já conhecia o problema, mas não queria ser indelicado. Ele não parava de falar, de contar histórias. Sempre com doçura. No meu esforço de cumplicidade, fazia gestos repetitivos. Explicava que estávamos lutando por eles. Que compreendíamos. Explicava a ele como eram os julgamentos. Os tipos de objeções que se faziam. Os critérios usados para a análise dos pedidos de refúgio. Falei sobre a questão da credibilidade, que era preciso distinguir entre os migrantes e os verdadeiros refugiados. Ele falava comigo e para mim. E eu falava do governo, do Estado, das leis, do instituto... Ele não abandonava o olhar de mim. Meu olhar, já não sabia onde estava. Ouvia cada palavra, mas ele parecia cada vez mais exausto das explicações. E eu também. Tentava então me esquivar. Aquilo tudo doía. Contou, afinal, a história da garota que era sua vizinha no Congo. Ela ficou em Kinshasa, na capital do país, onde a violência é menor, segundos os relatórios oficiais. Morava com a família. Simplesmente porque recusou o assédio de um oficial das forças armadas, passou a ser estuprada rotineiramente. Várias vezes durante a semana, por vários homens, todos fardados. Ela não tem dinheiro para fugir do país e não há autoridades a quem ela possa reclamar. A autoridade a tinha estuprado. Não há juízes a quem pedir justiça. E afinal me disse: “mas o que querem ‘eles’? Eles realmente esperam que a gente volte para aquele país? É isso que eles esperam?” Então se foi. O incômodo explodiu na minha cara. Eu agora sentia vergonha. Vergonha por ter me visto uma das tantas peças de uma estranha máquina. Uma máquina diabólica, sempre a espreita, e que não me pergunta de que lado estou. Diabólica, porque ela mesma está sempre mudando de lado, mudando os lados, incluindo em si todas as lateralidades, do Congo ao Brasil, de um lado a outro, do policial ao assistente social, do psicólogo ao advogado. Assim como incluindo o direito humanitário, o direito de intervenção, o direito de controle das fronteiras... Uma máquina estéril mas que paradoxal-
mente vai criando filiações, seja através da recompensa, da fantasia de conforto ou da simples má-consciência. Geralmente, tudo junto. Tudo vai virando um só Estado, desde as grandes instituições até os pequenos gestos diários, os traços simples do rosto, o jeito de andar, de falar, de ouvir. Trata-se de um rizoma infernal, que pode devorar tudo, inclusive vegetais orgânicos e os sorvetes de iogurte. Como então evitar a cumplicidade e o acoplamento? Não se trata apenas de recusar a inércia da cadeira do escritório e o vazio dos princípios gerais, das burocracias, normas e institutos. É preciso, acima de tudo, recusar a aliança com o poder, em sua forma mais microscópica, mais banal e diária. Não é a toa que Foucault gri-
tava: não caia de amores pelo poder. Recusar às vezes já é bastante coisa. Fugir, mas na fuga procurar uma arma. Recusar, mas na recusa montar uma outra máquina. Nomadizar o pensamento e a própria subjetividade. Colocar a vida em questão. Montar dispositivos de luta contra a captura, contra a má-consciência, contra as ideologias, contra o excesso do trabalho vazio e morto. Se o trabalho e a própria vida foram investidas pelo poder, todo trabalho e todo gesto são também resistência, são oportunidades de produção de vida. Neste sentido, resistir é o esforço diário de uma vida inteira. Ainda que seja necessário mentir, disfarçar, dissimular, falsificar, fraudar, todo esse esforço de se posicionar de uma certa maneira diante da verdade.
Não é caso de esconder a verdade, mas de fazê-la aparecer radiante na explosão da mentira. Mentira-estratégia que se dobra contra a mentira-captura, aquela mentira que justifica as remoções dos pobres, a prisão dos negros e a expulsão dos haitianos. Não se nega a verdade, mas se a exagera a ponto de parecer mentira. Se o jogo é dado, então é preciso jogá-lo, subvertendo-o por dentro, pelas beiradas, de lado. Se até mesmo Pierre, o jovem camponês que confessou ter matado sua família é tomado por mentiroso e depois por louco, porque achamos que a verdade liberta? A verdade liberta? O trabalho liberta? Nada mais mentiroso, nós bem sabemos. Portanto, recusar é necessário, assim como mentir. Coragem da Verdade, mas também Coragem da Mentira.
Série Invasor - Simone Tomé
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TEIA DOS PONTOS DE CULTURA
PARATY - QUILOMBO DO CAMPINHO 24 A 26 DE AGOSTO DE 2012
EL ENCANTO DEL ENCUENTRO - Macarena
VIVENCIAS DE LA CULTURA EN MOVIMIENTO - Leticia Pou
Paraty ciudad de calles de adoquines y casitas con faroles. Allí nos encontramos el viernes 24 de agosto de 2012 y nos despedimos el domingo 26. Fueron tres días de pensar la cultura y vivirla. Paraty encantada, má-gica, antigua y también nueva, por ser sede de este encuentro revolucionario. El objetivo era reunir a los Puntos de Cultura del Estado de Río de Janeiro, Brasil. Y los puntos son personas, son “ponteiros”, son música y danza, costumbres, comida, naturaleza, rituales; son mezclas de todo esto, tan simple como lo cotidiano y que a veces olvidamos y lo damos por sentado. Entonces ocurrió así. Todos llegaron con sus instrumentos y vestimentas, con sus cantos y producciones para compartir. El inicio fue en el Colegio CEMBRA. Autoridades del Ministerio de la Cultura, de la Secretaría Estadual, de organizaciones de la región, dieron la bienvenida, dijeron sus palabras, las primeras de todas las que vendrían después. “Ô Marinheiro é hora, é hora de trabalhar...” Así empezó cada instancia. Con un canto alegre y ondulado, meciéndonos en un barco en el medio del mar. Alguien emitía las primeras sílabas y poco a poco todos se iban sumando acompañando esa melodía de la que después se hizo tan difícil escapar. Trabajo es igual a música, se me venía a la cabeza cada vez que lo escuchaba. Contrariamente a lo que algunos hemos aprendido, trabajo, en ese encuentro no fue opuesto a diversión. Y diversión no fue sinónimo de improductividad. Un coro indígena guaraní cantó músicas en su lengua. Un coro compuesto por niños y niñas, mujeres, hombres y ancianos. Mientras cantaban, sus pies descalzos golpeaban suavemente el suelo y abajo de nuestros pies retumbaba la tierra. Mientras cantaban, tenían las manos dadas. Quisiera haber sabido más de ellos y de su Punto de Cultura. Dulce y salado. Delicias del “Café da Roça” estuvieron presentes el primer día. Mesas repletas que eran llenadas continuamente por mujeres sonrientes dispuestas a explicarte de qué estaba hecha cada torta. Y la “juçara” era un ingrediente recurrente; después nos enteraríamos más sobre esta planta. La comida, elemento esencial de la cultura. El sabor de lo tradicional. La abundancia. Lo hecho con esmero y “tempero”. Ya almorzaríamos y cenaríamos en el restaurante comunitario del Quilombo do Campinho da Indepencia, “feijoada” y “bobó de camarão”, platos caraterísticos del lugar. Y las mujeres siempre al frente de este trabajo, pilar del resto de los trabajos. El viernes terminó con “jongo”, danza afro-
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brasileña, en rueda, con tambor y cantos que todos entonamos. Y en el centro, una pareja que bailaba e iba cambiando uno de sus integrantes a medida que otros se animaban a participar del baile. Nos fuimos bailando a una plaza frente al Colegio CEMBRA, y alrededor del centro se armó una ronda, cantando “cirandas”. Y fueron varias rondas dentro de una. Y giramos para un lado y para otro. Y hubo “birimbao” y “pandeiro”. Y muchos que bailaron. En cortejo, la “ponteirada” desfiló de la plaza a la playa. El sábado llega-mos al Quilombo do Campinho da Independencia. Caminamos hasta un claro donde, en ronda, se compartió la historia del origen de dicha comunidad quilombola. Con la abolición de la esclavitud, tes mujeres negras que trabajaban en una estancia de esas tierras, se quedaron viviendo allí y lucharon junto a otros por la construcción de una comunidad libre. Sus hijos y los hijos de sus hijos conforman hoy los núcleos familiares del Quilombo. Esas mujeres se llamabam Luiza, Antonica y Marcelina. Madalena, una señora bajita de unos sesenta o setenta años, nos contó su historia y la de su familia. Traba-jando en el campo y criando a sus hijos, un día pensó que era necesario tener un lugar para reunir todos los productos artesanales producidos en el Quilombo, para poder venderlos y así conservar la tradición del artesanado. Así surgió la “Casa do Artesanato”, donde se encuentran artesanías hechas con materiales naturales de la región: taquara, cipó imbé, cipó-caboco y taboa. El resto del sábado y el domingo transcurrió entre intercambios acerca de las actividades desarrolladas por distintos Puntos de Cultura, mesas de debate y grupos de trabajo. Los ejes en torno a los cuales giraron las discusiones fueron: Cultura, Comunicación y Visibilidad; Cultura, Diversidad y Políticas Públicas, y Cultura, Territorio y Sustentabilidad. Entre las opiniones volcadas se destacó la importancia de los encuentros, la necesidad y el deseo de conocerse entre los diferentes Puntos de Cultura. Y la convicción de que en el diálogo y la comunicación entre cada punto, cada área de producción, de desarrollo, cada persona, está la oportunidad de acrecentar el conocimiento, el saber compartido. La firme certeza de que una vez Punto de Cultura, siempre Punto de Cultura. Por eso, aunque el gobierno de turno cambie, aunque tenga otras ideas y considere que la cultura es aquella que realizan las élites iluminadas y elevadas, sobrevivirá la cultura popular, la
de los pueblos originarios, la de aquellos que generalmente no se escuchan ni se ven en los medios masivos de comunicación. Pero no sólo seguirá resistiendo y haciendo lo que siempre hizo, luchar, sino que se multiplicará. También se identificaron dificultades y propusieron alternativas para enfrentarlas, apelando a las forta-lezas que también las hay y muchas. La gestión, la burocracia inevitable, es una de los principales obstáculos que han de ser vencidos para concretar esta política, esta manera de hacer cultura. Para superar este obstáculo se propuso invertir en capacitación, formación y articulación. Estuvo presente la preocupación por los registros, por conservar los patrimonios culturales y hacer de la producción cultural una actividad sustentable y visible. Y estuvo siempre el elemento tierra, el territorio. “Tum tum bate o coração da terra...tum tum, tum tum, meu coração junto com ela...” Paraty, Quilombo do Campinho da Independencia, reunió en su suelo personas con sus pieles de distintos colores y ojos de diversas miradas. Y en la diversidad, los puntos en común. Y en el festejo, las interrogantes. Las preguntas que mueven y obligan a seguir. Cómo preservar, proteger, lo tradicional, lo autóctono, y al mismo tiempo expandirlo, globalizar su acceso. Cómo innovar a partir de lo ancestral. Cómo rescatar el pasado y valorizarlo en el presente, encontrarle un lugar en el día de hoy, sin excluir, ni jerarquizar. Cómo transformar esta sociedad y sus injusticias sin perder las raíces. Cómo saber analizar las raíces para identificar allí, con distancia lo suficientemente crítica, también las injusticias que vienen de antaño, que se traspasan de generación en generación, que existen en muchas culturas y etnias. Cómo seguir cuando las relaciones de poder, el machismo, el capitalismo, el racismo, las múltiples opresiones persisten, se agudizan. El encuentro para pensar esto juntos ya es una respuesta. Y el encuentro demuestra que la cultura no sucede sólo una vez cada tanto, se vive todos los días. Hasta el final, la música y la danza. Me llevo a mi tierra las ansias de conocer más, de hacer más, de bailar y cantar más. De luchar. Me voy con el tambor del jongo político que cantó Laura, integrante del Quilombo, reivindicando la recuperación de la Palmera Juçara en la “Mata Atlántica”, de donde se extrae el palmito, que muchos comemos sin saber de dónde viene. Porque bailar y cantar es un acto político. Por una cultura viva, por el pueblo y para el pueblo. “Turuc tuc tuc tuc tac, turuc tuc tuc tac...a semente da juçara....a semente da juçara...”
Llegué a Río de Janeiro para participar del Intercambio internacional que ofrece el Centro de Teatro del Oprimido. A través del CTO, Punto de Cultura de la ciudad carioca, fui invitada a compartir la Teia 2012 realizada en el Quilombo de Campinho, de la ciudad de Paraty. En este relato repaso aquellos pensamientos, cuestionamientos y emociones que en mi se generaron como resultado de una experiencia enriquecedora en múltiples sentidos. “Siempre estamos juntos”… “Siempre estamos juntos, apoyándonos unos a otros, porque sólo así vamos a tener fuerzas” dijo un joven de la comunidad Guaraní refiriéndose a sus compañeros Quilombolas. Quizás ese sea el sentir que hoy más resuena en mí, luego de haber participado de la Teia 2012 en el Quilombo de Campinho. Como lo expresaron aquellas palabras, percibí la fortaleza de la unión que permite luchar para mantener vivas las identidades. Vivencié un momento de encuentro. En cada instancia compartida, en cada canto, debate, danza, vislumbré diversidad. Esa diversidad – que no deja de sorprenderme también en las calles de Río de Janeiro – se conjugó en la unión. Percibí una confluencia de realidades basadas en el objetivo de que la cultura siga VIVA, que la cultura brasilera no sea sólo un proyecto finito del gobierno de turno, si no que sea un derecho de todo ser humano que habite el suelo brasilero. Oí cuestionamientos a la burocracia, manifestaciones de necesidades diversas, búsqueda de legitimaciones postergadas, pero también experimenté la reconfirmación de valores, la lucha para profundizar derechos ya adquiridos. Todo resultó enriquecedor porque me permitió experimentar la militancia por la cultura desde adentro. Una militancia mediada por la alegría del juego, del canto, de la danza brasilera. “Brincar e trabalhar tempo tudo”
Conjugar tantas necesidades y ganas de crecer no debe ser tarea fácil. Cuando los tiempos empezaron a ser menores, cuando los relojes comenzaron a ser consultados en demasía por los organizadores, un puntero de Niteroi tomó el micrófono y dijo que la Teia era un espacio para jugar y trabajar todo el tiempo. Ambas acciones eran importantes. Las palabras de ese militante sintetizaron lo que mi cuerpo y mi mente se estaba debatiendo…luego Marcela, mi compañera boliviano-argentina, completó la idea: “podemos pensar la cultura, haciendo cultura”. Fue reconfortante encontrarme en un espacio en donde el diálogo fue mediado por el juego; donde la comunicación y el deseo de transformar se plasmaban en una canción, en un coro guaraní o en una ronda de zamba. Como consecuencia de esa vivencia hoy me cuestiono: ¿cuánto tiempo de cultura perdemos con la burocracia, tanto estatal como de nuestros grupos de trabajo?; ¿cuánto tiempo de juego no disfrutamos con las discusiones que sólo buscan reafirmar nuestro ego profesional y hacen oídos sordos a nuestras problemáticas esenciales? Me lo pregunto, en función de lo que escuché de algunos punteros en la Teia 2012, pero también como miembro de una Organización No Gubernamental que en Córdoba lidia día a día con estas cuestiones burocráticas. ¡Cuán difícil, aunque no imposible, es desechar lo abundante para ejercer la síntesis que recupera lo que realmente nos importa! En este sentido, me llevo de la Teia una cálida y rítmica manera de enfrentar las problemáticas en un ámbito de discusión; me llevo ese “cómo”, útil para organizar un evento con cientos de personas fortaleciendo la pertenencia a un territorio diverso. Creo que siempre es bueno seguir indagando en las maneras de enriquecer esa compensación exacta entre el jugar y el trabajar… ¡habrá que seguir andando!
“Vamos a ampliar, gente!” Y andando por la Teia 2012 una puntera manifestó que este momento – el de poder llevar adelante los Puntos de Cultura en Brasil – era un momento histórico, pero que era necesario también ampliar los logros conseguidos. Surgió así el debate sobre la caducidad de los contratos y las incertidumbres por un ciclo que, según algunos, llega a su fin. De ese debate me llevo la convicción de aquellos punteros que rescataron la importancia de identificar a los Puntos de Cultura no como un proyecto, si no como una militancia constante, una manera de entender y hacer la cultura, como un derecho adquirido que no acaba. Ese derecho adquirido, ese trabajo que muchos punteros defienden con pasión hace años, fue modelo para otros países, como por ejemplo Argentina. Por eso mi enorme gratitud por haber vivido tres días que me sirvieron para comprender porqué es necesaria la unidad para la transformación. Sin ser parte de los Puntos de Cultura en Argentina, pero conociendo la campaña del “Pueblo hace Cultura en la provincia de Córdoba”, agradezco la fortaleza de los hacedores de este movimiento brasileiro, una de las tantas razones por las cuales colectivos culturales de mi país hoy están en la lucha. Me llevo de la Teia muchas preguntas y potencialidades para pensar y pensarme en función de la Educación y la Cultura de manera colectiva en mi país. Me llevo la alegría de saberme latinoamericana, y sentir que nuestros problemas y necesidades, independientemente de las particularidades de cada región, tienen un origen semejante. Estoy convencida, tal como lo manifestó una puntera en la Teia, que ninguna estadística (por mas necesaria que sea) da cuenta de la importancia de la Cultura de los Pueblos. 47 GLOBAL
TROCAS Sala Dobradiça: http://www.saladobradica.art.br/ Alessandra Giovanella Desirée Tibola Elias Maroso Gabriel Araújo
Fotos Paulo Fernando Machado GLOBAL 48