Revista ID | Nº2 - Maio 2012

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2 | MAIO ’ 12

VIOLÊNCIA(S)


CAPA

INDEX 05 ’ EDITORIAL MANUEL DAMAS 07 ’ NA CASA ... 13 ’ OLHARES CARLOS MATOS “A VIOLÊNCIA DE UM OLHAR”

SÍLVIA ALVES “MATEI A FÁTIMA E VOU À POLÍCIA ENTREGAR-ME”

14 ’ AS LETRAS COOLTURALMENTE ARRANJADAS PARA SAIR SUSANA SOARES RIBEIRO “O SEGREDO”

FOTOGRAFIA ’ DIOGO VIEIRA DA SILVA FOTOCOMPOSIÇÃO ’ JOÃO MATOS MODELO ’ FÁBIO MESQUITA

20 ’ POETISANDO SÍLVIA ALVES “VOLTAS NA PONTA DE UM NOVELO”, “CARDIOGRAFIA” & “4:26 AM”

22 ’ POLÍTICA NACIONAL I FOGO CRUZADO LUÍSA SALGUEIRO “VIOLÊNCIA DOMÉSTICA”

ID ’ DIRECÇÃO MANUEL DAMAS

VERA RODRIGUES “O SILÊNCIO DOS INOCENTES”

24 ’ POLÍTICA INTERNACIONAL FAUSTO PINTO DE MATOS “TRISTEMENTE INCONTESTADO”

COLABORADORES ANTÓNIO SILVA, BERNARDO FERREIRA, CARLOS MATOS, DIOGO CALDAS FIGUEIRA, DIOGO VIEIRA DA SILVA, ELOY MONTEIRO, EUGÉNIO GIESTA, FAUSTO PINTO DE MATOS, FILIPE MOREIRA DA SILVA, FRANCIS KINDER, GILBERTO SILVA, HÉLDER PINTO BESSA, JOÃO MATOS, MANUEL DAMAS, MARÍLIA LOPES, NICOLAS MARTINS, RICARDO PEREIRA LEITE, SÍLVIA ALVES, SUSANA SOARES RIBEIRO, TERESA VERDIER,TIAGO JONAS

27 ’ ECONOMIA I CETERIS PARIBUS DIOGO VIEIRA DA SILVA

CONVIDADOS LUÍSA SALGUEIRO, VERA RODRIGUES

30 ’ SEXUALIDADES I SEXUALIDADES, AFECTOS & MÁSCARAS MANUEL DAMAS

REVISÃO DE TEXTOS MANUEL DAMAS DIRECÇÃO DE ARTE & DESIGN GRÁFICO JOÃO MATOS

32 ’ REDES SOCIAIS GILBERTO SILVA

CONTACTE-NOS ’ facebook.com/revistaID ’ id.identidade.revista@gmail.com

33 ’ ACTIVISMO BERNARDO FERREIRA

A ID ’ é uma revista mensal publicada pelo Centro Avançado de Sexualidades e Afectos ®

“VIOLÊNCIA DOS NÚMEROS”

28 ’ DIREITO HÉLDER PINTO BESSA “NOVOS CAMINHOS”

DIOGO CALDAS FIGUEIRA “SCHOOL BULLYING: CRIMINALIZAÇÃO?”

“UMA NOVA MÁSCARA”

“TRÊS TRISTES TEMÁTICAS”

34 ’ OPINIÃO RICARDO PEREIRA LEITE “O ABORTO PORNOGRÁFICO, TAMBÉM CONHECIDO POR ACORDO ORTOGRÁFICO DE 1990”

36 ’ HISTÓRIA I POEIRAS & ERAS EUGÉNIO GIESTA “A INQUISIÇÃO”

Rua Santa Catarina, 1538, 4000-448 Porto 918 444 828 www.ass-casa.com geral@ass-casa.com facebook/AssociacaoCASA

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38 ’ IDENTIDADES 47 ’ DESPORTO ANTÓNIO SILVA “CORPO EM MOVIMENTO”

49 ’ CINEMA & TEATRO ELOY MONTEIRO “A VIOLÊNCIA DA PIPOCA"

50 ’ LAZER I LIVROS NICOLAS MARTINS “EU DIGO NÃO AO NÃO"

51 ’ LAZER I MÚSICA TIAGO JONAS

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“MERECIDA HOMENAGEM”

55 ’ DESIGN I DESÍGNIOS DO DESIGN JOÃO MATOS “DESIGN & A ARTE”

56 ’ MODA SÍLVIA ALVES “MODA, UMA PEQUENA DITADURA”

64 ’ ECOS DO MUNDO FRANCIS KINDER “BRASIL: UM PAÍS DE DESIGUALDADES E VIOLÊNCIAS”

FILIPE MOREIRA DA SILVA “VIOLÊNCIA SOCIAL, UM TIRO NUM PÉ”

MARÍLIA LOPES “ANTI-VIOLÊNCIA (YES WE CAN)”

70 ’ FRASES COM’TEXTO 72 ’ DESCØNSTRUIR 74 ’ FARPAS BARÃO DE LA PALISSE 56

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ARTISTA EM DESTAQUE

TERESA VERDIER

Nasceu em 1979 (Lisboa, Portugal). A sua formação artística passou pela Escola Secundária Artística António Arroio e pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Profissionalmente interessa-se por fazer chegar a arte, enquanto actividade humana criativa e construtiva da identidade de cada um na relação com os outros, a vários públicos, fundamentalmente àqueles de quem esta possa estar mais distante (população sem abrigo e com problemáticas relacionadas com a toxicodependência, crianças e jovens de bairros desfavorecidos) com os quais tem desenvolvido diversas oficinas artísticas. O desenho surge paralelamente como forma de reflexão e diálogo interno, integrando um conjunto de trabalhos a que chama atómico (http://o-atomico.blogspot.pt/), sendo os desenhos aqui partilhados parte da série “no jardim...” iniciada em 2011 e que se encontra em desenvolvimento.

NO JARDIM

6 Aguarela s/ papel, 25 x 42 cm, 2011

54 Aguarela s/ papel, 25 x 42 cm, 2012

19 Aguarela s/ papel, 25 x 42 cm, 2011

26 Aguarela s/ papel, 25 x 42 cm, 2012

48 Aguarela s/ papel, 25 x 42 cm, 2011

30 Aguarela s/ papel, 25 x 42 cm, 2011

46 Aguarela s/ papel, 25 x 42 cm, 2011

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EDITORIAL ’ MANUEL DAMAS

O primeiro Editorial da Revista ID’ efectuou a apresentação da revista mensal da CASA – Centro Avançado de Sexualidades e Afectos, numa Carta de Intenções, descritiva, do que seria o projecto ID’, acrónimo de Identidade. Nele anunciei que a ID’ seria uma revista que cumpriria o binómio Informação/Formação, onde seriam abordados os mais diversos temas, estando sempre presentes as questões da Identidade de Género e a desconstrução, implícita, de todos os preconceitos, estereótipos, desigualdades e discriminações que são, de sempre, territórios de trabalho da CASA. Enunciei todas as secções da Revista ID’, nomeadamente a Política, Nacional e Internacional, a Moda, o Desporto, mas também a Literatura, nas vertentes da Prosa e da Poesia, quer em termos de Criação, quer em termos de Crítica, a Música, as Sexualidades e ainda o Direito, a Economia, o Cinema/Teatro, entre outras vertentes. Informei, inclusive, que a ID’ teria correspondentes no Brasil, em Espanha e no Japão, os quais constituiriam os Ecos de Portugal no Mundo e que fariam a abordagem loco regional das diversas multiculturalidades. Resumi o Projeto ID’ como um espaço de intervenção e diálogo multifactorial, estudado e reflectido, pedagógico, de qualidade. Mas que respeitaria, também e obrigatoriamente, a vertente visual, apresentando uma imagem gráfica própria, estudada e cuidada, fruto do estudo de profissionais especializados. Assumi, ainda, que a ID’ repudiaria o miserabilismo, o facilitismo, a falta de profissionalismo e o descuido leviano sem, todavia, cair no pretensiosismo. Esclareci que a ID’ nortear-se-ia, sempre, pelo princípio de que o que merece ser feito, merece ser bem feito. Afirmei que a ID’ iria ser um projecto moderno, arejado, cuidado, pensado, reflectido, inovador, pedagógico, consistente e de continuidade.

Desta forma, ficaram traçadas as principais linhas orientadoras e os compromissos aqui foram plasmados, sem tergiversações. A partir desse momento os dados foram lançados e a ID’ teve a sua estreia. Após o lançamento, propositadamente efectuado aos primeiros minutos do dia 25 de Abril, como homenagem à Liberdade, todas as expectativas ficaram em aberto, principalmente em termos de receptividade do Mercado. Vinte e quatro horas após o lançamento começaram a chegar os dados estatísticos oficiais da Revista ID’, fornecidos pelo “site issuu”, que se revelaram assustadores… acima de tudo porque tínhamos ultrapassado todas as expectativas, mesmo as mais otimistas o que aumentava, exponencialmente, os índices de responsabilidade e de exigência gerados … 17.107 views, nas primeiras vinte e quatro horas foram um prémio saboroso mas muito responsabilizador! A partir desse momento a Revista ID’ deixou de ser um sonho e passou a ser uma realidade, lida nos quatro cantos desta aldeia global a que um dia chamámos Mundo, sendo consultada, para além dos Países expectáveis, como o Brasil, a Espanha e o Japão, em destinos tão díspares como os Estados Unidos, a África do Sul, a Áustria, a Argentina, a Alemanha, a Itália, a Bulgária, a República Checa e Omã, apenas para salientar os que apresentam os dados estatísticos mais elevados. Um mês após o lançamento da Revista ID’, com 196.126 views, 36.687 readers, lida em 23 países e sendo a 8ª revista mais lida entre as de língua oficial portuguesa e a 2ª mais lida das produzidas em Portugal, a ID’ assume, agora com tranquilidade, que a sua proposta ultrapassou, largamente, todas as expectativas mas também que, em consequência, a exigência aumentou muito.

Hoje a ID’ existe porque todos os seus colaboradores, mais de duas dezenas de pessoas, para isso contribuíram mas, também, porque a Sociedade assim o quis, com a enorme receptividade que demonstrou. Um mês depois aqui estamos, a apresentar o n.º 2 da Revista ID’, com a noção do dever cumprido mas, acima de tudo, com a acrescida responsabilidade de conseguir melhorar cada vez mais, tentando satisfazer todas as expectativas criadas relativamente ao Projecto ID’. Também por isso aumentámos os colaboradores e as rubricas. Para este segundo número a Revista ID’ escolheu como tema a(s) “Violência(s)”, nas mais diversas vertentes, contextos, cenários, idiossincrasias e realidades. Se necessário fosse justificar a escolha do tema “Violência(s)”, bastaria recordar os mais recentes dados revelados pelo Gabinete de Luta contra o Crime, das Nações Unidas, segundo os quais 2.4 milhões de pessoas, em todo o Globo, são vítimas de tráfico humano e 80% delas são exploradas como escravos sexuais, representando um lucro anual de 32 biliões de dólares. Chamo à colação, no que a este assunto concerne, as declarações da actriz Mira Sorvino, Embaixatriz das Nações Unidas contra o Tráfico Humano, segundo a qual “Os grupos transnacionais de crime organizado adicionaram os seres humanos à sua lista de produtos de contrabando”. É para esta viagem lúcida, frontal e pedagógica, que te convidamos. ID’ENTIFICA-TE …

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NA CASA ...

LANÇAMENTO DO N.º1 DA ID ’ A MODA

O lançamento da Revista ID’ Identidade foi um momento de enorme emoção, na CASA, pelo esforço que implicou mas também e acima de tudo, pelo caloroso apoio que recebeu.

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Enquanto revista oficial da CASA, de periodicidade mensal e de cariz informativo/formativo, nunca esquecendo a sua índole pedagógica e de abordagem dos grandes temas da Sociedade, a ID’ representa um desafio constante no sentido de conseguir ultrapassar, cada vez mais, as expectativas e cumprindo, sempre, o princípio major da CASA - a Universalidade do Direito à Felicidade.

Últimas estatísticas referentes à ID’ nº1

A 8ª revista mais lida entre as de língua oficial portuguesa e a 2ª mais lida das produzidas em Portugal

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NA CASA

A CASA está estruturada em Departamentos entre os quais se podem elencar aqueles que, pelo seu tipo de trabalho, adquirem maior visibilidade: O DEPARTAMENTO CULTURAL de cujo plano de actividades fazem parte:

CICLO DE “POESIA NA CASA”

CICLO DE “DEBATES NA CASA”

O Ciclo de Poesia na CASA está em vigor desde Janeiro de 2011 com periodicidade semanal. Mensalmente, é escolhido um poeta ou poetisa portugueses e semanalmente, à quarta feira à noite, são declamados poemas da autoria do poeta escolhido, na Sala de Leitura da CASA. Pretende-se, desta forma, cultivar e incentivar hábitos de leitura e relembrar autores que o tempo fez esquecer. Já fizeram parte do Ciclo de Poesia na CASA nomes como Sofia de Mello Breyner, Almada Negreiros, Eugénio de Andrade, Fernando Pessoa - heterónimos, Fernando Pessoa - ortónimo, Natália Correia, António Ramos Rosa, António Botto, Al Berto, Manuel Alegre, Cesário Verde, apenas para citar alguns nomes.

O Ciclo de Debates na CASA está em vigor desde 2009. Uma vez por mês é organizado um debate sobre os temas mais pertinentes da actualidade, sendo convidadas personalidades para participar. Assim são efectuados Debates com o intuito de esclarecer a população sendo intenção que estes debates atraiam público jovem para, desta forma, serem sensibilizados e motivados para as questões da Democracia participativa, da Cidadania e do combate ao alheamento social.

NOITE DAS DIVAS Uma noite, por mês, dedicada ao Transformismo na CASA até porque defendemos que o “O Transformismo é uma Arte que merece ser reconhecida”. A “Noite das Divas” tem, na CASA, um sabor diferente...em estilo de Cabaret dos an anos 60.

Noite das Divas no dia 5 de Maio de 2012, com Elektra Ashford. 8


O Debate sobre “A Imprensa e a Homofobia /Transfobia”, respeitando o facto de 17/5 ser o Dia Internacional de Luta contra a Homofobia/ Transfobia

Comemoração do Dia Internacional de Luta contra a Homofobia/ Transfobia

CICLO DE TERTÚLIAS “A CASA ComVIDA” O Ciclo de Tertúlias "A CASA ComVida" está em vigor desde 2010. Uma vez por mês é organizada uma Tertúlia, cumprindo a tradição tertuliana portuense, sobre temas da actualidade. A intenção é que estas tertúlias atraiam, de forma informal, um público diversificado para, desta forma, permitir a troca de ideias inter geracional e sensibilizar para as questões da Democracia, da Cidadania, da Igualdade e do combate à discriminação.

Tertúlia “Os Limites da Liberdade”

GRUPO DE TEATRO DA CASA O Grupo de Teatro da CASA foi criado em Maio de 2011. Dirigido por Eloy Monteiro, conhecido actor profissional, com 50 anos de profissão, o Grupo de Teatro da CASA junta pessoas de várias idades e estratos sociais, unidos pelo amor à arte da representação. Actualmente o Grupo de Teatro da CASA apresenta a peça original, "Violências", escrita na CASA e que aborda o tema da violência doméstica. O grupo de teatro funciona única e exclusivamente com voluntários e tem ensaios todas as semanas, à segunda e quarta feira à noite.

EXPOSIÇÃO - PROVOCAÇÕES Periodicamente a CASA inaugura, no seu Auditório, exposições de artistas que, através da sua obra, pretendem desconstruir estereótipos. Presentemente a CASA tem em exibição a exposição "Provocações", da autoria de Carla Sampaio, que merece ser visitada e observada em detalhe.

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NA CASA

O DEPARTAMENTO SOCIAL de cujo plano de actividades fazem parte:

CLÍNICA DA CASA

CAMPANHA “UM CAFÉ, UM PRESERVATIVO – É TÃO FÁCIL USAR UM PRESERVATIVO COMO TOMAR UM CAFÉ!”

A CASA disponibiliza um Serviço de Consultas, designado “Clínica da CASA”, a laborar desde Janeiro de 2011, com 4 especialidades: Medicina, Psicologia, Sexologia e Direito. Os especialistas das diversas áreas são voluntários e o público alvo, sendo, primariamente, a população geral, é constituído, mais especificamente por Mulheres vítimas de violência doméstica, Jovens vítimas de abuso sexual e pessoas com dificuldades na área das Sexualidades e dos Afectos.

É uma campanha de proximidade que pretende fazer prevenção dos comportamentos de risco. É a forma que a CASA encontrou para dinamizar o uso preventivo do preservativo. Assim, nas instalações da CASA, cada vez que é servido um café, juntamente com o açúcar ou o adoçante é oferecido um preservativo com o intuito de tentar desconstruir o tabu, os estereótipos e os preconceitos que ainda hoje estão associados ao seu uso na população portuguesa.

Projecto "Clínica da CASA" - da autoria da REGREEN PROJECT

VEJA AQUI O VÍDEO PRODUZIDO PELO REGREEN PROJECT

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DIA NACIONAL DA FELICIDADE A CASA elaborou uma petição pública a solicitar à Assembleia da República a criação do Dia Nacional da Felicidade que se encontra em fase de recolha de assinaturas, a qual tem duas vertentes, a presencial e a recolha pela Internet. Com esta petição pretende-se alertar para a necessidade de uma real Universalidade do Direito à Felicidade promovendo correntes de economia do bem-estar. A petição será entregue na Assembleia da República a 3/9/2012, dia de aniversário de criação da CASA. Assim terá início a segunda fase de recolha de assinaturas, a serem entregues no Parlamento Europeu, a propor a criação do Dia Europeu da Felicidade. Se a criação formal de um Dia da Felicidade não a garante, “de per si”, oficializa, todavia, a obrigatoriedade da sua prossecução. A Petição pode ser consultada e assinada em: http:// www.peticaopublica.com/PeticaoVer. aspx?pi=DNFe2011

CAMPANHA NACIONAL “BASTA! DE ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS E JOVENS” No dia 1 de Junho de 2011, Dia Mundial da Criança, a CASA lançou a campanha nacional “Basta! De Abuso Sexual de Crianças e Jovens”, usando formalmente em Portugal, após autorização das associações congéneres americanas, o “Blue Ribbon”, o laço azul mundialmente representativo da luta contra este tipo de crimes sexuais. Esta campanha será relançada em 2012, no Dia Mundial da Criança, com o intuito de, uma vez mais, denunciar o tema do Abuso Sexual de Crianças e Jovens.

Recolha de assinaturas da petição para instituição do Dia Nacional da Felicidade

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NA CASA

O DEPARTAMENTO DE FORMAÇÃO de cujo plano de actividades fazem parte:

PROJECTO ISA – (IN)FORMAÇÃO EM SEXUALIDADES E AFECTOS A CASA disponibiliza a escolas do ensino Secundário e Universitário um Projecto de (In)formação na área das Sexualidades e Afectos. Este projecto é direccionado para todos os membros da Comunidade Educativa, nomeadamente Professores, Alunos, Encarregados de Educação e Pessoal Auxiliar. É um projecto que pretende consciencializar as comunidades educativas para as questões das Sexualidades e dos Afectos, promovendo comportamentos sexuais e afectivos responsáveis e uma Sociedade mais inclusiva.

Mas a CASA também efectua, nas suas instalações, Acções de Formação e Workshops subordinadas aos mais diversos temas.. Formação na CASA em “Voluntariado”

CENTRO Em 2012 a AVANÇADO CASA iniciou aDE Formação SEXUALIDADES AFECTOS Pós-Graduada nos E grandes temas® CURSOS DE FORMAÇÃO das Sexualidades

e Afectos.

curso de pós graduação 12h

curso de especialização 24h

SEXUALIDADES & ENVELHECIMENTO ACTIVO

SEXUALIDADES & ENVELHECIMENTO ACTIVO

curso de pós graduação 12h

curso de especialização 24h

JORNALISMO & SEXUALIDADES

JORNALISMO & SEXUALIDADES

curso de pós graduação 12h

curso de pós graduação 12h

O DESPORTISTA & AS SEXUALIDADES

SEXUALIDADES & DEFICIÊNCIA MENTAL

curso de pós graduação 12h

O EDUCADOR & A SEXUALIDADE DA CRIANÇA

INFORMAÇÕES & MATRÍCULAS Horário de Atendimento 16h às 20h CASA - Centro Avançado de Sexualidades e Afectos Rua de Santa Catarina, 1538 • 4000 – 448 Porto • 918 444 828 www.ass-casa.com • facebook/AssociacaoCASA

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Recentemente a CASA assinou um Protocolo de Colaboração, formal, com a Ordem dos Psicólogos, através do qual a CASA passa a disponibilizar Estágios Profissionais, oficiais, com a duração de um ano, a Psicólogos recém-licenciados.


OLHARES

CARLOS MATOS

SILVIA ALVES

A VIOLÊNCIA DE UM OLHAR

"MATEI A FÁTIMA E VOU À POLÍCIA ENTREGAR-ME"

É impressionante a magnitude que um olhar representa. Aquele olhar que te penetra e te induz uma reacção. Superior terá de ser a tua força interna para que não te deixes afectar, resultando em indiferença ou puro sorriso leviano de plena sátira pela mesquinhez que te tenta incapacitar.

Era ainda muito nova quando conheci o Joaquim. Era servente de pedreiro na obra da junta. Carregava baldes de massa sempre com o cigarro no canto da boca. Fumava tabaco de enrolar. O cigarro apagava-se e ele tinha de poisar os baldes para o voltar a acender no terceiro fósforo contra o vento. Aquilo divertia-me. O muro da horta dava de frente para a junta. Estudava-lhe os passos e sabia sempre quando fazia a pausa para a cerveja. Eu pendurava-me no muro e ficava entretida a olhá-lo. Não me lembro da minha idade mas sei que tinha feito a comunhão solene havia pouco tempo. Ele era um rapagão. Olhos verdes, alourado, alto e magro. Tudo nele era folgado: o olhar, os gestos, a amplitude das mãos e dos braços a carregarem os baldes de massa. A curva do pescoço para a frente na tentativa de gastar menos um fósforo e as melenas contra o vento. Era bonito. Era o meu rapaz. De cima do muro sonhava com ele a olhar o céu azul no calor de Agosto, por baixo do vestido azul no calor de Agosto. O sol inundava-me as bochechas e corava. Corava quando ele se atrevia e, antes de voltar a pegar nos baldes, fazia com o fumo rodinhas que lhe saiam da boca; era nelas que eu via corações. O Joaquim, no terceiro mês destas andanças, largou por momentos os baldes não para acender o cigarro morto no terceiro fósforo. O cigarro manteve-o no canto da boca apagado e na mão trazia um malmequer. O olhar folgado, o sorriso folgado, o passo folgado. Estendeu-me a mão e peguei-lhe no malmequer. Soltei pétala por pétala até muito, pouco ou nada, mal me quer, bem me quer, muito. Sorria e o cigarro ainda apagado colava-se-lhe no canto da boca e movia-se no sorriso. Abriu-me os braços em leque. Os meus e os dele. Agarrou-me pela cintura do vestido azul desbotado e o céu cinzento, capaz de chover. Poisou-me no chão e poisou-se sobre mim no chão. O céu rasgou de cinzento a fita azul do meu cabelo e o grito surdo fez voar um pardal. Já não era menina. O Joaquim esperou-me no altar ansioso por um cigarro e já sem vento na melena. Partiu dali a dias para África onde, me diziam, a guerra era contra os pretos e voltou dali a dois anos sem vitórias porque a guerra era contra os brancos, diziam-me – eram brancos contra brancos numa guerra de pretos, concluí. A vida não tardou a enfardar-nos com filhos. Ainda tratava da horta e o muro era o mesmo. A junta nunca mais precisou de obras e nunca mais por ali vi nenhum servente de pedreiro. O Joaquim já era pedreiro por conta própria. Agora, menos folgado no olhar, no andar. Poisava-se sobre mim de vez em quando sem pedir licença, poisava-se e pronto. Achava-o bonito ainda mas já não desfolhava malmequeres com medo que na última pétala um nada me enganasse. Andava silenciosa pela casa. O Joaquim chegava de madrugada e andava silencioso pela casa. O Joaquim andava ansioso pela casa num silêncio contagiante. Olhava-me distante e sem folgas a adivinhar os meus desejos. Anos passaram e os filhos passaram. O Joaquim, velho e sem folgas, poisava-se sobre mim a cobrir com penas o que suspeitava não lhe pertencer. O silêncio dos olhos dele a tentar mais uma vez. Uma e outra vez. Eu, imóvel, poisada sobre o colchão a não desejar o Joaquim, a desejar quem me poisasse e se poisasse sobre mim num chão coberto de cinzento de um céu de Novembro. A desejar o voo do Joaquim com o meu grito surdo. A desejar uma África sem volta – uma guerra não contra os pretos, contra o Joaquim, alourado e de olhos ainda verdes. Abrir a minha boca como um pardal e suspirar de alívio.

Um longo caminho de introspecção e cogitação te cabe viver para que possuas a força de elevares o rosto e caminhares com veemência. Porquê? Por que razão és constantemente baleado? A acefalia predomina e a distinção entre a normalidade e o seu aprefixamento é ridícula e cruel. O respeito não consta no vocabulário psíquico destes criminosos que diariamente são presenteados com a impunidade e concordância dos que os rodeiam. A solução és tu! Mantém-te fiel a ti mesmo. A coragem com que os encaras, retratada em sensatez, fere-os. Deixa que ouçam, oferece-lhes a tua simpatia e cordialidade. A confusão e questionamento interno que lhes induzirás será fulcral para que a mudança ocorra e a aceitação surja. Jamais te sintas um estorvo ou culpabilizado; usa as lágrimas que ousas jorrar e o sofrimento que teimas em sentir para teu próprio proveito, retratado em fortalecimento e erguimento. Não olhes para baixo, já viste o mundo que se depara à tua volta? A dificuldade é notória, mas o resultado final será tão libertador e frutífero, que nem o passado conseguirás recordar. Por fim, tenta concomitar um sorriso e o mundo será teu. A tua confiança é pedagógica, contudo não esperes que os resultados sejam fugazes, pois tratar-se-á de um processo moroso, mas valorativo. Coragem, confiança, força, pro acção! Sê feliz, sendo o que desejas e deixa que o sorriso surja quando a violência te encarar. És bem mais forte do que imaginas, sabes?!

- Então, rapariga, como te chamas? Fátima. Chamo-me Fátima. O sorriso a sair-me boca fora num grito surdo de prazer. 13


Os dias. Sempre pequenos. Banho matinal enojado. Pequeno-almoço enjoado. E a fuga. O cheiro doce da escola e da manhã primaveril. O feijão forte da cantina e os lanches demorados até ao impossível. A volta angustiada para casa. A festa conformada no cão. A casa vazia, não por muito tempo. Apenas até ao toque do espanta-espíritos.

A

cabei de acordar. Em nojo, como todos os dias em que a minha mãe viaja. Começo a odiá-la sem forças, porque não posso fazer-lhe isso. Gostaria de me ter levantado da cama, mas tive medo de o acordar, porque isso significaria nova volta, nova viagem, num carrocel de náusea, que não pára, não desacelera, sequer, para eu poder sair. Sinto as coxas coladas, aderentes, cúmplices do ato de eu não querer caminhar. Ergo-me, porque tem que ser, para me sentir vazar daquilo que não me pertence. Do que nunca deveria ter-me pertencido. Do que desejo ardentemente que nunca mais me pertença. Caminho, conformada, e ponho o banho a correr sem ouvir o som da água. Apenas me interessa o que o espelho reflete de mim: os pulsos pisados, a pele do tronco sugada e mordida, os mamilos trincados. Doem-me face, nádegas e canelas. Sinto os joelhos macerados da carpete de corda do chão. A água tenta lavar-me, mas eu não sinto ou não deixo. Os géis de banho da minha mãe são cheirosos e caros, mas servem apenas para que me sinta mais suja. Limpo-me à toalha, que cheira àquele mofo que se cola à pele, um bafio decorrente da falta de tempo para secar entre os dias consecutivos. Falta uma janela na casa de banho. Ajudava ter o sol a dizer-me bom dia, embora eu esteja certa de que lhe cerraria os olhos e lhe responderia torto. Visto-me atrevida. Hoje quero dar nas vistas, quero que olhem para mim e me admirem. Engulo um iogurte líquido à pressa,

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só porque jurei à minha mãe que nunca sairia de casa sem pequeno-almoço. Cumpro sempre as minhas juras. Sempre. Fujo de casa, para voltar. Tenho a escola a dois passos. Gostaria que estivesse mais longe, porque está uma linda manhã primaveril. Deixo-a entrar. Só a ela. Ela sabe estar dentro de mim sem causar dano. A escola tem um cheiro doce. Há açucenas no jardim da entrada e nos canteiros que rondeiam os pavilhões. Há alfazema, que roubo para colocar dentro dos livros. Gostava de a colocar dentro de mim e deixá-la florescer. Sinto-me eufórica. Não sei porquê. Sinto que hoje vai ser um daqueles dias em que a matéria me vai entrar de supetão e o riso me vai sair escancarado. Tenho apenas de não ultrapassar o limite, para que não me ponham na rua. Chego. Abraço toda a gente, encostando os meus seios e balanceando as ancas. Recebo os piropos e sussurro umas obscenidades. Às minhas duas amigas especiais conto as cenas do filme pornográfico a que assisti na noite anterior. Elas acham o máximo. Querem sempre vir dormir a minha casa quando a minha mãe viaja, mas sabem que não pode ser. Todas as mães têm uma tara e a dela é a de não gostar de ter ninguém de fora a dormir na casa dela quando ela não está. É o que lhes digo. Mas o que gostava é que ela não tivesse a tara de não me deixar dormir fora quando ela não está. Tem medo que algo de mal me aconteça. Consigo estragar todas as aulas sem ser expulsa. Numa delas cheguei a gritar. Como me liberta o grito. Como o feijão do almoço absorvendo-lhe o cheiro. Como demais, porque sei que fico com sono. Os professores da tarde vão ter sorte, porque vou entrar em estado de empatia dormente. A euforia dá lugar à depressão. Vou deixar que as açucenas me contem estórias de lua assassina. Sou uma idiota. Preciso manter-me acordada, não quero matar o tempo. Já é quase hora do lanche e preciso parar o relógio. Demoro o lanche. Despeço-me de longe. Retorno a casa olhando as cascas grossas das árvores velhas. Gostava de ter uma casca assim. Passo o beco e sinto-me tentada a entrar. Já houve muitas mortes naquele beco. O cão da vizinha vem receber-me. Pobre cão. Apanha todos os dias e gosta mais de mim do que dos donos. Deixo-lhe uma festa descomprometida na cabeça. Olha-me triste. Olho-o, apenas. Ele vai-se embora. Entro na casa, vazia. A casa também está vazia. Por ora.

Sons de transcendência. O tilintar da porta marca-me a entrada num mundo zen que só a mim pertence. Estranhos lugares, povoados de cinzentos e águas geladas, que me arrefecem os sentidos. Quero-os gelados. Às vezes, penso cenários de paz em floresta agreste e cubro-me com a sua solidão noturna, ornada com o piar dos pássaros da noite. Outras vezes, retenho-me numa manhã soturna de montanha, deixando-me adivinhar rapinagens cruéis. Também gosto de lugares de túmulos incas, ou índios, ou orientais. Indianos, talvez. Cultos a Shiva, cujos braços eu sonho ter. Mais braços, mais distâncias, mais força, talvez.

O espanta-espíritos soa. Curioso nome. Tento agarrar-me a todos os espíritos que, estou certa, me rodeiam, mas é certo que estão espantados. Espanta-espíritos. O meu próprio está espantado. Esvoaça como se fosse um passarinho capturado e metido pela primeira vez na gaiola. Tonto. Não para quieto e rebenta-se contra os arames que o enclausuram. Eu também me magoo, beliscando os antebraços e comprimindo os seios. Antes eram menores e não tinham interesse. Corro à cozinha a arrumar a embalagem vazia do iogurte da manhã. Bato de encontro à mesa e gosto da dor que sinto. Sinto as chaves baterem no despeja-bolsos de cristal. Corro à casa de

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banho e não tenho nada para recolher, porque não usei nada na noite anterior. Olho os azulejos brancos que me refletem. Desejo enviar a minha sombra de volta à sala, em vez de mim. Sento-me na sanita e dou-lhe ordem de ida com a mão. Estupida. Imita-me. – Não vez que não é hora de brincar?! Abro e fecho as portas do armário. Não vejo lá dentro nada que me sirva. O tapete está torto. Entorto-o mais. Um tapete torto pode provocar uma queda. Eu sei. Penso. Desespero. Penso. Desespero. Saio e espero na sala. De pé. Como uma árvore morta. As árvores morrem de pé. Está tudo em ordem na sala. No sofá dorme serena a manta de quadrados que cobriu a doença do meu pai. Não sei porque não se torna tapete voador e se escapa pela janela. Estou certa que verte lágrimas inchadas. A mesa tem as pernas quietas. As cadeiras também. As minhas imitam-nas. Agora não, grito para mim. Vamos correr. As minhas pernas, as da mesa e as das cadeiras. Mas o bar ri-se de mim. Com a sua grande boca a mostrar os copos que vão ser usados daí a pouco. Parecem dentes. Os flutes, afiados, são de vampiro. Sinto as garrafas dançarem, cúmplices da maldade, sapientes do poder do que contêm. A mesa de centro, de pau-preto, africana, parece-me escrava. Vai servir-me de cepo. Vou agarrar-me a ela e sentir as chicotadas dos escravos das histórias antigas. A porta está aberta. – Fecha-te Sésamo. Malditas histórias infantis. São todas falsas. O mal nunca deixa de acontecer e não há magia. Ao menos podia fechar-se para não me deixar ouvir os passos. Toc. Toc. Toc. Aproximação. Não há voz de chamamento. Os tacões dos sapatos substituem as cordas vocais. Cantam. – Insensíveis! Calem-se! O leão. Lembro-me do leão na jaula. Anda que anda. Para cá, para lá, para cá,… Olha, ruge. Parece poderoso, mas está preso, dominado. Há um bebé a chorar algures. Tão alto. Calem o bebé, por favor…

O espanta-espíritos tilintou. O odor a cerveja e a tabaco vêm flutuando pelo ar, ao meu encontro. Trazem junto a loucura expressa num olhar esgazeado e numa vontade sem não. As roupas ordenam-me que as tome, para que mais tarde as lave. O fim do dia está suado e gotas escorrem entre sulcos marcados por protuberâncias feias e pejadas de lanugens negras. Uma espécie de lã de aço, ao toque. Os sapatos descalçam-se, para que se liberte o bafio das caminhadas. Ajoelho-me antes, para os libertar dos cordões que os fazem prisão. A face cai-me, mas é-me levantada em direção a um pega-monstro com sabor ácido-intenso. Sabor de fim de dia.

Surge à porta. Fato e casaco cinza antracite. Camisa grande, de golas largas. Nó de gravata descaído, deixando soltar os pelos grisalhos do peito. A gravata tem estampadas pernas de meninas de salto alto. Garotas de can-can eternizadas em design de mau gosto. Colete com botões esgaçados, a mostrar porte de banqueiro do filme da Mary Poppins. Apenas o relógio de corrente não está, porque não interessa agora contar o tempo. O cabelo oleoso, a pedir lavagem, é preto luzente, conseguido em cadeira de barbeiro antigo, fronteada por calendários de mulheres nuas e em poses estereotipadas. Não lhe olho o seu olhar, porque sei que é de louco. Finge-se só e vai direto ao bar. Prepara o whisky ritual. Para relaxar. Senta-se no cadeirão de couro olhando o copo. Puxa a gravata e deita-a no chão lentamente, como se fosse de cristal raro e pudesse partir-se. Pega no comando e liga a televisão. Faz um zapping desinteressado pelos canais, sabendo de antemão qual o que lhe interessa. Pára nos primeiros gemidos fingidos que lhe lança o ecrã e baixa o som ao mínimo percetível. Precisa da musa inspiradora. Fixa o olhar e deixa a boca entreaberta após um gole generoso de whisky. Faz deslizar a mão livre pela barriga proeminente até ao sexo, que afaga com lentidão. Desaperta o cinto, desabotoa as calças e corre o fecho de olhos fechados. O ritual determina que assim fique por longos momentos, ouvindo os gemidos e acariciando o desejo. Olha-me de frente e sorri desdenhosamente. Compraz-se da

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minha figura marmórea. Tenho as mãos geladas e o ritmo da vida descompassado. Seguro a tontura do vómito e da revolta do intestino, à espera do sinal. Não tarda. Pousa o copo e descola as costas do encosto do cadeirão. O olhar passa de desdém a ordem. As pancadas de Mouliére foram substituídas e é a hora de eu entrar em cena. Aproximo-me, segurando o asco que me quer dominar. Desabotoo e retiro a camisa, enquanto a mão dele, que antes segurava o copo, percorre as minhas intimidades já tão suas conhecidas. Seguro a vontade de fugir, de correr dali para nunca mais voltar. O corpo dele liberta o odor do suor de velho que lhe escorre entre a pilosidade grossa e as muitas pregas da pele formadas pela barriga obesa. É apenas primavera, mas o corpo dele já escorre as lágrimas que não posso chorar. Não suporta lágrimas e, se as vê, rebenta-me com a cara. Só pára quando vê sangue. Levanta-se para que lhe tire as calças e a roupa interior, mas antes viola-me as entranhas com os dedos sujos. Magoa-me. Levanta-me no ar e espera a frase – Tenho 15 anos. Sou uma menina muito tenra. Pousa-me no chão com ar alucinado e empurra-me os ombros, para que lhe tire os sapatos e as calças. As meias libertam um odor indescritível de doença de pés e antes que as tire puxa-me a cabeça. O sabor ácido-intenso desencadeia-me o vómito, mas ele não nota, concentrado em zurrar os seus prazeres. Mantenho-me estática, de novo marmórea, na posição que já sei de cor e espero sem contar o tempo. Espero, apenas. Porque sei o que me espera. Começa o funeral do rei. Silêncios cortados por choros carpidos. Marchas lentas. Visitas, homenagens e oferendas. Dor. Dor lancinante. Faço-me noiva do rei e deixo-me trespassar pela lança do desespero. Sinto o peito a abrir e a arder, vítima de um fogo que não se vê. Entro num balanço ritmado. Frente, trás. Frente, trás. Frente, trás. Não respiro. Não consigo respirar, porque quero ser eu a deitar-me naquele túmulo. Deito-me. As mulheres que me acompanham param-me o balanço, como a proibir-me de sofrer. Mas eu fico no chão. As pernas inertes. Afastadas, que o desespero ignora pudores. Sinto mil mãos que me agarram, segurando-me para que eu não parta junto com o meu rei. São mãos desatentas. Tomam-me todas as partes, mesmo as que apenas a mim pertencem. Revolvem-me, como se eu resistisse. De bruços, cheiro a terra e aspiro o seu pó, conspurcando as minhas entranhas em busca de doença que me mate. Ouço um zurrar de animal em cópula de cio. Disfarço o vómito com um gemido desabafado. Agarra-me com violência e deita-me de bruços sobre a mesa de pau-preto. Tomo-a de amarra. Deixo tombar a cabeça e espero que a madeira me comece a contar uma estória antiga. Esqueço-me de mim. O meu corpo já não é eu. Consigo sair da minha prisão de carne e elevar-me no ar para me sentar no candeeiro de três braços, cada um em forma de quarto minguante. Deito-me num deles e olho para baixo, lançando um olhar de desprezo à cena do filme pornográfico que saltou do ecrã do televisor para o meio da sala. Já a conheço de cor. É sempre a mesma, sempre igual, como se o filme fosse muito antigo e estivesse sempre a dentar no cinematógrafo. Fico num balanço ritmado que não vai ter fim breve. A dormência do sono provocado leva-me o pensamento para uma estória de alguém cujo sofrimento é apenas fingido. A madeira de pau-preto sopra-me a estória antiga de um rei tribal e da sua mulher amada, que desde logo assumo que sou eu. O rei morreu e estou no seu funeral. Sinto dores lancinantes. Sinto-me rasgar por dentro. Sinto o toque de mil mãos que me agarram todo o tempo para que não caia nos sucessivos desmaios que não passam de simulacros. Não consigo desmaiar. Sinto o ribombar dos tambores e a dança ritmada dos pés. Sinto no ventre o troar de cada batida e os pés da dança pisam os meus sem pedidos de desculpa. Escolho sofrer neste cenário de morte e breve me atingem os esgares de epilepsia que obrigarão os meus servos a deitarem-me num leito de terra macia. Quero que me larguem, para que morra. Desejo que a terra me limpe da conspurcação que a alma me grita. O ventre continua a doer-me, como se estivesse a ter um parto em sentido inverso. Dói-me cada momento mais, quase não aguento o ritmo da dança fúnebre e os zurros

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de vitória dos nativos. O funeral acabou. O rosto do rei some-se para sempre e eu fico deitada, inerte, largada pelas mil mãos que antes me seguraram a falência. Nem o vómito consigo soltar. Deixo de pensar, num desmaio provocado. Já não quero saber do funeral do rei. Sinto apenas a terra molhada junto do meu ventre. Ao longe, uma cascata deixa cair as suas águas sobre as pedras. Não me consigo lavar com elas. Estão negras. Sujas. Mais sujas do que eu. Abandono-me. Esvazio-me e morro. Volto a mim sentindo nojo das humidades pegajosas que se instalaram enquanto sensação em regime de permanência. A primeira vez não soube onde estava. Agora, sei sempre. Ele já foi tomar banho e eu espero. Ouço as águas cálidas tocarem o branco resplandecente da banheira, que ficará com um rebordo de lodo revelador da sujidade dele. Tratarei de o remover mais logo. A água não o limpa, nem a ele, nem a mim. A sujidade acumulada já encardiu os nossos seres, ainda que apenas eu tenha consciência disso. A verdade é que as próprias águas estão também já sujas. Apenas a banheira e os azulejos impõem o seu branco resplandecente, hediondo, desrespeitador, felino e mentiroso. Não sei como teimam em envergar cor de noiva. Devia deixá-los encardir. Era mais honesto. O pensamento largou a estória do rei, mas teima em alguns flashbacks, cujo desaparecimento não forço. Aparece também o desejo de libertação. Mas não posso. A mãe depende do tio. Após a morte do pai, a mãe paga as despesas contraídas com a doença dele com a dádiva generosa do tio. Se eu fugir a ajuda acaba e a mãe e eu não sobreviveremos. Tenho que ajudar a mãe. Por isso não a posso odiar. Amo-a. Resta-me abandonar-me e sentir a morte em vida. A morte é reconfortante. Morta, sinto-me bem. Ressuscito. É verdade, ressuscito. Não tenho outra opção. Preparo e sirvo o jantar. Limpo. Passo os dedos pelos livros da escola, a única lágrima que me permito. Daqui a pouco vou perder-me na contradança das luzes e dos sons no teto do meu quarto. Sombras de monstros que voam, para cá e para lá. Para a frente e para trás. Frente, trás. Frente, trás. Amanhã, o meu tio deixa-me cedo. No fim da noite, no auge da satisfação e do cansaço dele, agarro-me aos lençóis com soberba e finjo-me adormecida. Cada dia finjo melhor. Ele sai cedo. O meu ritual da manhã recomeça. Hoje, porém, alguém toca à campainha. Atemoriza-me um retorno nunca antes acontecido. É apenas o carteiro, com uma carta da minha mãe. Abro-a e leio a mensagem telegráfica: Mariana, desisti. Não aguento mais. Espero que me perdoes. Percebi então que as portas batidas quando a minha mãe estava em casa não eram as da casa de banho. O meu tio tem um quarto só dele. Não o usa. Estranhamente, não choro. Agradeço à minha mãe. Decido que vou ter com ela. Deito-me na banheira branca. Agora percebo porque se manteve nesta cor cândida de leito de virgem pura. Purgo o pisado dos pulsos. Um vento suave sopra instruindo-me os dedos sobre as teclas. Inspira-se nos lagartos invisíveis do deserto. Atente-se. São mil os sons do tilintar das areias que se transformam enquanto os dedos deixam dedadas num código de barras provocatoriamente largo. O chão move-se sob os meus pés. É talvez uma serpente enjoada da monotonia da flauta. Encanta-se agora com o ato da criação. Balanceamos juntos num trecho de inspiração sem pauta. Não vejo ninguém. Apenas luzes e aquele apache que empoeira os pés ao ritmo do meu dedilhar comandado pelo espírito do sol ardente. ’ Prof. Universitária

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- Poetisando TEXTO E ILUS TRAÇÃO SÍLVIA ALVES

voltas na ponta de um novelo dentro do novelo há pontas soltas às voltas e cada volta da memória solta um nó cego dentro do copo e do corpo nas pontas de um pé quebrável a cada volta como se o tempo fugisse solto de um nó na ponta dos dedos se as margens do rio fossem um novelo de água e areia fina sem margens nem dúvidas nem pontas soltas

Cardiografia

e a memória, um nó cego dentro de um corpo inquebrável

E se tivesses razão E se fosse este o tempo de rosa-velho E se a vontade tivesse de ser dominada Amordaçasses a boca da vontade E se a cama já estivesse feita e não déssemos por isso Te deitasses no chão E se perdesses a razão ao combinar o código E se o cofre se abrisse sem códigos Contra a vontade da boca E se a alma se fechasse em código crepuscular E se a lama se fundisse no teu corpo sobre a cama desfeita O lençol rosa-velho a cobrir a carne E se o acaso fosse a razão indominável E se a vontade usurpasse o código da razão A espancar o coração

os meus dedos fugiriam a cada volta

04:06 am Lias-me palavras de um livro que conheço bem. Organizavas-me o pensamento sem que to tivesse suplicado – assim, simples. Olhavas-me de soslaio a ver se eu entendia; o poema estava escrito não no teu livro, nos meus olhos, por dentro dos meus olhos. Entre nós, uma ou outra palavra a ressoar sem nexo. A incongruência do momento estava em dois ou três tomos sublimes e abandonados à sorte. As palavras foram ainda mais vãs por serem ditas daquela forma – a perscrutarem a nossa atenção porque entre nós e o poema há um só instante – a ilusão.

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POLÍTICA NACIONAL

LUÍSA SALGUEIRO

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Pelo menos 276 mulheres assassinadas, desde 2004, no contexto conjugal ou de relações de intimidade (43 das quais em 2010 e 23 até Novembro de 2011). Pelo menos 321 mulheres vítimas de tentativa de homicídio nas mesmas circunstâncias desde a mesma altura (39 das quais em 2010 e 39 até Novembro de 2011). Nestes casos, os agressores são em cerca de 60% maridos, companheiros, namorados ou relações de intimidade, e em aproximadamente 25%, ex-maridos, ex-companheiros e ex-namorados. Estes dados, recolhidos na imprensa pelo Observatório de Mulheres Assassinadas da UMAR, é aterrador! Mas mais assustador será percebermos que esta é só uma ponta visível do iceberg no que diz respeito à violência nas relações de intimidade. Quantas serão as mulheres assassinadas, vítimas de tentativa de homicídio ou vítimas de qualquer tipo de violência (física, sexual, psicológica, económica), pelas mãos de quem amam, que não são noticiadas? Quantas serão as crianças vítimas diretas e indiretas de agressão nas suas casas? Quantas e quantos idosos sofrem de martírio idêntico? E quantos serão, também, os homens-vítima? Em boa verdade não sabemos: faltam estudos, por um lado, e a natureza silenciosa, envergonhada e oprimida de quem sofre mas ama, traz estes crimes no oculto de uma sociedade que ainda tem na mentalidade coletiva resquícios de modelos autoritários, misóginos, homofóbicos, idadistas, e pudores quanto à ingerência em matérias da intimidade - ‘Não se mete o nariz onde não se é chamado’; ‘Entre marido e mulher não se mete a colher’; ‘Uma bofetada nunca fez mal a ninguém’; Falamos de violência doméstica, conjugal, no namoro... mas estas expressões parecem-me por si só cada vez mais redutoras para retratar um fenómeno tão complexo, porque as imagens que nos sugerem remetem-nos em demasia apenas para a violência que acontece entre as quatro paredes de um lar, entre cônjuges heterossexuais, entre adolescentes heterossexuais em fase de namoro; e 22

efetivamente, estas são as representações mais veiculadas pelas campanhas e noticias mediatizadas. Parece-me, no entanto, que tem sido descurada do olhar público aquela violência que acontece com as e os mesmos protagonistas fora de casa, ou a que acontece entre pessoas relacionalmente envolvidas, não casadas, e que (já) não habitam em conjunto, entre pessoas da comunidade LGBTQ, entre pessoas com outros vínculos familiares, entre ex-companheiros e companheiras. Por outro lado, os contornos socioculturais específicos da violência contra as mulheres são pouco tidos em linha de conta e estão pouco reconhecidos entre nós. Para além disto, sinto igualmente que as formas de violência sexual, psicológica e económica, ainda mais difíceis de comprovar e estudar, continuam a ser menorizadas, relativizadas. Do ponto de vista legal, só há cerca de quatro anos (Decreto-lei 59/2007) ficou consignada uma perspetiva integradora do que pode constituir violência nas relações de intimidade e tratou-se de um momento histórico porque esta passou a ser crime público, de denúncia obrigatória; mas ainda há muito caminho a fazermos todas e todos para que a nossa sociedade tenha o mesmo entendimento, se indigne proativamente e reconheça a importância intervir. Este crime não está a diminuir. Não estamos a ser eficazes no seu combate e na sua prevenção. Prevalecem graves preconceitos em relação às vítimas, porque se entende que ‘se sujeitam’, que ‘sofrem porque querem ‘, sem se perceber os complexos laços de dependência emocional e socioeconómica que se geram, e que, mesmo depois da separação dos agressores, o risco agravado permanece. Continuam a atribuir-se causas externas para a violência, como o álcool e outras patologias psíquicas, para desculpabilizar agressores, quando o que os estudos indicam é que, na sua grande maioria não é esse de todo o caso. Há uma forte descrença na eficácia do sistema social, policial e judicial, pese embora os grandes avanços que temos feito. Tudo isto desincentiva as denúncias, desmoraliza as vítimas e obstaculiza os processos. Numa altura em que a palavra do dia é a ‘austeridade’, é pavoroso pensar que possam ser considerados custos prescindíveis aqueles de que dependemos para lutar contra e responder cada vez mais eficazmente a este flagelo e, portanto, dá que pensar a razão pela qual o novo Comissário para os Direitos Humanos

do Conselho da Europa, Nils Muiznieks, escolheu Portugal para sua primeira visita a um estado membro. Custos muito maiores e mais gravosos, sociais e económicos (por exemplo, tratamentos de saúde, impacto laboral, custos policiais e judiciais), serão os decorrentes da violência reiterada. É urgente INVESTIR numa educação sexual e afetiva séria, estruturada e sistemática ao longo da vida, para prevenir o futuro, INVESTIR no estudo desta realidade, INVESTIR num sistema de proteção mais eficiente e adequado às necessidades das vítimas, INVESTIR na aplicação de medidas de coação e reabilitação terapêutica de agressores (diminuindo o risco de revitimação, das mesmas ou outras vítimas) e, quanto a mim, considerar os gastos nesta área custos será, a cada dia que passe, um crime maior de negligência e cumplicidade que ninguém deve aceitar! ’ Deputada do PS


VERA RODRIGUES

O SILÊNCIO DOS INOCENTES O artigo 152.º do código penal, faz o enquadramento do crime de violência doméstica. A lei criminaliza também, nomeadamente, as ameaças, a coacção, a violação, o abuso sexual e o homicídio ou tentativa de homicídio. Normalmente, quando se debate este drama, a discussão centra-se sobretudo na violência de homens contra mulheres, mas infelizmente a dimensão do problema é bem mais profunda e alargada. A dimensão da violência doméstica é também feita em sentido inverso, existe nos casais homossexuais e tem uma dimensão preocupante no caso das crianças. É nesta dimensão que reside boa parte da minha preocupação sobre esta matéria. A violência doméstica sobre crianças, pode ser feita feita por via directa e indirecta. Quando o pai agride fisicamente o seu filho, o sofrimento é duplo: é psicológico e é físico. Mas quando o pai agride a mãe, a criança sofre também, ainda que apenas psicologicamente. Esta realidade, tem reflexos e mazelas para uma vida inteira. Sendo certo que, haverá crianças com capacidade de superar esse trauma, certo é também que muito dificilmente esse sofrimento lhe será apagado da memória, ainda que sejam ultrapassados e não repetidos os seus actos. Os estudos desenvolvidos sobre esta matéria, revelam que uma criança que foi exposta a violência doméstica, tem maior propensão não só para repetir o acto, como para entendê-lo como sendo aceitável ou “normal” ao longo da sua vida.

Por outro lado, o papel dos médicos, nomeadamente dos médicos de família, também tem neste âmbito uma importância fundamental. Estes profissionais têm o dever de sinalizar e denunciar, pelos meios a que têm acesso, os casos de violência doméstica e maus tratos dos quais têm conhecimento, na medida em que são crimes públicos. Do ensino, ao direito, passando pela medicina, é necessário formar e sensibilizar os menores e as famílias como um todo, para a questão da violência doméstica. A forma de quebrar o ciclo de uma realidade que a evolução civilizacional do século XXI já não devia permitir, passa por trabalhar no sentido de que este crime que ainda fica escondido entre paredes, possa ser assumido publicamente como um problema que tem reflexos sobre o futuro das nossas crianças e das nossas famílias. Em suma, fazer do crime da violência doméstica um drama cada vez menos silencioso, trabalhando para construir uma sociedade onde ele deixe de fazer parte do vocabulário das novas gerações. ’ Deputada do CDS-PP

Assim, a forma mais eficaz que temos de contrariar este fenómeno é educar e sensibilizar as crianças para este tema, expondo a realidade, mas sobretudo alertando para a necessidade de o denunciar e de vincar este tipo de comportamentos como sendo crimes inaceitáveis. Naturalmente, pela sua isenção e afastamento do seio familiar, a escola será o meio e o local ideal para esse trabalho e para esse ensinamento junto dos mais jovens.

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POLÍTICA INTERNACIONAL

TRISTEMENTE INCONTESTADO F A U S T O P I N T O D E M AT O S

VIOLÊNCIA É O USO INTENCIONAL DE FORÇA FÍSICA OU PODER... O.M.S

Quando pensamos em violência, pensamos em agressões, em homicídios, em violência doméstica, em bullying. Pensamos em confronto físico. Por alguma razão, a definição internacional de violência que mais vezes é citada, é aquela da Organização Mundial de Saúde. Definição que ainda exclui a violência psicológica: “Violência é o uso intencional de força física ou poder...” Ainda que nos restrinjamos a esta forma de violência, já variadíssimas organizações internacionais têm vindo a reconhecer que há certos tipos de pessoas, mais vulneráveis, que são particularmente expostos a violência: idosos, crianças, mulheres. Caso se alargue a violência ao domínio psicológico, os grupos afectados são ainda mais variados. Ganham até uma nova dimensão: no mundo online, sem fronteiras ou polícias e – de facto – sem lei, o cyber-bullying tem se vindo a tornar uma prática demasiado comum. Como sempre, a realidade caminha adiante daqueles que a tentam compreender, regular, controlar. Hoje porém gostava de abordar outros casos. Não daqueles que

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são alvo de violência mais frequentemente, mas antes daqueles que, por serem, são alvos de violência: as minorias étnicas, as minorias sexuais, as minorias religiosas ou tão simplesmente aqueles que lutam pela democracia e pelo respeito dos seus direitos fundamentais. É certo que a violência é sempre o braço armado da opressão. Mas a violência para oprimir características ou escolhas inerente à nossa dignidade é o paradigma de como uma e outra (violência e opressão) andam de braço dado. No mês de Maio assinala-se o fim da segunda guerra em que Judeus, Ciganos e Homossexuais foram brutalmente assassinados. Há pouco menos de 50 anos, os negros norte-americanos eram assassinados, brutalmente agredidos, porque lutavam pela igualdade. Tristemente incontestado, ainda hoje, minorias religiosas continuam a temer pela sua vida. A tantas vezes admirada Primavera árabe, deixou os 10 milhões de cristãos-coptas a temer pela sua vida. O estado tornou-se menos Laico (a


Em 2010, cerca de 15% dos crimes de ódio cometidos nos Estados Unidos fundavam-se na orientação sexual.

Ainda existem 7 países no mundo que criminalizam com pena de morte atos homossexuais.

75 países no mundo criminalizam com pena de prisão atos homossexuais.

gradação por si só é errada), e na penumbra que sempre acompanha revoluções, fundamentalistas islâmicos sentiram-se “mais livres”. Tristemente incontestado, ainda hoje, homossexuais temem pela sua vida. Em 2010, cerca de 15% dos crimes de ódio cometidos nos Estados Unidos fundavam-se na orientação sexual. Ainda existem 7 países no Mundo que criminalizam com pena de morte atos homossexuais. 75 países condenam com pena de prisão. Tristemente incontestado, ainda hoje, raças minoritárias temem pela sua vida. Só na Europa, morreram mais de 100 pessoas vítimas de racismo (em 2008). Tristemente incontestado, ainda hoje, a luta pela Democracia é violenta. E pode ser mortal: de acordo com as estimativas já morreram mais de 35 mil pessoas nas revoluções da Primavera árabe. Só na Líbia foram 30 mil! A lista poderia continuar. Mas servem os exemplos. A minha misantropia não me deixa crer num Mundo sem violência. Mas ainda temos demasiada violência. Martin Luther King disse

quando recebeu o Nobel da Paz: “Civilization and violence are antithetical concepts”. Pois bem, o nosso mundo ainda luta por se transformar em civilização. Post-scriptum Este mês ocorreram duas eleições de extrema importância para a Europa. Franceses e gregos, mais do que elegerem novos governos (até porque os gregos não conseguiram formar novo governo), tiraram do poder os partidos que governavam aquando da chegada da crise. Assim, depois de Portugal, Espanha, Irlanda, Reino Unido e Itália, a crise fez mais duas vítimas. Mais ainda, depois de apresentar um plano de austeridade, o governo holandês pediu a demissão. Na Alemanha, o Partido da Chanceler Angela Merkel perdeu mais umas eleições estaduais.

tes vão permitir lidar com o outro lado da crise: a União Europeia. Mais concretamente com a crise institucional do Euro. O novo Presidente francês não vai mudar a Europa sozinho, mas vai certamente agitar as águas. Durão Barroso já veio dizer, no seu discurso no dia da Europa, que sempre defendeu mais Europa e mais crescimento. A Chanceler alemã já aceitou discutir mais medidas com François Hollande. Os Primeiros-Ministros italiano e espanhol já disseram que, embora consolidando as contas públicas, não o vão fazer tão abruptamente quanto o inicialmente acordado. A este propósito, só mais duas notas: aceitam-se apostas para se a Grécia sai ou não do Euro. Eu aposto que Angela Merkel sai antes. A segunda nota, a titulo de esclarecimento: os tratados da União Europeia apenas permitem a saída da União e não do Euro. Nota de rodapé

Os povos europeus parecem estar a culpar os seus governos pela crise atual. A verdade é que ainda não conseguimos sair da crise. Eu, passista, me confesso: Apesar de as reformas em Portugal serem extremamente necessárias, acredito que as mudanças de governo mais recen-

Com as férias aí a chegar, uma nota de rodapé para o Parlamento Europeu: voltou a obrigar as operadoras a baixar brutalmente as taxas de roaming. Bem haja! ’ Jurista

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ECONOMIA

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DIOGO VIEIRA DA SILVA

CETERIS PARIBUS

Violência dos Números

Biliões… escrevem-se com 9 ou com 12 zeros? Com um título tão “apelativo” poderão estar a pensar que a crónica deste mês irá seguir a linha em vigor actualmente de apelo a um novo discurso assente no “Crescimento Económico” em contraponto à “Austeridade”. Felizmente não serei assim tão óbvio, quer no que irei escrever neste espaço, no Futuro, quer na ideologia em que, por vezes, me poderei apoiar. Esta crónica, contudo, terá um objectivo mais pedagógico… Irei falar dos “Pesos e Medidas” usados em Portugal e no resto do Mundo. Relativamente a números, a confusão é habitual. Em várias cabeças chega mesmo a ser confuso mas a verdade é que convém termos a agilidade de conseguir discernir estes conceitos, pois a diferença de 3 zeros não é propriamente pequena. Com efeito quando falamos em “1 bilião” (bilhão no Brasil) estamos a falar de um número com 9 zeros (1.000.000.000) ou de 12 zeros (1.000.000.000.000)? A realidade é que a resposta a esta pergunta, aparentemente simples, varia consoante o local geográfico em que nos encontramos. No Brasil (USA e UK) aplica-se a primeira regra, denominada “escala curta”. Já em Portugal (e Europa) usamos a segunda, denominada “escala longa”. Confuso? Veja a tabela que simplifica o exemplo que dei!

A “IX Conferência Geral dos Pesos e Medidas”, reunida em 1948, aconselhou a adopção, por parte dos países europeus, da ”Regra 6N” isto é, a cada acréscimo de 6 zeros há uma nova designação alinhando, assim, pelo sistema britânico de então. Actualmente o Reino Unido utiliza, tal como os Estados Unidos, a “Regra 3N” - a cada acréscimo de 3 zeros há uma nova designação. Até os textos ingleses da Comissão Europeia seguem o sistema americano… “Use billion to mean 1 000 million. To avoid ambiguity with former usage, define this in an abbreviations list or at first mention (by putting 1 000 million in brackets.” E eu, qual dos sistemas de numeração acho mais indicado? Pessoalmente acho mais intuitivo a “Regra 3N”, que é usada no Brasil e USA, uma vez que, até aos milhões a mudança de designação é feita a cada 3 zeros (Um – Mil – Milhão) e só a partir daqui é que existe divergência de terminologia… mil milhões na Europa e biliões nos EUA. A realidade é que vários lideres políticos já começaram a usar a terminologia anglo-saxónica, obviamente que com um propósito… Isto porque a população em geral tem a tendência, muito comum, de não discernir os mil milhões dos milhões. Novamente confuso? Exemplifiquemos… Numa conversa informal com um amigo acerca das receitas e despesas do Estado ele mostrava-se radiante pois dizia que “Finalmente temos um Governo que poupa mais do que gasta”, isto porque tinha lido duas notícias seguidas em que, segundo ele, uma “o Estado ia gastar, nos próximos 10 anos, 10 milhões de euros nas “PPP” (Parcerias Público Privadas) das antigas SCUT”. Mas, logo a seguir leu a notícia que “O Estado poupou no corte às reformas

antecipadas 400 milhões de euros”. Na opinião dele “Afinal o Gaspar percebe da coisa…” Este é um erro muito comum, mas que cria a confusão… (Não! Não tenho a mania da conspiração, nem acho que a terminologia “6N” seja usada com esse propósito). Efectivamente o que acontece é que as “PPP” vão ter um custo, para o Estado, de 10 mil milhões de euros (10.000.000.000) ou “10 bilhões de euros”, como se diz no Brasil e não de 10 milhões (10.000.000). Por isso o que o Estado poupou no corte às reformas antecipadas (400.000.000) não superou o que ele vai ter de gastar nas “PPP” (10.000.000.000). Claramente é mais fácil distinguir a grandeza dos números quando usamos a escala curta, pois entre milhões e biliões não temos a tendência para esquecer o “mil” dos mil milhões. A realidade é que este simples entendimento dos números e das suas grandezas tem de ser do conhecimento generalizado, pois só assim é que, penso, poderemos exigir um maior rigor ao que aos números diz respeito. Deixo, como ultima provocação, a mesma “manchete” de jornal usando as duas escalas de numeração. ’ Economia

Saída da Grécia pode custar à Zona Euro entre 300 mil milhões e um bilião de euros Segundo o registo usado em Portugal e na Europa

Saída da Grécia pode custar à zona euro entre 300 bilhões e um trilhão de euros Segundo o registo usado no Brasil e nos USA

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DIREITO

Hélder Pinto Bessa

UM NOVO RECOMEÇO A atual conjuntura económica tem causado sérios e graves problemas nas finanças pessoais dos cidadãos portugueses e colocado grandes óbices à gestão particular de fundos. Esta realidade fez despontar a urgência de encontrar soluções prementes para ultrapassar o flagelo que infetou a carteira dos portugueses, cujas complicações naquele campo se vão agravando e acumulando com o passar do tempo, sobretudo após a imposição das violentas medidas de austeridade.

O Recuperação de Pessoas Singulares Volume I Luís M. Martins 2001 ALMEDINA

momento espinhoso que atravessa a economia nacional tem-se refletido de forma imediata num aumento considerável dos pedidos de recuperação para as pessoas singulares, que optam crescentemente pela exoneração do passivo restante das dívidas que não se tenham pago. Na prática, esta tomada de decisão é o derradeiro recurso para enfrentar a (quase) asfixiante ausência de faculdades económicas para alcançar a salubridade económica possível dadas as presentes condições. Depois desta breve contextualização urge entrar diretamente na questão. Hoje falaremos da figura da Insolvência de Pessoas Singulares. Muitos mitos se têm criado em torno de tal figura, recordo - me perfeitamente de um caso de uma cliente me ter desabafado o medo de, dada a impossibilidade de cumprir as suas obrigações para com os credores e, por conseguinte, ter de dar entrada do pedido de Insolvência poder vir a perder o filho para uma qualquer instituição ou, mesmo aquele caso em que um cliente afirmava que o maior medo dele era que após a insolvência nunca mais pudesse vir a trabalhar. Estes episódios só me podem levar a uma conclusão: existe um completo e total desconhecimento relativamente a esta temática não só do público em geral mas dos próprios profissionais forenses. Mas algo que deve ser absolutamente descortinado é o pensamento de que um insolvente fica subtraído a todos os rendimentos do seu trabalho. O aumento do consumo em Portugal, acompanhado pela nova facilidade de acesso ao crédito nos anos 90 permitiu aos portugueses uma melhoraria do nível de vida. Mas o reverso da medalha, para muitos, surge quando algo de imprevisto na situação pessoal ou profissional sucede. Acidentes de percurso como um divórcio ou a perda de emprego podem pôr em dificuldades uma pessoa, que já não pode honrar os seus compromissos financeiros, não podendo pagar os seus créditos. Existem, porém, soluções em Portugal para um novo começo. Atualmente, o Direito permite a qualquer particular, quando já não consegue pagar as suas dívidas, obter uma segunda oportunidade, não tendo que ficar com as dívidas ad eternum. A pessoa singular poderá, desde que preenchidos os requisitos legais, pedir o perdão

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das suas dívidas: é o processo de insolvência singular. O processo de insolvência é o procedimento judicial (através de um Tribunal) que pode permitir a recuperação de uma pessoa sobreendividada. É um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos respetivos credores e a satisfação destes pela forma prevista num plano de pagamentos. O caminho da insolvência para as pessoas singulares, pode decorrer de duas formas:

> PLANO DE PAGAMENTOS Este caminho pressupõe a elaboração de um plano de pagamentos, pelo devedor, que preveja uma forma de liquidar os créditos. O plano fica contudo sujeito à aprovação dos credores e caso seja sancionado, é então homologado pelo Juiz, a quem compete igualmente declarar a insolvência do devedor.

> EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE A exoneração do passivo restante corresponde à concessão de um benefício aos insolventes, pessoas singulares, traduzindo-se num perdão de dívidas, exonerando-os dos seus débitos não integralmente pagos nos cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência. Durante este lapso temporal de cinco anos, a pessoa singular fica a pagar uma quantia aos credores, calculada em função do seu rendimento e fica com o estritamente necessário para a sua sobrevivência. Findo esse prazo, o insolvente é declarado desobrigado de todas as dívidas incluídas no processo de insolvência, permitindo-se assim a sua reabilitação. Para que o insolvente possa beneficiar deste regime exige-se, entre outros requisitos, que tenha tido um comportamento pautado pela honestidade, transparência, licitude e boa-fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres inerentes ao processo de insolvência. Só assim se torna merecedor de uma nova oportunidade. Se pretender pedir a sua declaração de insolvência recorra aos serviços de um advogado ou, não tendo meios económicos, pode sempre recorrer ao apoio judiciário. ’ Lic. em Direito pela Universidade do Minho, Pós-graduado em Direito Judiciário


Diogo Caldas Figueira

O SCHOOL BULLYING: CRIMINALIZAÇÃO? “Pensava em morrer todos os dias. Acreditava que essa era a única solução e acordava a perguntar a mim mesma porque é que ainda estava aqui”. Testemunhos como estes provindos de vítimas de bullying sucedem-se e multiplicam-se e, muito se falando, muito pouco se tem feito para tornear tal fenómeno. Importa, sim, que se fale mas não podemos considerar que o bullying se trata de uma inevitabilidade, de uma fatalidade, que pouco ou nada pode ser feito, que faz parte da infância e da adolescência e que, como tal, deverá ser aceite e tolerado. Tal pensamento implica aceitar que graves perturbações físicas e emocionais e suicídio adolescente são fenómenos normais, inevitáveis e, porquanto, consequência da própria vida. É fundamental, sim, conhecer bem os contornos do fenómeno por forma a melhor o prevenir e a combater, procurando criar uma rede de solidariedade entre os vários organismos interventivos no processo. O chamado School Bullying (o bullying em ambiente escolar) encontrou na “agressão reiterada praticada por um agressor – bully – ou mais agressores – bullies contra outro elemento da mesma comunidade escolar, que se encontra numa situação de maior fragilidade” a sua definição unânime. É um fenómeno que se traduz, em traços muito gerais, numa atitude repetida de troça, humilhação, provocação, ameaça, podendo mesmo passar por simples agressões físicas (beliscões, empurrões, etc.). É parte integrante da definição de bullying que exista uma relação de poder entre o agressor e a vítima, vítima esta, tal como supra-referenciado, que se encontra numa maior posição de fragilidade. E é aqui que a homofobia aceite, generalizada e mesmo incentivada pelo meio escolar de todo o nosso país, assume um papel crucial, doentio e assassino. 85% dos jovens afirmam já ter ouvido comentários homofóbicos na sua escola. 67% dos jovens declaram ter visto colegas serem vítimas de bullying homofóbico. Num período já tão conturbado, como o é a adolescência, todas as dificuldades inerentes ao período de aceitação individual e eventual “coming out” tornam os jovens LGBT os alvos mais fáceis, mais frágeis à violência escolar. O mesmo se passa com os jovens criados por casais homossexuais.

Aqui chegados, cumpre-nos questionar: terá o Estado algum dever para com as vítimas de bullying? A resposta encontra-se na Constituição da República Portuguesa. De entre outros, destacamos, a título de exemplo, o artigo 69.º que determina que as “crianças têm direito à protecção (…) do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão”. Ou podemos ir ainda mais longe e mencionarmos o direito à educação, consagrado no artigo 73.º que consagra que o “Estado promove (…) as condições para que a educação, realizada através da escola (…) contribua para a igualdade de oportunidades, (…), o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade (…)”. Da conjugação destes dois artigos retiramos a ideia fundamental que é mister que todas as crianças e jovens possam usufruir de um am-

biente de aprendizagem livre de receios, promovendo-se a aceitação e a diversidade, rejeitando-se a violência, o ódio e punindo-se tais comportamentos incentivadores. A realidade: menos de 12% das situações efectivamente identificadas como bullying terminaram com algum tipo de repreensão ao agressor. Assistimos, assim, mais uma vez, a um Estado demissionário das suas funções, desprotegendo crianças e jovens. Concordamos na íntegra com a corrente que defende que este problema é, em primeira mão, um problema escolar e que deverá ser ab initio a Escola a assumir um papel activo e interventivo, sabendo reconhecer e identificar o problema. Para tal, é fundamental formar pais, educadores, professores e auxiliares. Mas não só. Só poderá haver garante de sucesso de tal formação se a mesma passar pela formação dos próprios alunos, dos jovens, dos ditos e potenciais agressores e das ditas e potenciais vítimas. E tal só se consegue através da tão famigerada Educação Sexual que teima em não aparecer.

Questiona-se a necessidade da sua criminalização. Há quem defenda que a criação de um tipo legal específico de crime para acautelar o bullying escolar, quiçá denominado crime de violência escolar, seja desnecessário porquanto o direito vigente já acautela e protege as vítimas. Efectivamente o nosso Código Penal consagra a punição de condutas que tipifiquem crimes contra a integridade física, contra a integridade pessoal e sexual, contra a honra. Aliás, já em 2007, criou-se um agravamento da pena desses crimes se os mesmos fossem praticados em ambiente escolar. Não estará já o nosso Direito sensível à problemática do bullying, sendo portanto desnecessária a sua autonomização enquanto outro crime? A resposta deverá ser negativa. Não nos podemos esquecer que o bullying é na sua existência composto por condutas, que individualmente analisadas, não têm qualquer relevância jurídico-penal. Dificilmente conseguiremos enquadrar num crime contra a integridade pessoal um momento, isolado, de troça pelo facto de alguém fugir aos estereótipos do género. É a sua prática reiterada, é a sua durabilidade, é a tal relação de poder entre agressor e vítima que revestem essas condutas de uma especial censurabilidade e perversidade e como tal passíveis de serem criminalizadas. Não esquecemos que o Direito Penal é subsidiário, ou seja, só deverá intervir quando esgotados os restantes mecanismos legais ou quando estes não sejam suficientes para prover às necessidades que com a criminalização se pretendem acautelar. Sabemos também que é o Direito Penal que mais se reveste de um efeito preventivo e dissuasor. Assim, discordamos veementemente que o actual Direito Penal, através da previsão dos vários crimes contra as pessoas, já combata de forma eficaz e efectiva grande parte das manifestações do school bullying, nomeadamente o homofóbico. Relembramos a este título a Recomendação emitida pela ONU em 17 de Novembro de 2011 que, pela primeira vez e de forma histórica, condenou a violência contra a população LGBT, incitando os países e os governos a adoptarem medidas urgentes e imediatas que protejam essa população, garantindo que as violações contra elas sejam efectivamente punidas e que as leis discriminatórias sejam revogadas. Assistiu-se em Portugal, em Janeiro de 2011, por iniciativa do Governo do Eng. José Sócrates à aprovação na generalidade na Assembleia da República de uma proposta de lei que alteraria o Código Penal, introduzindo o chamado Crime de Violência Doméstica: “Quem, de modo reiterado ou não, e por qualquer meio, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, a membro da comunidade escolar a que o agente também pertença, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de

outra disposição legal”, prevendo-se, ainda, o agravamento da pena em casos como se do facto resultasse a morte, caso em que a pena de prisão se elevaria para os 10 anos. Tal proposta foi elogiada por Juízes e Procuradores do Ministério Público pelo facto de, pela primeira vez, se introduzir nesta tipificação as tais ameaças, injúrias, ofensas verbais que dificilmente estariam enquadradas noutro tipo legal. Também elogiado foi o carácter de crime público dado ao tipo legal em crise. Tal permite que o processo-crime se inicialize com a notícia do crime, independente de haver queixa ou não. No entanto, ainda que meritória a iniciativa, não podemos deixar de notar o carácter “atabalhoado” da mesma. Desde logo, o facto de o texto da proposta da lei pouca conexão ter com a real definição de bullying, esquecendo-se da exigência da prática reiterada por parte dos bullies e da tal relação privilegiada de poder, o facto de a vítima ter de se encontrar numa situação de maior fragilidade. Com a redacção aprovada muito dificilmente conseguiríamos distinguir entre crime de ofensas à integridade física e crime de violência escolar, podendo mesmo correr o risco de aplicação de penas e imputações arbitrárias e excessivas. De realçar também, por irónico, que o mesmo Executivo que avançou com a Proposta de Lei em crise, foi exactamente o mesmo que rejeitou uma campanha escolar proposta por uma associação LGBT com vista à sensibilização para o bullying homofóbico, apelidando-a de ideológica. Com a queda do Governo, a proposta de criminalização da violência escolar caducou, encontrando-nos agora, volvido um ano da polémica, exactamente na mesma situação. Em época de crise económica, há uma clara tendência de esquecimento dos direitos sociais, dos problemas das crianças e dos jovens e a desprotecção dos mesmos acentua-se e as situações de atroz violência, de bullying com consequências nefastas vão-se multiplicando e dizimando um pouco por todo o país. É assim mister criminalizar-se esta prática desumana e vil. O Estado, constitucionalmente obrigado a proteger a infância e a garantir um ambiente são e pacífico no meio escolar, não pode mais demitir-se de tais funções, em prol tão e apenas da sua função regulamentadora da Economia. Dever-se-á, assim, avançar o quanto antes com a proposta de introdução de um tipo legal de crime que criminalize a violência realizada no meio escolar. Esta criminalização deverá exigir a prática reiterada e especificar a situação fragilizada da vítima. Dever-se-ão prever medidas concretas de punição e as mesmas deverão ser agravadas em determinadas circunstâncias, nomeadamente quando tal violência seja dirigida a camadas especialmente fragilizadas pela sua situação, como é o caso da população LGBT. As medidas tutelares e educativas deverão ser reforçadas e efectivamente aplicadas no caso de agressores entre os 12 e 16 anos. A concreta punição legal deverá ser garantida aquando os agressores atinjam a imputabilidade penal. Defendemos, sem sombra de dúvidas, que tal crime deverá revestir carácter de crime público, à semelhança do crime de violência doméstica, permitindo e garantindo a sua promoção oficiosa pelo Estado, tendo em vista sempre a protecção das vítimas, dos jovens e das crianças. A crise económica não poderá nunca ser um subterfugio para nos demitirmos das nossas responsabilidades e desprotegermos a população mais indefesa. É um dever constitucional, um dever cívico e, acima de tudo, um dever humano, conseguirmos uma crescente sensibilização para este tema, envolvendo Escola, Pais, Educadores, CPCJ e por fim os Tribunais nesta temática por forma a pôr cobro à mesma e evitarmos, assim, que testemunhos como o citado no início deste texto deixem de ser prestados. ’ Mestre em Direito Privado pela Universidade Católica Portuguesa com o tema “A Adopção no âmbito da Parentalidade Homoafectiva”

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SEXUALIDADES

Pára, Papá... Oh Papá... Estás triste? Não? Está bem, eu sento-me ao teu colo. Gosto muito que me dês beijinhos... és o meu Papá lindo, és o meu Papá querido. Cheiras a vinho, Papá... Os teus olhos estão tão vermelhos, Papá... Porque estás a respirar tão depressa, Papá? Não! Não me tires a minha boneca, Papá! Porque estás a atirá-la para o chão, Papá? Assim ela vai ficar sozinha... Vai ficar triste... Assim ela vai chorar, Papá. Olha para ela a olhar para nós, Papá, com a saia torta e toda amarrotada... O que estás a fazer, Papá? Está quieto! Não mexas aí! Está quieto, Papá... O que estás a fazer? Não me apertes assim tanto, Papá, fico com falta de ar... Oh Papá...o que estás a fazer? Porque estás a fazer isso, Papá?

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Porque estás aí com a mão, Papá? Mas isso não se faz! Isso é feio! Isso é pecado! Ai... Não! Não quero! Oh Papá, onde está a Mamã? Eu quero a minha Mamã... Oh Papá, pára com isso! Tira a mão debaixo da minha saia! Não! Não mexas aí... Está quieto, Papá! Não faças isso, Papá, que isso dói! Claro que gosto de ti...tu és o meu Papá! Se eu gostasse de ti deixava? Se eu gostasse de ti deixava que tu mexesses aí? Porquê, Papá? Porque estás nervoso, Papá? Porque estás a tremer, Papá? O que é isso , Papá? Eu sei que sou a tua menina... Sim, eu sei que gostas de mim... Sim, eu sei que tu me adoras... Mas porque estás a fazer isso comigo, Papá? Eu portei-me mal, Papá? Eu fiz alguma asneira, Papá?

Oh Papá, mas isso é o que tu fazes com a Mamã... Oh papá, eu não quero que tu faças isso, Papá! Pára, papá! Estás a magoar-me, Papá! Está-me a doer muito, Papá... Que foi, Papá? Não Papá, não conto a ninguém. Sim Papá, eu adoro-te! Mas porque é que me queres fazer isso, Papá? Eu não sou má menina! Eu porto-me bem, Papá. Está bem Papá, eu estou quieta, muito quietinha... Ai..... Ai, Papá, está-me a doer. Pára, Papá!!!! Papá... Dói... Dói, Papá! Papá!!!! Está a deitar sangue! Papá! Onde vais, Papá? Porque me deixas aqui sozinha, Papá? Já não gostas mais de mim, Papá? Mas eu chorei, Papá, porque me estava a doer muito, Papá... Papá... Estava a doer, estava, Papá! Olha! Até está a deitar sangue, Papá... Onde estás tu, Papá? Oh Papá, volta, Papá... Já não sou a tua menina, Papá? Eu prometo que não choro mais, Papá! Eu prometo que me porto bem, Papá! Eu prometo que me calo, Papá! Eu prometo que fico quietinha, Papá? Volta, Papá... A boneca está triste, Papá, e eu também estou, Papá. Eu sei que fui má menina, Papá. Desculpa, Papá! Eu não volto a ser mais má para ti, Papá! Tu ainda gostas de mim, Papá? Oh Papá... Oh Papá, onde estás? Papá! Papá! Papá! ...


M A N U EL DA M A S

Escrever esta crónica demorou muito tempo e foi um processo lento e de grande hesitação quanto à sua razoabilidade. Questionei-me, muitas vezes, se a deveria escrever e, se a deveria publicar...

Não se trata de um drama literário.

Decidi avançar, contudo, como denúncia dos muitos casos que, resultando de processos de incesto, magoam, martirizam, rasgam, destroem, marcam a ferro e fogo, o presente e o futuro de muitas crianças, roubando-lhes o sorriso, a vida, o ser, a paz.

De um filme de terror, que não é justo ser vivido...

De uma forma ou de outra, com mais ou menos pormenores sórdidos, mais ou menos perceptível, mais ou menos sofrido, mais ou menos culpabilizante, este é o relato tipo de uma violação de menor por um seu convivente, no caso, o próprio Pai. Esta crónica pretende ser um acto de denúncia, mas também representa uma mão estendida, de carinho solidário, para todas as crianças que foram vítimas de assédio sexual, com especial incidência para aquelas que o foram dentro do lar, pelos seus conviventes mais próximos, por vezes os próprios imagos parentais. Pretende ser o grito contra um silêncio pesado... Não se trata de uma realidade distante, num outro país qualquer, bem lá longe...pelo contrário. Por mais tranquilizante que seja acharmos que esta realidade não existe, casos destes acontecem junto a nós, bem perto, na casa ao lado ou na mesma rua.

Não é um texto de novela.

Um suicídio que, sendo um processo de desistência, acaba por ser, em simultâneo, um acto de conquista de liberdade e de paz.

Não é o guião de um filme. É um relato...real.

Mas não é inventado. É real!

Acaba por ser a única hipótese de voar... Este é, apenas, um relato... Tantas vezes ouvido... Tantas vezes sentido... Tantas vezes chorado... Real. Infelizmente!

Por isso, denunciado. É um relato de um filme que, todos os dias, volta a ser filmado, hoje com uns actores, amanhã com outros... mas sempre com um mesmo terrível guião, num mesmo cenário de terror.

’ Médico e Sexólogo

Não pretende ser escabroso, nem deve ser deixado para trás, sem ler. E, por favor, não cometam a injustiça de pensar que esta não seria uma crónica para publicar ou ler num Domingo, por exemplo... estas crianças, há muito que deixaram de ter Domingos... Fica, a título de exemplo. Fica, a título pedagógico. Fica o grito, de denúncia. É um relato, uma réplica, fidedigna, do real...Infelizmente. O real que, por incompreendido e inconfessado, tantas vezes leva ao suicídio, asfixiado e cuspido pela noção de culpabilização da vítima que, inocente, se culpabiliza de forma atroz, não conseguindo lidar com o sucedido.

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REDES SOCIAIS

UMA NOVA MÁSCARA GILBERTO SILVA

Em plena Era da Informação o fluxo in-

na vida dos jovens, que se tornam cada

É uma realidade, hoje, que a falta de hu-

coisas boas, mas também para coisas más.

vida virtual é a estratégia de controlar ou

do, inclusive, o incentivo ao uso da violên-

formacional pode ser usado para muitas O que se passa nas redes sociais não é

excepção. Por vezes, sem saber quem está do outro lado, vai-se construindo uma

imagem que está muito longe da realidade, com todas as consequências imprevisíveis

de tal atitude.Todavia a vida em rede ganha cada vez mais adeptos, das mais diver-

sas idades, a uma velocidade espantosa e muitos deles acabam por dar preferência

a uma janela virtual no conforto do lar, do que a uma porta de saída para a rua.

O maior problema da vida virtual está re-

lacionado com a popularização da Internet

vez mais violentos. Visível, também, na

depreciar atitudes, acções, crenças ou até mesmo decisões de outras pessoas via

intimidação, ameaças e humilhação que prejudicam a saúde psicológica e até o

desenvolvimento pessoal. São muitas as

histórias conhecidas nesta vertente da violência psicológica e muitas delas acabam

em suicídio. Exemplo é a de Jamey Rode-

manismo reina em todas as redes, existin-

cia física. Testemunhos reais de jovens que são violados sexualmente por acreditarem em perfis falsos, páginas falsas ou informações erradas são cada vez mais cons-

tantes. Estes são curtos exemplos do que

se passa pela internet e o que de negativo veio com o advento da web 2.0.

meyer, adolescente de 14 anos, que sofreu

Seria bom conseguir ter o poder de igno-

da escola e posteriormente nas redes so-

que perduram, por vezes durante toda a

de bullying primeiramente nos corredores

ciais onde anónimos escreviam mensagens como "O Jamie é estúpido, gay, gordo e

feio. Ele merece morrer" e "Não me im-

rar, bloquear ou até eliminar as cicatrizes vida, nas pessoas que sofreram qualquer

tipo de violência pela passagem inocente da linha da vida virtual mascarada para a

que fez com que as pessoas criassem uma

portava se morresses. Ninguém se im-

uso dessa máscara por vários utilizado-

dos ficar muito mais contentes". O jovem

A vida em rede é viciante e ainda vale a

vezes, para divulgar crimes, preconceitos e

a coloca-los no you tube onde falava tanto

cuidado até com um simples

nova máscara através das redes sociais. O

portaria. Portanto mata-te

res das mais diversas redes serve, muitas

em desespero começou a gravar vídeos e

comportamentos ou vícios que fora da vida virtual não seriam assumidos. O respeito pelos outros torna-se quase invisível

quando se tem o poder do anonimato nas mãos. Já não são novidade as histórias de planeamento de assassinatos, crimes ou

outras ofensas utlizando essas mesmas redes. O aumento do número de utilizadores traz consigo o aumento dos mais diversos

tipos de violência. As mais observáveis são a violência moral e psicológica, a difamação e a calúnia através da rede, cada vez

mais constantes, o que pode trazer danos com reflexos posteriores, principalmente

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Íamos to-

da sua orientação sexual como dos ataques

que sofria. A violência psicológica para este adolescente foi tão grande que acabou por suicidar-se. Esta história tomou propor-

ções enormes, espalhando-se rapidamente por todo o Mundo, mas nem assim as

histórias do género diminuíram, muito pelo contrário. É o caso do seguinte

vida real desmascarada.

pena mas, cada vez mais, é preciso ter

’ Ciências da Comunicação


ACTIVISMO

BERNARDO FERREIRA

TRÊS TRISTES TEMÁTICAS E três tristes vítimas. Se fossem só três, o problema não seria exponencial. A questão é que o é: a violência é transversal a estatutos sociais, faixas etárias e extractos sócio-económicos. Violência doméstica, bullying homofóbico e outros tipos de bullying são problemáticas reais que carecem de resposta da parte das associações e, mais do que isso, do Estado. Segundo o entendimento jurídico, a vítima é a pessoa que, em consequência de acto ou omissão violadora das leis penais em vigor, tenha sentido um atentado à sua integridade física ou moral, um sofrimento de ordem moral ou uma perda material. Por sua vez, o entendimento social bebe da raíz latina “victimia”, que significa vencido ou dominado. Posto isto em termos práticos, a vítima sofre dupla agressão: é violentada pelo agressor e pela sociedade, que lê a sua posição como fraca, dominada e, em suma, inferior. Em contexto, a vítima absorve este pensamento e toma-se como tal. Contudo, esta leitura não é transversal a todos os crimes de agressão; está mais patente em crimes de violência doméstica, stalking e bullying (tanto na escola como no trabalho). Apesar da existência de uma panóplia de mecanismos de denúncia deste tipo de crime, a pressão social e a ineficácia do sistema criam a necessidade de haver ajuda não-governamental. Assim, o associativismo surge como uma complementaridade do sistema judicial. Em teoria, tudo funciona de forma eficaz e até utópica, mas a realidade traz o choque da prova em contrário. Vamos por partes: comecemos pela violência doméstica. As grandes referências em voluntariado, neste campo, são a Associação Portuguesa

de Apoio à Vítima (APAV) e a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR). Para elas, a noção de violência doméstica é ‘quase’ sempre “homens-que-batem-em-mulheres”. Logo aí está patente o esquecimento da violência psicológica e da violência conjugal homossexual. Ao afirmar isto, poderia estar a injustiçar as referidas associações, mas a verdade é que o seu trabalho é prova dessa mesma negligência: por exemplo, as suas casas-refúgio são exclusivamente usadas por mulheres vítimas de crime. Já aqui se denota um paradoxo; em conversa formal, as referidas casas estão abertas ao acolhimento de qualquer tipo de vítima mas, em conversa informal, os homens não são bem-vindos e as mulheres homossexuais serão ou não. No bullying na Escola existe uma cisão que resulta em duas divisões fundamentais: por um lado, as vítimas de bullying homofóbico e, por outro, as vítimas de outros tipos de bullying. A meu ver – e apesar da divisão que existe -, a Escola oferece o mesmo tipo de resposta: a inoperância. Entende-se na Escola que o bullying é uma situação natural do relacionamento entre pares, não se protegendo as vítimas nem acautelando o potencial prejuízo presente e futuro que daí advém. Mais do que isso, não se tenta educar os agressores, mantendo-se um pacto de silêncio com danos colaterais.

Em última análise, o bullying abre portas à depressão e ao suicídio de crianças e jovens que padecem deste crime. Tudo isto se torna mais grave – daí a cisão – quando o bullying é homofóbico. Nos casos de bullying comum, a família e os amigos são estruturas fundamentais de apoio à vítima, ajudando a ultrapassar o trauma; nos casos de bullying homofóbico, o apoio da rede familiar pode ser inexistente ou até negativo. Em Portugal, a homofobia é o tipo de descriminação mais vigente, com uma taxa de 68 por cento, dados obtidos pelo mais recente estudo sociológico da União Europeia. Assim, mais de metade dos inquiridos demonstra-se homofóbico, um valor que pende negativamente para o caso dos jovens e crianças vítimas deste crime. Neste campo, há apenas duas associações que trabalham o combate a este tipo de crime, sendo a acção estatal nula: o Centro Avançado de Sexualidades e Afectos (CASA) e a rede ex-aequo. A primeira toma acção com o projecto ISA e a segunda com o projecto educação. Ambas actuam na prevenção dando Educação Sexual - uma das maiores lacunas pedagógicas do Estado português -, falhando, a segunda, contudo, no apoio à vítima, que cai no isolamento por falta de solidariedade à sua causa.

no trabalho e de stalking. Afectando adultos, que se têm como pessoas capazes de auto-defesa, estas questões são frequentemente ignoradas na denúncia, sendo confundidas por competição - no caso do trabalho - e como paranóia – no caso do stalking. São crimes, por regra, difíceis de provar; até no associativismo é tido como problema menor. Esta é, pois, mais uma realidade que está ao abandono. Note-se, no entanto, que este texto não é contra as associações que aqui se referem, pelo contrário: a acção delas permite que muitas vítimas de violência encontrem oxigénio para continuar a sua vida longe da agressão. Contudo – e o que aqui se quer realçar – é que há tantas vítimas negligenciadas quantas as que são ajudadas. A violência que sofre na privacidade repete-se publicamente pela falta de actuação competente do Estado e das associações. Em último reduto, a vítima sofre três tipos de mau trato. É, portanto, necessário que se desbloqueie e demistifique o associativismo na violência para que este não resulte em mais um factor de discriminação da vítima. ’ Lic. Engenharia Cívil

Outros casos, que pouco ou nenhum apoio associativo conseguem, são os de bullying

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OPINIÃO

Este Acordo Ortográfico não é nem Acordo nem Ortográfico. Mais valia chamar-lhe Aborto Pornográfico. Aborto porque nasceu torto, extemporâneo e sem perspectiva de melhoria. Pornográfico porque prostitui os verdadeiros interesses da preservação, evolução e valorização da Língua Portuguesa à ganância de motivações políticas, económicas, empresariais e de protagonismos pessoais. RICARDO PEREIRA LEITE

A ecologia está na moda. Está na moda um rapaz usar as calças de cintura descaída, deixando à vista os boxers ou até mesmo alguma parte do corpo. Ser contra o Acordo Ortográfico está na moda. Quantas vezes aderimos a uma “moda” sem pensar, somente pelo puro comodismo da integração numa “norma” que nos proporciona o conforto de não nos sentirmos e sermos excluídos de uma maioria? É mais fácil “ir na onda”, integrarmo-nos numa “normalidade” e que nos uniformiza numa massa mais ou menos anónima, mais ou menos amorfa, na qual passamos despercebidos. Desta forma não temos que justificar as nossas opções diferentes – nem perante nós próprios nem frente aos outros -, não somos obrigados a sobreviver e a conviver com uma exclusão mais ou menos evidente e/ou violenta, não precisamos sair do aconchego do anonimato que nos cobre como manto reconfortante, mas que, ao mesmo tempo, nos tolhe a identidade e o individualismo. Porque cada um de nós, mesmo integrados numa sociedade, não deixa de ser um indivíduo. Único e especial. No meu caso, reconheço que sou opinativo. Esse facto, adicionado a um espírito curioso, científico e crítico, resultou num “chato” que tem sempre alguma coisa a dizer sobre muitos assuntos, que tem sempre a sua opinião, por vezes muito pouco ortodoxa mas sempre sustentada e justificada. E é por isso que, não sendo um ecologista militante, tenho preocupações ambientalistas com o futuro do nosso planeta e das próximas gerações que nele vão ter de habitar. É por isso que sou responsavelmente comedido no desperdício e na produção de 34

resíduos, na utilização de energias não renováveis e, na medida do possível, na degradação generalizada do meio ambiente e da qualidade de vida. E é por isso que não uso calças de cintura descaída. Não me ficam bem. Os meus boxers não são assim tão bonitos que devam ser vistos pela população em geral. E não me identifico com a origem do seu uso, que se reporta aos estabelecimentos prisionais norte-americanos – conhecidos pela sua intolerância em relação a práticas sexuais entre a população prisional – onde os reclusos homossexuais manifestam a sua disponibilidade para praticar sexo anal baixando a cintura das calças até deixarem à vista parte das nádegas. E é por isso que sou contra o Acordo Ortográfico. Porque não é acordo nem é ortográfico. Não é acordo porque já passaram 22 anos desde a sua redacção, 18 anos sobre a data inicialmente prevista para a sua entrada em vigor, 14 anos sobre a assinatura do 1º Protocolo Modificativo, 8 anos sobre a aprovação do 2º Protocolo Modificativo, 4 anos sobre a ratificação parlamentar em Portugal… e até agora nem Angola nem Moçambique o aprovaram. E tendo em conta tanto tempo passado, tantas vozes discordantes, tantos movimentos de contestação, chamar-lhe Acordo é, no mínimo, idealista. E não é ortográfico porque para além de não o ser em termos estritamente linguísticos, é mais geopolítico, económico, neocolonialista, representante de interesses empresariais e de algumas vaidades pessoais do que um instrumento real de valorização e uniformização da Língua Portuguesa. Mas afinal o que é este Acordo Ortográfico, de onde e porque é que ele surge, qual é o seu conteúdo e que fins pretende atingir?


O galaico-português surgiu a partir do século IX, na antiga província romana da Galécia, como resultado da assimilação do latim vulgar, falado pelos invasores romanos a partir do século II d.C., e da incorporação de alguns étimos de origens pré-celta, celta, basca, germânica e provençal. Com a independência de Portugal, no século XII, o português e o galego começaram a diferenciar-se pouco a pouco, evoluindo paralelamente, até que no século XIII se começaram a estabelecer certas tradições gráficas no português vernáculo. Apesar das suas imprecisões e incoerências – por ausência de um mínimo acordo entre os escribas da época – a grafia do galego-português medieval era mais regular e fonética do que aquela que conhecemos do português dos séculos seguintes. Com o advento do Renascimento, generalizou-se o uso da grafia etimológica, marcando a vontade de justificar as palavras vernáculas através das suas antecedentes latinas ou gregas. Essa opção permitiu um maior distanciamento do castelhano – que seguiu uma ortografia mais fonética – ao que também não foi alheio o processo da Restauração da Independência de 1 de Dezembro de 1640. Para a consolidação desta grafia baseada na etimologia, muito contribuiu o surgimento do processo tipográfico, pela difusão da escrita que permitiu, gerando assim uma norma mais ou menos generalizada da ortografia etimológica. E com pouca evolução se manteve a nossa língua até à implantação da República. A publicação em Portaria, em Setembro, da primeira reforma oficial em Portugal – a Reforma Ortográfica de 1911 – modificou por completo o aspecto da língua escrita, aproximando-o muito do actual, fazendo desaparecer muitas consoantes dobradas, os grupos ph, th, rh, etc. Ironicamente, esta 1ª Reforma representou um regresso, em parte, à ortografia fonética da Idade Média, da qual se distingue, no entanto, pela uniformidade com que é aplicada. A adopção desta Reforma Ortográfica não foi isenta de reacções adversas em Portugal, mas a maior polémica surgiu no Brasil, que não foi consultado para a sua elaboração e à qual não aderiu. Os dois países ficaram com ortografias completamente diferentes: Portugal com uma nova ortografia, reformada, o Brasil com a velha ortografia de base etimológica.

tografia portuguesa reformada em 1911, e na sequência do qual surgiram duas compilações de vocabulário, uma em 1940 e outra em 1943, das Academias Portuguesa e Brasileira, respectivamente. No entanto, esses vocabulários ainda continham algumas divergências, pelo que, em 1943, teve lugar uma convenção ortográfica, que deu origem ao Acordo Ortográfico de 1945. Este acordo entrou em vigor em Portugal, por decreto-lei, ainda em 1945, mas no Brasil não foi ratificado pelo Congresso, e, como consequência, os brasileiros continuaram a utilizar a ortografia do Formulário Ortográfico de 1943. Um novo acordo entre Portugal e o Brasil, em 1971, aproximou mais um pouco a ortografia dos dois países, suprimindo-se os acentos gráficos nas palavras homógrafas e nos vocábulos derivados com o sufixo -mente ou iniciado por “z”. As duas Academias chegaram a um novo acordo, em 1975, o qual não chegou a tomar forma de lei, em boa parte devido ao período de agitação política que se vivia em Portugal, conhecido pelo “Verão quente de ‘75”. Posteriormente, teve lugar um encontro dos sete países de língua portuguesa no Rio de Janeiro em 1986. Dele saiu um novo acordo ortográfico que nunca chegou ser aprovado por nenhum dos países, devido às fortes reacções que se fizeram sentir principalmente em Portugal e no Brasil, nomeadamente em relação à supressão da acentuação gráfica nas palavras esdrúxulas. Quatro anos mais tarde, uma nova reunião foi feita em Lisboa, da qual surgiu o actual Acordo Ortográfico de 1990, uma versão menos radical que a de 1986. E é aqui que começam a vir à tona as verdadeiras razões deste Acordo, já que o encontro de 1986 foi promovido pelo então presidente brasileiro José Sarney, que com um novo Acordo Ortográfico pretendia facilitar o acesso do Brasil ao domínio do mercado editorial da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, até então liderado por Portugal. Mas destas e de outras razões, do seu conteúdo, das suas consequências e responsabilidades, falarei noutra altura. Ricardo Pereira Leite (Escreve Português. De Portugal.) ’ Empresário

Em 1931 foi assinado um acordo preliminar, entre a Academia Portuguesa de Ciências e a Academia Brasileira de Letras, que adoptava maioritariamente a or35


HISTÓRIA

Eugénio Giesta

Uma grande parte do século XX foi marcado pelos regimes totalitários que atingiram o seu apogeu durante a Segunda Guerra Mundial. A censura e a repressão eram ferramentas necessárias ao bom funcionamento do sistema e, em território lusitano, apenas o 25 de Abril conseguiu pôr termo a um regime político opressor. No entanto, apesar de haver ainda quem mantenha as cicatrizes físicas e psicológicas, é um erro pensar-se que tudo foi exclusivo do século XX. Na verdade, se pudessemos visitar os nossos antepassados dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX estes não estranhariam a situação já que, mesmo sem um sistema político totalitário, o sistema religioso investia-se de grande poder e, à semelhança das polícias políticas, criaram a sua própria forma de protecção: a Inquisição. Pode definir-se INQUISIÇÃO como a luta contra as heresias e contra os atentados às leis canónicas levada a cabo por várias instituições pertencentes ao sistema judicial da Igreja Católica Romana. Na verdade, a luta contra as heresias é, talvez, quase tão antiga quanto a própria Igreja, no entanto, a sua constituição como um organismo é mais tardia. Podem dividir-se em quatro as manifestações diferentes deste organismo: a Inquisição Medieval, a Inquisição Espanhola, a Inquisição Portuguesa e a Inquisição Romana. Veja-se sucintamente cada uma destas manifestações. A Inquisição Medieval foi criada em grande medida para combater a heresia dos Cátaros, que ameaçava em grande medida a ordem católica e surgiu primeiramente em França no ano de 1184 e incluiu a Inquisição Episcopal e a Inquisição Papal. As Inquisições medievais eram descentralizadas e a autoridade residia em oficiais locais com guias da Santa Sé, não havendo uma única autoridade a gerir as várias inquisições. A Inquisição episcopal, surgida, como foi dito, em França, era administrada por bispos (em latim episcopus) e devido à sua ineficácia foi criada na década de 1230 a Inquisição Papal com gente já treinada para o efeito, vindo principalmente da ordem Dominicana. Esta quase não teve impacto na Europa do Norte, nem na Península Ibérica (exceptuando o reino de Aragão). O método utilizado era simples: começava com uma investigação para encontrar heréticos, passava para um julgamento e após se encontrar culpa aplicavam-se os métodos de tortura (autorizados a partir de 1252) e depois a pena, que nesta altura não incluía a execução. A personagem mais famosa julgada por esta instituição foi, talvez, Joana d’Arc, a heroína francesa.

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A primeira Inquisição tal como existe no imaginário do senso comum foi a Espanhola, fundada em 1478 pelos reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, de forma a manter a ortodoxia católica e de modo a substituir a Inquisição Medieval, cujo poder era detido pelo Papa. Originalmente, o grande objectivo era garantir a ortodoxia dos Judeus e Muçulmanos convertidos ao Cristianismo, o que foi intensificado após a decisão real de que estes grupos deveriam obrigatoriamente converter-se ou abandonar o país. O Grande Inquisidor mais conhecido e que inspirou o terror em Espanha foi, sem dúvida, Tomás de Torquemada, que se estima ter mandado queimar cerca de 2000 pessoas na fogueira. As ofensas incluíam bruxaria, bigamia, blasfémia, sodomia, e maçonaria. A forma de actuar era semelhante à Inquisição Medieval: acusação, detenção, julgamento, tortura e aplicação da pena. Se condenados, os acusados eram normalmente obrigados a fazer um auto-de-fé, uma espécie de procissão até uma praça, onde o acusado seria absolvido ou condenado a ser queimado na fogueira. A difusão da obra alemã Malleus Maleficarum (em português, "O martelo das bruxas") contribuiu para a conhecida caça às bruxas, condenando não só homens mas também mulheres e até crianças. Estas práticas, embora com altos e baixos, avanços e recuos durou até 1834, aquando da sua abolição, assim que o liberalismo começou a assentar pé na Europa Iluminista. Estima-se que o número de mortos esteja entre as 3000 e as 5000 pessoas, fazendo notar-se que a Inquisição Espanhola se estendeu às possessões de Espanha nas Américas, chegando a constituir-se nesses territórios dois tribunais.

MALLEUS MALEFICARUM Heinrich Kramer & Jacob Sprenger 1486


A Inquisição em Portugal ganhou forma em 1536 a mando de D.João III e era análoga à Espanhola. O seu primeiro e mais conhecido Grande Inquisidor foi o Cardeal D.Henrique, que se tornou rei por uns breves dois anos, após a morte do ainda jovem D.Sebastião. Espalhou-se também pelas colónias portuguesas, incluindo o Brasil, as colónias africanas e até a Índia. Tal como em Espanha, a Inquisição procurava primeiramente combater o Judaísmo e o Islamismo, voltando-se depois para a caça às bruxas, a bigamia e até mesmo a censura de livros. Na Índia combatia-se também o Hinduísmo. Entre 1674 e 1681 a Inquisição Portuguesa foi suspensa devido à actividade de António Vieira em Roma, cujo objectivo era abolir o organismo em Portugal. No século XVIII o marquês de Pombal aboliu os autos-de-fé e em 1821 a Inquisição foi abolida definitivamente, no dealbar da revolução liberal. Estima-se que entre 1536 e 1794 tenham havido cerca de 31457 autos-de-fé, dos quais 1183 foram executados e 663 foram executados em efígie (acontecia quando se executava alguém que tinha morrido durante o julgamento, queimando-se assim uma imagem da pessoa). A Inquisição Romana era um sistema de tribunais desenvolvidos pela Santa Sé durante a segunda metade do século XVI, compreendendo o tribunal inquisitorial, composto originalmente por seis cardeais (o número foi-se alterando consoante o Papa reinante) que presidiam ao mesmo tempo aos julgamentos relacionados com a fé e o tribunal de primeira instância, para casos reservados ao Papa. Este organismo compreendia grande parte da península itálica, bem como Malta e sítios isolados sob a jurisdição papal. Entre os casos mais famosos julgados por este tribunal está o de Galileu Galilei (que acabou por morrer em prisão domiciliária) em relação ao qual, só no século XX o Papa João Paulo II elaborou um pedido formal de desculpa ao renomado cientista. Estimam-se entre 50 000 – 75 000 casos julgados, 1250 dos quais terminaram em sentença de morte.

Este sistema de controlo gerou o medo e a insegurança numa Europa já atingida pelo Protestantismo e pela Revolução Científica, onde o secretismo passou a integrar a vida dos grandes pensadores. Como seria de esperar, a acção inquisitorial alastrou-se do plano da fé para o plano social, onde não havia espaço para questionar o poder secular. É possível encontrarem-se paralelismos com os regimes totalitários do século XX onde o que estava em jogo não era já a fé numa religião mas sim num sistema político. É, talvez, a prova de que o ser humano não aprende tanto quanto devia com a história da humanidade e que, ciclicamente, comete os mesmos erros esquecendo-se de valores como a dignidade e a liberdade, esquecendo-se que violência gera violência, o que, como será de esperar, resultará numa fragmentação social, repressão, e instalação de minorias.

AUTO-DE-FÉ Lisboa 1647

’ História

GALILEU & A INQUISIÇÃO ROMANA Cristiano Banti 1857

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ID’ENTIDADES

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ID’ENTIDADES

Nesta edição de ID’ENTIDADES, seguindo o tema geral da ID’ deste mês, "Violência(s)",decidimos abordar, de modo frontal, a temática da violência doméstica. Assim, foi feita uma entrevista a uma mulher, a Lia, que, durante anos, foi vítima de violência doméstica e que, em discurso directo, expõe o seu percurso de vítima de violência. Trata-se de um registo real, sofrido, vivido, que serve de janela de visibilidade para todas as vítimas que, no silêncio da sua vida torturada, apenas anseiam por ... Liberdade e Paz!

ENTREVISTA ’ MANUEL DAMAS FOTOGRAFIA ’ DIOGO VIEIRA DA SILVA

ID’ Lia, antes de mais quero agradecer-te, em nome da Revista ID’, a tua disponibilidade para concederes esta entrevista. Que é complicada, porque te obriga a recordar momentos dos mais dolorosos da tua vida. Mas tu percebeste a enorme importância do teu contributo. Um relato, na primeira pessoa, com carácter pedagógico. Que se dirige a todos e todas que, ainda hoje, são vítimas. Acima de tudo é uma janela de visibilidade, solidária para quem é vítima de violência. Assim sendo, o nosso sincero agradecimento. Lia tu foste, durante muitos anos, vítima de violência doméstica e eu queria conversar contigo sobre isso. O intuito desta entrevista é denunciar. Falar com alguém real, com nome, com sorriso, com rosto, com passado, com presente e, acima de tudo, com futuro…Merecido. Não pretendemos fazer desta conversa um relato de vitimização ou politicamente correcto. Não há políticas correctas quando nos encontramos imersos num turbilhão de violência, sem a termos provocado. Não há politicas correctas quando somos vítimas permanentes de violência psicológica e física, continuada e progressiva, em que nem os momentos de descanso conseguem ser libertadores porque o medo, o temor, de acordar em pleno acto de agressão é real. Assim sendo a intenção é denunciar e, acima de tudo, para todas as vítimas que nos lêem, uma mensagem de solidariedade para perceberem que não estão sós, que não são caso único. Acima de tudo, que não têm culpa. É necessário assumir que há toda uma caminhada, um trajecto 39


ID’ENTIDADES

de vida e de sofrimento comuns. Mas o intuito é, acima de tudo, revelar que há sinais de alerta e mostrar que há, sempre, uma luz ao fim do túnel, por mais destruidora que a realidade seja. Assim sendo, conta-nos, na primeira pessoa, como é ser uma mulher violentada … não violada sexualmente mas violentada, permanentemente, na tua vida, na tua forma de ser e estar, na tua existência, no teu dia a dia … LIA É um processo muito complicado. Começa por ser uma frase mais grosseira, um gesto mais violento e, depois, quando acordamos para a realidade, estamos numa espiral de violência em que até a auto estima nos é roubada. No meu caso tornou-se mais complicado porque fui vítima de violência durante muito tempo, inclusive durante o namoro e tornou-se ainda mais complicado quando dessa relação nasceu uma filha que, também ela, foi vítima, por ser testemunha diária, desde o nascimento. ID’ Bem…vamos começar a desbravar terreno e tentar ordenar os factos temporalmente, percebendo nós que, para ti, relembrar tudo é extremamente doloroso. Mas esse processo é necessário para que as pessoas que estão a ler esta entrevista consigam fazer a viagem connosco e aprendam a perceber, de forma pedagógica, os detalhes e os sinais de alerta. Estiveste casada quanto tempo? LIA 8 anos ID’ Namoraste quanto tempo? LIA 2 anos ID’ No total foram 10 anos de relacionamento … LIA Sim. ID’ Alguma vez, durante o namoro, houve qualquer tipo de indício que desse para perceber ou suspeitar de 40

alguma coisa? LIA Houve. Quase na véspera do meu casamento. Eu não queria casar. Casei porque os meus pais me pediram. Eu nem sequer estava grávida. Só engravidei dois anos após ter casado. Mas já nessa altura começaram a surgir os indícios de violência. Mas que eu desvalorizei porque pensei que seria uma reacção à minha pouca vontade em casar. Entretanto começou a haver pressão por parte dele e por parte de ambas as famílias e eu acabei por concordar com o casamento. Eu

ainda não tinha consciência concreta que estava, já, a ser vítima de violência no namoro. Mas algo me impedia, no meu íntimo, de querer avançar para a oficialização da relação. Acabei por aceder devido a todas as pressões. ID’ Como foi o início da vida conjugal? LIA No primeiro mês correu tudo bem. Mas rapidamente as coisas começaram a mudar. As discussões começaram, com elas vieram os insultos e logo a seguir as agressões. Começou uma realidade nova para mim. A falta de liberdade. O controlo. Ele começou


a controlar a minha vida, as pessoas com quem eu falava, até o meu carro. Ninguém podia falar comigo e eu não podia falar com ninguém. Com as discussões começaram as minhas fugas para casa dos meus pais. Mas eu não contava o que se passava. Tinha vergonha. E por causa disso a minha família não percebia o que se passava. Como tal começou a gerar-se uma enorme pressão familiar para resolver as coisas. Nunca tinha havido nenhum divórcio na minha família. E havia também o receio do “falatório” do povo,

do que as pessoas iriam dizer, do que iriam pensar. Além de que ele tinha criado uma máscara muito conveniente. Basicamente criou-se um ciclo… havia uma discussão, eu saía de casa e fugia para casa dos meus pais. Dias depois ele vinha falar comigo, pedia desculpa, prometia que não voltava a acontecer, que tudo ia mudar. E eu acabava sempre por ceder. E foi sempre esse o percurso. Até que eu engravidei. Dois anos após o casamento. Dois anos de agressões. Esta gravidez não foi premeditada.

Aconteceu…tão simplesmente porque me esqueci de tomar a pílula. Quando engravidei ele prometeu que tudo iria mudar. E eu pensei que realmente tudo podia voltar a ser diferente. Mas se eu pensava que as coisas iriam mudar… realmente mudaram, mas para pior. ID’ Deixa-me interromper-te, até para podermos fazer o ordenamento cronológico dos factos. Tu iniciaste uma relação de namoro, durante o qual houve alguns momentos de violência. Mas entretanto vocês casaram e tu deste o benefício da dúvida. Pensaste que, casados, tudo poderia mudar. Achaste que, vivendo juntos, poderiam limar arestas e que, com o tempo, tudo se iria compor. Mas rapidamente começaste a perceber que as coisas, em vez de melhorarem após o casamento, começaram a piorar. O círculo começou a apertar-se, a fechar. Depois levantaste outra questão que, nestes casos de violência doméstica continuada, é importante e caracteriza o processo. Ou seja, separaram-se várias vezes, mas ele pedia desculpa, fazia juras de mudança e tu acabavas por anuir, inclusive sob a pressão social e familiar. E esta questão da pressão familiar levanta outra questão que também é muito habitual, nomeadamente na sociedade portuguesa, ainda hoje. O facto de, em termos sociais, em termos culturais enfim, em termos públicos, ainda hoje, em Portugal, em 2012, o divórcio ser considerado pejorativo, uma deficiência, um erro, uma nódoa que mancha. Também sentiste isso na pele? LIA Senti. Ainda por cima a minha família é muito conhecida na zona em que vivo. Na minha família há diversos casamentos de aparência, mas divórcios não há.

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ID’ENTIDADES

ID’ Entretanto ficaste grávida. E surgiu de novo a esperança de que as coisas se alterassem, definitivamente. Mas as coisas não mudaram, uma vez mais. Alguma vez foste agredida durante a gravidez? LIA Fui agredida, várias vezes, durante a gravidez. Cheguei a dormir, grávida, no quarto que viria a ser da minha filha, no chão, num colchão que lá tinha. E ele ficava a dormir no quarto de casal, na cama. Era a forma que eu tinha de me proteger e à minha filha. De conseguir descansar alguma coisa, com alguma tranquilidade. No chão, no quarto da minha filha, não estava exposta a violência... ID’ Já nos contaste que, facto também habitual nestes casos, omitias à tua família os detalhes de todo o processo de violência de que eras vítima… LIA Sim. A minha família não tinha 42

a noção, naquela altura, da realidade pela qual eu estava a passar. ID’ Mas porquê? Não eras tu que estavas a falhar. Tu não tinhas culpa. Não eras tu que agredias. Tu eras a vítima, inocente e silenciosa… LIA Não sei. Talvez por vergonha. Por causa da chantagem psicológica que ele exercia sobre mim. Mas também cheguei a ser vítima de chantagem psicológica por parte da família dele, que o tentavam desculpabilizar. Mas o grande agressor, o grande chantagista, era ele. Ele sabia usar todos os esquemas que, de forma directa ou indirecta, exerciam influência sobre mim e me mantinham encarcerada na jaula. Ele chorava muito … Pedia sempre desculpa … E jurava que ia mudar … ID’ O agressor, muitas vezes de forma consciente, vitimiza-se. LIA Ele não fazia só isso. Quando os

meus pais estavam presentes ele colocava a máscara. Em público era carinhoso, respeitador, atento. Só faltava andar comigo ao colo. Há, contudo uma coisa de que eu nunca o posso criticar. Ele sempre foi uma pessoa honesta e trabalhadora. E foi sempre fiel. O meu casamento não acabou por nenhum tipo de traição de qualquer uma das partes. Pelo menos que eu saiba. Terminou porque as agressões foram aumentando e encurtando o tempo que as separava. Houve uma altura em que as coisas se tornaram insuportáveis. ID’ Tu és uma mulher bonita. E em Portugal muitas vezes as agressões acontecem por esse motivo. Alguém torna-se agressor por ter baixa auto estima, por insegurança, por ciúmes, muitas vezes infundados. Não estamos a falar de infidelidade. Falamos de al-


guém que está bem e que está com alguém que não está bem. E porque não está bem agride. LIA Ele até era um homem bonito, alto, espadaúdo. Aquele tipo de homem com quem todas as mulheres queriam estar. Moreno, de olhos verdes. Se formos pela questão do ciúme era mais provável que fosse eu a ter ciúmes e não ele. ID’ O que aconteceu quando a tua filha nasceu? LIA No fim da gravidez a minha filha nasceu e nessa altura eu decidi fazer a laqueação das trompas. Basicamente porque eu tinha medo, tinha muito medo. E tinha receio de ficar de novo grávida e novamente encurralada. Nessa altura ele teve que assinar um documento a autorizar a laqueação. Penso que ele assinou porque se apercebeu que eu era, na realidade, uma

pessoa com medo. Também nessa altura, uma vez mais, eu tive esperança. Mais uma vez pensei que tudo ia mudar, que tudo se ia resolver. Mas as agressões recomeçaram pouco tempo depois. Só que, agora, as coisas tinham-se agravado porque existia a minha filha, que começou a testemunhar as agressões. ID’ Estás a dizer que quiseste fazer a laqueação das trompas e que tiveste que pedir autorização ao teu marido? Que ele teve que assinar? Mas isso não é uma perversão total? A mulher necessita da autorização do homem para mexer no próprio corpo? É como se a mulher fosse um mero bem, como se fosse propriedade do homem. O homem aparece como dono. É como se a Sociedade assumisse publicamente que a mulher não é capaz, só por si, de decidir sobre o seu próprio corpo.

A mulher, nesse contexto, não é autónoma. Não tem espaço para escolher, para optar, para decidir. Não tem hipótese de decidir que não quer engravidar de novo, que não quer correr esse risco novamente. O que aconteceu foi que tu tiveste que pedir autorização, em relação ao teu próprio corpo, ao teu marido, como se fosse teu dono. Tiveste que pedir autorização ao teu agressor? Ao teu algoz? LIA Na realidade foi isso que aconteceu. Eu tive que pedir autorização… ID’ Mas isso é a perversão total… LIA Pois é. ID’ Quando a Rita, a tua filha, nasceu, o que pensaste? LIA Pensei, uma vez mais, que com o nascimento da minha filha as coisas iriam mudar. Passava a haver mais uma pessoa em casa, uma criança pequenina… 43


ID’ENTIDADES

ID’ Mas não foi o que aconteceu… LIA Não. Rapidamente coisas voltaram a ser o que eram, aliás, pioraram. Se ele imaginasse que alguém olhava para mim, já havia discussão e tudo terminava em agressão. ID’ Disseste-me que a tua filha começou a aperceber-se. Que reacções é que a criança tinha? LIA A minha filha chorava e ficava muito agitada. Mais tarde chegou a ir a gatinhar até junto dos meus pais para chamar a minha mãe para me vir socorrer…Por várias vezes isso aconteceu até que um dia ele agrediu-me no corredor de casa dos meus pais pensando que o meu pai não se tinha apercebido. Só que o meu pai apercebeu-se, aliás, o meu pai viu, foi buscar uma arma e queria atingi-lo. Mas a minha mãe interveio e conseguiu acalmar os ânimos. A partir desse momento a violência instalou-se, não sendo necessário disfarçar mais. Ele apercebendo-se que já não precisava de fingir tornou-se ainda mais violento. Lembro-me de uma vez que ia com ele no carro e vendo os meus pais atirei-me do carro com a minha filha nos braços. Eu só queria fugir. Acima de tudo queria libertar a minha filha que era inocente neste processo todo. Acima de tudo eu não queria que a minha filha ficasse traumatizada para o futuro. ID’ Com o agravamento da situação chegou o momento em que decidiste terminar com a relação e optar pelo divórcio. Mas eu sei que, enquanto decisão, isso demorou. Ou seja, tu acabaste por ser vítima da pressão social de que falávamos há pouco. LIA A decisão definitiva acerca do divórcio foi muito difícil para mim, principalmente por causa da pressão social que ainda hoje condiciona as mulheres divorciada. Até no colégio onde a minha filha estudava eu senti a pressão social. Cheguei a aperceber-me, inclusive, que muitas vezes a 44

minha filha era marginalizada por ser filha de pais divorciados. ID’ Era essa questão que queria abordar agora. É que nós estamos, pelo menos em termos teóricos, numa Sociedade que se considera moderna. Nós estamos numa Sociedade que se considera evoluída. Mas não passamos, na realidade, de analfabetos sexuais e emocionais. Porque isso que acabas de contar acontece muitas vezes. Tu disseste que tentaste proteger a tua filha, mantendo uma relação em que ambas eram vítimas de violência doméstica, uma directa e outra indirecta enquanto testemunha. E mantiveste tudo isso também para que a criança não fosse discriminada por ser filha de pais divorciados. Quando é que tu decides rebentar com tudo e desistir de vez? LIA Eu decido terminar com tudo na altura da primeira comunhão da minha filha. Quando o meu irmão me diz que não vai assistir porque sabe das agressões de que sou vitima e que não quer ser cúmplice. Mas nessa altura as coisas já estavam insustentáveis. A minha filha tinha crescido, já falava e começava a contar. Além de tudo começava a tomar consciência das agressões e a perceber a realidade. Várias vezes chegava a casa e encontrava-me com a cara cheia de sangue, resultado das agressões. É na fase em que a Rita começa reagir muito mal a toda a situação. Começou a ter crises de pânico, tinha medo de dormir sozinha, principalmente de noite. Tudo isto obriga-me a decidir e acabo por optar pelo divórcio. É na altura em que entra a primeira acção de divórcio. Mas, uma vez mais, ele volta a pedir-me desculpas e a fazer promessas de mudança. Uma vez mais volto a acreditar e perdoo. ID’ Deste, uma vez mais, o benefício da duvida… LIA Sim, uma vez mais. Só que, pas-


sado algum tempo, regressam as discussões, as agressões psicológicas, os insultos e a violência física e eu decido, pela segunda e ultima, avançar, definitivamente, com o divórcio. A situação estava insustentável. A polícia ia várias vezes a minha casa tomar conta das ocorrências e das agressões. ID’ Sempre tiveste compreensão e cooperação por parte das autoridades policiais? LIA É hábito dizer-se que o sistema policial protege a mulher mas eu tenho que reconhecer que nem sempre é assim. Recordo uma vez que me dirigi à esquadra de polícia porque ele me tinha agredido e eu estava com um olho negro e o agente da polícia que me acolheu foi muito arrogante e agressivo. Eu sei que acabei por retirar muitas das queixas, o que se tornava incompreensível para as forças de segurança. Mas eu nunca deixei de ser uma vítima. E merecia compreensão… ID’ Mas agora as coisas estão diferentes. As esquadras já têm técnicos preparados para lidar com estes casos e para receber, acolher e apoiar as vítimas de agressão. Claro que há, ainda, muitos casos de falta de preparação. É preciso perceber que uma mulher vítima de violência doméstica ou um homem, porque também os há, têm que ser recebidos e acolhidos de forma preparada e especializada. Estes técnicos têm que ter formação especializada nas mais diversas vertentes. Até mesmo em termos de linguagem verbal e não verbal. Há frases correntes que um agente policial utiliza que são ditas de uma determinada forma e com uma intenção específica e que são ouvidas e percecionadas de modo completamente diferente. Muitas vezes há frases que são ditas em contexto oficial que são, elas próprias e só por si, uma outra forma de agressão, de violentação…Passas, depois, para a fase seguinte. O divórcio. Sentiste-te

apoiada quando entras em processo de divórcio? LIA Nessa altura tive o apoio das pessoas que eram importantes para mim…dos meus pais. As outras pessoas nem sempre estiveram do meu lado. Até porque ele sabia vitimizar-se e usava, em público, uma máscara perfeita que induzia as pessoas em erro e acima de tudo fazia-as duvidar dos factos. É nessa fase em que, como ultima arma de agressão e de chantagem, usa a minha filha. Quando eu decido avançar com o divórcio e ele se apercebe de que é definitivo ele começa a vitimizar-se, a dizer que está doente e que se vai matar. Mas eu nunca mais cedi. Tinha sofrido muito e era irreversível. Mesmo depois do divórcio e da regulação do poder paternal as coisas não correram bem. Ainda hoje, por exemplo, não consigo gostar do Natal. Tudo porque após o divórcio, ainda a minha filha era pequena, numa véspera de Natal el desapareceu com a criança e eu andei horas com a policia, aflita, à procura. A partir desse dia nunca mais consegui esquecer a enorme angústia que senti e nunca mais consegui gostar do Natal. Ficou o trauma. ID’ Queres deixar alguma mensagem a título de conclusão? LIA Este processo todo, apesar de tudo, fez-me crescer como pessoa, como mulher, como mãe. Aproximou-me, inclusive, dos meus pais. E aproximou-me mais, ainda, da minha filha, que é, hoje, a minha melhor amiga. Quanto a ele, é pai dela. Ela é que o vai julgar e não eu. Acima de tudo eu readquiri o gosto pela vida e comecei a gostar mais de mim própria. Hoje, acho que a vida é bela e que merece ser vivida

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DESPORTO

CORPO EM MOVIMENTO ANTÓNIO MARTINS SILVA Durante a minha infância e adolescência (anos 80) não havia torneio de futebol de salão que não tivesse, no desfecho de alguns jogos, umas boas chapadas, murros e afins entre todos os envolvidos, jogadores, árbitros, delegados e completamente extensíveis para fora do ringue ou pavilhão, com as “amizades” a tirarem partido destes desacatos para, também eles, “molharem a sopa”. Uma verdadeira estupidez em recintos desportivos onde o principal rastilho era, por vezes, uma palavra mais insultuosa. Eram os maus, os poderosos, os reis do bairro, temidos por uns e admirados por outros. Sempre me perguntava qual era a grande finalidade de tamanha violência gratuita, com que propósito? Porque não sabiam respeitar as decisões e os efeitos colaterais das mesmas? Porque participavam eles em atividades com regras se não as iam respeitar? Porque faziam questão de serem admirados pelo poder físico e não pela qualidade desportiva das suas ações? Enfim, Portugal na puberdade da Democracia, onde muitos usavam estes meios para libertar tensões e exibir toda uma vida de frustrações e demais questões emocionais escondidas, para não mencionar um sem número de energúmenos de diversa ordem irem a jogo só para descarregar! No fundo, estes episódios não são muito diferentes dos que aconteceram e vão ainda acontecendo um pouco por todo o lado onde a ignorância é rainha e a estupidez impera! Podemos afirmar que, quanto mais débil é uma Sociedade, mais estes cenários se repetem e têm importância, i.e., nas micro-sociedades onde estão inseridos os ditos “artistas”. Este era um cenário onde facilmente se identificavam os porquês destes comportamentos, o que torna interessante a análise a comportamentos violentos noutros tempos e noutras sociedades. Há alguns fatores que emergem com facilidade: a educação das pessoas e o que as leva a ir aos eventos desportivos, a forma como vêem o Desporto e o país onde vivem (nível de civilização).

A forma de ver o fenómeno desportivo é, também, um fator forte para manifestações impróprias: há os que vêem um jogo como uma questão de vida ou de morte e há os que percebem que é apenas uma competição, onde alguém vai ganhar e alguém terá de se preparar melhor, se também quiser ganhar numa próxima oportunidade, que vai existir num futuro muito próximo. O nível civilizacional é incontornável quando queremos analisar e/ou comentar a Violência no Desporto. Em Portugal, não há jogo se não houver polícia. Em Espanha, a palavra mais agressiva que ouvi nas bancadas nos jogos da formação foi “ és um burro” (para o árbitro) e o resto da bancada ficou indignada! Na Noruega, país onde trabalho atualmente, há apenas um árbitro nos jogos da formação e ninguém, sequer, comenta. Estão todos em volta do campo numa desordem aparente, mas não há um sinal de arruaça ou de desacato, ninguém pisa o risco. A finalidade é apoiar e tirar partido do evento. Não quero dizer com isto que Portugal não seja um país civilizado, mas se compararmos, ainda estamos a uma certa distância nos comportamentos e na convivência com os demais. É um tema demasiado complexo, este da Violência no Desporto. Haveria (e há) muito mais a acrescentar. Estamos a falar de pessoas, de massas, que têm diferentes contextos, diferentes vivências, diferentes olhares sobre um mesmo fenómeno. Até a própria Imprensa, a forma como aborda os jogos e os comentários que profere, pode ou não incendiar um evento desportivo. Enquanto existirem pessoas haverá conflito, a diferença está onde e porquê. Uma coisa é certa, aquele cenário da minha infância já não existe ou pelo menos é muito raro. Já houve progresso, mas ainda temos de ter policia para efetuar um jogo, mesmo sendo de juvenis. Eu se fosse árbitro também não arriscava! Para quando a dita festa, o convívio, a interação, a troca de experiências e o crescimento social de todos? Todos ganharíamos com isso, teríamos dois espetáculos em vez de um, o desportivo e o de bancada. Não queremos todos que a vida seja uma festa? Até à próxima... em movimento! ’ Mestre em Desporto de Alto Rendimento

Quanto à Educação, fácil é descortinar que uma boa percentagem ainda não percebeu que a Guerra e o Desporto não são sinónimos, que Desporto é uma forma evoluída de competir, de guerrear, se se quiser, mas dentro de regras com "fair-play" e respeito por todos os envolvidos. É uma forma de convívio, de festa, onde há um pretexto para nos reunirmos e desfrutarmos de tudo o que esse evento tem para nos proporcionar. Não é local de exibir corpos grossos, de criar conflito só porque a inteligência não está lá para entenderem a verdadeira essência do que está a acontecer e porque acontece. 47


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CINEMA & TEATRO Por

eloy monteiro ,

Actor

A VIOLÊNCIA DA PIPOCA Foi-me sugerido que escrevesse esta rubrica respeitando o tema geral deste número da Revista ID – Violência (s)… Não é Violência as distribuidoras (monopólios) não incluírem, juntamente com o filme em cartaz, curtas-metragens? Desta forma davam a conhecer os bons trabalhos e, inclusive, novas estéticas de jovens realizadores, onde teriam a oportunidade de apresentar as suas primeiras obras… Não é Violência as instituições nacionais não apoiarem projectos, reconhecidamente bons, de novos realizadores, apenas pelo facto de os autores não serem conhecidos? Não é Violência a não descentralização de produções nacionais? Não é Violência as televisões não produzirem mais telefilmes, nacionais? Não é Violência o quase total esquecimento , a que os atores não residentes na capital estão votados? É importante referir e refletir que os grandes talentos não existem apenas nos grandes centros… Não é Violência as produções televisivas esquecerem os jovens atores e atrizes saídos das várias escolas oficiais de artes performativas portuguesas? Não é Violência serem sempre escolhidos meninos e meninas com caras e corpos telegénicos, mas sem qualidades interpretativas? Existem fatores muitas vezes desconhecidos do grande público, supostamente…

Não é Violência a inexistência de Mecenas que apoiem, de forma consistente, a produção nacional? Até porque, em muitos países já foi percebido que o investimento Cultural se torna uma mais valia para a Economia dos mesmos. É fundamental a criação de uma nova mentalidade empresarial, em Portugal, sensível a este tipo de investimento. Não é Violência, que os portugueses tenham a tendência para a critica destrutiva, não consistente, da produção nacional? Quando o público não adere, inclusive pela presença, não pode fazer juízos críticos. Não é Violência que a produção cinematográfica que mais vende em Portugal seja o “cinema da pipoca”, recheado de carros pelo ar, explosões, argumentos desargumentados, linguagem vernácula, realizações cheias de efeitos para “encher o olho”, vulgo ecrãn? Assiste-se hoje a uma verdadeira colonização pela indústria cinematográfica americana. Não é Violência a não adesão ao cinema europeu? Culturalmente ficaríamos mais ricos… Não é Violência a inexistência de salas que exibam as produções de cinema independente e de autor? Após tudo acima questionado, seria uma verdadeira Violência terminar sem vos dizer… eu acredito e aposto no cinema nacional !

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LAZER I LIVROS

“EU DIGO NÃO AO NÃO”

VÁRIOS AUTORES, COORDENAÇÃO DE MAGDA LUNA PAIS Enquanto folheava alguns livros, numa tarde em que tudo me parecia opaco e sem interesse, um pequeno livro reluzia, garrido e destemido, uma frase que certamente todos questionariam. Eu próprio, intrigado, esboçava uma careta curiosa pensando: “Eu Digo Não ao Não”? O que será? Talvez negar aquilo que negamos, ou então negar-se a negar o que quer que seja? Devo confessar que reflecti sobre o título por alguns instantes, contudo nenhuma análise semântica me pareceu conclusiva. A única solução seria ler o livro, “tarefa” pouco complicada quando se sente semelhante atracção pelo seu título. Dividido em três partes, este livro surge como uma colectânea de textos, em prosa e em verso, de diversos autores com o mesmo propósito, o de dizer Não ao Não. Deste modo, destaca-se a sua heterogeneidade e liberdade, sendo dado ao leitor a possibilidade de se encontrar diferentemente em cada texto, assim como a de, espontaneamente, abri-lo em qualquer página e disfrutar, aleatoriamente, de uma história singular. Na verdade, todos podemos Dizer Não ao Não em diversas situações. Não se tratando meramente de uma acepção positivista, cada texto reporta-nos para uma experiência onde o Não é imperativo até mesmo para prosseguir. Com a participação especial de Luísa Ducla Soares e de Susana Ribeiro, “Eu Digo Não ao Não” afigura-se como um hino que todos deveríamos ler em qualquer altura do dia. Assim, naquela tarde, fechei o livro e já nada me parecia vazio. Cada texto traz consigo uma aprendizagem única. É interessante constatar como tantos autores, em uníssono, conseguem com que o leitor, em cada texto, reforce a ideia e possa, ao terminar, dizer para si mesmo “Eu também digo não ao não.” Nicolas Martins ’ Literatura

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LAZER I MÚSICA

MERECIDA HOMENAGEM Intérprete marcada pela emoção, Maria Bethânia completa 47 anos de carreira com um novo álbum- “Oásis de Bethânia”. Desde o começo, Bethânia sempre foi lembrada pelo profissionalismo e integridade musical. Este novo projecto vem com um formato inédito: cada uma das dez músicas do disco recebeu arranjos de vários compositores e músicos, representando não uma ruptura, antes uma evolução, e muito bem conseguida, completando o círculo de um álbum que se pretende introspectivo e ao mesmo tempo purificador . Quando se interpretam músicas de diferentes e variados autores, o ouvinte não tem a sensação de que ouve um eco, um resquício de uma outra música, algo familiar, uma vez que não encontra o cunho, a linha melódica, aquele acorde e, algumas vezes, a preferência por certas figuras rítmicas que fazem parte da assinatura de cada autor, tratando-se de um traço da personalidade. Maria Bethânia aparece como autora do texto da música “Carta de Amor”. A letra, em perfeita harmonia com a música, mostra uma enorme necessidade de escrita da intérprete baiana , juntamente com a vontade de cantar as palavras, pensando eu que se trata de uma carta de amor para a própria: de si, para si. O novo disco vem, ainda, recheado de homenagens a Portugal, com uma faixa dedicada ao fado. A canção “Fado” , composta pelo músico Roque Ferreira, curiosamente não foi gravada com guitarra portuguesa, mas sim com viola caipira. Não obstante, creio que os sons típicos do nosso tão conhecido fado se encontram intactos, não podendo deixar de notar que a viola caipira encaixou perfeitamente, trazendo uma leitura fortemente brasileira, de raíz. Outro ponto interessante e que me deixa particularmente orgulhoso, é o facto de existir no repertório uma interpretação de um poema de Bernardo Soares (heterónimo de Fernando Pessoa), em “Calmaria”, musicado por Jota Velloso. Em suma, este projecto denota mais uma tentativa (conseguida, diga-se) de imprimir maneiras inéditas de expressar o canto e a alma, com a busca de novas sonoridades e novidades estéticas que formam o corpo da música e que fazem de Bethânia uma das mais importantes cantoras e a artista mais inventiva do cancioneiro brasileiro, decidida a viver pela arte. Como ensina Ferreira Gullar: "A arte existe porque a vida não basta". Tiago Jonas ’ Música 51


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DESIGN

desígnios do ð&sign DESIGN & A ARTE

Já vimos, no anterior número da ID' que, etimologicamente, a palavra design sofreu uma evolução e que inicialmente tinha uma acepção que a unia ao domínio das artes. Aliás, Flusser esclarece que: "Os termos design, machina, tecnica, ars e arte estão estreitamente ligados entre si, nenhum deles é pensável sem os outros e todos têm a mesma origem na mesma visão existencial do mundo." Esta associação do design ao mundo das artes, sobretudo, numa fase inicial, com o desenho, e posteriormente com outras escolas de arte, na sua vertente projectual, abriram caminho à ideia que, de facto, o design é, em certa maneira, descendente da arte. De mais a mais, quando nos dirigimos a uma livraria, ou uma biblioteca, esta proximidade é fisicamente, no espaço, comprovada. Adicionalmente, é impossível falar numa história do design sem recorrer à história da arte. Existem ainda as visões que colocam o design como uma actividade criativa inerente à vivência humana, tais como a de Papanek ao reiterar que o "Design é compor um poema épico, executar um mural, pintar uma obra de arte ou compor uma sinfonia". No entanto, a crescente demanda por inovação e pela introdução de um valor acrescentado nos produtos levou o design moderno e contemporâneo a apostar no estudo e tratamento da sua forma e componente estética, paralelamente à sua vertente funcional. Simultaneamente, surge a questão do estilo de vida conferido pela natureza de determinadas categorias ou marcas de produtos. Nos dias de hoje podemos dar a título de exemplo toda a gama de produtos de marca Apple, que identificam claramente um estilo de vida específico e facilmente identificável. Esta habilidade e especificidade cambiou o paradigma do design no panorama sociocultural.

Por um lado, a ligação que existe entre o design e o mundo das artes não pode ser negada nem esquecida, já que faz parte de uma herança etimológica e cultural, ao mesmo tempo que ambos traduzem exercícios da criatividade do homem. Por outro lado, existem diferenças, no que toca aos seus objectivos finais, como explica Lowe: "Designers produce ideas. Then turn those ideas into visual communications. Art is also about ideas, and those ideas are also (mostly) turned into visual communications. The only difference being that artists do it to meet their personal needs and designers do it to meet the needs of others". Isto é, a actividade do design está implicitamente destinada a uma vertente de resolução de problemas externos aos do próprio criador. O exercício do design não pode ser algo críptico, indecifrável, ou seja, o utilizador de um objecto de design terá de ter todas as ferramentas para o descodificar, de forma a fazer a sua leitura e uso completo. O mesmo não necessita de ocorrer na arte. No design contemporâneo, verificou-se mesmo uma superação da condição do designer enquanto mero solucionador de problemas para aquele que o procura proactivamente. Isto é deu-se uma superação da categoria de problem solver (aquele que resolve os problemas) para problem finder (aquele que procura os problemas), ilustrando o papel activo, dinamizador e socialmente consciente do designer na sociedade. ’ Prof. Universitário e Designer de Comunicação

Esta mudança foi impulsionada, numa fase inicial, sobretudo, quando artistas tais como Marcel Duchamp apresentaram o seus readymades , tais como a Fountain (o urinol) de 1917, como formas de arte. Ou, mais recentemente, com Andy Warhol, que transformou produtos de design (latas de sopa de tomate), em produtos artísticos. É agora frequente encontrar em museus de arte moderna peças de design. Marcel Duchamp Fountain 1917

Andy Warhol Campbell's Soup I 1968

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MODA I CRÓNICA

SÍLVIA ALVES

A MODA, UMA PEQUENA DITADURA Hoje, numa tarde de sol um pouco imberbe, ainda, pela Primavera, estou a tentar escrever esta crónica. A proposta do tema é a violência. Falando de Moda parece estranho falar de violência mas, na realidade, partindo do princípio de que qualquer imposição é uma violência, então estamos a falar de coisas que se tocam intimamente. Se fizermos uma viagem pela história, no Ocidente, vemos o quanto foram violentas as imposições da Moda. Falamos de toucados duros, chapéus pesados e cabeleiras pouco higiénicas, ao passarmos pelo antigo Egipto, pela Idade Média e pelos séculos XVI, XVII e XVIII. Falamos de corpetes ajustados a interromper a respiração desde 1600 a.C. – em Creta – passando pelo século XVI, entrando novamente nos séculos XVIII e XIX e chegando aos anos 50’ do século XX. Falamos, ainda, dos sapatos e das formas estranhas que foram adquirindo, ora para alongar a silhueta, ora para a tornar mais leve e burlesca. Podemos ainda falar das coquilhas incómodas mas necessárias, dos cintos de castidade, das tonsuras, dos véus, dos ligueiros, correndo no tempo até aos nossos dias salpicados de piercings e tatuagens.

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IDADE MÉDIA

Desde os anos 70’ do século XX que se verifica, no Ocidente, uma tentativa de conferir à Moda um caracter eclético tornando-a moldável a cada indivíduo; o gosto particular de cada um imperaria à margem de tendências restritivas e únicas. Foi uma tentativa, de certa forma, estéril porque aconteceu um estranho fenómeno social: uma vez livres de uma tendência única e abertas a criarem o seu próprio estilo, as pessoas criaram ditaduras corporativas em “grupos sociais”, “clãs” e “tribos urbanas”, que se unem visualmente pelo estilo e se fundem numa cultura própria e extremamente exigente. Esta exigência toma necessariamente uma forma violenta. Pertencer a


SÉC XVIII

1950

um grupo é uma imposição e é também uma imposição de carácter muito violento construir a imagem determinada para o conseguir fazer. Os indivíduos adquirem, a qualquer custo, objectos que os identifiquem com a imagem do grupo: marcas, acessórios, peças de roupa, cores, música, revistas e uma linguagem própria oral e escrita. Há, nisto tudo, um regime de sujeição, existindo sempre o perigo eminente de ser cabalmente excluído ou, até, o impedimento à identificação caso as regras não sejam cumpridas. Enquanto a Moda era exercida como uma imposição global e única, havia os “fora de moda” – os que não seguiam os critérios e se mostravam “clássicos” ou

1940-50

“démodé” – e os “extravagantes” – os que ultrapassavam as posturas regentes tomando atitudes vanguardistas. Hoje, nenhum destes casos é possível dentro de cada grupo porque as pequenas ditaduras são claramente estreitas e indivisíveis. Em tempos de crise, ao contrário do que seria de esperar, estas imposições são ainda mais evidentes como se se tratasse de uma rígida “selecção” da humanidade. Deixo esta reflexão em jeito de conversa: a Moda designa, no contexto actual, uma das mais duras formas de violência. ’ Designer de Moda

Imagens retiradas de: "Le costume Français" Flammarion, Paris "Hairstyles of the World" The Pepin Press, Amsterdam "Costume" The Peppin Press, Amsterdam "A History of Costume" Dover Publications, Inc., New York

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MODA I PRODUÇÃO

MODA & VIOLÊNCIA(S)

AGÊNCIA ’ DIVINE MODELS MODELOS ’ HELDER FERREIRA CATARINA PINHEIRO VANESSA DIAS TIAGO DIAS ANABELA DIAS ANA RITA CABELOS ’ MÁRCIA RIBEIRO MAQUILHAGEM ’ SILVIA ALMEIDA ROUPA ’ W52 FOTOGRAFIA ’ DIOGO VIEIRA DA SILVA RETOUCHING ’ SÍLVIA ALVES

Neste segundo número da ID’ a nossa produção de Moda tem por base chamar a atenção para os vários tipos de violência exercidos na Sociedade. A Moda está intimamente ligada com a violência uma vez que a imagem é, muitas vezes, causa imediata do conflito. Nesta produção tivemos a colaboração directa dos modelos da Divine Models e a colecção Primavera-Verão 2012 da marca W52. A W52 marca pela diferença, num estilo casual e descomprometido com variações glamourosas para as noites quentes de Verão. Em tecidos denim, cetins e malhas frescas, a coleção apresenta uma gama de cores apelativa com a predominância do preto e dos tons caqui.

A violência por ciúme, entre casais heterossexuais, está normalmente associadas à imagem tendo por base imposições de moda. O excesso de sensualidade feminina desperta nos homens um sentimento de posse que leva muitas vezes a actos de violência extrema. Nos actos de violência exercida sobre o elemento feminino, muitas vezes, as armas são objectos cortantes ou de arremesso. 58


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MODA I PRODUÇÃO

Os actos de violência exercidos sobre o elemento masculino são menos impulsivos e mais camuflados, sendo usados, normalmente, objectos cortantes do dia-a-dia. Este tipo de violência está muitas vezes associado a situações de desespero, tirania, repressão exercidas pelo homem.

A violência está presente quando idade é motivo de exclusão. A imagem espelha uma agressividade de olhares que condenam a personagem por ser mais Velha. A personagem não se identifica no grupo e é alvo de depreciação. 60


A violência entre pares do género feminino deve-se, muitas vezes, a situações de competição tendo por base a ambição de “reinar” no plano da beleza física. O confronto, na imagem, revela uma total agressividade e provocação para a luta.

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MODA I PRODUÇÃO

A violência entre pares do género masculino pode ter por base uma luta de poderes masculinizados ou sentimentos de posse e de ciúme. Neste tipo de confronto a violência é notoriamente física e de combate corpo-a-corpo.

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ECOS DO MUNDO

<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<< FRANCIS KINDER

BRASIL: UM PAÍS DE DESIGUALDADES & VIOLÊNCIAS <<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<

Quando um gringo pensa no Brasil, algumas coisas rapidamente vêm à mente: praia, mulheres com roupas minúsculas, caipirinha, churrasco... e violência. Infelizmente, uma das imagens mais propagadas do país é a violência que assola boa parte das grandes cidades brasileiras. A verdade é que a violência no Brasil não é muito diferente da de outros países de nível de desenvolvimento semelhante, como os demais latino-americanos, por exemplo. Mas a organização e perspicácia dos bandidos brasileiros assustam, e europeus ou norte-americanos desavisados ficam apavorados quando caminham pela orla carioca, pelos becos de Olinda ou pelas grandes avenidas paulistanas. Porém, assaltos são um dos menores problemas quando o assunto é violências no Brasil. O país é repleto de incongruências nessa área (assim como em tantas outras). O crescimento econômico e até mesmo a distribuição de renda não são suficientes para conter a violência.

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A violência contra a mulher já foi um problema crítico no Brasil, que começou a ser combatida através de medidas verticais de combate. A instituição de Delegacias da Mulher foi uma vitória. Nestes locais, ao invés de menosprezadas e desrespeitadas, as mulheres que sofreram violência sexual, ou apanham do marido ou pai, por exemplo, recebem tratamento adequado por profissionais qualificados e treinados para lidar com os problemas da forma correta. Outra grande conquista da população feminina foi a Lei Maria da Penha, sancionada em 2006 e que a partir de 2012 sequer necessita de denúncia por parte da mulher que foi vítima de violência. Esta lei ampara mulheres que, de alguma forma, sofrem violência dentro de casa. Ainda assim, não são raros os casos de mulheres que apanham, especialmente em regiões inóspitas e distantes. Porém, aos poucos a realidade muda para estas cidadãs. A violência contra a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) também é grave no Brasil, e quase institucionalizada. Um projeto de lei que bane a homofobia tramita na câmara já há vários anos, porém é barrada pelas bancadas religiosas, que exigem a manutenção de seu “direito” de considerar a homoafetividade um pecado, uma conduta abominável. Enquanto isto, homossexuais sofrem bullying nas escolas e universidades, são discriminados no ambiente de trabalho e até mesmo apanham com lâmpadas fluorescentes nas ruas das principais cidades brasileiras.

Cartaz de divulgação da Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro de 2006, com foco no combate à homofobia


Isto sem falar nas violências contra deficientes físicos, moradores de rua, animais (domésticos e silvestres), a natureza, a propriedade privada e coletiva, etc. O Brasil possui um problema crônico de violência. Como vocês puderam observar em tudo que escrevi acima, para cada problema de violência, há uma tentativa de coibi-lo, porém isto não impede que ela continue ocorrendo às margens da lei. Infelizmente, a cultura do “jeitinho” brasileiro é uma demonstração clara do individualismo e da falta de respeito pelo próximo, latentes no país. O brasileiro está desalentado, descrente da possibilidade de se viver em um ambiente harmônico e equilibrado. E ao invés de dar o exemplo, muitos tentam tomar vantagem quando e onde podem. Ao invés de discutir as leis, discute-se a aplicação delas.

Em São Paulo, favela e condomínios de luxo são separados por apenas um muro, mas por um fosso social gritante

Outro problema grave no Brasil tem relação à sua história: a violência contra afrodescendentes e indígenas. Ainda que a xenofobia no Brasil seja muito menor que em outros países, a discriminação contra pessoas de diferentes etnias ainda existe. Desde 1989, porém, existe uma lei que criminaliza o racismo. Esta lei prevê multas e prisão de até cinco anos àqueles que, de alguma forma, discriminam pessoas por motivos de cor, raça, etnia, religião ou procedência nacional. Porém, são poucos os casos documentados de aplicação da lei.

Este problema também é relacionado a diferenças sociais. Devido ao menor acesso a educação e oportunidades de trabalho, além do gigantesco fosso social entre ricos e pobres, a proporção de afrodescendentes com baixa renda é maior. E este é um motivador de violências e discriminações. A chamada xenofobia social é grave no Brasil, e as classes mais altas se trancam em condomínios fechados e carros blindados, quando não têm acesso a helicópteros, por medo (às vezes, irracional) da violência no sentido contrário.

Para que as violências diminuam, além de medidas paliativas e punitivas, é fundamental que se estabeleça um plano de desenvolvimento e evolução na educação, não apenas formal, como na informal. Famílias desestruturadas e sem condições favorecem a formação de comportamentos violentos. É preciso que se aprenda, desde criança, que o respeito à individualidade, à liberdade de expressão e a propriedade (pública e privada) são conceitos básicos, e que através de pequenas mudanças comportamentais é possível uma convivência muito mais harmoniosa. Então, na próxima vez que caminhar no calçadão de Copacabana, além de prestar atenção nos seus pertences para evitar furtos e assaltos, lembre-se também das demais formas de violência que infelizmente ainda assolam o Brasil. ’ Lic. Economia e Pós-Graduado em Relações Internacionais

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ECOS DO MUNDO

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013124317

FILIPE MOREIRA DA SILVA

VIOLÊNCIA SOCIAL, UM "TIRO NUM PÉ"

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Embora fosse simples abordar as recentes desventuras da Família Real espanhola, passando mais ou menos ao de leve pelo divórcio da Infanta Elena, pelo escândalo financeiro que envolve a Infanta Cristina e o seu marido, pelo recente acidente com uma arma de fogo do neto mais velho do Rei, ou pela acidentada caçada de Sua Majestade em África... a verdade é que dava pano para mangas, mas sinto-me mais inclinado para falar das recentes medidas do Governo de maioria absoluta do Partido Popular. Há uns dias, e quando pensava que já nada me podia espantar, deparei-me com uma notícia na Imprensa que me deixou perplexo. Trata-se de uma medida que nega a atenção médica à populaçao que reside de maneira irregular no território. Aparentemente poder-se-ia pensar que se trata de uma medida lógica de poupança e que evitaria manter um nível de gastos avultados com a Saúde. Pois é exactamente isso que eu coloco em questão, e por inúmeros motivos. Se por um lado, a quantificação da população migrante em situação irregular é virtualmente impossível, por outro lado, pelo mero facto de se lhes negar Cuidados de Saúde Primários, para além de os conduzir de maneira forçada a acudirem aos Serviços de Urgência já por si saturados e a laborar acima da sua capacidade máxima, pode também revelar-se uma catástrofe em matéria de Saúde Pública. Eu, talvez fruto da minha experiencia de vida e profissional, considero-me uma pessoa que aposta na prevenção, em vez da cura, até porque diz a sabedoria popular que “mais vale prevenir que remediar”... e normalmente sai mais barato também...

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Bastaria pensar que, fruto da crise e da elevadíssima taxa de desemprego, o fluxo migratório já se inverteu há coisa de uns dois ou três anos... mas, mesmo que assim não fosse, as principais populações de migrantes em Espanha provieram de países da América Latina, do Magreb e de Europa de Leste, portanto de zonas onde são endémicas diversas patologias que se consideravam já erradicadas na Europa Ocidental, e contra as quais a população nem sequer se encontra vacinada. Por outro lado, as pessoas que chega(ra)m a Espanha em busca de um futuro melhor, regra geral, eram pessoas jovens em idade produtiva e, por esse factor, uma população saudável. O mesmo não acontece com os emigrantes provenientes do Centro e do Norte da Europa, que vêem na sua maioria disfrutar de uns anos de reforma (recebida nos seus países de origem – Alemanha, Reino Unido, França, Holanda, Suécia, etc) num ambiente mais cálido e mais apetecível... uma espécie de férias permanentes ao Sol. E, que, fruto da avançada idade, esses sim originam perdas financeiras nos cofres do Ministério da Saúde. Por isso, o recurso à expressão “Turismo Sanitário” é, na minha opinião, algo de obsceno! Um exemplo ainda mais flagrante são os recentes cortes ao Plano Nacional de Luta contra a SIDA, que têm originado manifestações públicas de ONG’s preocupadas com este facto. Mas será que alguém acredita que retirar investimento a planos de prevenção, de informação e de educação pode ser mais lucrativo do que ter uma população de pacientes infectados maior, e portanto com tratamentos caríssimos de forma permanente e crónica? Para não falar nas consultas e exames dessa população, cujos gastos são comportados, na íntegra, pelo Estado.

Isto sim parece-me uma forma cobarde de Violência Social. Acabar com os direitos daqueles que não têm voz. Daqueles que não se podem defender, nem contestar as decisões que contra eles são tomadas. Não pensem que verto fel somente sobre a Direita partidária. Fosse qual fosse o partido que tomasse estas acções, obtería a mesma repulsa da minha parte. Apenas deixo uma reflexão: Espero sinceramente que os espanhóis, que actualmente se estão a ver obrigados a emigrar para o estrangeiro em busca de emprego e de um futuro melhor, dêm com administrações mais condescendentes do que a espanhola. Mas, mesmo assim, considero triste a falta de memória de um povo que, nos anos 40, 50 e 60 do Século XX, tantos emigrantes deu aos países ricos da Europa Central e a países da América Latina, como a Argentina ou o México, por exemplo.

“AQUELES QUE NÃO PODEM LEMBRAR O PASSADO ESTÃO CONDENADOS A REPETI-LO!” GEORGE SANTAYANA, pseudónimo de Jorge Agustín Nicolás Ruiz de Santayana y Borrás, filósofo, poeta e ensaísta espanhol in A Vida da Razão - 1905. ’ Director Clínico

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043121430

MARÍLIA LOPES

ANTI-VIOLÊNCIA (yes, we can)

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Nagasaki, 9 de Agosto de 1945, 11h02m...80 mil mortos! Nagasaki 2012... Por todo o lado há marcas do massacre, imagens de edifícios que já não existem, bocados de outros que outrora existiram e que agora coabitam lado a lado com os novos edifícios, pombas brancas no chão dos passeios, nas paredes, nas pontes... é importante não esquecer o que aconteceu. Imagens cruéis desfilam sobre as paredes do Museu da Bomba Atómica, o Museu é local obrigatório a visitar em Nagasaki, restos de casas, pedaços de vidas. A violência extrema exposta aos olhos do mundo. O Museu mais curioso que já visitei! Entrei com a revolta que o tema incita, a morte imediata de 80 mil pessoas e a condenação das gerações seguintes a uma vida com graves problemas de saúde. Mas o Museu é muito mais do que um retrato de História, é um grito de paz não de violência, um exemplo da mais genuína humildade humana em que o importante não é o que se fez mas sim o que nunca mais se deverá fazer. Saí com uma boa sensação de paz, pois essa é a mensagem do Museu, mostrar o que aconteceu e homenagear os que perderam a vida em prol de uma paz mundial.

Paz, paz e paz é o que sinto à minha volta. Nunca vi qualquer tipo de violência aqui. O país é conhecido pelos Samurais, pelo karaté e outras artes marciais. Nas escolas estas são disciplinas obrigatórias. Serão eles educados desde cedo para a violência? Ou para a anti-violência? A verdade é que as crianças não brincam às lutas nos recreios como em Portugal, os adolescentes não têm um comportamento agressivo. Mas não posso deixar de lembrar os actos de violência extrema deste povo como o canibalismo ou os kamikazes durante a Segunda Guerra Mundial... Talvez toda a sua história tenha levado a uma consciencialização do que é violência, do seu impacto, e de que violência gera violência. A verdade é que desde a Segunda Guerra Mundial o Japão se tornou uma sociedade pacífica em que a promoção da Paz é um dever social para que a humanidade se possa tornar próspera. ’ Lic. Educação Física

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FRASES COM’TEXTO

Tenho a certeza de que o Sistema Nacional de Saúde não é sustentável. Daqui a mais algum tempo rebenta definitivamente. GENTIL MARTINS, EX BASTONÁRIO DA ORDEM DOS MÉDICOS

PEDRO PASSOS COELHO, PRIMEIRO MINISTRO, PORTUGAL

Puxa a tua mulher pelas orelhas e bate-lhe com a mão. Ou com um siwak [espécie de escova de dentes, em madeira]. MAULAVI ASHRAF ALI THANVI, AUTOR DO GUIA MATRIMONIAL ISLÂMICO “A GIFT FOR MUSLIM COUPLE”

Não há dinheiro para pagar os serviços públicos. MARIANO RAJOY, PRIMEIRO MINISTRO, ESPANHA

FRASES COM’TEXTO

Portugal vai provar que os cépticos estão enganados.

Che Guevara era um guerrilheiro sem igual. Já enquanto médico… confesso que não deixaria, sequer, que me desse uma injecção! RAUL CASTRO, PRESIDENTE DA REPÚBLICA, CUBA

Por Obama faço tudo, menos cantar. GEORGE CLOONEY, ACTOR

A minha vida valeu a pena. MIGUEL PORTAS, DEPUTADO DO PARLAMENTO EUROPEU E FUNDADOR DO BE

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Os sacrifícios de hoje serão a oportunidade e a sustentatibilidade de amanhã. PEDRO MOTA SOARES, MINISTRO DA SEGURANÇA SOCIAL

Para ser boa política não tenho de me disfarçar de pobre. CRISTINA KIRCHNER, PRESIDENTE DA REPÚBLICA , ARGENTINA

Quando se quer falar de um País caótico e que pela sua decadência progressiva poderá vir a ser riscado do mapa da Europa citamse, a par, a Grécia e Portugal. EÇA DE QUEIROZ

O Reino Unido Tem um défice maior que o da Grécia, maior que o da Espanha, maior que o de Portugal. DAVID CAMERON, PRIMEIRO MINISTRO, INGLATERRA

A Democracia, com as suas regras de jogo, nunca pode estar em causa. ASSUNÇÃO ESTEVES, PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, PORTUGAL

Foi um erro entrar na União Monetária e no Euro. Hoje não devemos sair. MIGUEL CADILHE, EX MINISTRO DAS FINANÇAS

A Ministra da Justiça é uma barata tonta. MARINHO PINTO, BASTONÁRIO DA ORDEM DOS ADVOGADOS

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DESCØNSTRUIR

VOU CONTAR-TE UMA HISTÓRIA!

“Vou Contar-te uma história!” é o título da peça de teatro. Teatro Genérico é o nome do grupo. Fábio Moreira é o autor da peça e gestor do projecto, uma criança velha de 21 anos. HIV/SIDA, as Sexualidades e os Afectos, a prevenção dos comportamentos sexuais de risco, acima de tudo, as verdades e as inverdades das relações psico-afectivas de hoje. É um grito de alerta e de desconstrução pedagógica de mitos, estereótipos, relações… de Amor e Desamor. Um relato na primeira pessoa de uma rapariga de 16 anos, contaminada com HIV/SIDA numa relação com alguém que não teve a coragem de assumir toda a verdade. Acima de tudo, uma história baseada num caso de vida real. Uma outra forma de Desconstruir!

ESTREIA A 1 DE JUNHO, DIA MUNDIAL DA CRIANÇA, NO CÍRCULO CATÓLICO OPERÁRIO DO PORTO. A não perder … para reflectir!

FOTOGRAFIA ’ JOÃO MATOS

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FARPAS

barão de la palisse

Trrrriiimmmm… Trrriiimmmm…. Tocava o telefone, ecoando no gabinete, naquele fim de tarde solarento. Recostado no sofá, espojado, ressonando, rotundo, jazia Solares, os pés fora dos sapatos, como sempre. Aqueles pézinhos papudos, esbranquiçados e pálidos, sem pelos, sempre tinham sido contra os sapatos, que os apertavam, ditatoriais. Logo a ele que, nunca por nunca, poderia andar descalço. Nem precisava, porque os bens de família eram extensos, aumentados de geração para geração, muitas vezes favorecidos pelo regime, mas também aumentados, à custa da mina de ouro que era o colégio de família e do longo reinado na política. Diziam as más línguas que muito era devido, também, às ótimas relações mantidas com a facção diamantífera da Angolândia. Trrrriiiiimmmm… Trrriiimmmm…continuava o toque, insistente. E à medida que o toque insistia, a rotunda criatura agitava-se no sofá, na tarde pardacenta. Um fiozinho de baba escorria, lento e preguiçoso, pela obesa face, de bochechas cada vez mais descaídas, esgueirava-se pelo gordo pescoço, passava as várias pregas de pele e manchava já o colarinho da camisa. Trriiimmmm…. “Maria!”, bradava agora a rotunda criatura, esbracejando, braços no ar, gordos como todo ele. “Maria! Pára esse raio desse barulho!” Trrrriiiimmmm…Trrriiimmmm, continuava a máquina, tinindo, incomodando. “Oh Senhor guarda, afaste-se, que não precisamos de si aqui e leve o maldito trim…”, esbracejou, uma vez mais, a criatura, agitando ainda mais freneticamente os gordurosos braços, qual Sancho Pança, em infindável peleja contra intermináveis moinhos de vento, como que assim afastando o incomodativo tinido. Trrriiimmm…Trrriiimmmm, impunha-se este, à presidencial criatura. 74

Derrotado, esfregou com as mãos papudas a face, coçou o nariz e arrastou a baba, espalhando-a, sem saber, pela cara toda. “Maria!”, berrou de novo, já autoritário, usando o tom de quem sempre se tinha habituado a mandar em tudo e todos. Mas ninguém acorreu…logo a ele, Solares, o I, se tivesse havido Monarquia e não tivesse sido atirado, até pelas tradições familiares, para a República. Trrriiimmm…Trrriiimmm, continuava o aparelho, alheio a sestas e a atitudes ditatoriais. Solares, já acordado, mal humorado como só ele sabia ficar quando o contrariavam, soergeu-se no sofá. Eles, os pezinhos da presidencial criatura, gorduchos, esfregavam-se entre si, nervosos, em frenesim, como se deles partisse a ordem para que o corpo, gordo e velho, agisse como um todo e recobrasse a energia vigil. Trrriiimmm….Trriiimmm, insistia a máquina. “Gaita!”, urrou, levantando-se furioso, alheio à gordura e à idade. Apoiado no sofá calçou, com esforço, um sapato após o outro, acomodando os pezinhos balofos, as artroses, as deceções, as fugas, as omissões, os erros e os joanetes, tudo junto, nos apertados sapatos. “Porque é que não usas chinelos de quarto em casa?!”, tinha sugerido Maria de Deus, “Já não vais para novo…” “Jamais!”, tinha gritado, autoritário, com a vozinha quase em tom de barítono, com que ficava, quando perdia o controlo. “Chinelos usam os velhos”, tinha terminado, Solares, a discussão que se avizinhava, de modo seco e arrogante, como só ele sabia, não abrindo qualquer hipótese de veleidade argumentativa e afastando, determinado, qualquer esboço, por menor que fosse, de discordância. Andando com dificuldade, aproximou-se do telefone que repousava na secretária e agarrou-o com fúria, como se de um qualquer pescoço servil se tratasse. “Estou?!”, atirou para o bocal, de modo ríspido. “Quem fala?!”, interrogou. “Estou, camarada Solares?!”, respondeu uma voz grosseira, quase rústica.


“Sim, sou eu. Quem fala?”, contra interrogou, autoritário, ainda que a voz pastosa e pouco percetível lhe fizesse recordar alguém, ainda não identificado. “Sou eu, camarada Solares. O Vasco…O Vasco Ourense. O Presidente da Associação da brigada do reumático da Abrilada…” “Olá, homem. O que é que você quer?”, perguntou Solares, já acordado, enquanto reflectia…”O que quer este? Que maçada! A esta hora e ainda sóbrio, coisa boa não será…” “Oh pá, perdão, oh camarada presidente, é por causa das comemorações da Abrilada. Aqueles gajos são todos uns fascistas. E nós não vamos pactuar. São uns tipos que precisam de ser postos no sítio. Nós não somos carneirada…” “Sim, estou a ver”, respondeu o outro, tentando ganhar tempo para perceber o que se passava. “Estes fascistas têm que ser parados. Esta cambada tem que perceber quem manda. Estes fascistas não passarão. Abril sempre!”… “Sim, sim, homem, desenvolva…”retorquiu Solares, já impaciente “Pois camarada, nós decidimos que não vamos! Não vamos!”, elevou a voz o Vasco. “Oh homem, fale-me baixo.” “Desculpe camarada Solares, mas esta cambada precisa de ser posta nos eixos. E um homem enerva-se. Estes gajos tiram um homem do sério. Jão nem vou ao Elefante Branco. Um golpe é que eles precisavam. Mas os outros camaradas dizem que não temos armas, nem gente. O Otelus ainda disse para os mandarmos todos para o Campo Pequeno mas ele já não anda bem, com aquela coisa da bigamia…”

Cambada de fascistas.” “Hum…não vão à comemorações da Abrilada…Hum”, dizia o outro enquanto pensava e se começava a desenhar um sorriso sardónico por entre as bochechas descaídas. “Pois…”, continuou, enquanto conspirava, já. “Não vamos, já disse” “Está bem camarada Vasco. Não vão. E eu acho muito bem.”, replicou Solares, agora sorrindo, malicioso. “Acabo por matar vários coelhos de uma cajadada só”, pensou. Espicaço estes gajos, não tenho que aturar o Ramalhão, que vai ficar furioso e acima de tudo, não tenho que ver o Aníbel de Alcains a ocupar o lugar que é meu por direito.

“Maria!”, gritou de novo, agora mais agitado e conspirativo, antecipadamente saboreando as manchetes dos jornais e antevendo as expressões de contrariedade de todos! E saiu, ufano, do escritório, à velocidade que as artroses permitiam, enquanto gritava “Maria!” E foi assim que se gerou mais uma abrilada… ainda que só na cabeça de alguns…poucos, felizmente. Até porque, a Democracia não é propriedade de alguns!

“Não vão e acho muito bem!”, replicou, já em azáfama. “E’”, interrogou o outro, uma vez mais, servil e seboso, com a melena a descair. “E, nada. Não vão. E fazem bem. Agora vou-me que tenho uma reunião importantíssima daqui a minutos. Mas diga-me uma coisa. Não vão mesmo, pois não? Não vão falhar e aparecer como carneirinhos?” “Oh camarada. Oh pá! Nós somos tesos! Não vamos e prontos, pá!” “Oh homem, não se exalte. Só quero ter a certeza que não vão virar a casac…que não vão mudar de ideias no fim”! “Camarada Presidente. Eu não vou! E a Associação também não! Não vai ninguém. Prontos, pá!” “Ótimo! Ótimo. Agora tenho que desligar”, despachou a presidencial criatura, já ufano. Desligado o telefone, começou a andar de um lado para o outro, nervoso, exaltado, conspirativo, mexericando em tudo o que via, enquanto pensava, ardiloso.

“Pois, entendo. Mas não vão onde?!” “ E eu também não vou!” “Não vamos!”, respondeu o outro. “Oh homem, já sei que não vão. Mas não vão onde?”, interrogou Solares, com a impaciência a borbulhar. “Não vamos às comemorações da Abrilada. À Assembleia. E aquela cambada vai ficar aflita. Até vão tremer. Vão perceber quem manda.

“Tenho que convocar uma conferência de Imprensa e criar agitação! Caos! Confusão!”, gesticulando, nervoso, quase febril. Voltámos ao palco. Ótimo! Preciso de apanhar esta oportunidade. Já não se fala de mim há tempos. Preciso de mostrar que estou vivo. Que ainda mando!

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CENTRO AVANÇADO DE SEXUALIDADES E AFECTOS ® CURSOS DE FORMAÇÃO PÓS-GRADUADA

VEJA OS FOLHETOS INFORMATIVOS

curso de pós graduação 12h

curso de especialização 24h

SEXUALIDADES & ENVELHECIMENTO ACTIVO

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JORNALISMO & SEXUALIDADES

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O DESPORTISTA & AS SEXUALIDADES

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O EDUCADOR & A SEXUALIDADE DA CRIANÇA

INFORMAÇÕES & MATRÍCULAS Horário de Atendimento 16h às 20h CASA - Centro Avançado de Sexualidades e Afectos Rua de Santa Catarina, 1538 • 4000 – 448 Porto • 918 444 828 www.ass-casa.com • facebook/AssociacaoCASA


1 SEX 22H

DIA MUNDIAL DA CRIANÇA

A CASA relança a campanha “Basta! de Abuso Sexual de Crianças e Jovens” representada pelo uso do laço azul, Blue Ribbon, símbolo mundial da luta contra o abuso sexual de Crianças e Jovens. Esta campanha foi lançada pela primeira vez na CASA em 2011.

2 SÁB 22H

NOITE DAS DIVAS

Uma noite por mês dedicada ao Transformismo na CASA até porque o “O Transformismo é uma Arte que merece ser reconhecida”. A “Noite das Divas” tem, na CASA, um sabor diferente...em estilo de Cabaret dos anos 60.

3, 17 DOM 22H

CICLO DE JAZZ

9 SÁB 22H

NOITE DOS CREPES

Crepes à escolha, a preços convidativos e servidos com a simpatia e emambiente inclusivo, como so a CASA sabe oferecer.

15 SEX 22H

MÚSICA AO VIVO 16 SÁB 22H

NOITE DOS COCKTAILS

25 SEG 0H

LANÇAMENTO DO Nº 3 DA REVISTA ID ’

Ao dia 25 de cada mês a CASA efectua o lançamento on-line, da sua revista de grande informação, intitulada ID ’. O Nº 3 da ID ’, será dedicado ao tema: “Erotismo”.

25 SEG 22H

DIÁLOGOS FILOSÓFICOS

A sessão do mês de Junho será subordinada ao tema “Educação”.

21 QUI 22H

DEBATES NA CASA

Este mês o tema do debate será: “Crianças em Risco”, respeitando o facto de Junho ser o mês em que se comemora o Dia Mundial da Criança. Com a participação de personalidades convidadas.

5 TER 22H 22H

CICLO DE TERTÚLIAS “A CASA COMVIDA”

Em vigor desde 2010, em Junho o Ciclo de Tertúlias será subordinado ao tema: “Ser Criança, hoje”.

6, 13, 20 & 27 QUA 22H

POESIA NA CASA

Em vigor desde Janeiro de 2011, o mês de Junho será dedicado a “António Nobre”.

8 & 22 SEX 22H

KARAOKE

23 SÁB 22H

29 SEX 22H

O “Arraial de S.João” e comemoração da Noite de S.João na CASA, com o já tradicional lançamento de foguetes até porque é momento para celebrar, também, 2º ANIVERSÁRIO DE INAUGURAÇÃO DA SEDE DA CASA, que abriu ao público em 2010.

A CASA apresenta uma noite diferente, a “Noite da Madonna”, dedicada a este icon da música mundial.

ARRAIAL DE S. JOÃO

NOITE DA MADONNA

30 SÁB 22H

NOITE DAS CAIPIRINHAS

24 DOM 22H

CINEMA NA CASA

No mês de Junho será exibido o filme “O Inferno de S.Judas”, do Realizador Aisling Walsh, sobre a temática do Abuso Sexual de Crianças, seguido de debate.Entrada gratuita e pipocas ao dispor.

SEGUNDAS & QUARTAS 21.30H - 23.30H

TERÇAS 21H - 23H

QUARTAS & QUINTAS 19H - 21H

ENSAIO DO GRUPO DE TEATRO DA CASA

ENSAIO DO GRUPO CORAL DA CASA

ENSAIO DO GRUPO DE DANÇA DA CASA

Inscrições abertas em permanência.

Inscrições abertas em permanência.

Inscrições abertas em permanência.

Rua Santa Catarina, 1538, 4000-448 Porto ³ 918 444 828 ³ www.ass-casa.com ³ geral@ass-casa.com ³ facebook/AssociacaoCASA

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