gotas #1

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Transparência é como trilha na mata num domingo de sol depois do almoço. Todo mundo é a favor, ninguém começa. (continua na página 4)



Rua Santos Torres, em frente ao número 84, São Paulo, SP. (Mas na verdade fomos nós mesmos que escrevemos no chão.)


(con tinuação da capa) Não é por acaso que é assim. Transparência não é moleza mesmo. É

do projeto Esfera, “transparência é um viabilizador de participação

uma atitude perigosa, com poder de desestabilizar coisas. Quando a

pública. É a primeira discussão – o resto é consequência”. Para

internet deu mais transparência para as relações humanas, um tremor

a Esfera, o debate é simples: “Governo, me dê os dados que me

de terra se espalhou pelo mundo, reduzindo a escombros gravadoras

pertencem e deixe a inteligência coletiva tomar conta”.

de discos, jornalões centenários e um bom número de reputações.

Mas há outras dimensões da transparência. Liguei para o

Transparência, assim como o sangue de Jesus, tem poder. E

Rodrigo CVC, assessor de reputação da presidência do Grupo

é tentador imaginar como canalizar esse poder para o bem, de modo

Santander do Brasil. Ele me disse que os bancos, assim como um

que ele melhore a relação entre a gente (a gente, no caso, somos eu,

monte de empresas, estão empenhadíssimos em descobrir como se

você e os outros 6.706.993.151 seres humanos terráqueos). Afinal,

tornar mais transparentes com seus clientes. A intenção, tratando-se

transparência gera confiança. Confiança possibilita colaboração. E

de um banco, é fácil de entender: com mais transparência, há mais

colaboração, como se sabe, move montanhas. (Ou era a fé?)

confiança e as coisas se valorizam. Considerando que a economia

Já sei. Você está achando que somos hippies, desses

vive basicamente uma crise mundial de confiança, trata-se de uma

cabeludos de pé sujo que ficam por aí dizendo “gente, vamos nos

boa receita para lucrar. (Pense num vendedor de carro usado. O

entender” com o indicador e o médio levantados. Pois não somos.

carro vale mais se você confiar nele, não vale?)

Nosso cabelo é curto. Nossos pés são um pouco sujos, mas não

Como o tema é transparência, nos esforçamos para fazer

mais do que a média das pessoas. Ou apenas um pouco mais.

a revista de maneira transparente. Tentamos ser sinceros com

Não estamos falando aqui de teorias da Nova Era, mas de efeitos

nossos colaboradores, do início ao fim (para variar um pouquinho).

concretos, reais, na vida das pessoas, na economia, no mundo.

Tentamos não encher as páginas de títulos gritalhões e desonestos.

E que diabos é a Gotas? Mais uma revista difícil de entender

Procuramos deixar claras nossas intenções, a começar por este

com um nome sacadinho de substantivo comum? Sim. Mas não

texto aqui. Buscamos uma linguagem visual simples, despojada,

apenas isso. Gotas é uma publicação da Webcitizen, uma empresa

eficaz, nua, não produzida (isso também é porque não tínhamos

privada que se propõe a atender o interesse público e ganhar

muito dinheiro e o prazo era de só duas semanas (e eu conto o

dinheiro com isso. Queremos que nosso dinheiro venha de governos,

prazo porque quero influenciar você subliminarmente a não ser muito

empresas, fundações e pessoas com identificação com os nossos

exigente (porque, como diz a Bárbara Soalheiro na página 16, mais

valores e vontade de mudar o mundo. O projeto desta revista, que se

confiança é uma boa receita para enganar os outros))).

planeja trimestral, é ser a afirmação desses valores.

Mas voltando à vaca fria: fazemos esta revista porque

O primeiro desses valores que resolvemos abordar é a

adoramos fazer coisas, não para ganhar dinheiro. Mas temos a

transparência. Nossa intenção foi fazer uma revista bem legal

esperança de que essas coisas de que gostamos abram caminhos

para tentar convencer você de que transparência não é assunto

para a gente ganhar dinheiro.

tão chato quanto parece. Nossa proposta não era fazer algo ambicioso ou completo, mas um mosaico de abordagens que, quem

Para garantir que Gotas estivesse afinada com as últimas tendências

sabe, gerem insights, deem ideias, ajudem a formular projetos ou,

da Europa, chamei Bárbara Soalheiro, recém-chegada de uma

suprema ambição, sirvam de leve entretenimento. Uma colagem de

temporada na Itália como redatora-chefe da Colors, Raphael

artigos, ensaios, propostas, gráficos, polêmicas, imagens, viagens,

Erichssen, designer recém-vindo de uma formação em cinema

experimentos, fotografias, pensamentos. Mais um caderno de

e documentário em Barcelona e Londres, e Tiago Pereira, redator

provocações que um manual de instruções. Adoraríamos continuar

publicitário recém-desembarcado dos vales e campos de Belo

desenvolvendo esses temas, e parceiros são bem-vindos.

Horizonte, Europa (ver página 20). Só fechamos graças ao auxílio

Escolhemos transparêrncia porque, como me disse a Daniela

luxuoso do fotógrafo Luan Barros e da ilustradora Juliana Russo.

Silva, pesquisadora de transparência pública e uma das fundadoras

Bela equipe. Foi divertido.

Transparência não é simplesmente falar a verdade. É mais: é deixar ver como as coisas são feitas.

+

GOTAS é uma aventura editorial de Denis Russo Burgierman e Bárbara Soalheiro (edição e texto), Raphael Erichsen (direção de arte), Tiago Pereira (ideias e caligrafia), Juliana Russo (ilustração), Luan Barros e Cia de Foto (foto), Élida Oliveira, Mariana Lacerda, Pedro Markun, Priscilla Santos, Otávio Rodrigues, André Salomé, Leandro Narloch, (texto), Otávio Rodrigues (texto e foto), Paulo Kaiser (revisão), Anna Menk (tradução) Octávio Gonçalves (produção gráfica), Joana Amador (apoio moral e olhar crítico), Fernando Barreto e Helder Araújo (inspiração).

Nossa capa–frase foi inspirada no livro mais recente da escritora Miranda July e na última edição da gloriosa Punk Planet (1994-2007). A cópia acima está autografada pelo editor. E, não, eu não vendo.

Uma publicação Webcitizen

4


Governo por transparência

Transparência que funciona

Profissionais da ilusão Violência no mapa

Lawrence Lessig polemiza

Língua de advogado Diálogos transparentes

06 08 12 14 15 16 18 20 22 26 30 31 32 34 38 5

Quanto você ganha?

O supermercado engana

Confissão

Cidade transparente O teatro da política

Quinze sites de transparência

Cinema verdade Próxima edição


Mui tos baixos para chegar A um alto: é assim o gráfico com os salários das pessoas com quem topei durante um único dia, em São Paulo. POR ELIDA OLIVEIRA* / ILUSTRAÇÃO JULIANA RUSSO

R$ 6.000

R$ 3.000

R$ 2.000

R$ 1.100

R$ 860 R$ 600

PORTEIRO

R$ 850

R$ 1.000

BALCONISTA DA PADARIA

TAPECEIRO

CHAVEIRO

MOTORISTA DO ÔNIBUS

VENDEDORA

TENOR

Recebi o telefonema de um ex-colega,

nas informações relativas ao mercado

diz quanto ganha, estabelece-se uma relação

(desempregado) me indicando mais um frila.

e demais instâncias públicas”, mas que

de ‘você é melhor que eu’ ou ‘eu sou melhor

Topei. Deveria escrever sobre salários. Justo

os salários não poderiam ser divulgados.

que você’.” Ela tinha razão. E eu senti isso

eu, querendo trocar de emprego por causa

A Pirelli não respondeu. A Natura disse

na pele porque decidimos que meu trabalho

da remuneração. Minha primeira tentativa

que publica informações sobre salários no

seria passar um dia perguntando o salário de

foi procurar empresas para descobrir os

relatório anual e até mandou um link: mas ele

todo mundo que encontrasse pela frente.

salários de funcionários. Os e-mail-respostas

não abria. Por mais que eu procurasse

endossaram a tese dos meus editores: no

no site, não consegui encontrar.

terreno das “instransparências”, salário

Cheguei a achar que não dava

A tarefa parecia fácil e divertida. Não foi. Na primeira abordagem, senti um baita frio na barriga. Comecei sendo o menos

está na frente de qualquer outra coisa.

matéria, mas, depois de passar um dia

transparente possível: falei que estava

Ambev ligou para dizer que a informação

contando seu salário para os amigos e os

fazendo uma reportagem sobre carreiras.

é “confidencial e da privacidade dos

três seguintes se arrependendo, minha

Ouvi muitos: “Mas você é indiscreta, hein?”,

funcionários”. A Fiat disse que “mantém

editora estava convencida de que o assunto

“Tenho mesmo que dizer?” ou “Por que

todas as diretrizes de transparência e clareza

era relevante. “Pô, é surreal. Assim que você

você quer saber?”. Daí percebi que, quando

6

RELAÇÕESPÚBLICAS


R$ 7.500

R$ 4.000

R$ 2.000

R$ 973

R$ 2.400

R$ 500

TAXISTA

MALABARISTA DE SINAL

R$ 900 SEGURANÇA

REPÓRTER INICIANTE

DIAGRAMADOR

GARÇON

ESPECIALISTA EM INFORMÁTICA

eu perguntava sem rodeios, a galera dizia

se desculpou porque ganhava mais sem

porque ele vai dizer que não tem grande

sem pestanejar. Susto, talvez?

ter feito faculdade – disse que tinha várias

poder de compra.” E poder de compra é

Eu também respondia sempre que

atribuições, filhos, família. Mas o clima

exatamente a moeda que valorizamos hoje.

alguém perguntava o meu salário – R$ 1,5 mil

ficou chato. Ela se sentindo mal pela minha

“Um sujeito que ganhe R$ 1,5 mil e usa o

(agora reflita sinceramente: você acaba ou

inferioridade. Eu me sentindo mal pela...

cartão de crédito pode aparecer com um

não acaba de fazer um julgamento sobre a

minha inferioridade. Estamos impregnados

carro de R$ 35 mil. E terá outro status social.

qualidade do meu trabalho com base nesta

com a ideia de que a gente vale o quanto

O sujeito social representa o papel que quer

informação?). E recebi muitos conselhos

ganha, anotei.

através do consumo. Coloca máscaras,

para mudar de vida. Um assistente de

Percebi que eu precisava de um

como se o mundo fosse um teatro.”

terraplanagem na obra do Metrô queria

pouco de filosofia. Ascísio dos Reis Pereira,

O segredo do salário ajuda, justamente,

me convencer a vender produtos da Forever.

professor e amigo da época da faculdade,

a manter esse teatro.

“Porque ‘Forever’ é para sempre. Você vai

falou sobre Adam Smith e “Riqueza das

mudar de vida. Em cinco anos, vai ganhar

Nações”, Marx, Weber... “Eu não estranho o

* Elida Oliveira é repórter ponta-firme

5 mil reais. Pode acreditar.” Outra pessoa

sujeito ficar com vergonha de dizer o salário

e competente. Merece ganhar mais.

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A história de como a transparência virou uma ferramenta para o governo governar. POR DENIS RUSSO BURGIERMAN / FOTO NINA BERMAN/NOOR

Em 1929, a economia quebrou. Depois de anos de prosperidade,

comum, ainda mais agora, em que temos outra imensa crise de

a bolsa despencou cataclismicamente. Diante da sensação

confiança para vencer. Os autores metodicamente analisam 18

generalizada de que as ações jamais parariam de cair, todo mundo

experimentos de transparência programada para tentar entender

tirou seu dinheiro da reta, o que fez com que as ações caíssem mais

quando ela funciona e quando não funciona. Há gloriosos sucessos, como o caso dos restaurantes

ainda. Era uma crise de confiança – o dinheiro perdia valor, fazendo com que as pessoas deixassem de acreditar no valor dele, o que

de Los Angeles, que foram obrigados pela prefeitura a postar na

fazia com que ele perdesse ainda mais valor.

vitrine, em letras mastodônticas, a nota que receberam na inspeção da vigilância sanitária: A, B ou C. Restaurantes que tiraram nota A

A recuperação só começou em 1933. Franklin Roosevelt era presidente dos Estados Unidos e suas ideias sobre como reconstruir

acabaram tendo um aumento de 5,7% nas suas vendas, enquanto

a economia tinham sido influenciadas por um livro que ele havia lido

os que tiraram C viram uma redução de 1%. No geral, mais gente

anos antes – “O Dinheiro de Outras Pessoas e como os Banqueiros

comeu em restaurantes porque a confiança no sistema cresceu. Em

o Usam”, escrito por um juiz da Suprema Corte americana chamado

pouco tempo, os índices médios de higiene subiram 5,3% na cidade

Louis Brandeis. No trecho mais famoso do livro, Brandeis escreve que

toda porque os donos dos restaurantes perceberam que sairiam

“a luz do sol é tida como o melhor dos desinfetantes, e a luz elétrica

ganhando se melhorassem a limpeza. Há também fracassos retumbantes, como a tentativa

é o mais eficiente policial”. Roosevelt resolveu levar a metáfora a sério na hora de projetar a nova economia mundial. E criou o que

de transparência projetada do governo W. Bush, que criou uma

os autores do livro “Full Disclosure” chamam de “transparência

classificação do nível de ameaça terrorista (azul, verde, amarelo,

programada” – o novo jeito de um governo trabalhar.

laranja ou vermelho). As cores só serviram para aumentar a ansiedade nacional. Ninguém sabia exatamente como reagir aos

Até então, governos tinham só duas armas para regular a economia e defender o interesse público: estabelecendo regras (e

alertas, a diferença entre os níveis era nebulosa, ninguém entendia

punições para quem não as cumprisse) ou criando incentivos de

os critérios. Nesse caso, o governo deu ao povo informação da qual

mercado. É a tal história das duas cenouras, a frontal e a traseira.

ele não precisava e que não servia em nada para sua vida. Em linhas gerais, o livro conclui que políticas de transparência

A transparência programada não é nem um nem outro, embora tenha parentesco com ambas. Trata-se de obrigar empresas a

programada funcionam quando levam em conta o modo como as

divulgar informações que elas prefeririam deixar secretas. E deixar

pessoas consomem informação. Não adianta soltar dados no mundo

que o público decida o que fazer com as informações. No caso de

sem garantir que eles estejam contextualizados, fáceis de entender,

Roosevelt, a transparência programada serviu para sair da Grande

incorporados à rotina de decisão das pessoas – um dos motivos

Depressão, com leis que obrigavam empresas com ações na bolsa a

pelos quais a experiência dos restaurantes foi tão bem-sucedida

divulgar ao público informações que os executivos não contavam nem

é que as notas estavam coladas na vitrine, por onde todo mundo

para as mães deles, de maneira periódica, padronizada e simplificada.

passa antes de sentar à mesa. Para terminar, “Full Disclosure” tenta prever o futuro, quando

Deu certo. Num ambiente de mais transparência, a confiança foi restaurada. As ações subiram. Mesmo os empresários, que

mais e mais políticas de transparência programada deverão surgir.

antes preferiam que não houvesse transparência, acabaram sendo

Com as possibilidades da internet, políticas de transparência vão

favorecidos pelo novo ambiente. Os dois lados – empresas e

se tornar ainda mais poderosas porque agora vai ser possível que

investidores – saíram ganhando.

qualquer cidadão forneça informações ao sistema. Qualquer um – não só o governo – pode instituir sua própria política de transparência

O livro “Full Disclosure”, escrito em 2007, em conjunto, por um cientista político, um economista e um advogado, é o primeiro

programada para ajudar a mudar o mundo. Mas isso não quer

esforço multidisciplinar de compreender essa novidade do mundo

dizer que toda transparência seja boa. Iniciativas desse tipo vão

das políticas públicas, criada por Roosevelt, que é a “transparência

funcionar se derem às pessoas as informações de que elas precisam

programada”. Uma novidade que tende a se tornar cada vez mais

de maneira clara, confiável e simples. Se não, se colocarmos mais informação inútil no mundo, nossas ideias vão ser ignoradas, como as cores de W. Bush. Talvez até façam mais mal do que bem.

8


Não adianta nada ser transparente com informação inútil

Numa pacata cidadezinha de interior americano, um aviso aos cidadãos para se preocuparem com terroristas: exemplo perfeito de política de transparência que não serve para nada

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Hoje de manhã, coloquei na bolsa uma cópia do livro “Em Defesa da Comida”, do americano Michael Pollan, peguei meu bloquinho de anotações E fui ao supermercado caçar rótulos que estavam ten tando me enganar. POR DENIS RUSSO BURGIERMAN / FOTO LUAN BARROS

Arrá, peguei o primeiro logo na entrada do supermercado, num

sorbato de potássio.” O Bebezinho jamais passou perto de uma laranja

daqueles corredores coloridos que tentam convencer você de que

suculenta como a da ilustração. Só o que tem lá dentro é suco da

comer chocolate é mais divertido do que ir a uma festa. Era um pacote

fruta, desprovido de fibras e certamente mais pobre em vitaminas e

de bolacha, o Turmix, da Marilan. Malandrão. Lá no rótulo está escrito

minerais. As dicas do Michael Pollan me ajudaram a desmascarar o

que é “rico em vitaminas, cálcio e ferro”, com letras bem grandes.

Bebezinho: “Evite produtos cujos ingredientes são a) não familiares, b)

Não é mentira, é verdade: uma bolacha supre 4,5% das necessidades

impronunciáveis, c) mais de cinco em quantidade...” Ele avisa também

de cálcio, ferro e vitaminas do complexo B – coma o pacote inteiro e

para nunca comprar nada que sua avó não identificaria como comida.

você praticamente atingiu sua necessidade diária dessas coisas. Arrã,

Será que minha avó conhecia dióxido de titânio?

mas, se você fizer isso, vai ter consumido também 1.000 calorias (isso

Aí cheguei aos pães. Ah, os pães, que imensa complicação que

também está escrito na embalagem, numa letra vermelha clara sobre

é comprar pão hoje em dia, com todos aqueles avisos exclamativos

fundo rosa, do tamanho exato da largura de um palito de fósforo).

de que tudo faz bem (o livro de Pollan avisa que no geral é melhor

Cálcio, ferro e vitamina fazem mesmo bem para a saúde, mas fazem

evitar produtos com mensagens de muito destaque afirmando que faz

bem melhor quando estão dentro de vegetais, cercados de fibras,

bem para a saúde). Meu preferido lá foi o Pão Ômega, da Nutrella,

que ajudam a diminuir o ritmo da absorção. O que os engenheiros

decorado com um singelo coração, onde se lê “pão do coração –

de alimentos fazem é arrancar esses minerais e vitaminas de outras

ômega 3:6”. Que malandros! Ômega-3 e ômega-6 são dois tipos de

coisas e introduzi-los no meio da farinha da bolacha, que praticamente

óleo que são essenciais para a nossa saúde. Só que a grande questão

não tem valor nutritivo. Vitamina e mineral são bons pacas, mas não

com eles não é a quantidade, é o balanço entre os dois. Você tem que

é para procurar por eles nas bolachas ou nos pães ou sei lá onde: o

ter níveis equilibrados de ômega 3 e 6 – se o nível de ômega-6 é muito

lugar certo para encontrar essas coisas é onde sua vó dizia: nas frutas,

mais alto que o de ômega-3 aumenta seu risco de doenças cardíacas.

verduras e legumes, meu filho.

Acontece que nossa dieta hoje tende a ter muito ômega-6 (encontrado

Aí cheguei àquela ala dos bolos e pães. Minha embalagem

em sementes, e, portanto, no óleo de soja que vai em produtos

preferida lá é a do bolinho Bebezinho com recheio de laranja, da

industrializados) e pouco ômega-3 (encontrado em peixes, algas e

Panco. Na parte da frente, tem um desenho de um bolinho ao fundo,

folhas verdes). Ou seja, precisamos de mais ômega-3 e de menos

mas o que se destaca mesmo é a imagem em primeiro plano, uma

ômega-6. Portanto, quando um rótulo diz “pão do coração – ômega

suculenta laranja, com gomos reluzentes de sumo. Fui então olhar

3:6”, pode não estar mentindo, mas está tentando me enganar. Ainda

lá atrás para ver do que é feito esse tal “recheio sabor de laranja”.

mais quando descobrimos que cada fatia do pão tem 0,2 grama de

“Açúcar, suco de laranja, amido, aromatizante, acidulante, ácido cítrico,

ômega-6 e 0,1 grama de ômega-3.

corante inorgânico dióxido de titânio, corante caramelo, corantes

Continuei rumo às memórias da infância. Lembra do Yakult,

artificiais amarelo crepúsculo e amarelo tartrazina e conservador

com seus lactobacilos vivos? Vejamos o que diz atrás da embalagem:

12


“alimento com alegações de propriedades funcionais”. Alegações?

Chego então ao leite Ninho, da Nestlé, tão reluzente e

Como assim? O que eles querem dizer com isso? Querem dizer que

ensolarado. No verso da caixa, um texto diz o seguinte. “Uma

o tal L. casei Shirota, a bactéria presente dentro nos potinhos de

dica Ninho: procure ingerir três porções de leite ou seus derivados

plástico, inibiu o crescimento de outra bactéria, a H. pylori, causadora

diariamente”. Repare que não está escrito que isso é bom para sua

de inflamações, num tubo de ensaio. Mas, até hoje, nenhum cientista

saúde. Trata-se apenas de uma “dica”, uma sugestão inocente.

conseguiu provar que o célebre lactobacilo ataca o H. pylori no

Mas o linguajar meio científico é para dar a sensação de conselho

corpo humano. Para encurtar a história: não está provado que

médico (“ingerir”, “porções”, “diariamente”). E a verdade é que os

lactobacilos fazem bem. Mas tem uma coisa que está provada sim:

nutricionistas têm um monte de dúvidas sobre se beber leite é mesmo

os outros ingredientes do Yakult (“leite desnatado ou leite desnatado

uma boa ideia, principalmente para adultos. Apesar de o cálcio ser

reconstituído, açúcar, glicose, fermento lácteo e aroma”) são

importantíssimo para a saúde, há suspeitas de que ele não deve ser

praticamente vazios de nutrientes importantes e atrapalham a boa

acompanhado de muitas proteínas para ser bem absorvido, e leite é

nutrição. Além disso, leite reconstituído é pior do que leite de verdade.

cheio de proteína. As embalagens Nestlé geralmente são elegantes e

Como regra, prefira comidas o menos processada possível.

muito ricas em informação correta. Mas aqui eles tentaram me enganar.

Lá pelo meio do supermercado topei com o velho Baconzitos,

A dica fundamental de Pollan, na verdade, é que você prefira

da Elma Chips. Sensacional. Numa sacada de marketing, o

comer coisas que nem têm embalagem – frutas, legumes, verduras,

clássico salgadinho foi relançado com balbúrdia, depois de andar

carne. Enfim, comida – não produtos alimentícios. Verdade que, nos

desaparecido, desde que bacon virou uma comida, digamos,

dias de hoje, nem mesmo uma maçã conta toda a verdade. Um estudo

fora de moda. O Baconzitos é um caso engraçado. As pessoas o

recente feito na Inglaterra, citado no livro, mostra que, para obter os

abandonaram por ser de bacon, mas a verdade é que ele não é. Veja

mesmos níveis de ferro de uma maçã de 1940, você teria que comer

os ingredientes: farinha de trigo, fécula de mandioca, óleo vegetal

três maçãs de hoje. Os níveis de zinco, cálcio, selênio, vitamina C

e... “preparado para salgadinho sabor idêntico ao natural de bacon”.

e riboflavina da maçã também caíram bastante nas últimas décadas.

Uau! Que diabos é isso? “Sal, farinha de arroz, açúcar, amido,

As frutas estão ficando menos nutritivas porque os solos estão se

maltodextrina, glucose, extrato de carne, realçador de sabor glutamato

empobrecendo graças ao sistema industrial de produção, que enche

monossódico, aromatizante e corante caramelo.” Nada de bacon!

a terra de nitrogênio, fósforo e potássio, mas esquece os outros

Realmente, está escrito, bem grande, na embalagem: “Feito de trigo”.

nutrientes. Acontece que os outros nutrientes são fundamentais para

Verdade. Mas não significa que o Baconzitos, ou qualquer salgadinho

a saúde, especialmente para proteger de doenças como o câncer.

de farinha refinada e óleo, faça bem. Por mais que as mensagens “0%

O melhor, então, é procurar vegetais produzidos em pequena escala,

gordura trans”, “fonte de energia” e “fonte de proteína e ácido fólico”

orgânicos de preferência. E ler as letras miúdas.

sugiram o contrário.

13


5 CASOS EM QUE TRANSPARÊNCIA TROUXE RESULTADOS e 1 que achamos engraçado. por gisela blanco

1

Quem: Imobiliária Redfin

Onde: Atua em dez cidades dos Estados Unidos

TIPO: Corajosa

O que fez: Em 2006, fez um blog para revelar os problemas do mercado imobiliário. Escancarou defeitos, mostrou como eram calculadas as comissões e margens de lucro, contou que ganhavam 6% sobre as vendas. “Acreditei que se a Redfin se despisse, fosse até humilhada, mais gente faria negócio conosco”, disse o CEO Glenn Kelman, em entrevista à revista Wired, em 2007. Deu certo e os clientes vieram em peso para o blog. O que lucrou: Na época, a empresa passou a fechar pelo menos uma venda por dia. No pós-crise, está usando o diálogo sem intermediários com os clientes para se reinventar. “Nosso objetivo é criar um mercado aberto para os agentes imobiliários, em que a Redfin seja a primeira escolha”, publicaram no blog em fevereiro.

2

Quem: Projeto “Bogotá Cómo Vamos”

Onde: Colômbia

Tipo: Necessária se um país quer mudancas

O que fez: Há dez anos, a câmara de comércio, a editora que publica o maior jornal da Colômbia e uma fundação privada que investe em educação começaram a estimular a participação social nas políticas públicas de Bogotá. Criaram um sistema para que qualquer pessoa possa acompanhar os projetos e gastos públicos na cidade, bolaram questionários para descobrir necessidades. Pegou. E a população comecou a participar. O que lucrou: Bogotá passou por uma transformação radical nos ultimos anos e se tornou um exemplo para outros lugares onde tudo parece difícil demais de consertar. A administração mais eficiente (pesquisas da prefeitura que antes demoravam três anos para serem divulgadas, hoje saem em semanas, por exemplo) e a população engajada (a sonegação de impostos municipais, por exemplo, passou de 42% da população para 4%), tornou possível mudar em ritmo acelerado.

3

Quem: Centro Nacional de Estudos Espaciais francês

Onde: França

TIPO: Intergalática

O que fez: Resolveu liberar todos os seus arquivos relacionados a ovnis. São cerca de 100 mil documentos guardados por mais de 50 anos sobre mais de 1.600 casos sem explicação – por exemplo, voce encontra relatórios, gráficos e vídeos sobre um objeto de forma circular cinza-escuro que caiu em uma fazenda, em Provence, no dia 8 de janeiro de 1981 e voltou para o céu 40 segundos depois, deixando vestígios de ferro, fósforo e zinco, além de um aquecimento de 600ºC do solo. O que lucrou: Serviu de exemplo, já que no ano seguinte o orgao similar inglês fez o mesmo. E deixou o caminho aberto para quem quiser contribuir com a investigação. Seja em que planeta estiver.

4

Quem: HackLab - Empresa de programação

Onde: São Paulo, Brasil

TIPO: Fácil e eficiente

O que fez: Implantou a “Reunião da Cadeira Quente”, em que todos conversam abertamente sobre os problemas nos projetos e no dia a dia. Sócios e funcionários sabem informações como o salário dos colegas, o valor dos projetos para cada cliente e os valores cobrados pelos servicos da empresa. O que lucrou: Falar dos problemas de forma construtiva se tornou um hábito. A transparência aproximou os funcionários da situação geral da empresa. Em um mês de vacas magras, em que foi preciso atrasar salários, por exemplo, a certeza de que o dinheiro não estava disponível em caixa evitou a perda de produtividade.

5

Quem: Companhia Aérea Econômica JetBlue

Onde: Estados Unidos

TIPO: Obrigatória se a empresa respeita o cliente

O que fez: Em 2007, depois de uma noite caótica no aeroporto de Nova York – passageiros sentados por mais de dez horas em aeronaves que nunca decolaram, oceano de malas pelo saguão sem ter como identificá-las, dezenas de voos atrasados, cancelados, bloqueados, enfim, tudo isso que você conhece bem – a empresa criou uma lista pública das suas obrigações com o passageiro em caso de atrasos, cancelamentos e outros problemas. O que lucrou: A imagem de uma empresa séria, que assume seus erros e honra compromissos. E, isso, no mundo das companhias aéreas econômicas (em que não há nenhum tipo de mimo para convencer o cliente), vale muito.

1

Quem: 44 bilionários e quase-bilionários

Onde: Alemanha

Tipo: Uma combinação entre muito dinheiro e bom-mocismo

O que fez: Cansados de passar vergonha quando perguntados pelos amigos gringos como andava a economia no seu país, 44 alemães criaram uma petição pela cobrança de mais impostos deles mesmos e dos outros 2 milhões de ricaços alemães. O que lucrou: Os bilionários reivindicam uma taxa de 5% de quem tem fortuna de mais de 500 milhões de euros para ajudar o país na crise. Se forem atendidos, só vão lucrar em consciência leve.

14



Eu gos to de ser enganada. Só leio ficção, já tomei duas decisões fundamen tais na vida por causa do Quiroga e acredi to, sem pestanejar, na vitória do Galo nesse campeonato Brasileiro. por bárbara soalheiro / foto luan barros

Eu diria que, num imaginário Índice de Enganabilidade, eu aceito bem

Corvo, Nelson, Babão, Dinei e Banana estavam esperando

qualquer coisa ate o nível 7. Daí a ideia de ir conversar com gente

fazia uma hora e meia quando cheguei. “A gente já tava achando

de duas profissões cujo trabalho é mentir com consentimento alheio.

que tinha caído numa pegadinha”, disse o Banana, criador da banda,

O primeiro que encontrei foi João Roberto Topête, 47 anos,

cabelo comprido que nem o do baterista Matt Sorum. “Já que é pra

que há 15 virou Mágico Topete (enganação levinha: tirou o acento

ser cover, decidimos fazer direito: peruca, roupas. Nao dá pra ser

do nome para ficar mais fácil ser lembrado). “Eu sou o único mágico

baterista do Guns de bermuda.”

high tech de São Paulo”, disse enquanto me mostrava o colete de

No ranking das bandas cover do Brasil, dá para dizer que

pescaria equipado com crachá de led, caneta laser e luz neon.

eles são um sucesso. Fantástico, Faustão, turnê, mulheres: eles já

“Eu não uso fantasia, cartola. Chego, tô ali entre os convidados

experimentaram um bocado daquilo que os famosos vivem. “Tinha

e aí, de repente, tiro um baralho do bolso. Surpreende, né?”

uma época em que inventavam todo tipo de lenda sobre a gente: que

Topete engana, mas é fã da transparência. “Sou do tipo

conhecíamos os caras do Guns, que fiz sete anos de aula de canto

antigo. Só falo a verdade, não jogo baralho por causa da habilidade

pra ficar com a mesma voz do Axl, que a gente era a banda cover

com as mãos e não roubo nada. O que faço é ilusão de ótica.” Bom

oficial”, diz o Nelson. Típica enganação que só fez bem pra eles. “Há

de business, comecou a elaborar mágicas que integram a atividade

uns seis anos tinha tanto show que o cara de quem a gente contratava

da esposa doceira. A dama de copas que ficou por cima do monte

o serviço de van comprou uma nova só pra gente.”, diz o Banana.

quando eu disse “corta” apareceu dentro de um envelope, agora

Já teve treta também. “Nossa relação com o outro guitarrista

feita de chocolate. Fiquei pasma. “Essa indignação aí que você tá

era foda. Meu, o cara achava que ele era o Slash!” É, enganação tá

sentindo é que faz a festa ficar boa.” Topete entende de festa.

liberado. Autoenganação já é outra história.

É que são 15 anos de salão – festa de firma, festa de família,

Conversando com eles, fica claro que a habilidade de se

festa particular. “Homem acha difícil engolir quando não entende o

entregar à enganação cai à medida que envelhecemos. Não por acaso,

que aconteceu. Você vê que eles ficam com raiva. Quando aparece

o público deles é formado por gente bem jovem. “Voce vê que eles

um que quer revelar o truque, o que eu faço é chamá-lo pra me

querem acreditar, querem se sentir num show do Guns”, diz Nelson.

ajudar no palco.” É aquela história: diversão ou enganação, depende

Na banda, acontece algo parecido. O Corvo, 41, pai de

do seu lado do balcão.

gêmeos, diz que sabe muito bem que, no palco, é tudo uma mentira.

Topete diz que essa falta de confiança é o maior desafio do

O Nelson, 25, confessa que, na hora do show, se sente o Axl. “Tem

mágico. “Você chega a um lugar onde tem 100 pessoas torcendo pra

horas que você fica meio perdido. Num dia, tá num hotel 5 estrelas,

você errar.” Mas e aí? A falta de confiança muda o jeito de trabalhar?

vista pro mar, dando autógrafos e aí, na segunda, volta para a casa.”

“Ah, sim. Nessas horas, eu ouso menos. Quando você sente que a

O Guns cover nao é grande entusiasta da transparência. “Não

galera está curtindo, aí você deslancha.” Prova de que, quanto maior

dá para falar só a verdade. Se você vai comprar um carro e o cara te

o nível de confianca, mais alto o Índice de Enganabilidade.

diz os defeitos, ele vai ganhar credibilidade, mas você nao vai levar

A segunda turma de enganadores foram os caras da banda

o carro”, diz o Corvo. “E tem coisas que não se deve falar de jeito

Guns N’Roses Cover Brazil. Liguei pro Nelson e, ao me apresentar, dei

nenhum. ‘Eu te amo’, por exemplo”, diz o Banana. Alguém logo entregou

um jeito de dizer que já trabalhei na maior editora de revistas do país

que o problema ali foi um pé na bunda. “É. Fiquei mal. Fiz até macumba

(enganação. Não é mentira, mas faz pensar que quem trabalha numa

para trazer a mina de volta. Mó enganação, não deu em nada.”

grande empresa é melhor profisisonal, o que não é necessariamente

Com exceção do Dinei, que responde pelo enganador termo

verdade). A gente seguiu nessa: eu no papel de jornalista (e, papel,

“disponível no mercado de trabalho”, todo mundo da banda tem

como a gente sabe, tem nível altíssimo no Índice de Enganabilidade),

outro emprego e sabe que nao dá para viver de cover. “A gente tá

o Nelson animado que a banda ia sair na imprensa. Ele me passou o

começando a pensar em parar. Mas precisamos ficar juntos pelo

endereço para encontrá-los – pô, Diadema?! Quem mandou escolher a

menos até o ano que vem, pra fazer a turnê de 10 anos da banda”,

primeira banda que apareceu no Google? – e marcamos no sábado de

diz o Nelson. “Vai ser a mesma merda de sempre, mas a gente tá se

manhã, às 11. “Vou dizer pros caras chegarem às 10.”

enganando, achando que vai ser especial.”

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Eu poderia ter escolhido qualquer banda cover, mas achei que uma do Guns daria uma bela foto

Da esquerda para a direita: Dinei, Corvo, Nelson, BabĂŁo e Banana. Com esses apelidos, dĂĄ para entender porque eles preferiram assumir a identidade de uns gringos.

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A his tória começa assim: no início dos anos 1990, o urbanista Bruce Appleyard decide pesquisar como o espaço afe ta nossos laços com a comunidade. POR PRISCILLA SANTOS * / ILUSTRAÇÃO JULIANA RUSSO

Bruce escolhe, na cidade de Contra Costa, na baía de São Fran-

De dentro de um gabinete, ninguém que pudesse autorizar

cisco, Califórnia, dois bairros bem similares, mas com intensidade

um projeto de obra ali na praça poderia imaginar que seus maiores

de carros diferente, e resolve descobrir o que sentem e pensam

usuários sentiam falta de uma mesa de estudos (já que em sua casa

seus pedestres mais vulneráveis: as crianças. Ele entrega a meninos

não há espaço nem silêncio para a hora da lição), de “bancos que

e meninas de 9 e 10 anos lápis e papel em branco. Pede a eles que

não sujam a bunda” ou de um quiosque com comidinhas. Pois tudo

desenhem um mapa com o trajeto que percorrem de casa para a

isso foi desenhado pelos alunos. “Agora, imagine se eu chegasse

escola como se o tivessem descrevendo a alguém.

para esses alunos e dissesse: ‘Olha, a prefeitura topou as ideias

As crianças que eram conduzidas de carro de lá para cá

de vocês’. Com certeza eles teriam um cuidado bem maior com a

desenharam linhas desconexas e fragmentadas, que ligavam a casa

praça”, diz Rafael. Moral da história: as cidades feitas pelas pessoas

ora à escola, ora ao shopping, ora à casa do amigo. Não consegui-

são melhores do que as que ignoram a opinião dos que vivem ali –

am enxergar seu bairro como uma rede – de caminhos e relações.

essas são cidades abandonadas.

Houve um menino que simplesmente fez um risco no meio da página,

O método de pedir para pessoas desenharem um

ligando sua casa à escola, demonstrando uma falta de conexão

mapa baseando-se no registro mental que fazem da cidade foi

quase total com seu entorno, com sua cidade.

disseminado entre urbanistas no livro “A Imagem da Cidade”, de

Bruce também pediu que as crianças marcassem os pontos

1959. Seu autor, Kevin Lynch, do MIT, lançou a pauta de que os

de que gostavam, não gostavam ou onde sentiam medo. As crianças

urbanistas deveriam estudar não só a cidade como uma coisa em si,

do bairro em que o fluxo de carros era maior apontaram mais pontos

mas a cidade do modo como a percebem seus habitantes. Avaliar

de insegurança – sendo os automóveis a maior fonte de temor. “Os

o quanto as pessoas apreendem e gravam os espaços urbanos

carros nunca param”, escreveu um garoto. Até aí a pesquisa já é

na memória, para Lynch, era uma forma de detectar o quanto uma

reveladora. Mas Bruce queria mais que provar uma teoria: precisava

determinada cidade estava sendo clara, ou como ele preferia dizer,

fazer algo concreto com aquelas informações. Propôs, então, a

legível (e, por que não?, transparente) para quem perambula por ela.

construção de duas rotas seguras e agradáveis para as crianças

Clareza não é sinônimo de ruas e bairros divididos de forma

irem a pé para a escola – e ainda ajudou a levantar fundos. Após

cartesiana. “A legibilidade para o usuário é a do contraditório. Ele

um ano de uso dos caminhos, reaplicou a pesquisa. Resultado: os

não percorre um espaço de forma tão ordenada quanto se projeta

pontos de medo e descontentamento diminuíram muito. Aqueles

na prancheta – passa por diferentes caminhos e limites, prefere esse

pequenos cidadãos não tinham diploma de urbanismo – mas

ou aquele local de encontro”, diz Jovanka Scocuglia, socióloga

detinham o conhecimento para melhorar a cidade onde viviam.

urbana da Universidade Federal da Paraíba. “Quando se planeja sem

Tempos depois, em um país distante... A praça Paulo

consultar o usuário, a tendência é apagar os conflitos, homogeneizar

Schiesari, na Vila Anglo, zona oeste de São Paulo, fica pertinho da

as leituras, aplicar a racionalidade do planejamento”, diz ela.

Escola Estadual Prof. Mauro de Oliveira. Os alunos são os maiores

A clareza de uma cidade vem muito mais de seus espaços

frequentadores da pracinha, que se resume a alguns bancos,

singulares, facilmente distinguíveis: a feira livre, a pracinha de bairro,

árvores e brinquedos mal conservados. O coordenador pedagógico

as esquinas, os comércios que juntam gente. Se forem capazes

da escola, Rafael Daudt, sacou que fazer com que os estudantes

de se tornar marcos, os espaços se transformam em pontos de

sentissem que aquele espaço era deles seria a melhor forma de

referência e orientação. No fim das contas, o envolvimento dos

ocupá-lo. Por isso, não titubeou quando um grupo do movimento

habitantes nas decisões de reforma urbana é fonte dupla de

Boa Praça, que pretende recuperar e povoar praças na região,

transparência. Primeiro, por abrir o jogo com o cidadão e incluí-lo

o procurou para envolver a escola na causa. Rafael propôs uma

nas discussões sobre os espaços públicos e, segundo, por ajudar

atividade para todas as turmas do segundo grau: desenhar (ou

a construir espaços que vão melhorar a orientação em nossas

escrever) como seria a praça Paulo Schiesari dos sonhos (não, o

caóticas cidades. Enfim, tornar o espaço público mais transparente.

Rafael nunca tinha ouvido falar na pesquisa do Bruce).

* Priscilla Santos é repórter da revista Vida Simples e uma das criadoras do blog www.oguiaverde.com.

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Teste: Como é seu relacionamento com sua cidade?

Desenhe no espaço acima o trajeto de sua casa para o trabalho (ou algum caminho que você faça sempre) como se tivesse ensinando o caminho a um estranho. Coloque pontos de referência (ruas, comércio, sinais de trânsito etc.). Marque com uma bolinha aquilo que agrada você no trajeto e com um quadrado os pontos que provocam medo e insegurança. 1) Qual a quantidade de elementos (ruas, edificações, árvores etc.) que você representou no seu mapa?

4) Em que meio de transporte você mais faz o caminho casa trabalho:

7) Você troca o trajeto direto pelo mais bonito? Quantas vezes por semana?

a) De carro ou ônibus

a) Uma ou duas

a) Até 3

b) A pé

b) Nenhuma

b) De 3 a 5

c) De bicicleta

c) Todos os dias

5) Como você passa o tempo de seu percurso casa-trabalho?

c) Mais de 5

a) Correndo, estou sempre atrasado

8) Se você fosse levado vendado para um bairro vizinho, ao tirar a venda, quais marcos usaria para se localizar?

a) Mais de três

b) Devagar, prestando atenção da paisagem

a) Um parque, praça ou edifício

b) Nenhum

c) Às vezes com calma, às vezes com pressa

b) A placa com o nome da rua

2) Quantos pontos você marcou como expressivos e agradáveis?

c) As linhas de ônibus que passam pela rua

c) Um a três 3) Quantos sinais de perigo ou de lugares desagradáveis você representou?

6) Quais as primeiras coisas que a palavra “___________” (coloque aqui o nome de sua cidade) trazem a sua mente?

9) Se lhe perguntam onde fica um restaurante conhecido, você responde:

a) De 3 a 5

a) A cidade em que trabalho

a) “Não sei o endereço, mas sei chegar lá”

b) Mais de 5

b) Nada especial

b) Dá o endereço e explica como chegar

c) Até 3

c) O lugar onde vivo minha vida

c) “Não sei explicar” De 9 a 14: precisam se conhecer melhor Sua cidade é uma ilustre desconhecida. Pode ser que sua região seja mesmo pouco atraente: cheia de trânsito, com pouco verde, insegura. Nesse caso, pense no que pode fazer para melhorá-la. Comece por conhecê-la.

De 15 a 21: paquera Você conhece o entorno em que vive e se relaciona com ele, mas com certo receio. Você precisa usufruir um pouco mais da cidade, talvez sair de dentro do carro, ver as coisas de perto.

De 22 a 27: caso de amor Você se sente parte e se identifica com a cidade em que vive, a conhece bem, é capaz de perceber suas coisas boas (e sua cidade parece ter muitas), não só os defeitos.

Resultado: 1) A-1 B-2 C-3 // 2) A-3 B-1 C-2 // 3) A-3 B-1 C-2 // 4) A-1 B-3 C-2 // 5) A-1 B-3 C-2 // 6) A-2 B-1 C-3 // 7) A-2 B-1 C-3 // 8) A-3 B-1 C-2 // 9) A-2 B-3 C-1

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Os números se referem aos países. As principais fontes usadas foram o Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros (2008) e a Intentional Homicide Statistics, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. E, claro, a Wikipedia.


homicídios/ano Angra dos Reis = Irlanda..........................66 Aracaju = Argélia......................................230 Belo Horizonte = França.......................1.040 Brasília = Romênia....................................645 Camaçari = Sérvia...................................102 Campo Grande = Arzebaijão..................212 Caruaru = Bélgica....................................192 Cuiabá = Suíça........................................231 Curitiba = Inglaterra.................................756 Duque de Caxias = Itália.........................644 Feira de Santana = Israel.........................201 Foz do Iguaçu = Bulgária.........................332 Garanhuns = Dinamarca...........................49 Guarapari = Emirados Árabes...................42 Goiânia = Síria..........................................438 Grécia = Embu...........................................81 Guarujá = Líbano.....................................101

Guarulhos = Espanha............................. 494 Itabuna = Marrocos................................ 143 Itajaí = Irlanda do Norte............................ 51 Itapevi = Croácia...................................... 80 Itaquaquecetuba = Escócia................... 134 J. dos Guararapes = Turcomenistão..... 408 Juiz de Fora = Noruega............................ 38 Londrina = Líbia....................................... 160 Macaé = Jordânia................................... 126 Maceió = Alemanha................................ 914 Magé = Armênia...................................... 126 Manaus = Iêmen..................................... 587 Marabá = Letônia.................................... 170 Niterói = Suécia....................................... 200 Novo Hamburgo = Áustria....................... 65 Olinda = República Tcheca.................... 234

Porto Alegre = Polônia.............................499 Rio de Janeiro = Irã...............................2.273 Santa Maria = Eslovênia............................36 Santo André = Eslováquia.......................138 Santos = Macedônia.................................69 S. Bernardo do Campo = Finlândia........132 São Gonçalo = Georgia..........................252 S. João do Meriti = Arábia Saudita.........202 São Luiz = Moldávia................................270 São Paulo = Nigéria..............................2.546 Sorocaba = Tunísia..................................119 Teresina = Lituânia...................................289 Vitória = Portugal......................................247


Dis tanciamento é uma ferramenta poderosa na busca pela transparência. Quando a gen te es tá den tro de uma situação, é mais difícil resistir aos vícios e às paixões. E foi justamente pra fugir deles que a editora de fotografia da Folha de S. Paulo Carla Romero pau tou fotógrafos não acostumados a campanhas políticas para cobrir parte das eleições municipais de 2008. com liberdade para entregar um trabalho completamente au toral, o coletivo paulis ta cia de foto foi para as ruas com uma ideia (fotografar os candidatos simultaneamen te de três pontos diferen tes) e um conceito (a realidade é uma composição de diferentes olhares). o resultado é “Políp tico” (palavra que significa uma obra composta de diversas telas), um ensaio que funciona como uma espécie de fresta por onde enxergar o que acontece de verdade na cobertura das campanhas políticas no Brasil. 22


Políptico Parece, mas não é Como todo mundo sabe (mas às vezes esquece), por trás de todo profissional existe um ser humano. E os seres humanos sentem, pensam, têm opinião. É essa a tese do Pio Figueiroa pra muvuca ao redor da candidata Marta no dia 30 de setembro. A foto 3 mostra que parte da multidão que aparece na foto 1 era formada pelos próprios jornalistas – o resto, pelos militantes se espremendo em volta da candidata para fazer número. “Nesse caso, os fotógrafos acabaram participando de um teatro que em seguida retrataram”, diz Pio. FOTOS cia de foto ©

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É aqui que ele embaça os óculos No dia a dia da cobertura política, encontram-se dois personagens: o candidato e o fotógrafo. Para os dois, estampar a primeira página é um objetivo. No caso do fotojornalista, significa que ele conseguiu retratar um episódio de um modo conciso e relevante (não à toa, a medida é usada com frequência para atestar a qualidade de um profissional). No caso do candidato, significa que ele vai estar na cabeça das pessoas. Os marqueteiros, gente treinada sob a lógica de qualquer imagem é melhor que nenhuma imagem, instruem os candidatos com pequenos truques, que geram fotos supostamente originais – aqui vale o supostamente, já que os truques estão sendo repetidos à exaustão já faz tempo. Quando chegaram na Moóca, primeira parada na agenda do Alckmin no dia 29 de setembro de 2008 (os assessores dos candidatos enviam, diariamente, para todos os veículos de comunicação interessados, uma lista do que o candidato vai fazer), os caras da Cia ouviram de um colega mais experiente: “É aqui que ele embaça os óculos”. Batata! Alckmin chegou minutos depois, quando todos os fotógrafos já estavam bem posicionados para a foto dos óculos com café.

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Esses caras tão aprontando alguma coisa Ser fotógrafo de um grande jornal ou revista é um posto bem disputado. Os veículos mais conhecidos fazem cursos de caça-talentos que peneiram gente do Brasil inteiro. Além disso, dentro desses veículos, a cobertura de política é importantíssima. Assim, o mais comum é que os melhores profissionais sejam destacados para cobrir campanhas. Esse grupo de fotógrafos se conhece bem e, naturalmente, estranha a presença de um novato. Ainda mais quando o novato são três, clicam sem parar (para conseguir fotos simultâneas, o jeito foi clicar com o menor intervalo possível) e dizem que trabalham para o maior jornal do país (a Folha tinha outro fotógrafo em campo, responsável pela cobertura diária – os caras da Cia trabalhavam para um caderno que saía nos fins de semana). A reação foi a natural de quando sentimos que nosso território está sendo invadido. “Muitos fizeram questão de dificultar o nosso trabalho e uma das fotógrafas decidiu fazer fotos da gente fazendo fotos, no lugar de olhar para a cena que deveria estar fotografando”, diz Pio.

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CONTRA A TRANSPARÊNCIA

O s pe r i g o s d a a b e r t u r a no g o v e r no Lawrence Lessig

Originalmente publicado na revista The New Republic, em outubro de 2009. Tradução Anna Menk

Em 2006, a Sunlight Foundation lançou uma campanha para que membros do Congresso postassem sua agenda de compromissos na internet. “A Campanha do Relógio de Ponto” recebeu a adesão de 92 candidatos para o Congresso, e um deles foi eleito. Lembro-me quando uma das criadoras do projeto me descreveu a ideia. Ela tinha certeza de que eu ficaria maravilhado com o seu brilhantismo. Não fiquei. Pareceu-me que havia razões mais do que legítimas para que alguém não quisesse que sua agenda diária de trabalho ficasse disponível para qualquer um que acessasse a internet. Mesmo assim, não a desafiei. Eu havia acabado de chegar ao “movimento da transparência” e certamente essas coisas se tornariam mais claras, digamos assim, mais tarde. Em todo caso, o timing estava do lado dela. O “movimento da transparência” estava próximo de alcançar uma vitória extraordinária na eleição de Barack Obama. Na realidade, praticamente ninguém mais questionava a sabedoria da famosa observação de Brandeis – um dos clichês mais citados no movimento pela transparência – que diz que “a luz do sol é (...) o melhor dos desinfetantes”. Como a decisão de ir para a guerra no Iraque, a transparência tornou-se um valor bipartidário inquestionável.

Como alguém pode ser contra a transparência? Suas virtudes e suas utilidades parecem terrivelmente óbvias. Mas eu tenho ficado cada vez mais preocupado no caso de haver um erro no cerne desse bem inquestionável. Nós não estamos refletindo criticamente o suficiente sobre o quanto a transparência funciona, onde e quando ela pode levar a confusões, ou a algo pior. Temo que o sucesso inevitável desse movimento – se acontecer sem reflexão sobre a complexidade da ideia de abertura – poderá inspirar não a reforma, mas o desânimo. O “movimento da transparência nua”, como eu o chamarei daqui para a frente, pode não levar à mudança. Pode simplesmente empurrar qualquer fé no nosso sistema político morro abaixo. O “movimento da transparência nua” casa o poder das redes com o declínio radical do custo de coleta, acúmulo e distribuição de dados. Seu objetivo é liberar dados, especialmente dados públicos, para que o público possa processá-los e entendê-los melhor.

E não somente em política. Se a reforma do sistema de saúde americano emergir do Congresso, ela trará um projeto que vai requerer que médicos revelem para um banco de dados ligado à internet qualquer interesse financeiro que eles possam por ventura ter sobre qualquer companhia ou laboratório farmacêuticos.

O exemplo mais óbvio dessa nova responsabilidade de abrir dados é a tendência de expor o processo legislativo – a demanda, agora apoiada pela Casa Branca, de que projetos de lei sejam postados na internet antes de serem votados ou o vídeo dos pronunciamentos e debates no legislativo sejam liberados dos direitos de propriedade. Mas os exemplos mais dramáticos são os dados públicos das agências executivas: o site Data.gov está começando a acumular uma extraordinária coleção de bancos de dados de alto valor utilizados pelo governo. Toda essa informação está sendo disponibilizada em formatos padronizados e liberada para ser apropriada.

Digite qualquer nome de um médico nesse banco de dados e uma longa lista de contratos de consultoria, propriedade em ações na bolsa e palestras pagas retornará a você, presumivelmente com o intuito de ajudá-lo a evitar médicos que tenham conflitos de interesse demais e para direcioná-lo para aqueles que tentaram se manter à margem dessas situações.

Sem dúvida, a vasta maioria desses projetos sobre transparência faz sentido. Em particular, a transparência sobre a gestão pública vai fazer com que a perfomance das agências do governo melhore muito. E fazer com que dados sobre o governo se tornem disponíveis para outros utilizarem tem historicamente resultado em grandes ganhos financeiros. Os exemplos de empresas

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privadas inovando com base em dados governamentais tornados abertos estão em toda parte, desde informações meteorológicas, que hoje rendem mais de 800 bilhões de dólares para os Estados Unidos, até os dados do GPS, liberados por Ronald Reagan, que agora permitem que telefones celulares indiquem instantaneamente onde fica o Starbucks mais próximo, entre outros fatos essenciais.

há contribuições benignas e malignas e é impossível saber a qual dos dois grupos cada uma pertence. Mesmo que tivéssemos todos os dados do mundo e um mês de programadores do Google, nós não conseguiríamos nem começar a separar as contribuições corruptas das inocentes.

Mas essa não é toda a história sobre a transparência. Existe um tipo de projeto de transparência que deve levantar ainda mais perguntas do que as já existentes. Estou falando em especial dos projetos que pretendem revelar a influência potencialmente indevida do dinheiro sobre decisões de interesse público. Projetos como o da abertura das ligações entre médicos e outros interesses, ou os que tornariam trivial, de tão fácil, seguir toda fonte possível de influência sobre um membro do Congresso, mapeando todo e qualquer voto que ele já tenha dado. Esses projetos assumem que estão almejando apenas o que é obviamente bom. Sem dúvida eles terão um efeito muito profundo. Mas será que o efeito deles será mesmo para o bem? Queremos realmente o mundo que eles pretendem?

(...)

II

O que de fato significa uma contribuição para um congressista? A contribuição faz com que ele tenha que tomar uma posição de acordo com quem doa? A posição do congressista causa a contribuição? A perspectiva da contribuição faz com que ele seja mais sensível a uma posição? Assegura o acesso? Assegura uma melhor audiência? Os congressistas competem por cargos em comissões pensando nas contribuições de campanha maiores que podem receber? Será que o Congresso legisla de olho no efeito que cada lei pode ter sobre as contribuições? Há poucas dúvidas de que a resposta para cada uma dessas questões é, em algum grau, sim. Numa série intitulada “Speaking Freely”, publicada pelo Center for Responsive Politics, você pode encontrar o testemunho de vários ex-congressistas de ambos os partidos que apoiam cada uma dessas declarações. Todos dentro do sistema sabem que as alegações sobre a influência são, até certo ponto, verdadeiras. É da natureza do sistema. Mas há também poucas dúvidas quanto ao fato de ser impossível saber se a contribuição efetivamente causou o voto ou se foi causada por ele. Colocado de outra forma:

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Ou, pelo menos, das “corruptoras”. Nem todos os dados do mundo nos dirão se uma contribuição específica alterou um resultado, mudando um voto ou um ato que não teriam ocorrido sem o incentivo financeiro. Só o que poderíamos dizer – e já não é pouco – é que as contribuições estão corrompendo a reputação do Congresso porque causam a suspeita de que o congressista só faz campanha para atrair dólares. Quando um representante do Congresso age de maneira inconsistente com os seus princípios ou seus constituintes, mas consistente com uma contribuição significativa, o ato ao menos levanta a questão sobre a integridade da decisão. Mas, além dessa questão, os dados não podem dizer muito mais. Mas, então, fazer o quê? Se os dados não nos dizem nada, que mal há em produzi-los e divulgá-los? Mesmo que não provem, sugerem. E, se sugerem alguma coisa falsa, então deixe que o legislador ofendido se defenda. O público pesará a verdade contra a prova. Veja outro clichê de Brandeis: “Se há momentos em que a discussão levará a falsidade e falácias (...) o remédio a ser aplicado é mais discussão. Não imponha o silêncio”. Isso soa verdadeiro. Mas será que tal remédio funciona? Será que mais discussão realmente ajuda a descobrir as falsidades? Para responder essa questão, pensar num caso concreto ajuda. Como na realidade esse tipo de diálogo acontece? Considere um exemplo. Nos últimos dias da administração Clinton, amigos da indústria do cartão de crédito estavam tentando promulgar uma lei baseada em um projeto (é a lei da prevenção de abuso da falência e proteção ao consumidor). O presidente Clinton era originalmente a favor do projeto. Mas, em 2000, a primeira-dama Hillary Clinton leu um editorial no New York Times detalhando os malefícios que esse projeto de lei poderia trazer para a classe média baixa americana. Ela começou a referirse a ele como “aquele projeto de lei horrível” e tomou como missão brecar o seu marido de promulgá-lo lei. Aparentemente ele foi convencido, deixando o projeto morrer na gaveta. Dois anos depois, a primeira-dama Clinton havia se tornado senadora Clinton. Na campanha, ela recebeu mais de 140.000 dólares em contribuições de companhias de cartão de crédito e serviços financeiros. Aí, o projeto foi


à votação. Parece que a senadora Clinton viu as coisas de maneira diferente de como via a primeira-dama Clinton. Em 2001, ela votou a favor daquele “projeto de lei horrível” duas vezes. (Em 2005, ela mudou de posição de novo, opondo-se na passagem final.) Objetivamente falando, há muitas razões para a senadora Clinton ver o setor de serviços financeiros diferentemente de como via a primeira-dama Clinton. Ela era, afinal, senadora por Nova York. Nova York tem uma relação especial com as companhias de serviços financeiros (deixe de lado por um momento que o estado também tem uma relação especial com os titulares de cartões de crédito da classe média baixa). Há muitas razões possíveis para justificar seu apoio “àquele projeto de lei horrível”. Mas, seja o que for que a objetividade possa ensinar, todos nós sabemos algo inegável sobre o fato de 140.000 dólares estarem conectados a qualquer troca de apoio em um contexto político. Seja falso ou verdadeiro o argumento, fica claro que o dinheiro é a razão para a troca de posição. Mesmo aqueles que apoiam a senadora Clinton acham difícil ver as coisas de maneira diferente. O dinheiro manda, são esses os pressupostos da nossa cultura política. Neste momento, o julgamento de que Washington só se interessa por dinheiro é tão amplo e profundo que, entre todas as possíveis razões para explicar algo tão confuso, o dinheiro é a primeira e provavelmente a última explicação que será ouvida. O dinheiro define o padrão, e qualquer razão diferente precisará de provas sólidas. E esse padrão, essa hipótese de causalidade, só será reforçado pelo movimento de transparência nua e suas correlações. O que nós acreditamos será confirmado seguidamente. Mas será que essa suposta preponderância do dinheiro – pergunta o discípulo fiel de Brandeis – nos inspira a debatermos ainda mais sobre sua influência nos resultados no Congresso? Será que a transparência não forçará mais pessoas a negarem o padrão? Novamente, temos que manter nossas intuições guiadas pelos fatos concretos. Sem dúvida, reivindicações falsas, por vezes, inspirarão mais verdade. Mas o que dizer quando as reivindicações não são nem verdadeiras nem falsas? Ou pior, quando as reivindicações necessitam mais do que 140 caracteres de um tweet para serem compreendidas.

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O problema é o déficit de atenção. Para entender alguma coisa – um ensaio, um argumento, uma prova de inocência –, se requer certa quantidade de atenção. Mas a quantidade de atenção média dedicada a entender essas correlações e suas implicações difamatórias é quase sempre menor que a quantidade de tempo disponível. O resultado são malentendidos sistêmicos – pelo menos se a história é relatada em um contexto que não neutralize esses malentendidos. E muitos dos projetos de transparência que estão sendo discutidos hoje não proporcionam esse contexto. Compreender como e por que algumas histórias serão entendidas, ou não entendidas, fornece a chave para entender o que está errado com a tirania da transparência. Uma vez que se dê nome ao problema, você notará que o tal déficit de atenção está em toda parte, na vida pública e privada. Pense em política, que cada vez mais é a arte de explorar o problema de déficit de atenção – marcando o seu oponente com as farpas que ninguém tem tempo para entender, e muito menos analisar. Pense em qualquer questão complexa de política pública, desde economia até os debates sobre níveis de ajuda ao estrangeiro. O ponto, nesses casos, não é que o público não seja inteligente o suficiente para descobrir qual é a verdade. O ponto é o oposto. O público é inteligente demais para desperdiçar seu tempo, focando em assuntos que não são importantes para ele. A ignorância aqui é racional, não patológica. É o que esperamos que todos façam se forem racionais sobre a melhor forma de usar o seu tempo. Contudo, mesmo que racional, essa ignorância produz equívocos enormes. Uma resposta madura para esses inevitáveis equívocos são políticas que se esforçam para não exacerbá-los.

(...)

III.

Então, existem maneiras de responder? Podemos obter o bem da transparência sem o mal? Há alguma solução que aceite que a transparência está aqui para ficar – na verdade, que se tornará cada vez mais duradoura e cada vez mais completa –, mas que evite os danos que a transparência cria? No contexto da saúde pública, em que os médicos são obrigados a revelar qualquer ligação com a indústria, não posso imaginar como seria essa solução. A população não está hoje nem um pouco disposta a financiar publicamente


a pesquisa necessária para apoiar o desenvolvimento de drogas. Perto de 70% do dinheiro para testes clínicos de medicamentos nos Estados Unidos vem da indústria privada. O financiamento privado aqui parece inevitável – e, com ele, o potencial de conflitos de interesse. Esse potencial, inevitavelmente, exigirá mais e mais transparência sobre quem obteve o que de quem. No âmbito do funcionalismo público, no entanto, as soluções são óbvias, antigas e eminentemente tratáveis. Se o problema com a transparência é o que poderia ser chamado de insinuações estruturais – as sugestões constantes de que o pecado está presente –, então a solução óbvia é eliminar essas insinuações e sugestões. Bastaria um sistema de financiamento público de eleições, que tornaria impossível sugerir que a razão de que algum membro do Congresso votou da maneira como votou por causa de dinheiro. Talvez ele tenha votado porque é burro. Talvez fosse porque ele é liberal ou conservador. Talvez porque ele não conseguiu prestar atenção nas questões em jogo. Seja qual for a razão, cada um desses motivos reforça a democracia. Eles dão ao cidadão uma razão para se envolver, ainda que seja para se livrar dos vagabundos. E, eliminando o dinheiro da história, o desejo de se envolver não é estancado pelo cinismo que sufoca tanto o sistema atual. A atual versão desta ideia muito antiga – Theodore Roosevelt nos deu o primeiro projeto propondo financiamento público de campanha, em 1907 – chama-se Fair Elections Now Act (“ato por eleições justas já”). O projeto daria uma quantia inicial a candidatos qualificados para financiar sua campanha. Além da participação inicial, eles poderiam levantar o dinheiro que quisessem, com contribuições máximas de 100 dólares por cidadão. Assim Roosevelt encontra Obama, com uma proposta que casa o ideal de neutralizar influências indevidas com a energia que pequenas contribuições podem adicionar a qualquer campanha. A única falha significativa nesse projeto de lei, pelo menos na minha opinião, é o seu título. O objetivo dessa proposta não é, ou não deveria ser, a justiça. O objetivo deve ser a confiança. O problema que esses projetos enfrentam é que temos um Congresso no qual ninguém

confia – um Congresso que, na opinião da grande maioria do povo americano, vende os seus resultados pelo maior lance. O objetivo dessas propostas deveria ser o de mudar essa percepção através da criação de um sistema em que ninguém pensasse que o dinheiro está comprando resultados. Dessa forma, poderíamos eliminar a possibilidade de influência que alimenta o cinismo, que de outra forma seria inevitável, quando a tecnologia torna tão simples gerar uma lista interminável de influências. As propostas de financiamento público podem assim ser entendidas como uma resposta a uma inevitável patologia da tecnologia – a sua transparência patológica –, que cada vez mais dirige a nossa vida e nossas instituições. Sem essa resposta – só com o ideal da transparência nua – a nossa democracia está condenada. A web nos mostrará todas as influências possíveis. O mais cínico será o mais influente. O déficit de atenção vai garantir que o mais influente seja o mais estável. Conclusões injustificadas serão aceitas, carreiras serão destruídas e crescerá a alienação. Nós periodicamente correremos atrás de mudanças romanticamente promissoras (como as de Barack Obama), mas nada vai mudar. Washington acabará de se transformar naquilo em que já está virando: um lugar cheio de almas animadas por – como Robert Kaiser colocou recentemente no seu ótimo livro “So Damn Much Money” – um “anseio familiar americano: ficar rico.” Mas, se o movimento de transparência se ligar a esse movimento de reforma – se a cada aumento de transparência houver uma reforma que nos tire da ilusão de que a tecnologia é uma grande bênção –, então, a sua consequência poderá ser salutar e construtiva. Quando a transparência e a democracia são consideradas dessa forma, podemos até nos permitir imaginar uma maneira de sairmos desse ciclo de cinismo.

Não há dúvidas sobre o bem que a transparência cria em uma ampla variedade de contextos, especialmente no governo. Mas também devemos reconhecer que o bem pode ter efeitos colaterais ruins. E nós deveríamos pensar cuidadosamente sobre como evitar esse efeito colateral. A luz do Sol pode muito bem ser um ótimo desinfetante. Mas, como todos que já tentaram caminhar num pântano sabem, ela tem também outros efeitos.

Lawrence Lessig, que ajudou a criar e liderou o movimento Creative Commons, escreveu vários livros sobre o poder transformador da tecnologia, inclusive “Remix”. Hoje é pesquisador de corrupção na política em Harvard e está no conselho consultivo da Sunlight Foundation.

29


15 iniciativas online de transparência pública ao redor do mundo que podem nos inspirar. POR PEDRO MARKUN *

Dados públicos abertos

Fiscalização de políticos

Movimento pela transparência

Vários países criaram grandes portais no

Há muitas experiências mundo afora de

Sites mantidos por ativistas e outros grupos

qual é disponibilizado todo tipo de dado

sites chamando a participação pública para

independentes para defender mais abertura.

coletado com dinheiro público, de gastos a

colocar políticos na linha. Free Our Data

nascimentos, de doenças a consumo. GovTrack

http://www.freeourdata.org.uk/

Data.gov

http://www.govtrack.us/

Reino Unido

http://www.data.gov/

Estados Unidos

Movimento pela abertura de dados públicos.

Estados Unidos

Site independente para começar um

Talvez a maior realização da gestão Obama...

movimento de “hackeamento cívico” para

CKAN

acompanhamento das ações do Congresso

http://ckan.net/

americano.

Canadá

Data.Australia http://data.australia.gov.au/

Encontre dados públicos do mundo inteiro.

Austrália

Open Parlamento

Um convite a reutilizar informações públicas.

http://parlamento.openpolis.it/

Open Knowledge Foundation

Itália

http://www.okfn.org/

Digital NZ

Iniciativa de acompanhamento e interação

Estados Unidos

http://www.digitalnz.org/

política com o parlamento italiano

Defende a abertura de todo tipo de dado.

Nos Députés

Open Data Commons

http://www.nosdeputes.fr/

http://www.opendatacommons.org/

Open Government Initiative

França

Canadá

http://www.whitehouse.gov/OPEN/

Observatório das atividades parlamentares.

Soluções e ferramentas legais para quem

Nova Zelândia Informações do governo e de ONGs.

Estados Unidos

quer reutilizar dados abertos.

A Casa Branca conclama a população a ajudar a governar.

Sunlight Foundation http://www.sunlightfoundation.com/

Vancouver’s Open Data Catalogue

Estados Unidos

http://data.vancouver.ca/

Fundação em defesa da transparência.

Canadá Um site municipal à altura desses outros

Praja.org

sites federais.

http://www.praja.org/ Índia Com um lema inspirador e vago – “vamos fazer algo!” – tenta mobilizar a Índia. CIVICUM http://blog.civicum.it/ Itália Conclama a participação pública para aumentar a eficiência do estado.

*Pedro Markun é um dos fundadores do Projeto Esfera, dedicado a comunicação, política e novas tecnologias para promover transparência e colaboração.



As histórias que não são con tadas são como se não tivessem acon tecido. Daí colocar câmeras de cinema na mão dos índios. POR MARIANA LACERDA* / FOTO VINCENT CARELLI

Vincent Carelli começou o projeto Vídeo nas Aldeias em 1987, primeiro filmando os índios, depois ensinando-os a filmar. Desde então já foram produzidas 3.000 horas de imagens de 40 povos brasileiros, numa coleção com mais de 70 vídeos, sendo metade de autoria indígena. Em 2009, Carelli lançou “Corumbiara”, cujos 120 minutos têm emocionado plateias e jurados. Ao revisitar o material que coletou e guardou ao longo de 20 anos sobre o massacre dos índios akuntsu, em Rondônia, Carelli confirma, mais uma vez, o poder do audiovisual como uma ferramenta de reflexão e reconhecimento da nossa história. São mais de 20 anos de Vídeo nas Aldeias. Já existe uma

oral ficou comprometida, vários mecanismos de transmissão

geração de realizadores indígenas.

de patrimônio cultural foram alterados. Então é preciso encontrar

Já tem uma geração apaixonada pelo cinema e tem gente

novas formas de socialização e de transmissão de conhecimentos.

começando a colocar as caras para fazer cinema. Mas eu acho que o que era preciso é multiplicar os centros formadores porque

Como acontecem as oficinas do Vídeo nas Aldeias?

a demanda dos índios é grande, o país é grande.

O principio do método é aprender fazendo, não tem nada daquelas babaquices de plano médio, plano americano. É aprender a usar a

Então os índios deixaram a posição de objeto de documentários

câmera e sair filmando. O segundo ponto é o aprendizado coletivo.

para se tornarem sujeito?

A gente filma e em algum momento do dia a gente se reúne e assiste

Eu acho que sujeitos eles sempre tentam ser, mesmo quando são

ao que todo mundo filmou. Cria-se uma dinâmica de competição

filmes feitos por gente de fora. Porque a visibilidade é tão importante

sadia e também de aprendizagem com os erros e acertos dos

para eles que eles sempre tentam assumir a voz, como fizeram nos

outros. Tentamos conter o ímpeto de imitar a televisão e praticar

dez primeiros anos do Vídeo nas Aldeias, onde era praticamente

um cinema de observação, um cinema direto, através do exercício

a minha câmera a serviço dos projetos deles. Mas agora eles têm

do personagem. Primeiramente o cinegrafista tem que estabelecer

o processo na mão. Ou seja, a entrevista é feita na língua deles,

uma relação com o seu personagem. É um trato. Você quer ser

com quem eles escolhem falar. É isso que possibilita dar uma real

meu personagem? Posso filmar você? Se o cara aceita, então vai

expressão dos personagens, uma expressão livre, sem a barreira

criar o personagem. É preciso que o cinegrafista aprenda com o

da língua, do desconhecimento sobre a pessoa. Uma relação de

personagem a criar um tempo, uma intimidade necessária para que

intimidade entre quem filma e quem atua, que faz diferença.

se tenha uma expressão espontânea, livre. São filmes construídos progressivamente. Não são filmes de roteiro. Tem um personagem,

Diferença na vida dos índios ou no resultado do filme?

tem uma situação e tem um rumo. E aí vai, a realidade que diga.

Sobretudo na apropriação do filme. Eu acho que esse é um cinema de iniciativa coletiva, de desejo coletivo. Não existe muito essa

O personagem é fictício ou é real?

relação entre cineasta e objeto. Assim como o cinema do [Eduardo]

É a história de alguém. Mas esse alguém fatalmente está atuando.

Coutinho depende completamente da performance dos seus personagens, nos filmes dos índios os personagens assumem a

“Corumbiara” levou 20 anos para ser feito. Quando você

direção, a criação da cena. E também porque tão importante quanto

percebeu que tinha um filme nas mãos?

o filme é o processo de autoconhecimento que a produção do filme

Esse filme estava engavetado, foi uma história com idas e vindas e

gera. A gente sempre aprende muito com os temas que os filmes

muitos reveses. Parei, passei a me dedicar à formação de cineastas

desenvolvem. O objeto do filme entra num circuito de circulação de

indígenas. Então uma jornalista holandesa me entrevistou [em 2006],

informação na comunidade, principalmente quando os cinegrafistas

me empolguei no depoimento e comecei a repensar o filme. É um

descobrem coisas sobre as quais os outros nunca ouviram falar. Os

filme muito pessoal, cujas imagens eu custei a assistir sem chorar. O

caras nasceram e vivem ali e ficam fascinados ao descobrir coisas

Joel Pizzini [diretor de “500 Almas”, sobre os índios do Mato Grosso

sobre eles mesmos que desconheciam.

do Sul] disse que, quando ele viu a premiação de “Corumbiara”, em Gramado, sentiu como se fosse a nossa vitória, dele também,

O objetivo inicial do Vídeo nas Aldeias era apoiar as lutas dos

enfim, a vitória do tema, um sentimento mais coletivo da vitória. Eu

povos indígenas para fortalecer suas culturas e seus territórios.

estou superfeliz com a comoção do público. Nunca pensei que fosse

Ao longo do projeto, o objetivo se alargou?

chegar a tanto. Provavelmente será o filme da minha vida. Bom, a

Ir além é impossível, isso é tudo. Essa questão da visibilidade é

gente não faz muitos filmes na vida, mas certamente não haverá

politicamente estratégica para eles. Eles sabem que todo poder de

outro filme da minha parte com essa densidade.

negociação deles, de coisas concretas mesmo, com o governo, pesa o fato de as pessoas os conhecerem. Muito mais do que denúncias,

* Mariana Lacerda é jornalista, além de diretora e roteirista do

eles querem mostrar sua cultura, sua identidade, porque a história

premiado curta “Menino Aranha”.

32


Esta é Ururu, que morreu no último dia 1º de outubro em uma pequena aldeia de Corumbiara, Rondônia. Ururu sobreviveu ao massacre do seu povo, os akuntsus, que, em 1985, foi atacado por madeireiros. Hoje só há cinco akuntsus vivos.

33


Saí às ruas conversando com as pessoas para ver o que elas revelam. Aqui, nestes diálogos, não tem photoshop. é tudo tal e qual. POR OTÁVIO RODRIGUES

– O senhor tem identidade de jornalista?

minutos já está tudo diluído, não lembro

26 anos, trabalha lá e vai logo abrindo o

Faz favor, mostre a sua identificação!

mais de nada do que foi dito.

jogo. Lembra que, na cozinha, acontece de

O calor da situação não deixa saber de que

Saio do barbeiro e, em busca de um pouco

fugirem do procedimento.

lugar do Nordeste é aquele homem, mas ele

de erudição, encontro Rafic Farah, 60 anos,

– A recomendação da consultora de

fala grosso. Dono da pequena barbearia, de

arquiteto e designer. Pergunto a ele. O

saúde é: não pode pôr frango e queijo no

repente fica incomodado com a reportagem

senhor é sincero, nunca mentiu?

mesma gaveta do freezer por causa da

– até ali, uma breve conversa com o outro

– Nunca menti na minha vida. Nunca,

contaminação cruzada. Mas, na pressa,

barbeiro, de quem já não se poderia saber se

nunca! Talvez esta seja a última.

as meninas às vezes põem.

empregador ou sócio majoritário.

Bem, nosso tema é transparência mesmo.

Como ser verdadeiro com os clientes? “Boa

– É Globo, é não sei o quê! Já tive muitos

– Eu sou absolutamente transparente,

tarde, senhor, desculpe, é que a mocinha

problemas aqui!

gosto de tudo transparente. Você vê que

deixou o queijo junto com o frango, o que só

Eu entrei fazia três minutos, querendo ouvir

as meninas [que trabalham em seu estúdio]

foi descoberto dez minutos depois. O senhor

algumas ideias a respeito de “transparência”

vêm com roupa transparente.

prefere evitar o risco de uma contaminação

e agora sou incitado a ser transparente. Ele

Ele atende uma chamada, dizem que é

cruzada ou vai comer o misto-quente mesmo

abre a porta do banheirinho na garagem –

importante. Fala à minha frente sem pudores

assim?” Não dá. Ou dá?

procura algo?, vai mijar?, serei confinado?

de negócios, projetos...

O conceito de transparência é entendido

– Cartão não, eu não quero. Mostra o RG!

– A gente fica lá no bangalô, lá no meio

das maneiras mais diversas, como prova o

Estava na cara que era um tema difícil, mas

do mato. [Pequena pausa para ouvir o

chefe de cozinha Manoel Vicente da Silva, 51

quem imaginaria que eu me meteria em

interlocutor.] É, eu e o tamanduá.

anos, pernambucano do Recife.

uma ópera bufa? O sujeito dá um show

Arquitetura, cidades emparedadas... Qual

– Olha, é o seguinte: o trabalho é

de transparência na minha frente e não há

é a diferença entre intimidade e ter algo a

um pouco corrido, tem um pouco de

como ignorar que suas palavras, sua atitude,

esconder? Ora, privacidade é um direito.

tranquilidade também, mas... Não tenho

seus gestos, tudo nele é grosseria. Se eu

Onde estão esses limites?

nada contra, não tenho o que falar. Tem

pudesse escolher, preferia que fosse menos

– A transparência não tem nada a ver com

que trabalhar, vamos trabalhar. Se for

transparente e, daí, mais educado.

arquitetura. Você abre um vidro num lugar

coisa que a gente puder resolver, a

O outro barbeiro, ao contrário, parece

pra poder ver a rua, pra poder ver o Sol,

vida tá ótima. O público também, uma

uma avenca. Será que é mesmo? Ou vai se

as árvores. Ninguém que faz uma casa

maravilha. Nessa época agora, vai

desfazer do sorriso desmaiado, pegar um

de vidro quer ser visto. Faz uma casa

melhorar mais a situação ainda.

cabo de vassoura e se juntar ao que tem

de vidro pra entrar sol, pra ver o mundo.

Se na hora eu tivesse de ser transparente,

uma pendenga com a Globo? Havia me dito

De dentro da sua casa, você vê a vida, a

diria que ele estava acabando com a pauta.

que se chama Elmiro Marques, que é baiano

paisagem, vê as pessoas passando, tudo

Insisto no tema: Manuel, você se considera

de Castro Alves, e que tem 53 anos.

isso é bonito, não é BBB.

uma pessoa íntegra, 100% honesta, um

– Sem mentira, sem trapaça, certo? Eu

Depois encontro a jornalista Annamaria

sujeito assim, que nunca fez nada errado?

acho que, se o mundo fosse todo desse

Aglio, 42 anos, que conta que leu

– Olha... [longa pausa] se a pessoa falar

jeito, melhor seria. O meu negócio é muito

clandestinamente o torpedo que um menino

“nunca errei”, o cabra tá mais errado

certo. Eu gosto de cumprir as minhas

enviou para sua filha de 13 anos.

ainda… A gente erra. Mas tem o tipo de

obrigações e gostaria que todos também

– Ela esqueceu o celular dela no carro,

erro que a gente faz. Não errar, qualquer

cumprissem as suas comigo. Mas,

tocou, eu vi que era um menino... Leio,

coisa, não tem como... Errar, já errei, mas,

infelizmente, não é sempre assim.

não leio, leio, não leio... Então, li. Estava

como eu falei, não uma coisa absurda. O

Afirma que não é casado, mas vive com uma

escrito “eu te amo” dezenas de vezes!

que a gente pode resolver de imediato...

mulher. Se tem segredos?

Mas o pior estava por vir.

Você sempre fala a verdade?

– Não! Minha vida é um livro aberto.

– Ele mandou outro torpedo em seguida,

– Sempre falo a verdade.

Eu sabia.

dessa vez chamando ela de “meu bebê”!

Mesmo que vá doer um pouco.

– Eu nem tenho segredo nem gosto de

Poxa, ela não me deixa mais chamá-la de

– Mesmo que vá doer, eu tenho que falar

ouvir segredos de ninguém.

bebê faz algum tempo!

a verdade. Porque aqui, neste mercado,

Será que o senhor trabalha no lugar certo?

A menina ficou louca quando soube que a

neste ramo, eu tenho que chegar e falar

– Aqui sempre alguém chega e fala

mãe havia invadido sua privacidade. Mas se

“aconteceu assim”, entende?

alguma ou outra coisa, mas pra mim é

calou quando foi lembrada de que também

Entendo. No meu ramo, é desse jeito

como se fosse... a gente conversando

já havia feito a mesma coisa.

também. Aconteceu assim.

normal, sabe? O que o pessoal conta

– Uma vez chegaram flores pra mim em

aqui, aqui mesmo ficou, não guardo

casa e ela correu ler o cartão pra ver

Otávio Rodrigues ajudou a criar as revistas

aquilo. Tem gente que fala muita coisa,

quem tinha mandado.

Trip e Vida Simples. Atualmente trabalha na

mas, pra mim, falou aqui, daqui a cinco

Entro num café chique. Cibele Santana,

biografia oficial de Gilberto Gil.

34


Enquanto conversava com as pessoas, fiquei misturando seus rostos com recortes de revista e tirando fotos. Aqui também não tem Photoshop

Em sentido horário, começando do alto à esquerda, Annamaria, Elmiro, Manoel, Rafic, Cibele e Cibele de novo.

35


www.oi.com.br

A Oi sempre incentivou a criatividade, novas ideias e a mudança pra melhor. Agora ela traz dos encontros mais conhecidos e disputados no mundo. O TEDx São Paulo reúne mais de desenvolver o tema: “O que o Brasil tem a oferecer ao mundo agora?” Se você também www.tedxsaopaulo.com.br

SP


pra você a primeira edição do TEDx no Brasil, nos mesmos moldes do TED, um 500 pensadores, moldados pela diversidade de um país como o nosso, para já cansou de esperar o futuro, faça parte dessa comunidade realizadora.


Tivemos uma ideia para o número 2 da Gotas, que vai sair em fevereiro de 2010. O tema que imaginamos foi: “Chega de falar, é hora de fazer”. E aí inventaríamos uma revista que faça coisas, no lugar de ficar só discutindo. Imaginamos que, em vez de ficar aqui, enchendo páginas, poderíamos realmente intervir nas coisas no mundo lá fora, registrá-las e só aí colocar na revista. Gostou da ideia? Quer participar? Tem outras ideias? Sugestões de onde poderíamos intervir? Do que poderíamos fazer? Como é que um time criativo, num prazo curto, sem muita grana pode de maneira colaborativa causar um impacto de verdade? Palpites, ideias, ofensas, ofertas, sugestões, ameaças, comentários são bem-vindos pelo e-mail denis@webcitizen.com.br




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