Revista Jornalismo e Cidadania 43

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REVISTA JORNALISMO & CIDADANIA

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade

número
-
|
ISSN 2526-2440
43
Julho
Agosto 2021
| PPGCOM/UFPE

Expediente

Editor Geral | Heitor Rocha Professor PPGCOM/UFPE

Editor Executivo | Ivo Henrique Dantas Doutor em Comunicação

Colaboradores |

Alfredo Vizeu Professor PPGCOM - UFPE

Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco

Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB

Anabela Gradim Universidade da Beira Interior - Portugal

Ada Cristina Machado Silveira Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

Antonio Jucá Filho Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ

João Carlos Correia Universidade da Beira Interior - Portugal

Leonardo Souza Ramos Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

Rubens Pinto Lyra Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB

Ana Célia de Sá Doutora em Comunicação

Alexandre Zarate Maciel Professor da UFMA e Doutor em Comunicação pela UFPE

Nesta Edição

Textos escritos por:

Heitor Rocha

Pedro de Souza

Gustavo Costa Lima

Iris de Mel Trintade

Inã Cândido

Marcos Costa Lima

Alfredo Vizeu

Alexandre Maciel

Marya Edwarda Lapenda

Rubens Pinto Lyra

Rômulo Santos de Almeida

Lílian Márcia Chein Féres

Mônica de Lourdes Neves Santana

Editorial

Os vultosos recursos investidos para sitiar, por seis dias, a República com um bando de legítimos descendentes de capitães do mato e feitores para ameaçar o Estado de Direito Democrático com intuito de restaurar seus privilégios do regime escravocrata, evidenciam o comprometimento dos empresários financiadores do ato de 7 de setembro em processos judiciais de trabalho análogo ao escravo e práticas patrimonialistas, inclusive com a isenção completa de impostos, vinculadas ao modelo agrárioexportador implantado a partir de 1500.

Assim, diante do patente desrespeito à consciência da opinião pública que significou, no dia da independência do Brasil, o ato de imitação da invasão do capitólio em janeiro deste ano, patrocinado por Donald Trump, é lamentável a leniência da mídia jornalística com a precisa prática criminosa do crime de responsabilidade, o que é uma postura recorrente ao reportar esses delitos como estratégias legítimas de governança, haja vista, por exemplo, a forma como são cedidas pelo Executivo emendas parlamentares para comprar votos de congressista, como fez o então presidente Temer para não ser investigado e como vem sendo feito repetidamente pelo atual presidente. Esta condescendência com o exercício criminoso do poder público está naturalizada, é bem verdade, não só na mídia, mas na sociedade de uma maneira geral.

Um exemplo disso é a forma cínica como os depoentes investigados pela CPI da COVID reivindicam o direito conferido pelo STF de ficar em silêncio para não autoproduzirem provas de crimes, sem que seja frisado que o usufruto dessa prerrogativa implica, por pressuposto lógico, que esses indivíduos tornamse réus confessos porque demonstram que as suas respostas às perguntas solicitadas comprovariam a prática criminosa. Então, por uma implicação lógica, esses investigados se assumem como criminosos, faltando apenas a comprovação desses crimes.

É lamentável que a mídia praticamente se restrinja à cobertura do circo deprimente das faltas de compostura e decoro do presidente da República como decorrência de sua ideologia de extrema direita, sem assumir a sua obrigação de investigar adequadamente as negociatas do governo, como por exemplo o caso dos madeireiros com o Ministério do Meio Ambiente, já inclusive flagradas por autoridades norte-americanas. Além de tocar o calendário das reformas neoliberais que tanto mal vêm fazendo ao país, através de uma comunicação descaradamente distorcida para silenciar setores contrários a essas medidas, como no caso dos estudos dos auditores da Receita Federal, com relação à reforma da previdência, e do Ministério Público do Trabalho e da Associação dos Juízes do Trabalho, na questão da reforma trabalhista. Agora, é claramente tendenciosa a postura da mídia também em relação às reformas administrativa e tributária, nesta inclusive a generosa desoneração de impostos dos empresários é vista como extremamente necessária, enquanto o restante da sociedade é relegado a tratamento parcimonioso quando não cruel.

Nesta edição da Revista Jornalismo e Cidadania publicamos artigo sobre a retirada das forças armadas dos Estados Unidos do Afeganistão, episódio inegavelmente similar ao da retirada de Saigon na década de 1970. Apesar de se constituir miticamente como exemplo de jornalismo “objetivo” e “independente”, a imprensa americana tem sido tradicionalmente facciosa, como comprovam as denúncias de Noam Chomski, mas, atualmente, está a dever – até em respeito ao admirável movimento do Muckraking que se notabilizou pela rigorosa investigação da estrutura de poder (grupos políticos que controlam o aparelho de estado e as corporações do mercado), como no episodio da cobertura do Washington Post no Escândalo Watergate – um levantamento detalhado das fraudes e desvios de recursos cometidos pela indústria bélica e pelas empresas de mercenários nas aventuras das invasões imperiais dos EUA no Afeganistão e também no Iraque. No mesmo sentido, precisa fazer e divulgar um inventário do número de mortos de jovens americanos mortos nessas guerras, bem como dos nativos sacrificados, especialmente os civis, crianças, mulheres e idosos.

No aeroporto de Cabul

O Primeiro-Ministro britânico, Boris Johnson, estava de férias, o secretário do Foreign Office, Dominic Raab, veraneava numa praia de Creta. O Presidente Biden, diante da inesperada rapidez da queda de Cabul, foi obrigado a intervir na televisão para defender a desastrada política americana. O mundo acordou no meio das férias de verão do hemisfério norte e assistiu, ensonado, a um remake de cenas do filme “Apocalypse Now”, de Francis Ford Coppola. O desespero de muitos civis no aeroporto de Cabul lembrava a queda de Saigão, a fuga desordenada dos civis que tinham colaborado com as forças americanas, diante da ofensiva imparável do Vietcong, e agora do Taliban. A anunciada retirada seguida de uma transição pacífica, prometida até o final de setembro, aconteceu no final daquela semana.

Na realidade, a guerra estava perdida há muito tempo e o Presidente Trump interinou essa derrota ao assinar um acordo após negociações diretas com o Taliban, em Doha, em fevereiro de 2020. As tropas americanas vinham sendo retiradas pelo governo Trump, até que em janeiro de 2021 contavam com algo como 2.500 militares, o menor contingente desde 2001. Biden, na realidade, se limitou a seguir o guião de Trump, que reconhecendo o Taliban como interlocutor desistiu de qualquer perspectiva de uma negociação entre o Taliban e o governo afegão. E o Taliban, em surdina, já controlava o país, pelo menos as zonas rurais. De contrário, não teria conseguido conquistar em dez dias todas as cidades nominalmente em poder do governo. A retirada das forças americanas e britânicas do Afeganistão sem qualquer espécie de garantia é uma tragédia para a população afegã, e especialmente para as mulheres. Mas dos males o menor: a alternativa, caso o governo tivesse resistido, seria mais uma guerra civil, de onde o país sairia destruído. O poder do Taliban não é o final da História.

Ao invés de justificar a invasão americana, que se seguiu ao ataque das Torres Gêmeas e permitiu a prisão de Bin Laden, Biden poderia ter citado vários outros casos da errática política neoconservadora, uma excrecência da Guerra Fria, cujos resultados foram, em geral, contrários aos pretendidos, e espalharam o terrorismo pela Europa. Um bom exemplo disso é a invasão do Iraque sob o pretexto de que Sadam Hussein teria armas atômicas. Era mentira, tanto Bush como Blair sabiam disso, e o grande Sadam Hussein foi abatido no buraco onde se escondia, como um mero coelho acossado. E a operação levou à criação do ISIS, o Estado Islâmico, e ao regresso posterior das tropas americanas ao Iraque, após uma primeira retirada.

Durante esses vinte anos, os governos americanos foram criando outras armas, como as que foram acionadas na América Latina para derrubar governos incômodos, incluindo no Brasil. O governo americano, o Pentágono, ao invés de criarem e manterem guerras em países improváveis, deveriam ser alvo de um controle político mais firme, mais democrático e concertado com os aliados, de modo a tentar evitar a sobrevivência de políticas militaristas sem saída. E deveriam ser obrigados a divulgar mais informação, de modo que os especialistas da zona pudessem emitir opiniões abalizadas. A Guerra Fria já acabou, foi ganha há mais de 30 anos pelos EUA. As ameaças de um mundo multipolar são outras.

Em destaque, entre essas ameaças está o islamismo radical. A audiência do radicalismo muçulmano é cada vez mais forte entre a juventude daquilo a que se chamava Terceiro Mundo. Uma das razões do sucesso do Taliban foi a proximidade ideológica, religiosa, entre os soldados do governo afegão e os jovens combatentes talibans, a maioria participando dos mesmos grupos tribais com raízes muito profundas. Aliás as armas fornecidas aos soldados do exército afegão devem ter seguido o mesmo caminho das adesões ideológicas: estão hoje nas mãos dos talibans. É possível que o islamismo radical tenha assumido em parte o papel de contestação das políticas capitalistas, que durante algumas décadas fora o apanágio da esquerda. Mas o extremismo muçulmano pode ser também um fantasma destinado a esconder interesses escusos e a ausência de perspectivas políticas claras por parte dos governos ocidentais durante os últimos 20 anos.

Algo de semelhante ocorre no norte de Moçambique. Ao contrário do que se tem sugerido, não houve invasão de radicais muçulmanos na região de Cabo Delgado, mas sim a adoção de uma forma de islamismo radical por parte de jovens moçambicanos, desempregados, diante das facilidades concedidas pelo governo ao grupo multinacional Total, que explora uma das maiores reservas de gás

do mundo, em Pemba, de que só muito remotamente os locais se beneficiam. E há, ainda, o caso da África ocidental, mais precisamente da região do Sahel, onde a França vem sustentando uma guerra que já concluiu ser inglória. Boa parte das tropas francesas estão se retirando ou concentrando em alguns pontos chave, pois concluíram que não havia verdadeiro empenho nessa guerra por parte dos seus aliados, os governos dos países africanos da região. E que a solução desses conflitos não pode ser apenas militar.

Políticas militares são necessárias, mas não se substituem a políticas de desenvolvimento. Boa parte dos jovens que invadiram o aeroporto de Cabul e tentaram forçar a entrada nos aviões que repatriavam os militares e civis americanos, são “os mesmos” que se lançam pelo Mediterrâneo em embarcações de fortuna, tentando emigrar para a Europa. O risco de vida que enfrentam no mar não é maior do que aqueles com que se defrontam no cotidiano dos seus países de origem. Enquanto a vida tiver um valor tão diminuto, a porta estará aberta a todos os radicalismos.

As reações por parte dos países ocidentais à queda de Cabul foram de uma indigência constrangedora. Eles se dispõem a receber um contingente de ex-colaboradores afegãos, cuja segurança nas mãos do Taliban estaria em risco, mas avisam que não aceitarão um êxodo em massa e muito menos que o Afeganistão volte a ser um porto de abrigo para terroristas como os da Al Qaida. Como pretendem implementar essa política, não se sabe. O governo britânico de Boris Johnson, parceiro até hoje dos EUA no Afeganistão, revelou a sua vacuidade: não sabia de nada, delegou a sua política aos EUA. O Ministro Raab tem a cabeça a prêmio.

A deliquescência da influência americana, que sai ainda mais abalada deste episódio, a constatação do fato que a política externa dos EUA, seja qual for o Presidente, permanece em boa parte a mesma, a multiplicação de graves conflitos armados em zonas anteriormente solidamente amarradas a um país hegemônico, como era o caso da Síria, as ameaças ou crises abertas pelas Primaveras árabes, pelo radicalismo muçulmano e pela China imperial criam um clima de confusão e incerteza aceleradas. A estes fatores, vêm se sobrepor dois outros: a pandemia e a mudança climática. A pandemia da Covid-19 é um sinal de alerta para o fato do desmatamento e mundialização criarem o ambiente ideal para a ocorrência de doenças globais, porventura ainda mais dificilmente controláveis que a presente. Já a crise climática tem se manifestado com muito mais intensidade do que o previsto. Os polos, a Sibéria, o Mediterrâneo, o noroeste da América do Norte estão passando por um processo de degradação acelerado.

Face a essas ameaças globais, é legítima a dúvida quanto à capacidade dos atuais governos de todos os quadrantes em enfrentá-las com alguma probabilidade de êxito. Se esses governos e a população em geral se deixaram surpreender pela vitória do Taliban, é porque estavam distraídos, ou não entenderam o que de inédito se passa à nossa volta. Estamos todos no aeroporto de Cabul.

Pedro de Souza é editor, pesquisador e ex-superintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

A crítica do crescimento ilimitado e o projeto de decrescimento

A civilização ocidental, sobretudo, a partir da modernidade capitalista adotou como dogmas centrais as ideias de crescimento e progresso econômico ilimitados. Essas premissas, juntamente com a crença na inesgotabilidade da natureza, foram naturalizadas e entendidas como princípios indissociáveis da cultura humana.

Nos anos 1970, quando se inicia o reconhecimento de uma questão ambiental e o surgimento dos movimentos ecológicos, o debate sobre o crescimento e seus limites foi estimulado pela publicação do relatório Meadows, intitulado “Os limites do crescimento”. Esse relatório fazia um prognóstico preocupante sobre o futuro das sociedades humanas, a partir das estimativas de expansão demográfica, das taxas de crescimento econômico, do consumo de recursos naturais e da geração de resíduos decorrentes do crescimento. As previsões do relatório eram de que, se mantidas constantes as tendências de crescimento econômico e de degradação ambiental, a civilização humana incorreria em processos de colapso no médio e longo prazos. Basicamente, a pesquisa alertava para um problema óbvio, mas pouco reconhecido que era a impossibilidade de realizar um crescimento infinito a partir de uma base finita de recursos naturais (GEORGESCU-ROEGEN, 2013). Apontava, portanto, para a insustentabilidade do modelo dominante de crescimento e lançava a semente de uma primeira onda do Decrescimento.

Essa ameaça catastrófica foi o estopim para um amplo debate social, para a promoção das conferências internacionais da ONU, de novas pesquisas e iniciativas de gestão e políticas públicas ambientais. Também foi um fator desencadeante das teses do Crescimento zero, do Ecodesenvolvimento, do Desenvolvimento sustentável proposto pela Comissão Brundtland, e, mais adiante, das formulações do Pós-desenvolvimento, da Economia ecológica, da Ecologia política, da Justiça ambiental e do Bem-viver.

Os setores críticos ao relatório argumentavam que o prognóstico de Meadows não considerava propriamente a capacidade que as inovações tecnológicas têm de oferecer substitutos para bens escassos e para produzir mais riqueza a partir de uma menor quantidade de recursos naturais e energia, processo hoje conhecido como ecoeficiência (ABRAMOVAY, 2012).

Como a proposta de Crescimento zero é a negação do princípio expansivo do capitalismo, o Desenvolvimento sustentável surgiu como uma saída redentora de conciliação entre o crescimento econômico, a conservação ambiental e a justiça social. É evidente que, apesar da ginástica retórica da Comissão Brundtland, o Desenvolvimento sustentável não se sustentava e nem parecia viável em sociedades marcadas pela concentração econômica, pela desigualdade social, por uma baixa participação e representação política e por padrões de produção de consumo de alta degradação ambiental.

A partir dos anos 2000, o Decrescimento ganhou a feição de uma segunda onda, motivada pela frustração das promessas do Desenvolvimento sustentável e da Economia verde, pelos riscos crescentes das mudanças climáticas e pelas evidências de avanço da degradação social e ambiental em nível planetário.

Por ser uma noção complexa, o Decrescimento não é fácilmente definível em poucas palavras. De forma sintética, pode-se arriscar dizer que é uma proposta de redução dos níveis de produção e consumo e de transformação democrática dos padrões de bem-estar social e de qualidade ambiental, através de mudanças políticas, institucionais, éticas e valorativas.

Hoje a proposta de Decrescimento pode ser entendida como uma rede de diversos movimentos sociais, no norte e no sul, com ramificações no mundo acadêmico, que articulam a crítica do crescimento ilimitado, da sociedade do hiperconsumo, do capitalismo neoliberal, do reducionismo economicista, do individualismo meritocrático, do utilitarismo antropocêntrico, do patriarcalismo excludente, do eurocentrismo darwinista, do desperdício e das necessidades artificiais, da mercantilização das relações sociais e da desigualdade abissal entre classes sociais e países (AMARO, 2017; LATOUCHE, 2009).

Essa rede heterogênea de atores e movimentos sociais se dedicam a experimentar e difundir a agroecologia, novas formas de construção e planejamento urbano, moedas locais, resgate e cruzamento de saberes tradicionais e científicos, sistemas de transporte e de energia renováveis, organizações cooperativas, valorização da vida local e comunitária, atividades de economia solidária, circuitos curtos de comercialização e comércio justo, incentivo a reciclagem e conserto de aparelhos domésticos entre outras atividades (GENDRON, 2018).

Para Sempere (2008), o ritmo e a escala da degradação ambiental verificada na atualidade tornam a ideia de decrescimento cada vez mais plausível. A dúvida que persiste é se ele será voluntário, planejado e consensual ou se será compulsório, caótico e de luta darwinista de todos contra todos. A primeira opção supõe um amplo pacto social capaz de eleger prioridades e de distribuir os custos do ajuste. A outra opção supõe o uso da força para garantir privilégios, implicando em crise das instituições políticas, conflitos distributivos e guerras pelo controle de recursos escassos.

O caminho da inovação tecnológica e da ecoeficiência é fundamental para reduzir o metabolismo socioambiental e tem se verificado nas últimas décadas, reduzindo a demanda de recursos naturais e de energia na produção de bens e serviços. Esse é o principal argumento dos setores conservadores diante dos problemas ambientais, porque permite formular respostas e políticas públicas dentro da ordem capitalista. Assim, seguem a máxima de Lampedusa, no romance o Leopardo, mudar para conservar. O problema é que ainda que a ecoeficiência seja desejável ela não é suficiente para deter a degradação ambiental planetária. Isso porque seguem crescentes a população, o mercado e a diversidade do consumo e a intensidade tecnológica. Também porque os ganhos em ecoeficiência reduzem os custos dos bens com consequente aumento do consumo, configurando o conhecido “Paradoxo de Jevons” (ABRAMOVAY, 2012). Ou seja, ainda que a ecoeficiência produza um ganho relativo na economia de recursos e energia, em termos absolutos a degradação segue crescendo.

O desafio socioambiental atual inclui necessariamente os limites do crescimento e a desigualdade social. O debate sobre o Decrescimento, nesse sentido, tem uma contribuição importante nesse debate porque imagina e aponta horizontes possíveis e, sobretudo, plurais de transição ecopolítica; porque ajuda a descolonizar o pensamento e os valores sociais do vírus do crescimento pelo crescimento; porque constrói alianças entre diferentes movimentos sociais e porque incorpora traços de uma utopia concreta, ancorada na crítica do presente e em outras possibilidades de viver invisibilizadas e excluídas pela razão hegemônica (SANTOS, 2002).

É evidente que o decrescimento é um movimento novo e ainda de minorias e que, portanto, ainda está se construindo e descobrindo rumos. E, embora não tenha ainda clareza sobre as formas de transição para o futuro, já sabe o que não é aceitável.

É também evidente que o decrescimento se faz diferente no norte e no sul. Uns precisam decrescer outros crescer de forma sustentável para atingir condições de vida digna.

E porque questiona muitos dos princípios capitalistas como o crescimento ilimitado da produção, do consumo, do lucro privado, a mercantilização e privatização generalizada dos recursos naturais, bens e serviços; o dogma do economicismo; a obsolescência programa e a extrema desigualdade social e defende a redução do tempo de trabalho; o estímulo à participação social e um Estado que cuida das necessidades dos cidadãos, o Decrescimento incentiva uma transição para além do capitalismo como sistema econômico e social (D’ALISA; DEMARIA; KALLIS, 2016). O antropólogo Viveiros de Castro costuma dizer que temos muitas narrativas sobre o fim do mundo, mas nenhuma sobre o fim do capitalismo. Esse ainda é um desafio em aberto e creio que a proposta de Decrescimento faz uma contribuição relevante nessa direção.

Gustavo Costa Lima é Doutor pela Universidade de Campinas (UNICAMP) e Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Monitoramento dos ODS como instrumento de combate às desigualdades

Lançada em 2015, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável dá continuidade aos esforços das Nações Unidas para a redução das desigualdades sociais iniciados com os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM) (2000-2015). Diferentemente dos ODM, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) não se restringem a metas a serem alcançadas por países em desenvolvimento, mas abrangem toda a comunidade internacional, integrando as dimensões econômica, social e ambiental. Tal abordagem universalista e transversal reflete um contexto de várias crises globais interrelacionadas: econômico-financeira, ambiental, alimentar e energética. Assim, a Agenda 2030 abarca um ambicioso conjunto de 17 objetivos e 169 metas globais, acompanhadas de indicadores, elementos fundamentais para o acompanhamento dos progressos nacionais e a identificação de necessidades de assistência e cooperação internacional. Para que esse monitoramento seja possível, é imprescindível a nacionalização dos ODS, que passa pela adequação das metas e indicadores às realizadas e prioridades nacionais, sem que se perca a abrangência da agenda global. Para tanto, foi criada a Comissão Nacional dos ODS (Cnods), com representação paritária da sociedade civil e de governos. A Cnods tem entre suas competências elaborar o plano de ação para implementação da Agenda 2030, acompanhar e monitorar o desenvolvimento dos ODS e promover a articulação com órgãos e entidades públicas das unidades federativas para a disseminação e a implementação dos ODS nos níveis estadual, distrital e municipal.

Os compromissos de políticas públicas referentes ao alcance dos objetivos precisam ser adequados e implementados nas esferas federal, estadual e municipal. São, portanto, desafios da internalização da Agenda: a sensibilização de atores, a adequação de metas globais, a implantação da governança e a definição dos indicadores nacionais (IPEA, 2018). Embora os ODS não sejam legalmente vinculantes, é esperado que os países os incorporem ao arcabouço nacional. Em 2019, o presidente da República vetou a inclusão da Agenda 2030 como uma das diretrizes do Plano Plurianual (PPA), alegando que tal inclusão daria à Agenda um caráter de obrigatoriedade, sem que tenha havido decisão do Congresso sobre acordos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio.

De todo modo, independente das formalidades alegadas para o veto, o PPA (2020-2023) abarca diretrizes que estão diretamente ligadas à Agenda 2030, tais como o combate à fome, à miséria e às desigualdades sociais e aquelas relacionadas à promoção da educação, da saúde e da “melhoria da qualidade ambiental”. Vale ressaltar, contudo, que o PPA (2016-2019) apresentava diretrizes mais transversais e, consequentemente, mais alinhadas à Agenda 2020, a exemplo do desenvolvimento sustentável orientado pela inclusão social e da garantia dos direitos humanos com redução das desigualdades sociais, regionais, étnico-raciais, geracionais e de gênero, além de apontar como prioridade o Plano Brasil sem Miséria, também de natureza transversal.

Na prática, as diferenças textuais dos Planos revelam momentos diferentes do país em relação às políticas públicas para a redução das desigualdades. A Emenda Constitucional que limita por 20 anos os gastos públicos acarretou drásticos cortes nos orçamentos das políticas sociais e os efeitos desses cortes se fazem sentir diretamente no território, acarretando consequências identificadas mesmo antes da pandemia para as pessoas em situação de maior vulnerabilidade. Os PPAs costumam referenciar, dentre suas diretrizes, mecanismos de monitoramento e avaliação, posto que esses são aspectos essenciais para o planejamento e a execução de políticas públicas. Nesse processo de acompanhamento de indicadores, é crucial levantar, divulgar e considerar para o desenho e a execução de políticas públicas dados atualizados, confiáveis e desagregados que sejam capazes de captar as desigualdades entres homens e mulheres, negros e brancos e populações ruais e urbanas, de modo que a sociedade possa enxergar os desafios do desenvolvimento humano para além das médias e fazer reflexões significativas sobre as causas e as consequências dessas desigualdades.

De forma destoante com a necessidade de levantar dados sobre a situação atual, o Governo Federal tinha declarado que não havia orçamento previsto para a realização do Censo em 2021 e, apenas depois de decisão do Supremo Tribunal Federal, anunciou que tomará as medidas para a realização do Censo Demográfico em 2022. Enquanto isso, dados coletados entre 2017 e 2018 na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), publicados em 2020, apontavam que 36,7% dos domicílios estavam com algum grau de insegurança alimentar, destes, 4,6% em insegurança alimentar grave (fome), cerca de 3,1 milhões de domicílios, o que corresponde à aproximadamente 10,3 milhões de pessoas. A POF aponta, ainda, que a distribuição dos lares em situação de insegurança alimentar grave varia de acordo com a região do país, zona rural e urbana e sexo e raça/cor da pessoa de referência do domicílio, com prevalência nas regiões Norte e Nordeste, zona rural e pessoas de referência do sexo feminino e de cor parda ou preta (IBGE, 2020).

Em um cenário de alta dos preços dos alimentos e da inflação, desvalorização do salário mínimo, desemprego e precarização do trabalho, corte de orçamento de políticas da assistência social e de apoio à agricultura familiar, desmonte dos espaços de governança no nível federal e, enfim, a pandemia, asseveram visivelmente o crescimento da fome e da pobreza no Brasil. Nesse panorama, no sentido de produzir dados que promovam uma incidência política sobre o tema, a Rede Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) realizou, com o apoio do Instituto Ibirapitanga, ActionAid Brasil, FES-Brasil e Oxfam Brasil, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, apresentando dados coletados em dezembro de 2020. Os dados apresentados pela pesquisa estimam que cerca de 19,1 milhões de pessoas (9% da população) estavam em insegurança alimentar grave (fome), indicando que esse índice chegou a patamares piores que os de 2004. A pesquisa constatou, ainda, que as desigualdades regionais permanecem, pois a fome foi identificada em 18,1% dos lares do Norte e em 13,8% do Nordeste em contraposição aos 6% do Sul/Sudeste, e corrobora os resultados da POF sobre a prevalência maior da fome em lares em que as pessoas de referência são mulheres, pessoas pretas e pardas e pessoas que não têm escolaridade ou possuem Ensino Fundamental incompleto.

Essa iniciativa conclama as autoridades e a sociedade a tomarem providências perante situação tão grave. Assim a Rede Penssan exemplifica a importância do monitoramento dos indicadores da Agenda 2030, não apenas pelo Estado, mas também pela sociedade civil como uma forma de pressão para a tomada de decisões em termos de políticas públicas. Além desse exemplo, existem diversas iniciativas no âmbito nacional e local que visam a difusão e o acompanhamento dos ODS, a exemplo do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030, que produz o Relatório Luz da Agenda 2030, o qual já alertava sobre os riscos do Brasil voltar ao Mapa da Fome das Nações Unidas.

Devido à prerrogativa dos Estados e municípios de também elaborarem seus planos e metas, apesar do veto presidencial à Agenda 2030 como diretriz do PPA (2020-2023), há exemplos de Estados e municípios que incorporaram a Agenda em seus planejamentos. O Pará alinhou seu PPA (2020-2023) aos ODS e criou o Observatório ODS, dentro da estrutura da Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas, entidade responsável por dar apoio técnico à gestão do Plano. Belo Horizonte é exemplo de um município que estabeleceu a Agenda 2030 como referência para o planejamento de médio e longo prazo. Assim, um conjunto de metas e indicadores locais será acompanhado até 2030 pelo Observatório do Milênio, rede composta pelo poder público e por instituições acadêmicas e da sociedade civil.

A importância de trazer a Agenda 2030 para os planos e monitoramento no âmbito subnacional, principalmente municípios, é que é no território que as políticas públicas ganham materialidade. Portanto, faz-se necessário uma gestão municipal com capacidade de compreender e articular a intersetorialidade das ações que a Agenda 2030 requer. Quanto a essa questão, a Rede ODS Brasil, responsável pelo Grupo de Trabalho Localização da Agenda 2030 dos Governos Subnacionais da Câmara Temática Parcerias e Meios de Implementação da Cnods, ressalta que esse processo depende do desenvolvimento de capacidades direcionadas à localização e ao monitoramento dos ODS, assim como da criação de observatórios municipais e estaduais para o tratamento da temática. Ademais, a Rede ODS Brasil alerta que, devido à falta de proatividade do Governo Federal como principal fomentador e articulador de uma Estratégia Nacional de Localização da Agenda 2030, com orientações sobre como institucionalizá-la em seus instrumentos de planejamento e gestão local, pode gerar a adoção de bases de dados diferentes para o acompanhamento dos Objetivos, assim como a proliferação de assessorias e consultorias na matéria que estão sujeitas a banalizar a Agenda (CNODS, 2019).

Dado o alto grau de complexidade da Agenda 2030 e, consequentemente, da sua implementação e monitoramento, é fundamental que haja ação coordenada e transparente para que os ODS integrem de forma concreta políticas públicas integradas, construídas e avaliadas por Estado e sociedade civil, capazes de dar respostas eficientes a problemas estruturais causadores das desigualdades no Brasil.

Iris de Mel Trindade Dias é Doutora em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade do Minho (UM) em cotutela com a Universidade de Brasília, Membro Colaborador do Centro de Investigação em Ciência Política da UM e Pesquisadora Associada ao Centro de Estudos Avançados da Universidade Federal de Pernambuco.

As gigantes de ultraprocessados e seus impactos socioambientais

Inã Cândido de Medeiro

A maneira como nossos alimentos são produzidas e nossas refeições consumidas, nos últimos séculos, não pode ser encarada como um episódio banal na história do capitalismo contemporâneo. E foi nas últimas décadas, especialmente nos anos 1990 - momento mais drástico na alimentação como conhecemos -, que a mudança na relação com o alimento foi intensificada. Profundas transformações já vinham ocorrendo, mas é nessa década que se cria um aparato legal - disfarçado de desregulaçãopara facilitar a onipresença das corporações - Coca Cola, Danone, Walmart e outras - e do capital internacional em diversas partes do planeta (CARNEIRO, 2003, MATIOLI, PERES, 2020). E quais os impactos principais do predomínio cada vez maior dessas gigantes e de seus produtos na vida dos consumidores e para o meio ambiente?

Atrelado à lógica de produção em larga escala, os itens, em sua maioria, que tais empresas comercializam fazem parte de uma categoria específica de produtos: os ultraprocessados. Trata-se de formulações industriais derivadas de alimentos, mas que contêm quantidade excessiva de sódio, açúcares, gorduras. Para o nutricionista e coordenador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (NUPENS), Carlos Monteiro (2010), diferente do que muitos pensam, o processamento de alimentos ao longo da história não é necessariamente negativo.

O processamento de alimentos passa a ser nocivo à saúde humana quando sua finalidade deixa de ser única e exclusivamente a de alimentar populações com qualidade e passa a ser a manutenção dos lucros da indústria. Com o objetivo de criar produtos rentáveis, grandes empresas de alimentos fabricam itens à base de commodities baratas, como o milho e a soja, e adicionam à fórmula açúcar, sódio, gordura, conservantes e outros componentes cosméticos que os deixam mais duráveis e palatáveis (MONTEIRO, 2010).

Contudo, o mesmo autor afirma que eles se tornam altamente nocivos à saúde quando sua finalidade deixa de ser alimentar as pessoas com qualidade e passa a ser fabricar produtos que, embora pareçam comida, não são.

Países como Reino Unido e Estados Unidos são os campeões do consumo dessa “imitação de comida”. No Brasil, apesar da permanência da cultura e padrões alimentares, a população (principalmente os grupos mais pobres e vulneráveis) vem deixando gradativamente de fazer refeições preparadas com “comida de verdade” e trocando cada vez mais pelos ultraprocessados. Em várias cidades, o seu consumo desde o romper da pandemia aumentou de forma considerável (IDEC, 2020). A crise econômica e sanitária junto ao confinamento causaram diversas mudanças na rotina das pessoas em diferentes níveis, o que tem impactado (in) diretamente no modo de comer.

É importante destacar que a fabricação desses produtos alimentares envolve enorme uso de água e energia e tem como uma das principais consequências a geração de excesso de resíduos, como no caso de embalagens. Mesmo que as pegadas hídrica e ambiental dos ultraprocessados não sejam tão altas quando comparadas às da pecuária intensiva de grande escala (BARTELD, 2015), elas geram sérios danos ecológicos relacionados à sua elaboração, como no caso do uso constante de materiais, entre eles o plástico.

Altamente lucrativos para a indústria de alimentos (PLOEG, 2008), eles são produzidos de forma intensiva, demandando grandes quantidades de commodities e da constante exploração da mão de obra de trabalhadores. Além disso, sua lógica produtiva impulsiona a monocultura - como a de soja, a de milho, a da laranja e a de cana-de-açúcar - que gera maior concentração e uso da terra - e reduz de maneira drástica a biodiversidade do planeta.

As soluções para lidar com a fabricação e consumo indiscriminado de ultraprocessados são complexas e multissetoriais. Entre as quais, podemos destacar a busca por uma concepção contra-hegemônica de qualidade alimentar. “Embora qualidade seja um termo contestável, entre os movimentos contemporâneos de alimentação há um grau razoável de consenso sobre o que se constitui um alimento de boa qualidade ou de “verdade”. (SCRINIS, 2021, p.370).

Na ONG Slow food, muitos chefs de cozinha, movimentos sociais do campo/cidade, entre outros setores da sociedade civil costumam celebrar e/ou defender a elaboração e o consumo de alimentos frescos, minimamente processados, cultivados e preparados de forma tradicional e sustentável, que valorize as culturas alimentares locais.

Outras soluções alternativas ou ao menos “pistas” daquilo que pode e/ou que vem sendo realizado estão (in)diretamente relacionadas a maior cobrança e responsabilização do Estado e das grandes empresas de ultraprocessados, a alteração de regras de rotulagem de alimentos (que informa o grau de processamento e os tipos de malefícios à saúde ao serem consumidos, como é caso da experiência em curso no Chile), a reforma midiática e da publicidade infantil, além do fortalecimento da agricultura familiar e a valorização de práticas sustentáveis (agroecologia, agrofloresta e permacultura, principalmente).

Por fim, uma série de iniciativas e efetivas mobilizações individuais e coletivas em diferentes frentes de disputas são imprescindíveis para (re) inventar o cotidiano e gerar profundas mudanças em escalas global e local. Daí, a defesa de uma alimentação mais adequada, justa e saudável deve perpassar por ações sociais e políticas que busquem, de forma constante, transformar (a curto, médio e longo prazos) todo o sistema agroalimentar e financeiro dominante.

Inã Cândido de Medeiro é Doutorando em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Um Sopro de Esperança: Xi Jinping e a Civilização Ecológica

Não é mais segredo que o nosso planeta está imerso em um conjunto de crises graves, e eu gostaria aqui de focar na crise ambiental. Neste ano de 2021, a COP 26 será instalada na cidade de Glasgow com o objetivo de acelerar a ação em direção aos objetivos do Acordo de Paris e da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Em todo o mundo, tempestades, degelo, inundações e incêndios florestais estão se intensificando. A poluição do ar, infelizmente, afeta a saúde de dezenas de milhões de pessoas, e o fenômeno causa danos incalculáveis ao meio urbano e à saúde das pessoas, que esperam por ações mais efetivas.

Mas, enquanto os impactos das mudanças climáticas são devastadores, os avanços para lidar com isso estão ainda muito aquém da gravidade do problema.

É nesse sentido que se insere este breve ensaio, uma vez que são poucos líderes mundiais a afirmar categoricamente o quão comprometidos estão nesta luta para reduzir os efeitos do aquecimento global. E o presidente da China, Xi Jinping, tem não apenas se posicionado em seus pronunciamentos sobre o problema ambiental, mas estabelecido uma agenda assertiva ampla que vem se consolidando no país e, mais do que isso, tem tratado a questão como uma esperançosa civilização ecológica.

Em 24 de agosto de 2016, ele afirmou: “Os problemas ecoambientais que se acumularam ao longo de anos de rápido desenvolvimento são proeminentes, gerando muito descontentamento público (...), mas, como nosso povo agora tem roupas e alimentação adequadas, a proteção ecoambiental deve se tornar um componente integral do desenvolvimento”.

Em 26 de maio de 2017, ele é ainda mais assertivo em suas declarações: “A promoção de um modelo de desenvolvimento verde e uma forma de vida verde são requisitos essenciais de nossos novos conceitos de desenvolvimento. Nós devemos dar prioridade principal ao progresso ecológico em nossos planos gerais”. O que, para ele, implica em políticas de conservação de recursos e promoção de restauração natural. Tudo isso requer para Xi-Jinping a adoção e implementação de novos conceitos de desenvolvimento e estabelecer uma balança apropriada entre crescimento econômico e proteção ambiental. E conclui: “Acelerar a mudança do modelo de crescimento econômico, para fundamentalmente melhorar os ecossistemas. Nós devemos abandonar o modelo baseado no aumento do consumo de recursos materiais, desenvolvimento extensivo, alto consumo de energia e altas emissões. Devemos apostar na inovação (...)”.

De fato, são premissas que vêm a se ajustar ao delicado momento que vive o planeta. E para um país que se tornou a fábrica do mundo, com 1,4 bilhão de pessoas, não são medidas fáceis de pôr em prática. De todo modo, a concomitante internalização da questão ambiental já acontecia nas políticas chinesas em duas fases: entre 1992 e 2006 e, depois, de 2007 a 2012 (FERREIRA; BARBI, 2018).

A Civilização Ecológica

O primeiro ministro da época Mao, Zhou Enlai, dizia que era imperativo a República Popular da China (RPC) dedicar importância à proteção ambiental e que, como um país que começava a industrializar-se, a China não deveria tomar o velho caminho seguido pelas nações já industrializadas. Ele dizia que a China deveria evitar o tipo de poluição ambiental visto em algumas nações industrializadas do Ocidente. Se isso não pudesse ser realizado, como a China mostraria a superioridade do sistema socialista? E perguntava: “Como a China mereceria ser chamada de uma nação socialista?”. No 17º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês (PCC), em 2007, a proposta de uma civilização ecológica foi trazida à tona pela primeira vez (Qiushi Journal 2020-05-25). Construir uma civilização ecológica implicaria a criação dos fundamentos de uma estrutura industrial e modelos de crescimento e consumo que usariam energia e recursos com moderação e preservariam o meio ambiente natural.

Isso elevou o conceito a um nível estratégico sem precedentes. Toda a série de novos conceitos, novas formas de pensar e novas estratégias foram apresentadas, enfatizando que, quando o ambiente natural prospera, a civilização também prospera.

Há um firme compromisso com a harmonia entre o homem e a natureza, com a visão de que “águas lúcidas e montanhas exuberantes” são bens inestimáveis e com a noção de que nada é mais benéfico para o bem-estar das pessoas do que um belo ambiente natural. Desde o 18º Congresso Nacional do PCC, em 2012, a liderança central com Xi Jinping em seu núcleo tornou a construção de uma civilização ecológica parte de seu plano geral de "cinco frentes" para desenvolver o socialismo com características chinesas. Isso elevou o conceito a um nível estratégico sem precedentes. Aprovada em 2018, a Lei de Prevenção e Controle da Poluição do Solo produziu um sistema de leis e regulamentos liderado pela Lei de Proteção Ambiental, cobrindo todas as partes principais do meio ambiente, como ar, água e solo, e o meio ambiente natural, está agora em vigor em seus fundamentos. Não há tempo para apresentar mais em detalhes os avanços legais que foram promulgados; assim, nós passaremos a evidenciar algumas das conquistas já obtidas pelo governo chinês em busca de uma civilização ecológica.

Realizações

Um dos projetos vitoriosos foi o reflorestamento. A cobertura florestal cresceu de apenas 8% nos primeiros anos da RPC para os atuais 22,96%, com um volume de madeira de 17,56 bilhões de metros cúbicos, tornando a China o país com o maior crescimento em recursos florestais do mundo. A taxa de proteção de áreas úmidas naturais aumentou para 49,03%, recebendo elogios da comunidade internacional. Houve uma reviravolta na desertificação; os desertos cresciam 3.436 quilômetros quadrados anualmente no final do século passado, mas hoje estão diminuindo a uma taxa de 1.980 quilômetros quadrados a cada ano. A China é hoje o país com maior sucesso no controle da desertificação no mundo. Dados de satélite divulgados pela Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (Nasa) em 11 de fevereiro de 2019 mostraram que a nova cobertura vegetal na China é responsável por 25% do aumento global, tornando o país um líder mundial nesse aspecto (Qiushi Journal 2020-05-25).

De acordo com um estudo do Banco Asiático de Desenvolvimento (ADB, 2016), os investimentos em serviços de bacias hidrográficas, incluindo especialmente mecanismos de compensação como o pagamento por serviços ambientais, são os maiores do mundo. A RPC liderou a Ásia e o mundo em investimentos em bacias hidrográficas, tanto em termos de contagem de programas quanto em valores de transações. Com o gasto total do governo chegando a quase US $11,5 bilhões em 2013, os programas de compensação de bacias representaram 94% de todos os investimentos no mundo, e mais de 99% de todos os pagamentos feitos na Ásia em serviços de bacias hidrográficas. Com mecanismos inovadores intraprovinciais, e mecanismos interprovinciais para arranjos de compensação ecológica de bacias hidrográficas entre duas ou mais províncias, a China está liderando uma discussão que, em outras partes do mundo, ainda enfrenta gargalos institucionais e jurídicos significativos (SHANG et al., 2018, apud Weins, Niklas Werner et all).

Os métodos de controle e prevenção da poluição sofreram aperfeiçoamento e inovação contínua, uma expansão contínua de setores operados com um vigor cada vez maior no trabalho. Em 2005, as emissões de dióxido de enxofre da China aumentaram 27,8% em relação a 2000, um ponto alto histórico. Em 2010, isso mudou; as emissões de dióxido de enxofre caíram 14,3% em relação a 2005, e a demanda química de oxigênio caiu 12,5%, superando as metas estabelecidas no 11º Plano Quinquenal. Em 2015, esses números caíram novamente, já que as emissões de dióxido de enxofre caíram 18% em relação a 2010 e a demanda de oxigênio químico caiu 12,9%, ambas superando as metas estabelecidas para o controle de emissões. Em 2018, os números voltaram a cair face a 2017, recuando 6,7% e 3,1%, respectivamente. Ao implementar vigorosamente uma política tripla de redução de emissões programática, estrutural e gerenciada, avanços significativos foram alcançados na redução das emissões de poluentes. Em apenas seis anos de implementação, de 2013 a 2018, os "Dez Regulamentos do Ar" viram o primeiro lote de cidades começar o monitoramento de PM2.5 e uma queda média geral nas concentrações de PM2.5 de 41,7%. Em 2018, a proporção de dias com boa qualidade do ar em 338 das cidades da China em nível de província ou acima atingiu 79,3%.

Marcos Costa Lima é Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.

O Jornalismo e o Estado de Direito Democrático

A imprensa é vista da nação. Por ela é que a nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devasssa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam. Percebe onde a alvejam, ou nodoam, mede o que lhe cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa e se acautela do que a ameaça. A afirmação de Ruy Barbosa em defesa do Jornalismo é esclarecedora neste momento em que a ética e a busca da verdade dos fatos, singularidades do campo jornalístico, cedem lugar, na arena política, a outros interesses que não os da veracidade dos fatos.

A preocupação em bem informar foi abandonada por boa parte da imprensa na eleição de Bolsonaro. De uma forma “orquestrada”, a imprensa contribuiu na sua eleição. “Ironia” do destino hoje se coloca contra a sua “criatura”. Não somos daqueles que identificam uma atitude conspiratória da imprensa até porque temos uma fé inabalável neste país e no seu povo, do qual fazemos parte com muito orgulho. Povo que, contra alguns setores da imprensa, defendeu e lutou pela volta das eleições diretas e elegeu um presidente forjado no cotidiano da gente simples deste país. Com certeza, isso incomoda as classes dominantes. O Jornalismo não é o quarto poder e nem onipotente, tem que se submeter ao escrutínio da sociedade, como qualquer instituição democrática.

No entanto, causam-nos preocupação alguns fatos que ocorrem aqui e ali no Brasil hoje. Os constantes ataques. do presidente Jair Bolsonaro às Instituições, como o STF bem como as agressões à imprensa e ao Jornalismo. A imprensa ocupa um papel central na sociedade na publicização de fatos e acontecimentos contribuindo dessa forma para o debate público.

Sem dúvida, o Jornalismo e os jornalistas não estão acima do bem e do mal. A crítica ao trabalho da imprensa e dos seus profissionais é saudável e bem vinda. Faz parte da democracia. No entanto, toda e qualquer tentativa de calar a imprensa traz o incômodo de más lembranças de um período em que a imprensa foi silenciada pela ditadura militar.

Um tempo em que empresários, empresas jornalísticas e militares, sob a alegação do “fantasma do comunismo”, aliaram-se para dar o golpe militar de 64 que, durante anos, calou o Brasil. Felizmente os tempos são outros. Temos certeza de que os antigos aliados têm bem claro que vivemos hoje um novo quadro neste país e que mais do nunca é preciso defender a democracia.

Lembramos que o Código de Ética da Associação Nacional de Jornais (ANJ) nos seus preceitos é bem objetivo quanto ao compromisso das empresas jornalísticas de defesa da democracia. É dever das mesmas manter sua independência, apurar e publicar a verdade dos fatos de interesse público, não admitindo que sobre eles prevaleçam quaisquer interesses, defender os direitos do ser humano, os valores da democracia representativa e a livre democracia, bem como assegurar o acesso de seus eleitores às diferentes versões dos fatos e às diversas tendências de opinião da sociedade.

Consideramos que não se trata nem deveria se tratar de uma simples declaração de intenções, mas de uma meta a ser cumprida. Caso não fosse assim, cairíamos na chamada “razão cínica” como as promessas de palanque de alguns políticos que passadas as eleições esquecem o que prometeram.

Para nós é imprescindível que a imprensa brasileira se fundamente nos seguintes aspectos, não como uma possibilidade, mas como um dever inalienável: o ser humano é a norma no uso dos meios de comunicação; todo e qualquer princípio moral referido aos meios deve apoiar-se na dignidade e no valor da pessoa humana, que se realiza no âmbito da comunicação.

A humanização coloca-se como um fator central dos meios de comunicação social. Dentro desse contexto, tendo o bem comum como valor decisivo, tudo que eles realizam deve passar pelo seu crivo. Uma sociedade fraterna e solidária deve ser a preocupação central do Jornalismo voltado para o interesse público e para a informação de qualidade.

Um compromisso com a verdade, a ética, a liberdade e a democracia

Neste sentido, é básica a preocupação com a busca da verdade, a apuração rigorosa dos acontecimentos e a análise de todas as interpretações existentes na sociedade, tendo como princípios a ética e a investigação. Acreditamos que para termos uma boa informação que contribua para o esclarecimento dos cidadãos e das cidadãs, é necessário que as empresas jornalísticas ao cobrirem os fatos não façam uma apresentação parcial da realidade; não distorçam os fatos mediante a acentuação dos aspectos que provocam reações emocionais, não racionais, na linha de uma exacerbação desproporcional de interesses. Ou seja, não transformem a notícia num espetáculo.

É preciso ter cuidado com o “silêncio”. Ou seja, suprimir determinadas informações cujo conhecimento poria em dúvida o quadro ideológico sustentado pelos detentores dos meios de comunicação social. É preciso também não fazer eco de rumores sem base, que pelas características do seu conteúdo não são passíveis de comprovação.

É importante, também como disse Paulo Freire, estabelecermos uma vigilância constante sobre a nossa atividade pensante para que não se adote sob o tom de uma marcada, ainda que aparente imparcialidade, afirmações claramente imparciais ou interesseiras.

Alfredo Vizeu é jornalista e professor titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM/UFPE) e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba (PPJOR/UFPB).

PROSA REAL

Livro-Reportagem como TCC (Parte III):

Hora de escrever: o desafio da narrativa atraente

Nas duas edições anteriores debatemos o processo de elaboração de um livro-reportagem como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) nos aspectos de escolha do tema, entrevistas, pesquisa documental e organização de todo material coletado. Nesta última coluna especial sobre o assunto trataremos a respeito do desafio de organizar a obra nas páginas em forma de uma narrativa que atraia a banca examinadora e os futuros leitores. Em primeiro lugar é preciso desmistificar a compreensão equivocada que se tem da expressão jornalismo literário, muito ligada ao universo do livro-reportagem, mas algumas vezes definida com uma visão exagerada. Emprestar da literatura o mergulho psicológico nos personagens, reconstituir cenas da forma mais próxima de como elas teriam ocorrido e recuperar diálogos vívidos, são exercícios positivos e possíveis, mas o jornalismo literário não significa semear o texto de adjetivos ou floreios inúteis. Basta ler com atenção escritores como Graciliano Ramos, em obras como Vidas Secas, para perceber como a boa escrita passa por um exercício de rigor, cuidado com a pontuação e compreensão do poder de cada frase ou palavra escolhida. Portanto, se você pretende escrever um livro-reportagem no final do curso de Jornalismo, já é importante ir treinando o texto narrativo desde os primeiros trabalhos de disciplinas práticas, inclusive no jornal-laboratório. O estilo próprio nasce de muita leitura de reportagens e livros-reportagem, observando com atenção como os mestres Truman Capote, Gay Talese, Fernando Morais, Ruy Castro ou Daniela Arbex apresentam os personagens e as ações. Livro-reportagem tem outra concepção de lead, precisa ter uma abertura impactante. Outra recomendação é que cada capítulo feche com elementos de suspense ou que atraiam o leitor para a continuidade da leitura. Se o estudante está elaborando uma biografia, por exemplo, é preciso decidir se o melhor é abrir o livro com o nascimento do biografado ou se o momento de sua morte ou do auge de sua carreira, por exemplo, não seria mais relevante. Fernando Morais abre o clássico Chatô, sobre o empresário de comunicação Assis Chateaubriand, com o personagem quase morrendo em uma mesa de operação, tendo inclusive delírios. Uma boa narrativa, organizada em capítulos com tamanho semelhante, pensados com linhas de força coerentes e que se completam, exige também um material apurado com rigor, como vimos nas colunas anteriores. Não há receitas propriamente ditas, e, sim, muito esforço.

Checagem, medo do erro e questões éticas

Todo autor ou autora de livro-reportagem enfrenta medos comuns para quem está lidando com grande massa de informação apurada e que precisa ser organizada de forma agradável nas páginas. O medo de errar uma informação essencial pode ser minimizado com um trabalho rigoroso de checagem das informações, algo que nunca termina, mesmo durante o processo de escrita da obra. Na verdade, quando vamos transpor para as páginas tudo o que foi apurado é que costumam aparecer as lacunas narrativas, que devem ser compensadas com novos contatos com as fontes, desta vez, com dúvidas bem específicas. A preocupação com a postura ética deve perpassar também todo o processo, desde a pauta, mas na hora de escrever o livro-reportagem o estudante tem a última chance de analisar se tudo o que apurou e está comunicando prima pelo respeito aos direitos humanos, à privacidade e à visão pluralista. Como no caso do TCC o livro-reportagem ainda passará por uma banca de avaliação, pode-se pensar que é permitido ter um pouco menos de rigor nesses aspectos, o que representa um equívoco. O compromisso social do jornalista envolve uma postura sempre atenta ao respeito ao ser humano, que afinal é o centro de todas as narrativas. Recomendo a leitura de duas obras de Eliane Brum nas quais ela autoanalisa seus medos, angústias e descobertas no processo jornalístico: O olho da rua (2008) e Meus desacontecimentos: A história da minha vida com as palavras (2014). A jornalista deixa clara a necessidade de o profissional estar sempre atento a este questionamento interno durante todas as etapas de sua atividade.

A importância da banca e os sonhos de publicação

A escolha de uma banca para analisar um TCC de livro-reportagem deve ser feita com cuidado, pois não são todos os professores que tem o olhar preparado para analisar um trabalho que não tem essência monográfica. As professoras e professores escolhidos devem ter conhecimento das especificidades da produção de um livro-reportagem, seu potencial narrativo e importância para interpretação da memória de determinada região. Outro aspecto importante é que muitas universidades de jornalismo exigem que, além do livro-reportagem em si, como peça prática, também seja entregue um relatório técnico, com reflexões mais teóricas a respeito da produção daquele projeto experimental, algo que é coerente, mas representa mais um trabalho para o formando. Entenda que o relatório técnico não é uma monografia, mas deve trazer as leituras que você fez para chegar à concepção de um livro-reportagem de excelência. Acima de tudo não pode faltar uma reflexão aprofundada sobre todo o processo de bastidores que marcou a elaboração da obra, relacionando com o que você aprendeu nas múltiplas disciplinas da universidade, já que esta peça auxiliar vai servir de guia para futuros colegas que se lançarem na mesma empreitada. Outro fator essencial para levar um bom produto para a banca de TCC é cuidar dos aspectos de diagramação e edição final da obra, mesmo que ela seja entregue em formato de PDF. Capa atraente, “orelhas” bem escritas, prefácio, epílogo, um índice remissivo, além de cadernos de fotografias diagramados com criatividade e rigor ajudam muito na apresentação do livro-reportagem para ser examinado pelos componentes da banca. É importante prestar atenção em todas as contribuições orais ou por escrito que os professores e professoras irão fazer e acolhe-las com humildade em debate posterior com o orientador. Pense que toda crítica construtiva só vai ajudar a aprimorar um produto que, afinal, pode ter uma publicação posterior. Concluída a etapa da banca, o formando deve se esforçar para depositar um produto consistente, que vai servir de portifólio para a sua profissão e também para guiar outros futuros escritores. Cumprir com empolgação e alegria todas as etapas de produção de um livro-reportagem como TCC também é um passo inicial para outra etapa definitiva: a submissão dos originais para editoras que possam a vir a publicá-lo. No caso de um aceite neste sentido, cabe negociar novos prazos para aprimorar, na obra, aquilo que talvez tenha ficado deficiente devido à pressão do tempo de produção de um livro-reportagem no universo acadêmico. Pense que, além de um trabalho de fim de curso, você elaborou uma obra que pode servir de referência para a memória da cidade e da região.

Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz e doutor em Comunicação pela UFPE, Alexandre Zarate Maciel, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, seus principais autores, títulos e a visão do leitor.

Reflexões sobre jornalismo e espaço público no governo Bolsonaro

O levante da extrema-direita bolsonarista fortaleceu um discurso de descredibilização dos veículos de comunicação, anulação do jornalismo e daquilo que sua deontologia tem de mais valioso: a defesa da liberdade de expressão e de informação. Segundo a Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), o ano de 2020 foi o mais violento para os jornalistas brasileiros desde 1990. Foram registrados 428 casos de violência, dos quais 152 casos foram de descredibilização da imprensa, uma das estratégias discursivas do governo Bolsonaro. Entre os agressores mais frequentes, o que ocupa a primeira posição é o presidente, com 176 ocorrências de violência contra jornalistas, sendo que 145 foram de descredibilização e 27 de agressões verbais.

A interação mediada pelos veículos de comunicação facilitou o debate público de ideias e limitou o poder absoluto dos governantes na modernidade, exercendo esse papel até hoje nas democracias contemporâneas. Os jornais permitiram uma generalização dos assuntos da vida social, a inclusão de mais pessoas nos debates e intervenções nas coisas públicas, culminando num maior acesso público às esferas de controle político (CORREIA, 1998). Apesar dos vícios que ameaçam, historicamente, a integridade do jornalismo brasileiro, devemos considerar essencial a defesa da sua existência como pressuposto para a existência da própria democracia. Como observa Habermas (1997, p. 101): “A liberdade da imprensa, do rádio e da televisão, bem como o direito de exercer atividades publicitárias, garantem a infra-estrutura medial da comunicação pública, a qual deve permanecer aberta a opiniões concorrentes e representativas”.

Sendo fator estruturante da esfera pública, os meios de comunicação, portanto, contribuem com a continuidade da vida social e também política, sendo estrutura intermediária entre o sistema político e os setores privados do mundo da vida (HABERMAS, 1997). Podemos dizer que não existe mais política nacional sem mídia. “A política nos regimes democráticos é (ou deveria ser) uma atividade eminentemente pública e visível. E é a mídia - e somente ela - que tem o poder de definir o que é público no mundo contemporâneo” (LIMA, 2009, p. 21). Pautar a agenda pública, fiscalizar o governo, canalizar demandas da população e tecer críticas são algumas atividades que devem ser exercidas pelos meios de comunicação democráticos. É igualmente verdadeiro que, diante das exigências do modelo comercial e de interferências políticas no fazer jornalístico, o funcionamento da mídia no Brasil apresenta vícios. A democracia depende: 1) da existência de um jornalismo livre, feito com responsabilidade; 2) da existência de agentes políticos que pautam suas ações no bem comum; e 3) da capacidade do jornalismo dar visibilidade às ações dos cidadãos (SOUSA, 2009). Apesar de muitas vezes os processos de seleção midiáticos não serem controlados por critérios profissionais de forma suficiente, é pertinente não perder de vista os princípios normativos do jornalismo:

O código profissional dos jornalistas e a autocompreensão ética da corporação, de um lado, tornam tais princípios como orientação. Eles expressam uma ideia reguladora bastante simples, que coincide com o conceito de política deliberativa, a saber: os meios de massa devem situar-se como mandatários de um público esclarecido, capaz de aprender e de criticar; devem preservar sua independência frente a atores políticos e sociais, imitando nisso a justiça; devem aceitar imparcialmente as preocupações e sugestões do público, obrigando o processo político a se legitimar à luz desses temas. Por este caminho se neutraliza o poder da mídia e se impede que o poder administrativo ou social seja transformado em influência político-publicitária” (HABERMAS, 1997, p. 112).

Miguel (2002) também corrobora que o modelo mercadológico da comunicação impede a plena atuação da mídia como esfera ideal de representação política. Na prática, a mídia comercial representa mal essa diversidade de vozes por estar inserida em um contexto de disputa pelo poder. Isso se torna problemático tendo em vista que o reconhecimento social é condição primordial para a conquista do capital político, e esse reconhecimento se dá por meio da mídia, “principal difusora do prestígio e do reconhecimento social nas sociedades contemporâneas” (MIGUEL, 2002, p. 162).

Diante das fragilidades que permeiam e assombram o jornalismo brasileiro, controlado por oligopólios, o discurso bolsonarista descredibiliza a mídia, ajudando a minar a confiança do cidadão brasileiro nos meios de comunicação, que já vem sendo perdida devido às falhas éticas cada vez mais questionadas por audiências e consumidores de notícia empoderados.

A internet, espaço de liberdades ou anarquias informativas, se torna o principal canal desse discurso. Nela, líderes populistas se aproveitam da falta de políticas de controle sobre a circulação de informação online e impulsionam ideias antidemocráticas. Um cenário que reforça, cada vez mais, a necessidade de salvar a comunicação humana e democrática da ideologia tecnicista que defende as tecnologias como auto suficientes (WOLTON, 2010).

Novo espaço público, novas questões

Com o avanço das novas tecnologias e do ambiente online, o acesso à informação é maior e mais indivíduos participam do processo de produção. A internet se impôs, portanto, como um espaço aberto, horizontal e aparentemente livre, mas os ônus relacionados ao irrompimento dessa ferramenta já dão sinais de existência. Um sintoma desse avanço é a crescente utilização massiva das redes sociais para eleição de líderes populistas. No Brasil, Jair Bolsonaro tem sua candidatura calcada na marginalização do jornalismo profissional e na interlocução direta com os cidadãos por meio da Internet, onde ele fala diretamente com seus seguidores, compartilhando discursos muitas vezes desprovidos de factualidade (MIGUEL, 2019).

É oportuno afirmar, portanto, que a crença no poder democratizante das novas tecnologias - fruto de uma ideologia tecnicista, conforme define Dominique Wolton (2010) - é limitada pelo potencial que essas ferramentas têm de promover manipulações informativas. Portanto: “O maior espaço de liberdade corresponde ao maior espaço para as grandes perversões financeiras, criminosas, mafiosas e pornográficas, resultando na maior fonte de boatos e de manipulações, pois boa parte das informações não tem confirmação” (WOLTON, 2010, p. 39-40). Como atestamos agora, grupos populistas fazem uso de recursos de marketing que, por meio de algoritmos, utilizam robôs e perfis falsos para impulsionar conteúdos falsos.

A ascensão desse modelo de troca de informações prejudica a democracia liberal até então estabelecida sem ameaças. Enquanto o jornalismo profissional funciona como um “terreno comum” para o compartilhamento de ideias, opiniões e informações contraditórias que permitem o debate público e democrático, a internet cria bolhas virtuais. Miguel (2019) acredita que a função de seleção e hierarquização da informação, antes monopolizada pelos jornalistas, ainda precisa ser preenchida nesse novo ambiente; caso contrário, estaremos condenados à anarquia informativa:

A abundância de informação permite uma especialização de foco que significa o desconhecimento de todo o resto. Posso ocupar todo o meu dia tendo como único item de minha dieta informacional as fofocas sobre uma dúzia de celebridades ou as movimentações de uma liga de futebol interiorana. No entanto, isso não elimina o fato de que haverá uma agenda pública que norteará as decisões de alcance coletivo. Se a multiplicidade de gatekeepers permite equalizar um pouco a disputa pela construção dessa agenda, isso é bom. Mas se serve apenas por nos tornar menos conscientes dela, por nosso isolamento em nossas próprias bolhas, isso é ruim (MIGUEL, 2019, p. 50).

Não devemos esquecer, contudo, o papel desempenhado pela mídia privada brasileira nos acontecimentos que culminaram na queda do governo petista e na ascensão de Jair Bolsonaro, destacado por Miguel (2019). Foram as empresas jornalísticas tradicionais que ajudaram a construir o terreno propício para o impulsionamento de fake news, gerando um cenário favorável ao discurso de descredibilização do jornalismo profissional. A reação desses grupos jornalísticos, atualmente, se baseia no retorno do apego aos valores de objetividade, verdade factual e separação entre notícia e opinião; buscando, assim, se estabelecer como gatekeeper legítimo (MIGUEL, 2019). Portanto, a mídia se vê diante de uma enrascada que ajudou a criar: peleja contra o avanço das fake news e do discurso de anulação da sua competência de informar, e tenta salvaguardar sua credibilidade por meio da defesa deontológica e da negação de seu partidarismo.

Marya Edwarda Lapenda é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

A insustentável esquizofrenia proxêmica

Esquizofrenia é o transtorno mental grave que se caracteriza, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), pela distorção do pensamento, das percepções, das emoções, da linguagem, da consciência de si mesmo e da conduta. De acordo com a OMS, esse transtorno afeta mais de 21 milhões de pessoas em todo o mundo. Uma das experiências mais frequentes são as alucinações, tais como ouvir vozes ou ver coisas inexistentes, e os delírios, ou seja, crenças erradas e persistentes.

A insustentável esquizofrenia proxêmica surge de reflexões sobre os comportamentos atuais, em especial, nas redes sociais. Não é escrito ao acaso, mas ancorado em teorias bastante pertinentes e antagônicas, mas que se complementam, numa época em que pouco se exercita o pensamento e muito se polariza. Vivemos num mundo cada vez mais globalizado e interconectado, em que muitos estudiosos, em especial das Ciências Sociais, preconizaram como a possibilidade de um mundo mais democrático e civilizado. Pierre Lévy defende (ou defendia no século passado, em 1996) a ideia do ciberespaço como um meio onde “será” possível se consolidar a tecnodemocracia. Na contramão, Paul Virilio defendeu, desde sempre, que, “com a aceleração, não há mais aqui e ali, só há a confusão mental do próximo e do distante, do presente e do futuro, do real e do irreal”. Crítico voraz que enxergava o “catastrofismo” em relação à crescente virtualização do cotidiano, Virilio acreditava que os meios de comunicação se servem de uma depravação singular das leis democráticas. “Se, por um lado, eles ‘não podem’ passar notícias falsas; por outro, têm o poder de mentir por omissão, censurar e deter aqueles que não lhes convém ou possa prejudicar seus interesses.” Lévy, por sua vez, desmonta, em O que é o virtual?, o processo de virtualização do corpo, da comunicação e da economia, compreendendo o real e virtual não como uma dicotomia, mas pontas de um processo que está sempre se refazendo. Os temas entrelaçados são três: (1) a parte coletiva da cognição e da afetividade pessoal; (2) a questão do “coletivo pensante” enquanto tal e (3) a inteligência coletiva como utopia tecnopolítica. “Nós, seres humanos, jamais pensamos com ou sem ferramentas” (Pierre Lévy). As instituições, as línguas, os sistemas de signos e as técnicas de comunicação e de representação informam profundamente nossas atividades cognitivas.

Toda uma sociedade cosmopolita pensa dentro de nós. Por esse motivo, não obstante a permanência das estruturas neuronais de base, o pensamento é profundamente histórico, datado e situado, não apenas em seu propósito, mas também em seus procedimentos e modos de ação. (LÉVY, 1996, p. 95)

O desenvolvimento da comunicação assistida por computadores e das redes digitais planetárias aparece como a realização de um projeto que promove a constituição deliberada de novas formas de inteligência coletiva, mais flexíveis, mais democráticas, fundadas sobre a reciprocidade e o respeito das singularidades. Aparece ou parece. Talvez assim o fosse no século passado e início deste século.

Voltemos a Virilio (1993), em O espaço crítico e as perspectivas do tempo real, que já na altura falava em situações que favorecem a falta de decoro, expressa em desvios de linguagem, escondidas no “anonimato” de uma agressividade telecomandada. Comportamentos visivelmente expressos neste século na internet, em especial nas redes sociais, nomeadamente Facebook, TikTok, Instagram e outras. Uma democracia dissimulada, disfarçada numa comunicação todos-para-todos.

O resultado? A degenerescência da sociedade, que sofre a cada dia a síndrome narcísica que culmina na insustentável esquizofrenia proxêmica, em que o tato e o contato cedem lugar ao impacto televisual, referenciado por Virilio (1993): “discutir sem se encontrar com seus parceiros sociais, onde existiria, no entanto, uma proximidade física imediata, em uma situação de certa forma semelhante à dos maníacos do telefone, para os quais a situação favorece o desvio da linguagem, o anonimato de uma agressividade telecomandada (...)” (VIRILIO, 1993, p. 14).

Sim, o mundo anda resumido a uma agressividade telecomandada, a um narcisismo exacerbado, e o resultado são as esquizofrenias proxêmicas de uma sociedade que sofre crises de decoro, falta de cidadania e civismo. Sobretudo, respeito ao outro, respeito a si mesmo. Comportamentos frutos da ausência do que poderíamos considerar inteligência coletiva.

Em A virtualização da inteligência e a constituição do sujeito, Pierre Lévy expõe três momentos. No primeiro, o papel capital das linguagens, das técnicas e das instituições na constituição do psiquismo individual e os temas centrais da ecologia ou da economia cognitiva. No segundo, a formulação de uma definição do psiquismo compatível com a ideia de pensamento coletivo e o exame das concepções darwinianas da inteligência, complementando essas noções por uma abordagem afetiva, que dê conta da dimensão da interioridade do espírito. E no terceiro, a descrição de novas formas de inteligência coletiva possibilitadas pelas redes digitais interativas e as perspectivas que elas abrem para uma evolução social positiva e a inteligência coletiva na inteligência pessoal: linguagens, técnicas, instituições. Na visão de Lévy, inteligência é o conjunto canônico das aptidões cognitivas: as capacidades de perceber, de lembrar, de aprender, de imaginar e de raciocinar. No entanto, o exercício de suas capacidades cognitivas implica uma parte coletiva ou social geralmente subestimada. Isso porque pensamos – ou deveríamos pensar – na corrente de um diálogo ou de um multidiálogo e jamais isolados. “Não exercemos nossas faculdades mentais superiores senão em função de uma implicação em comunidades vivas com suas heranças, seus conflitos e seus projetos.” (LÉVY, 1996, p. 97).

A noção de inteligência coletiva não é uma metáfora, uma analogia mais ou menos esclarecedora, mas um conceito construído por Pierre Lévy. O autor diz que primeiro é preciso encontrar uma definição de um ”espírito” que seja inteiramente compatível com um sujeito coletivo, isto é, com uma inteligência cujo sujeito seja, ao mesmo tempo, múltiplo, heterogêneo, distribuído, cooperativo/competitivo e que esteja constantemente engajado num processo auto-organizador ou autopoiético. Claramente, isso exclui qualquer espécie de polarização de pensamento como hoje se assiste nas redes sociais.

A inteligência coletiva é atravessada por uma dimensão coletiva, à medida que as condições supracitadas reunidas eliminam, automaticamente, os modelos de cálculos ou informáticos do tipo ”máquina de Turing”, que não têm a propriedade de autocriação. Isso porque é o conjunto do mundo humano, com suas linhas de desejo, suas polaridades afetivas, suas máquinas mentais híbridas, suas paisagens de sentido forradas de imagens que pensam dentro de nós. Não são apenas as linguagens, os artefatos e as instituições sociais. Como um dos principais efeitos da transformação em curso, aparece um novo dispositivo de comunicação no seio de coletividades “desterritorializadas” muito vastas, que Lévy chama de ”comunicação todos-todos” e que representa um avanço decisivo, ou deveria representar, rumo a formas novas e mais evoluídas de inteligência coletiva. Na “comunicação todostodos”, cada um é potencialmente emissor e receptor. O espaço pode ser qualitativamente diferenciado, não fixo, disposto pelos participantes, explorável; ou seja, as pessoas se encontram segundo centros de interesse, numa paisagem comum de sentido ou do saber. O ciberespaço oferece instrumentos de construção cooperativa de um contexto comum em grupos numerosos e geograficamente dispersos. A memória coletiva posta em ato no ciberespaço é dinâmica, emergente, cooperativa, retrabalhada em tempo real por interpretações. O ciberespaço fornece as conexões, as coordenações, as sinergias entre as inteligências individuais. Sobretudo, se um contexto vivo for mais bem compartilhado, se os indivíduos puderem se situar mutuamente numa paisagem virtual de interesses e de competências e se a diversidade dos módulos cognitivos comuns ou mutuamente compatíveis aumentar. Ou seja, se os indivíduos estiverem propensos a exercitar o pensamento em vez de seguirem doutrinas.

À parte da distância proxêmica, que, se, por um lado, nos protege do desconhecido, por outro, nos priva de outros sentidos, colocamos, lado a lado, dois autores que, considerados antagônicos, podem nos levar à polarização de ideias e ideais. Mas, num exercício de leitura e pensamento, podemos nos valer de ambos os conceituados autores para ponderar que o ciberespaço traz, e muito, as teorias de Paul Virilio e daí o espírito de esquizofrenia generalizada da sociedade, mergulhada em alucinações polarizadas. Quiçá o ciberespaço tivesse evoluído como um ecossistema colaborativo que promovesse a inteligência coletiva preconizada por Pierre Lévy, tivéssemos, assim, o melhor dos mundos, que se resume a um simples conselho de um dos meus mais especiais mentores: “nem tanto ao mar, nem tanto a terra”; “nem 8, nem 80”.

Pois... como bem advertiu Virilio, “o desequilíbrio entre a informação direta de nossos sentidos e a informação mediatizada das tecnologias avançadas é hoje tão grande que terminamos por transferir nossos julgamentos de valor, nossa medida das coisas, do objeto para sua figura, da forma para sua imagem, assim como dos episódios de nossa história para sua tendência estatística, de onde o grande risco tecnológico de um delírio generalizado de interpretação”. Vivemos, assim, a insustentável esquizofrenia proxêmica, no vazio do veloz de uma informação que faz superfície e carece de profundidade.

Lílian Márcia Chein Féres é Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, bacharel em Comunicação Social pela FACOM/UFJF, membro do LabCom da Faculdade de Artes e Letras da UBI e doutoranda em Ciências da Comunicação pela UBI/Portugal, além de empresária (www.parakalo.pt).

A intolerância religiosa é um obstáculo à democracia

Diante da atual crise sanitária, marcada pelo despreparo do governo federal no combate à Covid-19 e do discurso genocida do presidente Jair Bolsonaro, o Brasil continua a seguir na contramão das evidências científicas, retardando e negando o oferecimento de vacinas e imunizantes. Mesmo após ultrapassarmos mais de 573 mil vidas perdidas, a negligência e o desrespeito parecem não ter fim. Juntamente com outros problemas que carecem de urgente solução, uma questão merece destaque: a intolerância religiosa. Se considerarmos que desde o período colonial possuímos um mapa de intolerância e perseguição, enraizado no passado escravista, ainda hoje é imperativo perguntar quem persegue, como persegue, onde persegue, quando persegue e quais são suas vítimas.

Juridicamente, no Brasil, Estado e Igreja se separaram com a promulgação da Constituição republicana de 1891, o que não significa que inexistam entrelaçamentos entre política e religião (MARIANO, 2011; MONTERO, 2013). A Constituição de 1934, por exemplo, introduziu o princípio de colaboração recíproca entre a religião e a política, sugerindo que suas linhas demarcatórias “são por demais escorregadias e que existem diversas possibilidades de arranjos entre essas duas esferas” (MACHADO, 2008, p. 146). Décadas depois o país começou a adotar, pelo menos em tese, as predisposições contidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada em 1948. O seu Artigo 18 afirma que “todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular”. Similarmente, o Artigo 5º da Constituição Federal de 1988 assevera em seu inciso VI que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

Porém, apenas em 2007, durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi instituído, através da lei nº 11.635, o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Tal data presta uma homenagem à Mãe Gilda (Gildásia dos Santos e Santos), vítima de intolerância por membros Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Em 1999, a referida denominação religiosa publicou na Folha Universal uma série de difamações e calúnias, que acusava “Macumbeiros charlatões” de lesarem “o bolso e a vida dos clientes”. Esse incidente representou uma agressão direta ao terreiro de Candomblé Ilê Axé Abassá de Ogum, fundado por Mãe Gilda. A perseguição resultou no agravamento de sua saúde, levando-a falecer de um ataque cardíaco fulminante no dia 21 de janeiro de 2000, aos 65 anos. Ainda que a data não seja suficiente para coibir casos de intolerância e racismo religioso, o seu simbolismo é fundamental para criarmos uma cultura de tolerância, na qual os diferentes credos convivam e se respeitem.

É necessário, entretanto, compreender que o evento descrito acima não representa um caso isolado de abusos e/ou desrespeitos às religiões minoritárias. Conforme dados do Disque 100, serviço de proteção dos direitos humanos, criado em 2011, no primeiro semestre de 2019 foram registradas 354 denúncias de intolerância religiosa no Brasil, correspondendo a um aumento de 67,7% quando comparado com o mesmo período do ano anterior. A tendência, infelizmente, é o aumento dos números de intolerância. Tal informação pode observada através da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), para quem os casos os relacionados à intolerância religiosa cresceram 41,2% no primeiro semestre de 2020 em relação ao mesmo período de 2019. De acordo com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), se comparado ao mesmo período de 2018, essas denúncias aumentaram 136%. A maioria delas foi feita por praticantes de religiões de matriz africana, que muitas vezes evitam acionar os órgãos de proteção pelo receio de represálias ou pelo medo de não receber o devido apoio. Os Estados com maiores ocorrências foram São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, respectivamente.

A situação tende a piorar quando o presidente da República é um agente e um dos mais ardorosos defensores de discursos que insuflam o ódio e a discriminação contra credos religiosos não hegemônicos. Suas conhecidas declarações de preencher cargos públicos e ministérios com nomes “terrivelmente evangélicos” – veja-se o caso de Damares Alves –, só realçam a dimensão do problema.

Vale lembrar, por exemplo, a afirmação, tipicamente fascista, que Jair Bolsonaro proferiu em fevereiro de 2017, durante um encontro no Estado da Paraíba: “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”.

Não podemos, todavia, descrever e compreender o modus operandi da intolerância religiosa como um fenômeno homogêneo ou produto da última década. Ao contrário, ela parece se radicalizar, global e paradoxalmente, no interior de um contexto que clama por maior pluralismo e representatividade. Na acepção de Burity (2008, p. 84), “não se pode mais ignorar a visibilidade pública da religião na cena contemporânea”, cujos atores movimentam-se e trazem seu ethos, sua linguagem, suas demandas, em diversas direções. Algumas vezes entram em cena processos que contribuem com formas pluralistas de convivência, enquanto outras convergem para a escalada da intolerância. Para Burity (2015, p. 46), “a pluralidade é uma dimensão da própria experiência coletiva da democracia”, que rima com “direitos, reconhecimento, justiça”. E as religiões entram nesta seara, sobretudo a partir da redemocratização do país nos anos 1980.

As religiões se globalizam como ator, ao mesmo tempo em que sofrem o impacto da politização “a partir de pressões biopolíticas que lhe vêm de fora e de dentro” (BURITY, 2015, p. 46). Desse modo, afloram com maior força atores e denominações religiosas pentecostais – minoritizadas como religiões públicas e com forte pluralidade interna –, que quebram o monopólio do catolicismo e acendem o compromisso de colaboração no enfrentamento dos problemas sociais, produzindo maior “capital social” e “coesão social”. Após décadas de invisibilidade, os pentecostais mobilizaram-se na construção de sua própria representação política e na tentativa de garantir uma voz pública, com variados graus de sucesso. Não obstante, o desafio aparece “na medida em que a pluralidade não se manifesta sempre em termos reconhecíveis ou aceitáveis” (BURITY, 2015, p. 43).

No bojo dessas mudanças, os adeptos das religiões de matriz africana também procuram se posicionar e reivindicar o direito de praticar seus credos e tradições. Uma das estratégias adotadas para resistir aos ataques de intolerância, especialmente por parte de neopentecostais, tem sido a aproximação cada vez maior das religiões de terreiro com integrantes do movimento negro. Para terminar esta reflexão, é importante dizer que o universo afro-religioso passou a ser utilizado pelos movimentos de igualdade racial, incluindo o discurso da construção de uma identidade negra e de sua politização. Busca-se, assim, associar os ataques de intolerância a essas religiões com o racismo, o preconceito e as desigualdades sociais, fazendo com que essas religiões, aos poucos, passem não mais a se autodeclarar de “religiões afro-brasileiras”, mas sim de “povos e comunidades tradicionais” (MORAIS; JAYME, 2017, p. 278).

Rômulo Santos de Almeida é Mestre e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco e graduado em Ciências Sociais (Bacharelado) pela UFPE (2013).

Maquiavel: Dissenso, Liberdade e Lei (II)

Simón Bolívar, o Libertador, agiu dentro dos parâmetros de conduta defendidos por Maquiavel. Valeu-se de medida extrema para garantir a consolidação da revolução, ao determinar, em 1823, o fuzilamento de um dos heróis de suas lutas de libertação, o General Manuel Piar, pelo fato de este desenvolver, junto ao oficialato, ações que comprometiam a sua autoridade. Aplicou-lhe a pena mais dura, para que sua decisão tivesse caráter exemplar. Mesmo se, por ter sido obrigado a proceder desta forma, o dia da execução de Piar tenha sido, segundo ele próprio, “o pior dia de sua vida”. Conforme expressivo relato de Gabriel Garcial Márquez (2000, p. 230), Simon Bolivar:

[...] pelo resto da vida, repetiria tratar-se de uma exigência política que salvou o país, persuadiu os rebeldes e evitou a guerra civil. De qualquer forma, foi o ato de poder mais feroz da sua vida, mas também, o mais oportuno, mediante o qual o general consolidou de imediato sua autoridade, unificou o comando e desobstruiu o caminho de sua glória.

Baseado na mesma ética, em 1945, com a França ainda em guerra contra o nazismo, um Tribunal, composto de integrantes da Resistência e de parlamentares, condenou, em julgamento considerado “horrível” e “vergonhoso”, por personalidades de diferentes correntes políticas, à pena capital, Pierre Laval, pela sua atuação como Presidente do Conselho de Ministros durante o governo colaboracionista de Vichy. O Chefe de Estado, general De Gaulle, poderia ter comutado a sua pena, mas não o fez, pois esse gesto de complacência, em um período de reconstrução nacional, suscitaria indignados protestos populares, com grave risco para a estabilidade das instituições (LACOUTURE, 1985: p. 473). Contudo, a preservação do Estado, e de sua governabilidade, se faz, na atualidade, na plena vigência dos regimes democráticos, sem o uso de violência arbitrária, sob padrões éticos compatíveis com os valores republicanos e democráticos.

Examine-se, na prática, com alguns exemplos, essa questão no Brasil. Em entrevista concedida, em setembro de 2009, à Rede Bandeirantes de Televisão, o então Ministro da Justiça, Tarso Genro (2009), traz à baila a reflexão sobre decisões tomadas em nome da estabilidade política. Ele justificou a posição do então presidente Lula, que enquadrou, em nome da governabilidade, os senadores petistas favoráveis à abertura de sindicância contra José Sarney, acusado de nepotismo e de várias outras ilegalidades no Conselho de Ética do Senado Federal.

Na primeira versão desse artigo, publicada em 20101, lê-se, a esse respeito, o seguinte:

[...] a referida escolha, sacrificando a ética à realpolitik, imposta pela necessidade de manter apoio político ao governo do presidente Lula, evitou rachaduras na “base aliada”. Todavia, a médio e longo prazo, essa opção poderá, de acordo com certo enfoque crítico, contribuir para o enfraquecimento da governabilidade, na medida em que aprofundará o fosso entre a “classe política” e as aspirações de, praticamente, toda a sociedade civil. Com efeito, esta inclina-se a exigir do estadista o respeito à lei e aos princípios republicanos consagrados na constituição pátria. (LYRA, 2011, p.21-22).

Dito de outra forma: em uma democracia, não é possível, em nome da preservação da governabilidade ou da permanência de um projeto político, qualquer que seja, pretender sobrepor suposta “razão de Estado, ao respeito à ética, à legalidade e à transparência.

A hipótese levantada em 2011 confirmou-se em 2018 e 2019, com o comprometimento ético de importantes lideranças do PT, comprovado em várias investigações e processos judiciais, com graves danos à imagem do partido. De defensor intransigente da moralidade, foi bem além da adesão à real politik, que tanto combatera, merecendo críticas contundentes, até mesmo de algumas de suas estrelas de primeira grandeza. Na opinião do ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-Presidente nacional desse Partido Olívio Dutra, aceitando as coligações partidárias que “deseducam”, “praticando a política do é “dando que se recebe”, o PT se tornou um partido igual aos outros, ou até pior (SARDINHA, 2016). Também se confirmou, posteriormente, a justeza da opinião do ex-Ministro e ex-Governador do Ceará Ciro Gomes, quando citou Gramsci a propósito da relação entre a ética e as esquerdas, considerando que estas não podem abdicar da sua “hegemonia moral e intelectual”. Para Ciro (2009), ela é inerente a um projeto ao qual está, necessariamente, associada uma ética pública estribada nos princípios republicanos da impessoalidade, moralidade e transparência.

A aversão de muitos às idéias de Maquiavel sobre a ética pública, comentadas antes, foi, sobretudo até um passado recente, o preço a pagar por quem desmistificou um discurso ético, baseado no caráter indissociável da moral pública com a privada que, durante toda a Idade Média, serviu como forma de legitimação de privilégios. Não resta, pois, dúvidas, de que a distinção entre a moral privada e a pública, iniciada por Maquiavel, constitui-se num postulado básico da própria existência do Estado. Todavia, a ação deste, na atualidade, só pode ser exitosa, e, portanto, realista, se, “na conceituação de seus objetivos e na escolha dos meios necessários para alcançá-los”, orientar-se pelos “valores éticos e princípios jurídicos que favoreçam uma convivência solidária e mais harmoniosa com os demais Estados” (MORAES, 1981, p. 28).

De Maquiavel até nossos dias – sobretudo a partir da criação da ONU, em 26 de junho de 1945 –, a comunidade internacional tem construído, ainda que de forma incipiente, regras de convivência internacionais, objetivando a resolução pacífica de conflitos entre nações, ancoradas na aceitação dos valores democráticos e no respeito aos direitos do homem e do cidadão, princípios norteadores da ação do poder estatal. Eis os limites modernos da “razão de Estado”. Esses princípios e regras contribuem para frear a hegemonia das grandes potências, enquanto não se efetiva a utopia de um poder supranacional democrático a garantir, com base na igualdade de direitos dos Estados, paz e justiça entre as nações. Trata-se, como preconiza Bobbio – um discípulo do realismo maquiaveliano – de se elaborar um código moral para a própria política, distinto, evidentemente, da moral comum, em consonância com o princípio da eficácia na obtenção dos fins perseguidos pelo estadista (MELLO, 2003).

É forçoso, contudo, reconhecer que essa relativa democratização das relações internacionais, que tem como marco o reconhecimento do alcance universal dos direitos humanos, expressa uma inegável aproximação entre a moral pública e a privada. Doravante, o comportamento do estadista passa a ser balizado por normas cujo conteúdo ético incide, também, em certa medida, na esfera das relações individuais. Bobbio, identifica-se, a esse respeito, com as concepções de Mello, para quem os direitos humanos, a paz e a democracia se colocam acima da “razão de Estado”, tendendo a reduzir, pouco a pouco, o espaço das decisões tomadas com base no uso dessa razão (MELLO, 2003:162).

A secularização da política e o método empírico-comparativo

Até Maquiavel – e ainda por muito tempo depois – o comportamento do homem em sociedade, especialmente na política, se explicou por fatores transcendentais (Deus, natureza ou razão), anteriores e exteriores à própria política. Giordano Bruno, Galileu, Jan Hus e Maquiavel se destacam como pioneiros na medida em que romperam, na filosofia, na ciência, na religião e na política, com o monopólio do saber e do poder da Igreja.

A estratificação no período feudal (senhores feudais e servos), supostamente natural, expressão da vontade divina, questionada por Maquiavel, ilustra esta afirmação. O secretário florentino: “cortou todas as amarras de subordinação, teológicas e morais, em que, na Idade Média, o sistema hierárquico do cristianismo limitara o poder temporal e recusou-se a reconhecer qualquer valor ou direito superior à vontade do Estado, erigindo este último em fonte suprema de justiça e moral (MORAES, 1981, p. 21). Os escritos de Maquiavel secularizaram a política, quer dizer, afastaram a explicação religiosa para compreensão do poder. A sua origem e conformação atuais são por ele entendidas como fruto do embate entre classes sociais portadoras de interesses contraditórios. A ruptura de Maquiavel consiste, pois, em expulsar da política a religião, separando radicalmente a cidade de Deus da cidade dos homens, o sagrado do profano, o público do privado. O estudo da formação, conservação e perda do poder político, com Maquiavel, incorpora elementos de análise científica, na medida em que este pensador se debruça sobre a realidade efetiva das relações produzidas pela práxis do homem na sociedade e constrói sua análise a partir dessa verdade, concretamente demonstrada, e não por supostas determinações externas à vida social.

Destarte, o pensador florentino procurou entender a vida política de sua época, a partir da sua posição de observador e ator privilegiado – Segundo Chanceler da República de Florença – como ela efetivamente se desenrolava. E comparou a sua própria experiência com as lições do passado, hauridas nas grandes obras políticas da antigüidade greco-romana. Esse método, lastreado em elementos científicos de análise, permitiu-lhe extrair ensinamentos para vida política de seu tempo. Maquiavel utiliza o método empírico-comparativo, estruturado na repetição da História e na existência de padrões invariáveis do comportamento humano. Assim, “determinadas as causas da prosperidade e da decadência dos Estados antigos, pode-se compor um modelo analítico para o estudo das sociedades contemporâneas, já que às mesmas causas correspondem os mesmos efeitos” (MARTINS, 1979, p. 26), excluída toda possibilidade de determinação externa, transcendental.

Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito (área de Política e Estado) e Professor Émérito da UFPB.

É possível perceber o bullying?

Mônica de Lourdes Neves Santana

O que sabemos sobre o bullying? Um tema árduo e de profundidade em nossa condição humana. Um assunto doloroso, e, por isso, devemos levar a sério esse fenômeno como um assunto escondido e obscuro, que gera humilhação, exposição e intimidação. É preciso refletir a respeito das cenas de violência que têm se tornado comuns em nosso cotidiano já esgotado. Um problema de relações interpessoais com causas intrapessoais. Assim, levanto alguns questionamentos, alguns com respostas e outros em busca delas.

Acho difícil encontrar quem não tenha ouvido falar de bullying. Como um inimigo invisível, camuflado, entra disfarçado nas escolas, na comunidade local, nas mídias, entre os pesquisadores, e agora até a comunidade jurídica tenta identificar e combater essa prática, uma vez que inclui atos criminosos que estão além das competências das escolas. É um tipo de violência escolar que vem se disseminando pelo mundo especialmente nos últimos anos. Quem não conhece o termo ou o conhece superficialmente, verá que, trocando em miúdos, se trata de um ato de agressão perigoso com consequências nefastas.

Seria o bullying um conflito? Uma descarga de raiva repentina? Um exagero na estima de si? Uma agressividade gratuita? Um surto? Segundo Yunes (2001), é uma prática feita de forma agressiva, repetitiva e intencional, sem motivação evidente, com o objetivo de provocar dor, angústia e sofrimento para o outro, e essa violência pode trazer como consequência condições de risco à vida. Essa prática pode ocorrer tanto na escola como em outros lugares em que crianças e adolescentes frequentem.

Em sua origem, a palavra bullying vem do verbo bully em inglês, sem tradução para o português, porém, para alguns, a tradução mais próxima seria de pessoa cruel, tirana (TORRES, 2011). Sabe-se que o bullying pode ocorrer de forma direta ou indireta além de ser classificado em diferentes tipos, que vão desde o físico, verbal, relacional até o eletrônico (BERGER, 2007). O tipo físico envolve socos, pontapés, furtos. O verbal abrange os insultos e apelidos vergonhosos – o mais comum de se encontrar com o avanço da idade escolar. O relacional afeta o relacionamento social da vítima. E, por último, o eletrônico ou cyberbulling ocorre quando os ataques acontecem via e-mails, websites e salas de bate-papo (YUNES, 2001).

É possível perceber o bullying? Sim, é possível. A criança ou o adolescente sente enjoos, vômitos, febres, dores de estômago e de cabeça, apresentam desculpas para faltar às aulas, tornam-se fechados, evitando convívios. Às vezes, sentem-se angustiados, ansiosos e deprimidos, chegando ao ponto de se recusar a sair de casa (FANTE, 2004).

Os primeiros estudos sobre bullying datam da década de 1970, quando foi investigado pelo pesquisador norueguês e protagonista dos estudos mundiais sobre o tema, Dan Olweus. Seus estudos ganharam mais ênfase e repercussão depois do suicídio de três estudantes adolescentes entre 10 e 14 anos em 1982. Especula-se que houve maus-tratos. Os três foram submetidos às violências dos colegas de escola, ironicamente em um local que em nosso entendimento deveria ser de socialização, espaço de amor e segurança.

Agora vejamos, o que os agressores têm em comum? O foco são vítimas vulneráveis aos ataques, seja através do medo, da força ou por ameaças. E as vítimas? O que elas têm em comum é a timidez, a insegurança, as diferenças de raça, peso, religião. Estas em geral mantêm-se em silêncio, pois não sabem e não há como revidar, atacar ou denunciar. A única possibilidade em curto prazo é ficar quieto. Os agressores então se aproveitam desses “pontos fracos” para desafiá-las e atacá-las (TOGNETTA, 2005).

O personagem principal é o agressor com um ar de dominação em relação à vontade do outro, uma vez que identifica a vítima em sua insegurança e os problemas que ela sofre. Do outro lado da moeda, temos a vítima fragilizada, sem poder de persuasão (idem, ib).

Muitos autores apontam diferenças no bullying entre meninos e meninas. Frequentemente, meninos agridem meninos e meninas, mas as meninas são agredidas por ambos. Os meninos fazem a agressão verbal, já as meninas usam apelidos e exclusão de grupos sociais (SMITH; SHARP, 2003). Dentro desse cenário, observa-se a necessidade de parâmetros educacionais e de ofertar uma educação voltada à paz. Precisa-se entender, discutir e atacar as causas sociais que fomentam o bullying (ANTUNES; ZUIN, 2008).

Outro fator é que existem papéis distintos, como: 1) do alvo, aquele que não consegue se defender; 2) do alvo/autor, que reproduz os maus-tratos sofridos em alguém; 3) do autor, que vitimiza os mais fracos; e 4) testemunha, o que não participa do bullying, mas observa as agressões (OLWEUS, 1996). Geralmente, quem mais sofre com o bullying são pessoas muito tímidas, com dificuldades em manter relacionamentos e de serem aceitas em grandes grupos. Outro fator que pesa entre as vítimas é a falta de habilidade para se defender mediante a situação. Essas pessoas apresentam baixo rendimento escolar, têm alterações de humor, aparecem com hematomas e ferimentos. Dessa forma, evitam ou não conseguem ter amigos, sentem-se inseguros e infelizes.

Mas como poderíamos investigar as evidências de que um adolescente seja o agressor? Esses sujeitos, em geral, retornam para casa com um olhar de soberania e atitudes bélicas e desafiadoras diretamente com os membros mais próximos da família: pai, mãe e irmãos. São crianças e jovens que fazem uso de argumentos verbais fortes, podendo chegar a atemorizar.

Parece que fatores de ordem psicológica e de ordem física funcionam como estopins para barbáries. Vejamos o recente cenário exposto em todos os canais de TV: em uma manhã, por volta das 10h30 do dia 4 de maio de 2021, no município de Saudades, no oeste de Santa Catarina, um lugar tranquilo com população de pouco mais de 9 mil habitantes, um jovem de 18 anos invade uma creche e mata três crianças de um ano e meio de idade e duas professoras. De acordo com a Polícia Civil, ele usou um facão e golpeou as vítimas. O autor do crime era problemático, introspectivo e, segundo a própria irmã, tinha um papel de ameaçador dentro de casa, maltratava animais, causando medo aos avós com quem vivia. Em tempos de criança, esse rapaz também enfrentava bullying na escola. Nessa perspectiva, o comportamento agressivo no ambiente escolar pode ser a resposta aos comportamentos agressivos que sofrem no dia a dia.

Além das questões afetivas, existe outra possível causa desse comportamento, que seria a boa imagem a ser valorizada pela sociedade. O que denominamos de boa imagem aqui seria sinônimo de coragem, virilidade, força, valentia, espírito de liderança. Aquela imagem que se observa e nos é sugerida pelos super-heróis a ser mantida.

Após o fato, as autoridades se reuniram com especialistas para debater o tema com soluções paliativas, como coibir a entrada de armas e drogas nas escolas dentro de mochilas. Todavia, é necessário que a escola enxergue o problema e trabalhe através de intervenções e projetos em que se mude o foco do aluno-problema para o aluno talentoso, criando um espírito de estímulo, cooperação, igualdade e valorização.

No dia 6 de novembro de 2015, foi sancionada a Lei de Combate à Intimidação Sistemática, válida em todo o território nacional. Com a lei em vigor, é dever de todos os estabelecimentos de ensino criar medidas de conscientização, diagnose e combate à violência. Nesse trilho de pensamento, observa-se que, seja agressor ou vítima, todos sofrem. Fante (2004) propõe alguns critérios para uma conversa entre agressores e vítimas, como uma linguagem reflexiva, que consiste em não acusar, mas fazer uma descrição da situação que se observa ao redor.

Faz-se importante mencionar aqui que, infelizmente, em sua indignação, muitas famílias incentivam os filhos a baterem de volta como a possibilidade de resolver o problema, revidando a violência recebida. Quanto a isso, Fante (2004) indica o diálogo com vítimas e agressores com questões do tipo “Como posso te ajudar?” e “Vamos pensar juntos como resolver?”.

Não abordaremos aqui soluções para essa questão que envolve diagnósticos clínicos, mas acreditamos que devemos formar todos os alunos no espírito da tolerância à diferença e solidariedade para que vivamos em harmonia.

Os exemplos dos adultos em suas relações sociais são cruciais. Acredito que uma relação de confiança em sala de aula e no espaço familiar, baseada no diálogo apaziguador, pode prever problemas. Para que os males causados sejam minimizados, a escola deve realizar ações interativas para que haja resiliência no ambiente escolar.

Os pais devem observar reclamações de indisposições antes da aula de forma frequente bem como dificuldades de inclusão e desinteresse pelos estudos. É importante que os pais sejam parceiros e participem das reuniões pedagógicas. No ambiente em que há diálogo, participação democrática da comunidade escolar e respeito aos direitos humanos, haverá a promoção da cultura e manutenção da paz.

Fica aqui um apelo para que, o quanto antes, professores e pais identifiquem as manifestações responsáveis por tais comportamentos para, assim, darmos suporte para transformarmos atitudes agressivas em companheirismo e solidariedade, respeito e amizade.

Mônica de Lourdes Neves Santana é Doutora em Linguística Cognitiva e Professora Associada da universidade Estadual da Paraíba.

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