gracianoseis Marรงo de 2011 ISSN: 2179-1031
CASA TOMADA COM RODRIGO DE OLIVEIRA CHร DAS SETE COM BERNADETTE LYRA XXI COM PEDRO NUNES 1
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Após um longo período de descanso, os cronópios estão de volta com uma nova edição da Graciano! E nada melhor do que lançar o nº 6 da nossa revista em um espaço poético, não é mesmo? Por isso, escolhemos o evento Poetas no Espaço como plataforma para a primeira Graciano de 2011. O “Poetas no Espaço” é um projeto organizado pelos estudantes da Ufes de Comunicação e Arquitetura, respectivamente, Sâmya Lievore e Gabriel Ramos. O evento é dedicado à literatura e às suas representações no espaço, reunindo oficinas, debates, performances etc. Ele ocorre entre os dias 16 e 20 de maio no Centro de Artes. O Cronópio foi convidado para coordenar um Chá das Sete especial para o Poetas, que será lançado nas próximas edições da Graciano. A revista deste mês conta com Bernadette Lyra no Chá das Sete, escritora e professora universitária, com livros e trabalhos publicados em todo país. Ela tomou um chá conosco e agora transcrevemos a conversa toda para você. A seção XXI traz uma entrevista muito especial com Pedro Nunes, escritor e criador do site Tertúlia, realizada pelo nosso orientador Erly Vieira Jr. Na entrevista, Pedro fala de sua obra, de seus prêmios e de seus projetos para o futuro. Um dos livros premiados pelo último edital da Secult, Yù, de Gabriel Menotti, foi resenhado pelo cronópio João Chagas. A poesia de Menotti foi dissecada e é apresentada a você em um breve texto. A primeira Graciano do ano também traz uma colaboração especial de Thalita Covre, professora e fotógrafa, com um ensaio fotográfico sobre o Centro de Vitória. A revista Graciano abre as páginas para os colaboradores na Casa Tomada. Nessa edição, temos o conto do cineasta Rodrigo de Oliveira. O texto é o embrião do livro que Rodrigo está escrevendo, e a Graciano traz em primeira mão para você. E, claro, na edição de maio também tem a Valise, seção dedicada a textos literários inéditos dos cronópios. Depois de alguns meses de ausência, a Graciano voltou com muito conteúdo inédito para você. Esperamos que continuem a apreciar a leitura da nossa revista, que cada vez mais alcança diversos públicos. Os cronópios só têm de agradecer!
os editores 2
Literatura brasileira feita no Espírito Santo GRACIANO
Literatura brasileira feita no Espírito Santo Março de 2011. Ano II, nº 6.
EQUIPE EDITORIAL
Astrid Malacarne, Brunella Brunello, Gian Luca, Guilherme Rebêlo, Isabella Mariano, João Chagas, Leandro Reis, Lívia Corbellari, Lucas Pinhel, Lucas Rocha e Sidney Spacini.
ORIENTADOR Erly Vieira Jr.
COLABORADORES
Rodrigo de Oliveira e Thalita Covre
DIAGRAMADORES
Astrid Malacarne, Isabella Mariano, Lívia Corbellari, Lucas Rocha e Sidney Spacini
PROJETO GRAFICO
Astrid Malacarne, Isabella Mariano, Lívia Corbellari, Lucas Rocha e Sidney Spacini
REVISÃO
Leandro Reis, Guilherme Rebêlo
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Sumรกrio 4
XXI 6 CHÁ DAS SETE
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RESENHA VALISE FOTOGRAFIA +POESIA CASA TOMADA
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“
Mesmo que eu quisesse criar, a única arte verdadeira é a da construção. Mas o meio moderno torna impossível o aparecimento de qualidades de construção no espírito.
Fernando Pessoa, escritor
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XXI com Pedro Nunes 7
Pedro Nunes escritor natural de São José do Calçado Erly Vieira Jr.: Comece contando sobre os primórdios. Como e onde surge o escritor Pedro J. Nunes? Pedro Nunes: Escrevo desde criança, por exercício de imitação. Fui alfabetizado muito cedo, aos seis anos, por minha mãe, professora primária dessas que montavam a cavalo e iam para os cafundós lecionar em uma única sala para alunos das primeiras quatro séries, então chamadas de primárias. Como eu era o filho mais velho, minha mãe deve ter se encantado com a possibilidade de me alfabetizar em casa. As lições impostas por minha mãe eram humilhantes – mas explico-me, é que me tiravam de meus maiores interesses, que eram a rua e a corriola de meus pares. Mas devo a essas lições de minha mãe um inexcedível encantamento pelas palavras. A alfabetização foi complementada por dona Edith
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Glória, minha primeira professora, no “Grupo Escolar Manoel Franco”, em São José do Calçado. Mas aí eu já estava fisgado pelo encantamento das palavras, e essa sedução que elas exerciam sobre mim só foi crescendo. Inevitável é que caísse na leitura. Era um mundo diferente do que me era oferecido pelas ruas pobres de São José do Calçado e suas noites amarelecidas e melancólicas, senão desoladoras. E eu li de tudo. No início da adolescência descobri os bolsilivros (livros de bolso) da Bruguera e da Monterrey. A Bruguera editava M. L. (Marcial Lafuente) Estefania, livros de faroeste “quentíssimos”, e uma série, “Coyote”, de J. Malorqui. Da Monterrey eu lia todo mês os livros de Lou Carrigan (pseudônimo de Antonio Vera Ramirez) com as aventuras e desventuras da mulher mais gostosa que já conheci, Brigitte Montfort, a espiã morena de olhos azuis que foi o capeta encarnado de minha adolescência – a mulher que mais me fez sofrer, essa filha de Gisele, a espiã nua que abalou Paris. Claro que eu lia Júlio Verne, um tremendo lugar-comum, fazer o quê, li também Defoe, o Robinson Crusoé, com 12 anos, versão integral emprestada da biblioteca do Mobral, li livros de Alencar e Machado, adorei o Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, fiquei louco com O seminarista, de Bernardo Guimarães, um dos livros que mais me fascinou naquela época – teve uma versão cinematográfica com Louise Cardoso a que eu, claro, assisti escondido, o filme era proibido para a minha idade, afinal a Louise Cardoso aparecia toda nua, boiando num córrego e tal. Bom, nessa altura eu já “escrevia”. Minhas primeiras “obras” eram livros de bangue-bangue, claro, cheios de sangue e ira e tragédias inimagináveis. Para bem da humanidade, não existe mais nenhum resquício disso. Então aconteceu um grande nó, ali pelos quatorze
anos: descobri o reembolso postal e com ele Dostoievski, com sua obra-síntese A voz subterrânea, também publicada sob outros títulos, como Memórias do subsolo ou Notas do subsolo. Esse livro, que já li quatro vezes ao longo de minha vida, e que promoveu uma verdadeira bagunça na minha pobre cabeça de leitor em plena adolescência, era, se bem me lembro, também editado pela Editorial Bruguera – esse volume, tão caro a mim, não tenho mais, emprestei a uma namorada que, como as namoradas, terríveis em tomar-nos emprestados os livros, não os ler e desaparecer com eles, fez exatamente isso: não sei se leu ou não, mas desapareceu com meu livro. Para completar o nó, achei no lixo uma revista Status que, além de mulheres seminuas, trazia publicado o conto Erostrato, de Sartre. Estava estabelecida a desordem, porque depois de Dostoievski (uma obsessão) e Sartre minha lente era outra e eu já não me cabia dentro de mim nem dentro da tacanha São José do Calçado. Ajunte-se a isso o fato de que eu, que detestava música – e música lá em casa eram as músicas de programas radiofônicos, como o Programa Barros de Alencar, da Rádio Globo, ou o Delmário é o Espetáculo, da Rádio Inconfidência de Belo Horizonte, que meu pai ouvia religiosamente toda tarde –, descobri a música com a banda inglesa Deep Purple, outra obsessão. O Deep Purple traduzia teor de agressividade e drama em uns acordes e sonoridade totalmente desconhecidos para mim. E, claro, eu precisava do diferente, afinal eu era adolescente, o que justifica toda e qualquer vaidade que me tenha possuído. Quando me mudei para Vitória, em 1981, eu já escrevia e escrevera muito – refiro-me à quantidade. Já havia escrito três romances, inúmeros volumes de poesia, publicava crônicas em A Ordem, jornal da prefeitura de São José do Calçado. Felizmente, para o bem da literatura, ninguém nunca tomará conhecimento desses textos. Então, tomando todas essas coisas de que falei, o encantamento das palavras, a influência das leitu-
ras (todas elas, não renego nenhuma, tudo que li foi bom), o modo como meu pai contava histórias (o melhor contador que já ouvi na vida), o apoio que recebi dentro da família, posto não houvesse nenhuma tradição literária, eu tinha plena consciência, bem antes de me mudar para Vitória, de que queria ser escritor. Era difícil, era sofrido, suei muito, mas eu queria, e, no meu caso, tudo começa com querer. Se eu quero, desconheço fronteiras. Nunca me impus limites. Por isso, mesmo antes de publicar pela primeira vez, eu, já em São José do Calçado, sentia-me escritor, era escritor, vivia escritor: era só esperar o amálgama. EV: Aproveite e conte um pouco dos contos publicados na década de 80, que antecedem o seu primeiro romance. PN: Não é que eu tinha uns contos escritos quando surgiu um concurso literário da editora Brasiliense? Eles iriam selecionar vinte escritores para um volume intitulado Jovens contos e outros vinte para um volume chamado Jovens contos eróticos. Resolvi participar dos dois, mandando quatro contos no total. De três desses contos eu nem me lembro muito bem – um deles, sim, era talvez o germe de meu conto A divisória, publicado anos depois em Vilarejo e outras histórias –, mas me recordo de que, dentro do rigor que me impunha, agradavam-me. O quarto conto, escrevi-o numa manhã, em duas versões afobadas, apenas para completar a carga: Sereia, um conto erótico no qual não depositava – e não deposito – nenhuma confiança. O inesperado é que esse conto colocou-me entre os vinte escritores que se viram publicados na antologia Jovens contos eróticos, selecionados entre quase 2.000 de todo o país. O livro foi publicado em 1987. Apesar de tudo, isso foi estimulante. Tanto que logo em seguida eu escrevi a primeira versão de Aninhanha, com o título de Maria Trinta Cruzes, só para participar do concurso literário da Fundação Ceciliano Abel de Almeida, recebendo com ela menção honrosa.
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Parece que me tornei mais ou menos conhecido. No final da década, Miguel Marvilla me ligou e pediu um conto para uma série que vinha publicando para a prefeitura de Vitória. Eram as Palavras da cidade, textos de notórios escritores capixabas encartados num envelope, uma iniciativa muito simpática. Eu não tinha a menor certeza de que deveria publicar, eu era muito rigoroso com o que escrevia e não me sentia ainda maduro, mas resolvi arriscar. Era uma oportunidade fantástica, meu texto iria se juntar, dentro do envelope, aos de grandes escritores capixabas que eu lera com tanta paixão. Mandei para o Miguel, que se tornou desde então um grande amigo, um conto curto, coisa rara na minha produção, chamado A ratazana e o ocaso. Fiquei embasbacado com a receptividade que o conto teve e, claro, comecei a sentir que podia sentir-me mais ou menos um escritor. EV: Aninhanha foi escrito em 87, e passou por várias reescritas até assumir sua forma final, quando foi publicado em 92. Como você lida com esse processo de reescrever o texto, burilá-lo, dentro do seu processo de criação? PN: Às vezes fico tonto com as situações e as frases.
Aí paro e vou caminhar, mas nada me dá soluções mais simples do que quando estou tomando banho ou ouvindo música. Bem esclarecido que nunca ouço música quando estou escrevendo. Reescrever o texto, achar soluções para as cenas ou deparar a sintaxe tão desesperadamente perseguida, isso tudo é de um prazer muito grande, o motivo mesmo de escrever. Escrevi a primeira versão de Aninhanha em menos de trinta dias, só para participar do concurso da FCAA. Eu sabia que havia ali uma boa ideia mal realizada, mas concorri assim mesmo (afinal, não tinha sido assim com Sereia?). E tinha plena consciência de que, como tudo que escrevo, precisava amadurecer. Fiquei em volta do texto esses cinco anos como o caipira em torno do toco. Até achar o tom. Ou pensar que havia achado, nunca se sabe. No fim das contas, Aninhanha aconteceu como tudo que escrevo. Às vezes deixo amadurecer no papel, de vez em quando retomo, até achar o caminho, às vezes um texto fica por anos dando voltas em minha cabeça. Mesmo que tenha deparado o caminho, nunca me canso de reescrever o texto, encontrando sempre imperfeições. Daí que chega um dia digo “pronto, não leio mais, basta”. EV: Sua prosa valoriza extremamente a sonoridade das palavras, em frases muitas vezes construídas através de uma sintaxe insólita, por vezes fazendo uso de períodos longos. Além disso, há um uso quase obsessivo de adjetivos, escolhidos com rigor e precisão. Podemos ver nisso um estilo “Pedro J. Nunes” de escrita? Conte-nos um pouco disso. PN: Na verdade, acho que minhas frases às vezes são caóticas. E não era para ser assim: eu habitualmente leio meus textos em voz alta, como se estivesse lendo para uma audiência imaginária, buscando o melhor ritmo, a palavra mais sonora, a palavra ideal para expressar o que desejo expressar. Creio que sua afirmativa se encaixa em parte nos livros que já escrevi, mas não nos que pretendo escrever.
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Estou atrás da simplicidade, se possível sem abrir mão da poesia, ainda que parca. Em produções mais recentes procurei me aproximar das frases mais curtas – é o caso do livro A pulga e o jesuíta, escrito para crianças e adolescentes. EV: Seu romance de estreia é narrado num instigante uso da primeira pessoa, numa espécie de monólogo estilizado (e que recusa a fácil saída do naturalismo num romance regional), permitindo ao leitor acompanhar um sujeito que se (re)constrói conscientemente, durante o relato. Por que essa escolha narrativa? PN: Gosto da primeira pessoa e suas prisões. Nem que seja para quebrar os cadeados. Meus livros foram escritos em primeira pessoa, todos eles.
Em Vilarejo e outras histórias a novela que dá título ao livro e o conto O relógio são os únicos casos de narração em terceira pessoa, mas em Vilarejo o narrador tem uma ligação algo passional com a história que narra – é a história em primeira pessoa de sua gente e de seu lugar. Meu conto Mariposa noturna em veranico de maio, publicado na antologia Mulheres – diversa caligrafia, também é um caso de narração em terceira pessoa, um narrador que entra no quarto dos narratários, que espreita os ruídos noturnos dos corpos e pressente odores e dores. Posso dizer que meus narradores em terceira pessoa, por sua profunda cumplicidade e envolvimento com o objeto de seu discurso, pela natureza de viver intimamente os conflitos de que falam, possuem um forte caráter de primeira pessoa. Em Menino a narração só poderia ser feita em pri-
“Declaradamente, escrevo para meus leitores, posto meu primeiro leitor seja eu.” meira pessoa, tínhamos ali alguém contando o que sucedera segundo a sua perspectiva, ou seja, a partir do universo etário do narrador e seus sentimentos em relação aos outros e ao mundo. Essa voz não poderia ser emprestada a outro ser. É o caso de Aninhanha, em que surge um narrador que fala de seus eventos usando uma linguagem que não é a sua linguagem habitual, mas, como no meu romance Menino, eu não poderia adotar outro foco. A anônima personagem do livro conta uma história de si, urdida em seus desejos, dores e im-
pressões. É uma história que somente ela poderia contar. Ainda que debaixo do jugo de uma linguagem fortemente estilizada – só para pegar emprestada uma expressão sua contida na pergunta. EV: O caráter social de Aninhanha foi bastante ressaltado na época de sua publicação (em especial no texto de orelha assinado por Carlos Nejar). Essa é uma leitura possível do livro, mas não me parece ser a principal, ao menos relendo-o quase duas décadas depois de sua primeira publicação. Fale um pouco de suas intenções com esse romance.
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PN: É fácil discutir a seca do Nordeste tomando uma aguinha mineral bem gelada numa salinha refrigerada. Assim até eu. Mas não é minha praia. Então não espere de mim livros com caráter social. Não vou falar das dores das pessoas sem senti-las, isso é coisa para festivos. Existe uma distinção entre o escritor e o cidadão Pedro J. Nunes que para mim está bem delineada. Deste não falo, que é para não cair no farisaísmo ou, pior, na hipocrisia. Os leitores são seres livres, podem entender o que escrevemos como bem entenderem. E talvez tenha ocorrido que não puderam ficar indiferentes à questão social que envolve os catadores de lixo, os carroceiros que encheram as ruas nos últimos tempos – a personagem principal de Aninhanha é uma catadora de lixo, de garrafas. Se isso ajuda a dar consciência ou a melhorar a vida, aí é por conta deles. Se se considerar que um escritor é responsável pela fixação das coisas e pessoas do seu tempo, da história de seus dias, do que vê, percebe ou distorce, aí sim, talvez eu possa ser considerado um escritor com preocupações sociais. Minha intenção com Aninhanha foi escrever um livro fortemente dramático, arduamente construído em termos de linguagem. E havia algumas histórias ricocheteando dentro de minha cabeça das quais eu precisava me livrar. Elas foram se fundindo e dando forma ao livro. A primeira versão, como já disse, foi escrita em trinta dias, para ser remetida às pressas para o concurso literário da FCAA, na época a única forma de se tornar escritor no Espírito Santo. Recebeu, por incrível que pareça, menção honrosa, e ganhou o direito de ser reescrita nos cinco anos seguintes, até chegar à forma como ficou. EV: Como foi ser premiado logo no primeiro livro publicado? Aliás, no mesmo ano você estreou com dois livros, se levarmos em conta a publicação inicial de Vilarejo como encarte da revista Você. PN: Outro dia estava pensando que eu sou um es-
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critor bastante premiado. Francamente, é mais do que mereço. Tive meu conto Sereia premiado num grande concurso literário nacional, recebi o Prêmio Almeida Cousin, do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo em 1992 (Prêmio Escritor Revelação) e meus livros Menino e A pulga e o jesuíta foram premiados pela Secretaria de Cultura do Espírito Santo. Quando Vilarejo saiu encartado na revista Você, mil exemplares se esgotaram em menos de vinte e cinco dias. Um marco! Festejávamos: Joca Simonetti, Reinaldo Santos Neves – os editores da revista – e eu, o autor do encarte. Isso puxou a edição do livro completo, ou seja, a novela Vilarejo mais os quatro contos que compõem o livro Vilarejo e outras histórias – que já teve cinco edições. Declaradamente, escrevo para meus leitores, posto meu primeiro leitor seja eu. O único livro que escrevi de costas para meus leitores foi Aninhanha. Escrevi esse livro para mim. Então, cair nas graças dos leitores, as pessoas virem falar comigo que gostaram dos meus livros, a despeito do valor inestimável de todos os prêmios que recebi, esse, sim, foi meu maior prêmio. EV: No prefácio à quinta edição de Vilarejo e outras histórias, Deny Gomes afirma que, tanto na novela que dá título ao livro, quanto nos contos que o
“Citar as minhas referências seria cansativo, são tantos escritores, tanto espelho, é tão melhor ler que escrever...”
completam, temos a construção de “mundos insólitos, fantásticos, absurdos”. Como foi dialogar com a dimensão do fantástico nesse conjunto de narrativas? PN: Como já disse, gosto do fortemente dramático, das coisas “insólitas, fantásticas, absurdas”, desde que atinja meus propósitos literários. Eu estava sob forte influência do fantástico quando escrevi meus dois primeiros livros. Como não abro mão de nenhum recurso disponível, foi ótimo contar com esse arsenal. EV: Podemos afirmar que Vilarejo é uma novela alegórica ou metafórica, como chegou a ser afirmado por alguns críticos na época de sua publicação? PN: Isso fica por conta do leitor. Pensando bem, talvez as pessoas que perceberam essas possíveis características tenham alguma razão pelo fato de que a narrativa se aproxima da trama dos evangelhos. E os evangelhos são livros alegóricos e metafóricos por excelência. EV: Em Vilarejo e nos outros contos do livro, seja no uso da primeira ou da terceira pessoa narrativa, tenho frequentemente a impressão de escutar um “causo” sendo contado. Uma prosa em que se cria uma relação de cumplicidade ou pelo menos proximidade com o leitor. É isso mesmo? PN: Depois de escrever Aninhanha eu fui escrever a novela Vilarejo e reescrever os quatro contos que compõem o livro Vilarejo e outras histórias. Fiquei sem saber que rumo dar a esse material. Aninhanha foi um livro extremamente trabalhoso, muito mais do que normalmente é tudo que escrevo. Embora eu estivesse satisfeito com o resultado, não queria repetir a experiência. Eu não sabia ainda, mas já havia decidido que Aninhanha seria um livro único. Então eu precisava sossegar minha linguagem. A melhor maneira de fazê-lo, o único método disponível, foi pensar no leitor. Eu queria interlocução.
EV: Ainda sobre a novela: cada personagem, no relato, carrega em si o seu “duplo”: uma curiosa tensão entre a imagem pública de cada um, forjada nas conversas dos habitantes da localidade, e uma outra personalidade, somente revelada em sua intimidade. Cada um parece ser algo que não é, e apenas durante o relato isso vai sendo revelado ao leitor, à maneira dos causos populares oralmente transmitidos. Aliás, parece que aqui a oralidade parece ser um curioso contraponto à complexa prosa adjetivada que é característica de seus livros... PN: Vilarejo é a história da hipocrisia de uma comunidade, por isso essa bifurcação do caráter. A maior realização disso está no Rabudo, um ser monstruoso, uma figura de demônio, de cuja existência as pessoas estavam impedidas de tomar conhecimento, no entanto um ser de grande bondade e pureza. Uma das forças da novela é essa revelação do caráter das personagens, essa revelação que surge sussurrada, à medida que os fatos vão se sucedendo. O narrador de Vilarejo é um cidadão com alguma instrução, mas preso à realidade intelectual de uma cidade pobre e esquecida. Deixei que ele falasse com a fala dos trabalhadores do sítio de meu pai quando eu era menino, a fala simples e sábia da gente da roça contando histórias à sombra do almoço no eito, e a voz do que eu chamaria de intelectual dos cafundós, enfeitando, aqui e ali, sua fala com a erudição que lhe era possível. Quanto aos adjetivos, sei que essa é uma tremenda contramão, mas não posso prescindir deles. Preciso dos adjetivos para carregar a dramaticidade de uma palavra que, sozinha, sem esse valioso auxílio, não funcionaria muito bem. EV: Em sua produção literária, com que escritores ou livros você costuma dialogar? Quais suas referências? Sei que Menino dialoga com o Graciliano
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Ramos de Infância, e há ecos de Rosa em vários textos... PN: Inevitável, o escritor é resultado do que leu. E isso me parece bastante amplo, porque leitura também da realidade (ou da irrealidade) circundante. Citar as minhas referências seria cansativo, são tantos escritores, tanto espelho, é tão melhor ler que escrever... EV: E essa publicação espaçada de seus livros? Após os dois primeiros, 92/93, só temos outro romance em 2000 (Menino) além de um conto publicado em 1996 (na coletânea Mulheres – diversa caligrafia) e um livro infanto-juvenil, A pulga e o jesuíta, publicado recentemente pela Secretaria de Cultura do Espírito Santo. Por que tanto silêncio no intervalo entre livros tão ruidosos? PN: Perdi a urgência, quero que o tempo passe devagar, a ansiedade, fruto maduro e perverso da pressa, é um demônio cotidiano com o qual eu devo estar sempre prevenido. Eu escrevo sempre, mas nem sempre publico. Leio muito mais que escrevo. Não creio que uma vida seja suficiente para escrever muitos livros – estou me referindo única e exclusivamente a mim. Dessa forma espero estar fazendo uma combinação saudável, dando ao tempo que me foi reservado viver a quantidade de livros que posso – e acho que devo – produzir. Acho que com isso me afeiçoo à natureza das coisas. Além disso, gosto de dar a cada livro que escrevo um cuidado muito grande. Fico num livro muito tempo, tentando dar aos meus possíveis leitores o que melhor eu posso. Com esse processo, demoro-me a considerar um livro realmente pronto – se é que algum deles tenha ficado realmente “pronto”, a ponto de que não se lhe acrescente ou tire uma vírgula que seja. O processo de escrever é muito prazeroso, tirante o prazer de ser lido e apreciado, que é o prazer final.
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A propósito do adjetivo ruidosos com que você se refere a meus livros, isso é mais que um elogio, é uma consagração que não sei se eles merecem. Vou atribuí-la à sua enorme gentileza e generosidade. EV: Sobre o conto em Mulheres: diversa caligrafia novamente um protagonista feminino, desta vez num relato urbano que faz transparecer certa doçura, talvez compaixão, ao lidar com uma personagem embebida em tanta melancolia e solidão. Fale um pouco dele... PN: Albertina, personagem do conto Mariposa noturna em veranico de maio é o ponto de ebulição de muita observação. O conto foi escrito para a antologia Mulheres: diversa caligrafia, que eu propus a um grupo de amigos publicar na década de 90. Eu tinha farto material para escrever o conto e essa foi uma tarefa bastante fácil, um conto escrito sem muito esforço. O conto é narrado em terceira pessoa, mas o narrador se apresenta como um ser tão extremamente íntimo da protagonista que ele penetra em seu quarto, em seus segredos mais bem escondidos, sofre e goza com ela, vive com elas as imagens delirantes que ela constrói, visita seu passado, teme por seu futuro, funde sua vida à dela. As mulheres sempre serão minhas personagens favoritas. Elas parecem muito vivas para mim, de modo que foi inevitável dar ao narrador esse caráter de extremo envolvimento. E nunca uma personagem me pareceu tão real quanto Albertina. Não podendo evitar seus dramas, só fiz acompanhá-los. O mais perto possível. EV: Menino assume-se como um palimpsesto de memórias da infância no interior, costuradas à ficção. Apesar de você ter dito que ele não é autobiográfico, ele faz uso de narração em primeira pessoa, num tom memorialístico, que me pareceu construir sua cumplicidade com o leitor ao compartilhar as etapas da descoberta do mundo empreendida pelo protagonista. A prosa dele me
parece um franco convite a uma série de redescobertas (das palavras, das formas, cores e movimentos mínimos do devir cotidiano), à medida que cada capítulo avança no fluxo dos anos que separam o menino do adulto que narra. É isso mesmo? PN: Menino tem sido interpretado como um livro de memórias, o que é um engano. Trata-se, obviamente, de farto material real disponível – todas as personagens do livro existiram, foram reais –, mas matéria de muita carpintaria. Tanto que mais da metade do livro foi cortada. Não posso negar a origem do livro, ou seja, a narrativa sobre episódios pitorescos de minha infância, uma infância bastante feliz de menino pobre do interior do Espírito Santo, mais precisamente de São José do Calçado, no final da década de 60 e início da de 70. Ao começar a escrevê-lo, no entanto, dei de cara com um romance pronto, e a história começou a mandar em si mesma. Eu, afeito expectador, deixei as coisas irem acontecendo, aproveitei o material que se dispunha a caminhar com suas próprias pernas, domado o principal elemento do livro, ou seja, a perspectiva do menino, da criança, com relação aos acontecimentos e às pessoas. Não é porque tudo aquilo realmente aconteceu exatamente como está no livro argumento para que o livro seja aceito como mera memória. Ocorre que eu não podia ignorar a matéria que se oferecia ao ficcionista, posto fosse real. Os fatos estavam disponíveis e se impuseram. Mesmo quando eu escrevia meu romance, tentando domar todos os elementos literários típicos de um romance, eu tinha plena consciência de que tinha uma história pronta, uma história bem real, uma história de que eu precisava me livrar, quase exorcismo. Hoje, anos após havê-lo escrito, impressiona-me a precisão com que o livro retrata, em vários aspectos, a cidade em que vivi a minha infância, ou seja, São José do Calçado. O livro traça um retrato im-
pressionantemente real da cidade e do meu sentimento com relação a ela – sentimento que talvez não tenha sofrido qualquer alteração mesmo hoje. O foco dramático do romance, no entanto, está num episódio real de pedofilia de que foi vítima uma de minhas parceiras da infância. E ficou bem claro durante a escrita que, mesmo em se considerando o revestimento literário, eu não podia me calar sobre a realidade. Menino, exceto pela angústia do narrador, aí sim, matéria pura de ficção, retrata razoavelmente o menino que fui e minhas descobertas, e tanto o menino quanto suas descobertas são comuns a tantos quantos viveram com tanta intensidade a própria infância no mesmo período em que vivi a minha. EV: Por fim, temos um livro infanto-juvenil, A pulga e o jesuíta, desta vez no campo do relato histórico e das lendas indígenas, ambientado em Nova Almeida, no período de construção da Igreja dos Reis Magos. E, novamente, o uso de elementos do fantástico, desta vez numa narrativa em primeira pessoa, ainda que fora do cenário rural que marca vários de seus trabalhos. Conte-nos um pouco sobre esse projeto. PN: Essa doce liberdade de inventar que nos foi dada é um grande privilégio. Esse livro para crianças está atrasado há pelo menos vinte anos. Desde há muito eu desejava escrevê-lo, mesmo que o tema fosse outro, mas não possuía o domínio da linguagem para fazê-lo. Até que essa historinha tão agradável surgiu, e de um surgimento tão simples, tão prosaico, que fez com que eu dominasse com relativa facilidade a linguagem típica dos livros para criança. A pulga e o jesuíta foi escrito em apenas uma semana, em duas versões. Parece-me que meu desejo de escrevê-lo, guardado por tanto tempo, domou os elementos que o compõem e facilitou a tarefa. O livro é uma fantasia sobre a inauguração desse ex-
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traordinário monumento histórico que é a Igreja e Residência Reis Magos, em Nova Almeida, Serra, ES, ocorrida em 1615. EV: Para encerrar, que surpresas reservam a gaveta de Pedro J. Nunes? Fiquei bastante curioso pra saber o que você teria pronto ou em andamento... Tenho me dedicado muito a vários projetos. Um deles, ao qual me dedico há quase seis anos, é a divulgação da literatura produzida no Espírito Santo por meio do site Tertúlia (www.tertuliacapixaba. com.br), um site que criei e administro praticamente sozinho e às minhas expensas, exceto pelo fato de que alguns amigos, voluntariamente, auxiliam-me numa espécie de conselho editorial e com farta contribuição. Um dos maiores propósitos do site é divulgar a existência dos nossos livros, dando mostras de suas capas e informações básicas sobre eles. E um de seus maiores méritos foi ter despachado livros de autores capixabas para o interior do Espírito Santo e vários Estados, ou seja, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraíba, livros que foram comprados pelos interessados, e dar voz, tanto quanto possível, aos autores capixabas – não temos como divulgar tudo, mas temos feito o maior esforço em ser abrangentes. Outra atividade na qual me envolvo muito é a produção de documentários. Com Luiz Guilherme Santos Neves fiz o documentário Caleidoscópio do folclore capixaba, que foi muito bem aceito quando de sua exibição na Biblioteca Pública Estadual, no Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e na TVE – esperamos ver o documentário disponível em DVD em breve. Mais recentemente produzi o documentário Sabalogos, sobre os encontros de amigos na Livraria Logos cuja ocorrência tem mais de vinte anos. O documentário será lançado em DVD, cuja fabricação já está em andamento. Concluí recentemente a reescrita de meu conto O porco, agora sob o título de A tarde dos porcos,
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transformado em livro único. O principal motivo que me levou a fazê-lo foi certa insatisfação com o conto que está no volume Vilarejo e outras histórias. Creio que agora posso dar-me por satisfeito. Convém alertar que não é falta de assunto. E que estou plenamente justificado – todos devem se lembrar de que Eça de Queiroz reescreveu o conto Civilização, transformando-o no romance A cidade e as serras. Então, por que não poderia eu fazê-lo também? Talvez eu deva adiantar que entre os meus projetos literários estão dois livros sobre o Amor e suas múltiplas formas. Um trata do amor adolescente e bebe em minhas memórias adolescentes. Já lhe dei um título provisório, algo como Em tempo de amoras. O outro trata do amor adulto e seus labirintos, bebendo em minhas memórias de sempre e em voláteis alucinações imaginativas. Mas, como você pode supor, não tenho pressa.
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Bibliografia do Autor
Aninhanha (1992)
Vilarejo e Outras Hist贸rias (1993)
Menino (2000)
A Pulga e o Jesu铆ta (2010)
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Maria Bernadette Cunha de Lyra, filha de Álvaro Lyra e de Maria das Dores Lyra, nasceu em Conceição da Barra, Espírito Santo, em 1938. Como escritora, debutou com o livro As Contas no Canto (contos), em 1981. Desde então lançou mais de 8 livros literários, entre contos, poesias e um romance – A Panelinha de Breu, em 1992 – que é uma paródia a partir da história de Maria Ortiz. É formada em Letras pela Ufes, com mestrado em Comunicação pela UFRJ, doutorado em Cinema pela USP e pós-doutorado na universidade Sorbonne, em Paris. Atualmente, é professora titular no Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi 18
Chรก das
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Bernadette Lyra 19
Bernadette, conte-nos um pouco de sua relação com a literatura. Apesar de eu ser professora de cinema e escritora, para que fique bem claro: a literatura é o sal da minha vida, a literatura é minha paixão, meu ofício. Eu, por acaso, tenho um doutorado em cinema e pós-doutorado na Sorbonne e, para defender o leite das crianças, tenho que trabalhar pra ter uma renda mensal fixa, sou professora de cinema. Há muitos anos dei aula na USP de cinema, depois fui dar aula no Paraná; na Unip; na Anhembi Morumbi, a primeira e única universidade internacional do país. Ela pegou aquela brecha de quando o governo permitia o capital estrangeiro nas universidades, ela foi vendida para uma grande rede, e lá eles tem mestrado em Comunicação e por ser forte em cinema e Audiovisual, eu fui a primeira coordenadora do mestrado lá, e passei a coordenação esse ano. O cinema está sempre no horizonte e não podemos deixar de admitir que o Cinema tenha permeado nos meus contos. O que eu quero dizer é que essa duplicidade não é em vão. Uma coisa se alimenta da outra. Mas para que fique bem claro, meu fazer é mesmo a literatura. Dentro da minha política de sair da frente porque atrás vem gente, eu acho que existem vários jovens escritores brilhantes que precisam ocupar um lugar. Então uma pessoa mais sedimentada, que já deu o que tinha que dar, mesmo que continue viva e ativa, tem que sair da frente. Enquanto eu estiver ocupando um determinado espaço, eu estou ocupando o lugar de outro. Então eu já estou saindo, mas quero acompanhar à distância pessoas que fazem
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parte do meu grupo de pesquisa, que são professores e produtores de Cinema, mas à margem, e cada vez mais praticar essa imersão na literatura, que começou na década de 70, numa época de censura na qual não havia espaço para se publicar. Eu tive uma época de fazer poemas. Nos tínhamos os famosos recitais da FAFI, e a gente fazia os recitais sentados no chão. E foi esse o espaço que a gente ocupou: de poesia falada, poesia dita. Quantas vezes a gente ia palco e nós tremíamos de medo dos censores. Lembro de um poema meu que tinha uma frase que era: “As papoulas vazias nos campos vermelhos”. O censor me chamou e falou que se eu falasse isso no palco, eu ia presa. Porque, de acordo com ele, papoulas vazias nos campos vermelhos seriam ópio na China. Comunismo. Isso era fazer literatura na época. Quando era época de concursos de literatura, eu comecei a mandar material sem muita esperança, já na década de 80, Francisco Aurélio disse que para o capixaba, é difícil romper com a armadura cultural dos outros estados que nos cercam - Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais - porque eles formam uma trinca poderosa e a gente quase submerge e não consegue publicar. Mas quando a gente começa a ganhar prêmios, as coisas vão melhorando. Foi com um prêmio da Academia Brasileira de Letras que eu conheci a Clarice Lispector. Conheci ela dentro de um elevador. Mulher magnifica, belíssima. Estava voltando de um congresso de bruxaria na Colômbia. Isso eu conto porque que teve impacto no que eu fazia. Foi como um insight, uma epifania, como ela dizia das coisas. Eu disse pra mim mesma: eu tenho que escrever.
Foi um período que sedimentou minha produção literária. Eu também fiquei mais conhecida, porque eu publicava crônicas no Jornal do Brasil. Esse foi meu comecinho de vida. Quando eu publiquei um livro de contos, As contas no canto (1981), eu tive a sorte extrema de ter um leitor finíssimo: um jornalista d’A Gazeta, um paraense chamado José Arthur Bogéa, que era professor de Comunicação da Ufes. Ele se apaixonou pelo livro e o estudou como ninguém. E toda uma geração se usou da produção dele. Anos depois, eu fui a França para um curso. Quando eu volto, vejo na tevê o Alexandre Garcia dizendo “há milhares de livros pornográficos nos porões do Ministério da educação”. Aí ele começa a dizer o nome dos livros e dos autores e eu estava na lista! E o livro (Aqui começa a dança, de 1985) era de uma inocência tremenda. Era a história de três mulheres: uma menina de 16 anos, sua mãe hippie e outra menina, que era a personagem principal. Esse livro me rendeu uma audiência tremenda. A Fernanda Montenegro, indignada, abriu uma lista de assinaturas contra a censura, listando os livros censurados. Isso me rendeu convites para falar sobre “literatura infanto-juvenil e pornografia”, “a pornografia no Brasil”, “aquilo é ou não pornografia?” E eu fui fazendo uma romaria por conta desse livro, até que ele esgotou.
“Quando eu volto, vejo na tevê o Alexandre Garcia dizendo “há milhares de livros pornográficos nos porões do Ministério da educação”. Aí ele começa a dizer o nome dos livros e dos autores e eu estava na lista!”
Com a pornografia como forma de protesto, a editora foi responsabilizada. Minha editora me falou “vamos tirar uma segunda edição do livro”. Eu aceitei e ela me diz para colocar uma faixa com algo do tipo “o Ministério da Educação adverte: esse livro é contrario à moral e aos bons costumes” ou algo desse tipo. Eu disse: Só
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tem uma coisa. se vamos fazer isso, vamos entrar num acordo mais legal, porque eu não sou mais uma amadora. Sou uma profissional. Então, meio a meio, né? Porque até então, eu não tinha lucrado. A partir do momento que pusesse aquela faixa, eu era responsável. Ela não quis e o livro se perdeu. Virou lenda. Pouca gente tem. Eu mesma não tenho. Existe registro: existem críticas em revistas e no Jornal do Brasil. Mas o livro mesmo desapareceu. Escrever é uma historia de vida. Eu não escrevo por diletantismo. É por profissão. Eu quero escrever porque sou escritora. São pequenas histórias que vão formando a minha história como escritora. A minha escritura foi mudando por esse percalço. Em 1997 eu lancei o Memórias das Ruinas de Creta, que teve um grande sucesso. É muito bem cuidado, todo ilustrado pela Nelma Guimarães. Ela deu um enorme brilho no livro. Ela entrou com uma precisão e uma beleza estraordinaria. Eu fiz esse livro depois que eu perdi o meu filho num acidente de carro na Av. Nossa Senhora dos Navegantes. Naquele lugar lindo, iluminado, o meu filho morre. Esse livro é um exorcismo da minha dor. As ruinas são eu. A ilha de Creta é Vitória. E é esse caminho que eu vou percorrendo pra escrever.
Eu acredito que a ficção, a história, a memória, a mitologia, a teologia que você exercita constantemente quando você escreve e você escreve para fazer isso: você tentar fixar alguma coisa que não pode ser fixada. Não quer dizer que haja algo nas entrelinhas. Está tudo nas linhas. Tudo aquilo é o corpo da literatura que passa. Eu já fiz essa relação da história com o meu trabalho na Panelinha de Breu (1993) que é um livro sobre Maria Ortiz, se passando então no séc. XVII. É muito interessante que o livro já reflete no que eu estou dizendo. Por que você vai a história? Por que você escreve? E para resgatar o passado? Não. É para viver o passado. A Panelinha, por exemplo, vai para o passado e vem ao presente com Maria Ortiz. A minha Maria Ortiz é um travesti. Porque é exatamente em cima dessa ideia de que nada pode ser recuperado, porque tudo é, que o livro se faz. E a mitologia dentro da História se perdeu um pouco. Na verdade, você não tem muito o que recuperar. Voce fala com a voz dos mortos quando você trabalha com o lado histórico. Mitologia é fascinante, né? Eu não acredito que a cultura ocidental seja tão suprema assim. Nao é só a mitologia ocidental grega. A mitologia africana é tão mais poderosamente armada que essa que nos
“O plágio é um comunismo de idéias.” 22
herdamos dos gregos. Mas nós pensamos como os gregos. Todo nosso modo de vida, nossa civilização são gregos. Há também uma presença nos meus contos uma cultura atravessada dos negros. Não é a toa que eu tenho como companheiro há 30 anos um negro, jogador de capoeira, filho de Ogum, que foi meu aluno na Ufes. Bom, né? Ainda hoje estamos juntos. Ele me incentivou muito na carreira acadêmica. No que você esta trabalhando? Meu último livro (O parque das felicidades, 2009) é uma coletânea bastante experimentalista, já que a medida que você vai lendo você nota cortes de lingüagem e apropriação da lingüagem e de memórias alheias - gosto de brincar com isso, que inclusive é um personagem meu que fala: o plágio é um comunismo de idéias. É aquilo que professores universitarios e acadêmicos chamam de um livro pós-moderno. O pós-moderno é uma retomada de tudo que já foi visto, mas sem julgamento. E esse livro é isso: uma retomada sem um julgamento que possa incidir sobre uma idéia de cópia ou plagio. Era um baú de coisas e eu o abri e catei o que me deu na telha. Mas o que eu queria falar é sobre A Capitoa. É sobre Luiza Grimaldi, viúva do segundo donatario da capitania do Espírito Santo, Vasco Fernandes Coutinho Filho, bastardo feito legitimo; e ela assume a capitania, e é a única mulher do Brasil a governar uma capitania. Ela governa 4 anos, e doa o morro todo para a construção do Convento da Penha, junto com a capela lá em cima. Também há registros da derrota que ela infringiu em Thomas Cavendish, e corsário cavaleiro da Rainha Elizabeth I. Ele vem arrasando tudo por onde passa
na Costa do Atlântico. Destrói a baia de Santos e resolve entrar na de Vitória com três navios. Ela ardilosamente manda estender uma corrente de ferro do Forte São João ao Penedo por baixo d’agua. Os navios poderosíssimos ficam presos alí e são derrotados. Thomas foge e morre em alto mar, envergonhado por ser derrotado por uma mulher. Exatamente por ela ser mulher, ela é caçada por Felipe II, já que mulher não tinha direito a mando. Então ela deixa a capitania e vai embora. E há apenas fragmentos de registros sobre ela. Há apenas um aroma dessa mulher. Como é publicar fora do estado? É muito legal. A circulação que eu tive de conhecer pessoas e publicar crônicas em jornais do país, até mesmo aparecer na tevê sendo chamada de pornografa, ter ganhado prêmios, ser traduzida na Holanda...tudo isso me deu uma ajuda. No Espirito Santo já tem muita gente publicada fora. O Reinaldo Santos Neves, por exemplo, tem uma literatura muito poderosa, não só brasileiro, mas em todo mundo. É uma literatura forjada naquele modo de ser dele. Para você ser escritor, não basta inspiração. Tem que ter transpiração e profissionalismo mesmo. Ninguém venha me dizer que caiu do céu um poema. É mentira! ...mas pode acontecer. Há sim uma cota de marca em você, um espelho. Você não é escritor por acaso. Mas ninguém nasce em Conceição da Barra por acaso. Ela me formou naquelas areias. A cidade é uma flor de areia. Não tem mais nada, só areia. Renato Pacheco disse que é uma ponta de areia, em um romance também chamado Ponta de Areia. O romance foi queimado em praça publica por falar essa verdade de que era uma
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cidade pequena. Eu estou no romance. Ele fala de uma menina de maiô vermelho pintando um coqueiro de roxo. Eu adorei. Enquanto todo mundo pintava o coqueiro verde, eu pintava de roxo. Isso pra mim é muito legal. Essas histórias são cenas ditas de uma plataforma de trabalho sério. Como sua carreira acadêmica influencia sua literatura? Como eu falei antes, eu já estou entregando o bastão para os que vem ai. Já vejo jovens brilhantes que aparecem. Já tenho uma vida toda, já tentei tudo que eu tinha pra tentar na academia. Mas essa chamazinha que é ser professora é como o fundinho da panela que fica ali, quentinho, e me ajuda. É legal trabalhar com gerações que não são mais a sua. Por quê? Talvez se eu não tivesse me formado em Letras na graduação, Comunicação no mestrado, Cinema no doutorado e no pós-doutorado, talvez eu tivesse ainda a posição de alguns escritores que fazem
poemas porque “amam a vida, amam não-sei-o-que”...para mim isso não cola. A convivência acadêmica traz uma disciplina de conviver com os jovens, conversar com eles, trocar experiências - já que numa aula, ninguém ensina, mas é uma troca constante de experiências. Sem falar que o curso de Letras na minha época era uma delicia. Eu tinha professores fantásticos, como Guilherme Santos Neves. Eu tenho bons colegas na academia no Brasil inteiro. Eu sou briguenta mas já estou numa fase de rir de toas essas briguinhas acadêmicas, pequenas vaidades, e ver que não é isso a academia, é esse exercício. E a Ufes é boa nisso. É uma grande universidade. E eu digo isto em alto e bom som para os meus colegas de trabalho: “quando eu me encher daqui eu vou para a Ufes”, já que agora aposentado pode dar aula. E como você lida com ter sua literatura chamada de pós-moderna?
Tormentos Ocasionais (1998)
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O Parque das Felicidades (2010)
Eu tive aulas com Jean-François Lyotard, criador do termo, e isso me marcou. Eu penso que pós-moderno aqui tem a ver com aquilo que eu falei de não haver nada nas entrelinhas, e estar tudo nas linhas. É essa falta de pudor de assumir tudo que já foi feito e refazer, sem homenagem e sem critica. É botar a mão, pegar e usar. Não vamos falar de intertextualidade, que já é uma palavra gasta. Vamos falar de uma figura de retórica. A paródia, por exemplo. Você pega um texto e o refaz como homenagem ou como sátira. Na pós-modernidade, essa escolha se faz sem a menor intenção de citar para homenagear ou zombar. Dos meus livros, eu digo que eles não trabalham com ironia. Eu penso que eles trabalham com o humor, porque eles não julgam. A ironia julga. Assim, a ironia é moderna. O humor é pós-moderno. Vamos pensar que eu vou pegar trechos de filmes do
Glauber Rocha para homenageá-lo. Eu estou sendo moderna. Mas digamos que eu vá fazer um filme usando tudo que foi feito pelo cinema novo sem nenhuma intenção de homenageá-lo, apenas porque está tudo alí. É pós-moderno. A tônica está na maneira isenta de retomar sem a necessidade de lembrar do outro. Simplesmente, está aqui e agora é meu. Já não é mais aquele tema polêmico daquela briga de “é uma ruptura da modernidade ou uma modernidade tardia?”. Essa briga já é até démodé. Mas quando a gente usa pós-moderno, é na falta de outro termo para explicar esse caos. É meio que um jogo, não? Sim, sim. Tanto no play quanto no game. O play é o jogo sem regras. O game é o jogo com regras. Mas em todos os dois, existe o non-sense. O play é essencial. É jogar por se jogar.
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E como você pôe isso na literatura? Tormentos Ocasionais (1998) é um jogo. É muito curioso. Uma vez chegou uma editora lésbica e disse que ela tinha que ter editado o livro. Eu tomei um susto, mas eu tinha feito um trato com a linguagem. O livro omite as marcas de gênero. Foi um trabalho terrível. Não tem a expressão “estou ansiosa”, mas tem “estou triste”. “Triste” é masculino ou feminino? A fala dela me fez ler o livro novamente, como leitora, e dizer “eu fiz um livro lésbico”! Ele é todo feito na ambigüidade do relacionamento. Ele permite que você o articule. É um jogo. Um lance de dados jamais vai abolir o acaso. E foi um trabalho artesanal. Você pode abrir o livro e procurar, linha por linha. não há uma marca de gênero. É parte do empenho profissional. Que livros essenciais você indicaria para jovens leitores e escritores? O básico. Alice no País das Maravilhas e Alice Através do Espelho e o Que Ela Encontrou Por Lá, de Lewis Carroll. Para mim, Alice é uma lição de escritura. Ele é tão bem feito...e é um jogo! Ele é estruturado por um jogo de xadrez. Ele é tão letal, tão inteligente e ao mesmo tempo tão poderoso em sua sensibilidade. Alice é para a vida toda. Quando eu estava na escola primária, aos 5 anos, eu aprendi a ler sozinha. Aprendi juntando pela lógica - eu sou muito lógica, muito racional - aquele suco de letras. Aprendi com Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. É ótimo para quem tem uma irmãzinha, uma sobrinhazinha. Minha neta de nove anos, a Vitória, já está lendo. Cais da minha vida sete vezes partida, aquela criança. Nasceu depois que meu filho morreu, então é uma espécie de
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curativo para as feridas do velho coração da Bernadette. Tem um escritor russo que todo mundo conhece por Lolita, o Vladimir Nabokov, que é meu ídolo. Ele tem um livro chamado Fogo Pálido. O livro é divino. É em torno de um poema falso e as anotações dele sobre o poema. E tem Cortázar. Eu tenho tudo de Cortázar. Até um livro rarissimo que eu comprei num sebo na França. Duvido quem tenha aquele. São ensaios dele sobre arte, pintura, pintores não clássicos, da época dele, do círculo de amizades dele. E Donald Barthelme, um contista americano da década de 80, pós-moderno, primorosamente racional, material. Cortado, não tem pé nem cabeça. São jogos, na verdade. É um escritor a quem eu devo muito. É um surrealismo urbano. Além de Clarice. Citada por 9 de 10 estudantes de letras, mas eu tenho que citar. • • •
Resenha Obra: Yú Autor: Gabriel Menotti Por: João Chagas
Ainda que organizado como poemas de 1999 a 2009, Yú (2010), de Gabriel Menotti, me pareceu um pequeno romance. Quase como um porre de vinho no fim da tarde que rende insônia e muitos sonhos à noite. Pequenos enredos não-formais que no fundo nos fazem perguntar se são só ao acaso organizados, ou se era Baco desde o começo brincando de mistério. Até no vocabulário. Desde o começo as palavras parecem jogadas, como se o esqueleto e o espírito do verso e do poema já estivessem planejados e então algumas palavras só caíram lá para dar volume. Um grande desafio nessa coletânea é encontrar o dia, o ambiente, as cenas presentes; quase que o momento certo para se ler – nem sempre é palpável curtir todo o peso dos poemas. Um dos traços que mais chamam atenção no livro é a quantidade de referências que traz, ou as palavras que estão lá como que inquirindo “como assim você não sabe o que eu significo?”, desde termos tirados da química, patologias, mitologias e afins, até estrangeirismos que muitas vezes nem destoam de todo o português. Segundo a entrevista do autor publicada na Graciano anterior, Yú é o término de um ciclo temático iniciado no livro anterior Ensaios para Taxidermia (1999) e por si só já é uma coleção estranha que foi reorganizada para ocultar a progressão da sua escrita ao longo desses dez anos.
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valise Aqui
Letícia Comério
Canção de ninar Gian Luca
Dia desses Leandro Reis
Moça dos olhos Brunella Brunello
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Nebulosa
Lívia Corbellari
Preocupação formal João Chagas
Rivotril
Sidney Spacini
Vende-se
Lucas Pinhel
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Aqui
Letícia Comério Acordou. Abriu os olhos. Viu que tudo ainda estava fora do lugar. A porta ainda estava entreaberta, o copo quebrado perto da mesa e a chave no chão. A porta pela qual ela havia passado correndo, o copo que esbarrou e a chave que jogou com força sem direção. Tudo ainda estava em seu lugar. A xícara de café vazia como o de costume, continuava no criado mudo olhando pra ele. A janela aberta deixava a água da chuva entrar, molhando o quarto, e o ventilador rodava devagar. Os livros jogados, o quadro torto, ele no chão com o tapete sujo. Tudo sempre esteve fora do lugar. Parado, ainda com os olhos abertos. Parado, como sempre esteve. Olhou para a porta, percebeu que ela não ia voltar, afinal, não tinha por que voltar. Olhou para o teto. Olhou para a parede. Voltou a dormir,
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Canção de ninar Gian Luca
Mamãe, mamãe Eu nasci com cheiro de hospital E você amou Eu nasci quando você tinha 18 anos E você amou A sua vida estava completa Você amou tanto que pensou que não poderia aguentar
Você passou noites se perguntando Onde estariam meus amigos Onde estaria a minha mulher pequena Nem a lua te aquecia (você já viu a lua, mamãe?) O sol te deixava doente Você sabia que eu tinha matado meu futuro aos 12
Qualquer possibilidade de erro Estava completamente fora de questão Eu era recheado de azul, de nuvens, de silêncio Parecia até que eu tinha o dom da vida Talvez eu tivesse o dom da vida
Mamãe, mamãe boa Como você suportou todos esses anos? Ser seu filho foi o suficiente? Você poderia ter me asfixiado Mas você não é grande o bastante Feitos grandes não cabem no seu grande coração
O dom do sucesso e o dom do sucesso Você me imaginou grande Seu filho brilhoso como peixe Seu filho grande como Hamlet Você nunca leu Hamlet, mamãe E você não está perdendo nada
Nossos olhos às vezes se esbarram Como freiras assustadas Algumas partes dos nossos cérebros ainda tentam entender O que há entre nós Mas não há mais nada entre nós
Você me viu com maleta preta, sapatos pretos Um carro grande e uma casa com piscina (como você ama piscinas!) Um ir e vir calculado como esquinas Uma mulher pequena iria me roubar de você Mas você estaria feliz Porque mulheres pequenas dão filhos quadrados Como os vidros de seus perfumes
Agora você me vê diminuindo como uma anoréxica E a sua cicatriz não valeu à pena Cicatrizes nunca são boas o suficiente
Quando eu tinha 12 você viu algo que te apavorou Até hoje você não admite Mas eu te apavorei Foi pior do que aqueles bebês-ratos que você viu na cozinha E algo aconteceu entre nós Uma fissura terrível nos nossos corações Os nossos corações nunca mais se encontrariam
Você pode se agarrar naquelas fotos do convento E ficar velhinha junto a elas E até sorrir mais vezes Você ainda tem chance, mamãe
Não existe mulher pequena, mamãe Nunca irá existir Nunca irão existir filhos quadrados Eu provavelmente não teria tempo
Foi apenas um sonho, mamãe Seu filho, seu filho Nunca existiu.
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Dia desses
Leandro Reis Eram dois, embora não soubessem. André e Andréia amaram-se rapidamente. E como todo casal apaixonado, não sabiam que poderiam viver separados. Houve quebra de jarras, rasgo nas cortinas, choro no quarto. O motivo é daqueles antigos, família não gosta, você vai matar seu pai de desgosto, muito criança pra escolher, sua irmã ainda não casou. O que se sabe é que André tinha combinado com Andréia de fugirem, coisa de adolescente, me espera lá naquele jardim que a gente sempre se encontra, leva tudo e a gente se manda. Mandou uma carta com o horário por aquela amiga que sempre ajuda os casais de amor impossível: quatro da tarde, nem antes, nem depois. Ele foi, ela não. Como é que vamos sobreviver, isso é loucura, meu pai vai atrás da gente e te mata, não posso, desculpa, eu te amo. Andréia casou, teve quatro filhos. Gostava do marido, ele era uma boa pessoa, gentil, atencioso. Viveram mais de trinta anos juntos, até ele adoecer e morrer. Andréia recebeu convite de todos os filhos, mas decidiu morar sozinha, não quero atrapalhar vocês, tenho a Mara comigo, empregada de anos, vou ficar bem. Passou um tempo desse jeito, poucas semanas. Fazia coisas de senhoras, caminhava na praia, assistia novela, ia à hidroginástica cedinho, dormia vendo filme e depois reclamava que não conseguia dormir à noite, implicava com as apresentadoras da tevê, do jornal, do Mais Você. Um dia desses recebeu aquela carta: quatro da tarde, nem antes, nem depois.
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Moça dos olhos
Brunella Brunello Era assim a moça dos olhos: tinha cabelos longos, um vestido bonito, uma sandália que não sei explicar. Ela deve, bem que deve gostar de praia, e agora está com muito calor. Vi a moça, pela primeira vez, no ônibus. Ela entrou e eu já estava lá, de frente para ela. Nós em pé, segurando na mesma barra, perto da porta. O dia era de sol e acho que nem eu, nem ela, queríamos pegar aquele ônibus, nem ônibus nenhum.
As pernas, fugindo de dentro daqueles vestidos, frescos, coloridos, no comprimento exato para ficar curto, mas ficar bem. Os vestidos curtos, por onde o vento passava, sem nem mexer.
Os olhos? Não sei se eram os dela, ou se eram os meus. Sei que fui olhando e olhando aquilo tudo. Só não perdia o ponto porque a viagem da moça terminava antes da minha. Na primeira vez, desci, atônito, e fui fazer o que era de fazer. Na volta, no mesmo lugar que ela desceu, ela subiu. E lá estava ela, outra vez, na minha frente. Me percebeu e sorriu. Eu sorri também. Mas não sei se sorri do jeito certo, porque foi meio assim, de surpresa, meio atrapalhado. Mas sorri. Quis falar, mas coragem me faltou. A ela não. Era simpática, faladeira. Dava bom dia, oi, tchau, boa tarde. Eu respondia e ela sorria. Ou ria. De mim, ou comigo. Não sei. Era dona da situação. Os encontros ficaram frequentes e eu sempre quis perguntar, mas nunca consegui. As palavras paravam dentro da minha boca, ou a minha boca prendia as palavras. Não sei. Alguns dias ela estava impecável. Outros dias eu ficava olhando, entre tanta gente, ela em outro canto, sem nem saber que eu estava ali. Às vezes nem sempre tão arrumada. A unha ficava sem esmalte, uns pelos lhe cresciam nas pernas, sempre soltas. Mas não por muito tempo. Logo se arrumava toda e voltava, no outro dia, cheia de beleza.
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Nebulosa
Lívia Corbellari eu não aguento mais cortar os pés com cacos de estrelas de vidro espalhados pelo chão
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Preocupação formal João Chagas
Freio. Sobe a placa e nada passa depois da carreta dele. O nome é caminhão. Já estava acostumado agora, mas no começo, aquele barulho da ré enquanto estacionava era assustador. Oito anos de boléia. Cadeado na corrente e chave na porta da casa. Porta pequena, casa pequena, moda de viola no rãdio ligado sozinho na sala ligeiramente grande, grande porque vazia. No quarto, trançava o cabelo sobre a cama cheia de papéis. Os dois conversavam como sempre conversariam. Palavras pequenas e saudosas. Frases compridas e com pouco fôlego como sempre tinha que ser entre eles. Cabelos prontos, beijo na testa e os passos curtos até a cozinha. A cozinha... bem, limites imaginados num dos cantos da sala grande, perto da parede onde havia a pia e uma bancada de pedra. Direto da geladeira para o fogão, a panela quase estalou enquanto o caldo grosso e marrom virava um monte de cheiro de sopa.
Muitas vezes, às vezes mais do que muitas, os assuntos terminavam com os garfos de lado, observando os copos com conhaque se esvaziarem. Não estavam em méritos de estarem ébrios ou serem boêmios ou vãos, mas há sofisticação ou Domeq até em salas amplas. O costume está no gosto. Mas agora os vapores começam a subir, o trabalho negociou todo um sistema de cansaço sobre os dois. Deitaram-se sem combinar. Clareando o dia, ele abriria o cadeado e voltaria pro Frete, esperando voltar pra casa no mesmo dia. E ela também sairia, trabalha fora, esperando um dia qualquer cair na estrada. Sem precisar voltar para a sala grande e meio vazia. Mas agora ainda é noite, e à noite não faz barulho. Ela foi se ninando aos poucos no ronco leve dele, e foi acordar logo mais quando ele tirava o braço sob sua cabeça e ia pegar-se no seu beijo de hortelã no banheiro.
Não é sempre assim. Algumas vezes falavam coisas grandes e complicadas. Frases menores, mais fôlego. Como falavam sobre o tempo - e não se enganem, tempo aqui quer dizer horário - era cruel para a intimidade deles. Normalmente, essas palavras grandes vinham com frango frito, as coxinhas da asa. Aquilo suja muito as mãos, dava trabalho pra caramba. E dava pra ver as manchas de óleo dos lados das coxas das calças dele secando no varal. Mas doía cada vez mais quando reparavam que as manchas ficavam mais fortes e mais escuras. E nesse instante, o diploma de dona de casa se valia na logística do picadinho de carne - músculo na panela, feijão com pimenta, calor na goela, suor na testa e voltam as palas pequenas. Eles sorriam sabendo que não precisavam ser mais complicados do que aquilo.
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Rivotril
Sidney Spacini Dois comprimidos redondos, redondos pra eu dormir feito um neném doente de refluxo me remexendo, contorcendo, mas enfim dormindo o sono dos injustos no reino da alegria. Quase cinco da manhã eu entreguei os pontos e fui até a prateleira das delícias tarja-preta encontrar qualquer coisa que me desse uma pancada tão forte, mas tão forte, que eu esquecesse a maldita dor auto-imposta e fosse dormir. Vide bula. Alucinações, tonteira, redução dos batimentos cardíacos Parar o coração. Meti dois na boca de uma vez, joguei o último gole da última lata da última cerveja que havia em todo o universo do meu apartamento vazio mal iluminado. Amassei a lata contra a parede, quase um murro, me joguei na cama. Caixas de som cuspiam tango. Tudo pra mim era tango. Tomem conta de mim Agentes secretos intra-venosos. Supram-me de tudo que eu posso desejar: Paz Minha cama me dá nojo. É uma massa de sentimentos, palavras e gestos indeléveis ali feito almas penadas me assombrando. Talvez devesse mudar de cama. De apartamento. De corpo.
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A cabeça pulsa como se cansado de tudo entrego os pontos, e os prantos me errem que eu quero dormir.
Vende-se
Lucas Pinhel - Telhado de ozônio furado - Piscina de água salgada - Banheira de água doce - Piso de concreto surrado - Cozinha industrial completa - Duas guerras na garagem - Dois quartos, de floresta - Área de serviço superfaturada - Sala de mal-estar - 7 bilhões de (in)cômodos Contactar o proprietário.
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fotografia + poesia
Thalita Covre www.flickr.com/photos/thalita_covre/
descamando a leveza de nossa epiderme 38
a leveza nĂŁo estĂĄ no ar 39
poluído pesa em cores avermelhadas, em pó dilui-se em nuvens incompreensíveis micro-partículas de pesos em suspensão por cima da cidade, dos muros edifícios e pessoas cinzas. 40
ve e l a
ão n za
n á t es
ão n o
r a t es
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a ausĂŞncia pesa o corpo no corpo preenchido por mil grĂŁos de vontades desejos e retornos a pele, sem pele, pesa tanto que o peso torna-se nuvens armadas e o teto da cidade fica prestes a desaguar.
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leveza parece estar t達o longe... al辿m de qualquer toque de qualquer m達o que n達o seja a sua. 43
a leveza a insustentåvel leveza aparece delicadamente na dança que nossos corpos fazem sem pretensão
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num palco forrado por len莽贸is de malha. 45
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a C
a s
a d
o T
a m
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Para o caso de um dia termos sido
Rodrigo de Oliveira
Foi só muito tempo depois que descobri que era ele. Quando surgiu na minha frente – e é verdade que estava de costas, mas essas são coisas que a memória revira e o destino nunca se ressente de nos apresentar assim, às avessas – quando surgiu na minha frente e o que podia ver era apenas sua nuca, o cabelo mal raspado e aquele resto de pelo que escapa na direção das costas, ali não me pareceu tão decisivo, e certamente não o reconheci. Até que se virou, lançou o copo em minha direção como se me soubesse e me atravessasse, mas nem isso podia ser bem um sinal, posto que não fazia mais que responder ao grito não endereçado que eu mesmo dera logo há pouco: era eu, uma cerveja na mão, um “você aceita?” na boca, e agora o braço estendido, mas nem os sorrisos de cumprimento mais-que-suficiente para o contato primeiro entre dois estranhos, nem o olhar trocado e alguma piada estendida a qualquer um que ali estivesse (os outros garotos e garotas cujos copos eu agora também enchia), nem assim ainda éramos. Não mais que copos e um pouco de graça.
ponta dos dentes a consequência e o sentido dos discursos que agora proferíamos como ciência exata, e nem os dentes conseguiam impedir os leves soluços, o bafo quente da cerveja, a cara vermelha, os dedos amarelados pelo cigarro (filávamos o cigarro um do outro agora, mas nem assim, nem trocando cinzas eu ainda pudera perceber). Deve ter sido numa vez seguinte, na próxima garrafa que eu fazia sempre questão de abrir e servir – mantinha o abridor no bolso –, talvez tenha sido ali que abandonamos a faculdade, o vestibular, as rotinas, o passado daquele grupo e as maneiras como cada um de nós havia chegado ali naquela casa e naquela festa, e na cerveja seguinte a implacabilidade nos atingira. Mas era cedo para desmaiar e, por orgulho ou necessidade de sobrevivência, nos sentamos. Até a próxima cerveja, já nem existiam copos, só a graça.
Era ele, era Eduardo e eu já não entendia porque todos o chamavam por outro nome (que, suponho, fosse seu “verdadeiro”). Na soleira de uma porta, pernas Aos garotos e garotas o álcool ia servindo de maneira coladas, olhos imóveis, atados entre si de maneira mais implacável e, se ficamos por ltimo, os últimos de que já nem nos obedeciam, ele me falava de si – sem pé naquele cenário de gente caída e mal articulada, saber, talvez, que as palavras eram minhas, mas se também não foi ali que pude descobri-lo. Tomou-me esforçando bastante para perder o enunciado teao tempo que podia falando de amenidades, cada um tral, falava com tanta naturalidade que me fez rever mantendo à fórceps os gestos contidos que, secreta- minhas próprias críticas ao tom declamatório que, mente, imploravam por se precipitar, segurando na por vezes, percebia nos meus diálogos. Eu apenas
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o observava, e não posso dizer que não me divertia com tamanho mergulho no abismo daquilo que antes eram apenas folhas de papel num calhamaço que eu agora me perguntava se talvez não estivesse protegido o bastante, ou e que maneira aquele estranho tivera acesso a ele? Entrei em seu pequeno exercício de simulação, e participava das histórias como se lá estivesse, na época e no lugar, atento a seus pequenos movimentos e seus grandes trejeitos (aquilo, talvez, eu devesse corrigir numa versão futura, me pareciam trejeitos demais). Estávamos juntos, no gramado da universidade, nas pedras que davam para o mar, na fuga desembestada para uma cidade qualquer – éramos ali, ele por dever e eu por pilhéria, dois fugitivos eventuais pegando carona para o interior, nos desviando de um amor mal traçado. Dividimos reuniões dos alcoólicos anônimos, e já não me lembro do que nos escondíamos, mas lá ele se apresentava e era aplaudido pela platéia (por “todos nós”), lá ele dizia seu nome, mas já não me lembrava daquele verdadeiro, só ouvia “Meu nome é Eduardo”, e via sua boca mexer e cuspir Eduardo na minha cara, seus braços se contorcerem e me entregarem Eduardo no colo, seu copo balançar no ar e me entornar Eduardo no peito.
lhe atribuía, mas agora já conquistado pelo cabelo mal raspado eu responderia: “mas este é um menino de 19 anos que sairá daqui e pegará o primeiro ônibus que aparecer, oras!”, algo que a revisora talvez nunca entendesse – eu mesmo não entendia). E eu já era capaz de defendê-lo em rigorosamente tudo, da voz embriagada como que por decreto até mesmo àquele excesso de trejeitos, agora apenas uma peculiaridade apaixonante, e quase perguntei onde tinha conseguido aquela cicatriz,uma vez que meu livro durava apenas alguns poucos dias e nesse intervalo eu não o submetera a qualquer acidente ou briga de facas, o que me fazia pensar que a cicatriz só podia ser parte do lastro que os atores precisam dar a seus personagens para fazê-los assim mais verdadeiros, um evento na infância que já não competia a mim, mas tão somente a ele, o Eduardo de nome falso na vida real, um moleque encrenqueiro dez anos antes, talvez.
Mas isso durou só até o momento em que os copos já estavam abandonados no chão e, com as mãos livres, nos tocamos pela primeira vez. Ele agora falava da família, e me parecia exagerar na necessidade de passado, mas antes que eu pudesse interrompê-lo e pedir que pulasse logo para o capítulo 14, aquele Foi na soleira daquela porta, com os garotos e ga- com o qual eu tinha mais ressalvas e que precisarotas perdidos para dentro da casa e o dia amanhe- va aproveitar a chance para confirmar a potência cendo, com a cerveja no final e nenhum cigarro mais através de sua encenação, e antes que eu pudesse a filar, foi ali que descobri que era ele, o protagonista interrompê- lo, segurou-me pelo braço e depois fez do livro que eu escrevia em segredo e que acumu- correr a mão até meu rosto, como quem precisa se lava folhas na minha escrivaninha sem nunca saber escorar em alguém para não se espalhar pelo ar e exatamente se um dia veriam a luz daquele mesmo sumir, e assim começou a chorar. Lembrei dos pridia que amanhecia. Foi ali que descobri que os olhos meiros esboços do livro, da escaleta em que definia que eu inventara eram na verdade castanhos (agora muito claramente que essa era uma prerrogativa do já não me lembro se fui assim tão específico na des- outro, seu parceiro no romance, nunca dele. Mas crição, mas sempre os imaginei pretos). Ali Eduardo Eduardo chorava na minha frente e apertava meu ganhou uma altura, um peso, uma cicatriz na dobra rosto como se exigisse o direito de fazê-lo – e por do cotovelo esquerdo, aqueles cabelos que certa- esse direito estivesse disposto até mesmo a me atrimente precisariam ser mais bem cortados uma vez buir cicatriz igual a sua. Nem pretos nem castanhos, que o livro chegasse às mãos de algum editor (sua seus olhos tinham um jeito amendoado com um pé revisora talvez reclamasse do aspecto infantil que no verde e na cor revelada pelas lágrimas pequenas
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e muito precisas (que bom ator ele era!), ou talvez pela luz que agora incidia sobre seu rosto (que mau observador eu era), ali ele foi se descolando do menino que eu escrevera, com uma violência que me irritava ao ponto do encanto. Suas adições ao meu enredo eram dissonantes, se não inverossímeis. Era preciso parar com aquilo, retomar fios e meadas, e não havia como chamar sua atenção se não oferecendo um pequeno sermão sobre a santidade do ato criador. Balbuciei seu nome, pela primeira vez em toda noite, muito gentil e cuidadoso para não me fazer equivoado, balbuciei seu nome e ele finalmente parou. Eduardo sorriu, e ainda com as mãos no meu rosto, segurou meu queixo como quem ensina uma criança a falar: “André, seu bobo”. Beijamo-nos. Corremos até um quarto desocupado, que não havia, e entramos banheiro adentro, sem palavras, só cabelos mal cortados, cicatrizes, braços estendidos, cuspidos e entornados um no outro. Meu protagonista tinha gosto e já não era meu, nem protagonista. André se despediu com um abraço longo, eu fui procurar as chaves do carro. Não nos vimos mais Eu voltava para casa, sol totalmente descoberto, música alta e o amargo de Eduardo na boca. inutos depois, já na rua, longe da festa e da casa da festa, vi um ônibus indo para algum lugar distante. André apareceu pelo vidro, estava fugindo, finalmente. E eu voltava para casa, para queimar uma pilha de papéis na escrivaninha.
Rodrigo de Oliveira é crítico de cinema, roteirista e cineasta. Formado em Cinema pela UFF, é redator da Revista Cinética. Em 2008 publicou o volume Serras da Desordem, sobre o filme homônimo de AndreaTonacci (org. Daniel Caetano/ ed. Azougue) e em 2010 organizou o livro Diário de Sintra – Ensaios em torno do filme de Paula Gaitán, (ed. Confraria do Vento). É roteirista dos longas-metragens Sobre a Neblina, de Paula Gaitán e Terraço, de Gustavo Beck, e em 2011 lança seu primeiro longa-metragem de ficção, As Horas Vulgares, que adaptou do romance Reino dos Medas, de Reinaldo Santos Neves, e co-dirigiu com Vitor Graize.
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CORTÁZAR