Revista Jornalismo e Cidadania Nº 45

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número 45 - NOVEMBRO/DEZEMBRO 2021

Expediente

Editor Geral | Heitor Rocha Professor PPGCOM/UFPE

Editor Internacional | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE

Concepção Gráfica | Ivo Henrique Dantas Professor Caesar School

Diagramação | Rafaela Lima Graduanda em Biblioteconomia

Revisores | Laís Ferreira e José Bruno Marinho Doutorandos de Comunicação PPGCOM/UFPE

Colaboradores |

Alfredo Vizeu

(Professor PPGCOM UFPE)

Pedro de Souza

(Ex-supervisor executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento)

Túlio Velho Barreto

(Fundação Joaquim Nabuco)

Gustavo Ferreira da Costa Lima (Pós-Graduação em Sociologia/UFPB)

Anabela Gradim

(Universidade da Beira Interior Portugal)

Ada Cristina Machado Silveira

(Professora da Universidade Federal de Santa Maria- UFSM)

Antonio Jucá Filho

(Pesquisador da Fundação Joaquim NabucoFUNDAJ)

João Carlos Correia

(Universidade da Beira Interior Portugal)

Leonardo Souza Ramos

Professor do Departamento de Relações

Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

Rubens Pinto Lyra

(Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB)

Alexandre Zarate Maciel

(Professor da UFMA e Doutor em Comunicação pela UFP)

ÍNDICE

Editorial | 3

Heitor Rocha

A Trágedia do Desmonte | 4

Marcos Costa Lima

Lula-Alckmin: Um Passo Atrás, Dois na Frente? | 7

Rubens Pinto Lyra

Biografias retornam com força ao mercado editorial | 10

Por Alexandre Zarate Maciel

Chile: Another Good-sized Nail in Neoliberalism’s Coffin | 12

Francisco Dominguez

Chile, o Despertar Cidadão na América Latina | 14

Jean de Mulder Fuentes

O negacionismo nuclear | 16

Heitor Scalambrini Costa

India: monster of pathological nationalism against small farmers | 19

Amit Bhaduri

Habermas, Castells e uma nova perspectiva marxista do jornalismo | 23

Marya Edwarda Lapenda

Bolsonaro: destruidor do futuro | 25

Samuel Pinheiro Guimarães

Chimamanda Ngozi Adichie e os deslocamentos identitários | 27

Mônica de Lourdes Neves Santana

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Revista

EDITORIAL

Heitor Rocha

Acomissão de 3,7 milhões de reais pagos ao ex-juiz Sérgio Moro pela empresa Alvarez & Marsal, que se beneficiou em cerca de 42 milhões de reais de processo judicial com a Odebrecht, é, esta sim, uma evidente prova material de corrupção no golpe da Lavajato. O caso do triplex do Guarujá, imóvel que nunca saiu da posse da construtora, foi o ridículo pretexto utilizado pelos criminosos da Lavajato para impedir Lula, líder absoluto nas pesquisas de intenção de voto, de ser candidato na eleição presidencial de 2018 e garantir a vitória do atual presidente, além da inconstitucional prisão do ex-presidente depois de decisão em segunda instância, quando ainda havia direito a recurso, e de diversas divulgações ilegais de gravações não autorizadas pela justiça para influir na campanha eleitoral. Neste sentido, conforme constataram o Supremo Tribunal Federal e Tribunal Internacional, é impossível negar a suspeição do ex-juiz e o intuito político eleitoral no processo contra Lula, bem como a utilização midiática do “grampo” de Dilma comunicando ao ex-presidente sua nomeação para a Casa Civil e, especialmente, a espetacularização da gravação do ex-ministro Antonio Palocci acusando a existência de “pacto de sangue” com Lula durante o segundo turno da campanha.

A delinquência dos participantes do golpe da Lavajato (a quadrilha de Deltan Dallagnol e outros criminosos) fica patente também na comissão de cerca de 2 bilhões de reais que os investidores norte-americanos deram á fundação criada pelos procuradores de Curitiba para remunerar a assessoria que lhes possibilitou extorquir mais de 6 bilhões da Petrobras. Estes recursos vêm sendo lavados através de contratos milionários de palestras, hospedagem e passagens pelos agora reconhecidos bandidos do golpe da Lavajato.

Evidentemente, que a realização do genocídio por conta do atraso da compra de vacinas, para tentar viabilizar a propina de um dólar por dose de imunizante pretendida pela quadrilha do líder do governo na Câmara Federal, deputado Ricardo Barros, bem como as atuais manobras para intimidar a vacinação de crianças, esta grande operação que lançou o país na barbárie obscurantista da atual administração só foi possível devido ao clima de opinião forjado pela grande mídia liderada pela Rede Globo, que agora faz gracinhas e posa de oposicionista, quando, na verdade, é leniente com esses crimes. Um bom exemplo de como um jornalismo sério e responsável deve enquadrar as notícias da quadrilha que se apossou da República depois do golpe de 2016 que cassou Dilma Rousseff é o Jornal da Cultura (TV Cultura), com a participação de comentaristas que aprofundam e abordam adequadamente os acontecimentos.

Não se pode deixar de considerar lamentável a posição de Glenn Greenwald, jornalista que deu uma contribuição significativa para desmascarar as conspirações dos criminosos da Lavajato, de apoio a Ciro Gomes que ensaia posturas convenientemente de esquerda, mas que pode ser enquadrado no que Gramsci denomina de “transformismo”, o desempenho de políticos que simulam papéis progressistas, mas que, quando se consolidam no poder, revelam seu caráter conservador e até reacionário, como deixam transparecer seus ímpetos machistas, narcisistas e atrabiliários. Assim, como não considerar o fato de que Ciro Gomes, caso tivesse assumido franca e publicamente o apoio a Bolsonaro, não teria colaborado tanto com a sua vitória quanto com a posição que adotou quando alimentou, durante quase toda campanha do segundo turno, com sua viagem a Europa, um grande suspense sobre a que candidato daria apoio e, quando voltou às vésperas da eleição, se restringiu a criticar Fernando Haddad e estimular o anti-petismo. É realmente muito cinismo um político que tanto contribuiu para o retrocesso que o Brasil enfrenta atualmente ainda pretender ser candidato à Presidência.

Nesta edição 45, a Revista Jornalismo e Cidadania traz a oportuna discussão levantada pelo artigo de Rubens Pinto Lyra sobre a questão da necessidade de aliança da esquerda com o centro para viabilizar um projeto progressista para o País, uma controvérsia que remonta a estratégia nacional-desenvolvimentista desde a década de 50. Depois de analisar várias situações históricas semelhantes em outros países, Lyra argumenta que a chapa Lula-Alckmin tem o objetivo maior de “fazer com que o país dê passos à frente, garantindo a derrota das hostes neofascistas, e o consequente retorno à normalidade democrática”.

Outro artigo desta edição que levanta a questão das condições necessárias para a conquista de mudanças sociais é o de Francisco Dominguez, que analisa a vitória da esquerda no Chile citando como epígrafe trecho do 18 Brumário de Napoleão Bonaparte de Marx em que pondera, ao contrário do determinismo economicista de muitos de seus intérpretes, que o ser humano pode, sim, ser sujeito da história, não ao seu bel prazer como a concepção idealista pretende, mas a partir de circunstâncias materiais concretas, como concebe a filosofia dialética materialista histórica, com homens e mulheres que se tornam capazes de fazer a sua própria história.

Heitor Rocha é Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.

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PPGCOM/UFPE |
Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade -

A Tragédia do Desmonte

Odesmonte da máquina pública no Brasil é um traço de destaque no governo Bolsonaro. Podemos verificá-lo em quase todos os setores das atividades centrais do Estado: Assistência Social, Previdência Social, Saúde, Trabalho, Educação, Cultura, Direitos da Cidadania, Urbanismo, Habitação, Saneamento, Gestão Ambiental, Ciência e Tecnologia, Agricultura, Organização Agrária, Indústria, Comércio e Serviços, Comunicações, Energia, Transporte, Desporto e Lazer.

Abaixo, um quadro sobre os cortes dos investimentos públicos, sobretudo entre 2018-2021.

para garantia de interesses particulares; (iii) a entronização do crescimento econômico como completamente desvinculado da questão social e nacional”

Mas, o meu objetivo central neste breve artigo é tratar do enfraquecimento da legislação promovido pelo governo federal desde 2019, quando foram assinados 57 atos enfraquecendo as estruturas de proteção ao meio ambiente, seja por meio da restrição da atuação dos órgãos fiscalizadores, seja permitindo o desmatamento em áreas de proteção permanente (APP), tidas como essenciais para a preservação de rios, solo e biodiversidade, mas

Fonte: Brasil. Câmara dos Deputados, 2021

A cientista política Vera Alves Cepêda (2021, p. 87), analisando o fenômeno da nova direita no Brasil, sua emergência e motivações, nos chama atenção, entre outros pontos, para três deles que aqui seleciono: “(i.) a valorização da força, do conflito e da destruição como base da ação política. A violência é uma das chaves da Nova Direita: violência verbal, imagética, física, de opressão sobre o outro. A destruição é outra: destruição de instituições, de acordos sociais e políticos, de direitos, de valores consolidados na arena pública; e (ii) a visão privatista e patrimonialista do Estado, tomado como meio privilegiado

também pelo estímulo ao garimpo e aos madeireiros, que vêm invadindo sistematicamente as terras de indígenas, caboclos e quilombolas (Andrade, 2021, p.52:55). Sênior das universidades de Oxford e Lancaster, na Inglaterra, integrante do Scientific Panel for the Amazon da United Nations Social Development Network (UNSDN), um braço da Organização das Nações Unidas (ONU), e sendo uma das coordenadoras da Rede Amazônia Sustentável, uma rede de pesquisa multidisciplinar, com 12 anos de experiência na Amazônia, e que tem realizado pesquisas que focam, sobretudo, nos impactos do fogo, da extração de madeira e das mudanças

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climáticas, nos estoques de carbono e na biodiversidade amazônica, a pesquisadora Erika Berenguer diz que os atos do governo incluem todos os biomas brasileiros e cita uma portaria de 25/06/2020, que determinou que nem todas as áreas de APP precisariam ser restauradas, mesmo tendo sido ilegalmente desmatadas. O estudo com a participação da pesquisadora é a legitimação governamental da degradação ambiental no Brasil. Ela informa, ainda, que 47 diferentes pesticidas, em ato de 22/06/21, foram classificados como de categoria menos danosa, sem qualquer respaldo em literatura científica. Revela, ainda, o aumento de exonerações de pessoal em cargos de coordenação em órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e de Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Para Berenguer, “uma das consequências mais nocivas e imediatas desse processo é a legitimação governamental da degradação ambiental no Brasil” (Andrade, Rodrigo de Oliveira, 2021, p.52:55).

Esse desmonte de órgãos públicos tem sido uma constante, não apenas no Brasil, o que altera a capacidade de proteção ambiental e manutenção da vegetação nativa na América do Sul, que encolheu 16% entre 1985 e 2018. As terras dedicadas à pecuária, à agricultura e ao plantio comercial de árvores cresceram, respectivamente, 23%, 160% e 288%. Durante esses 34 anos, 268 milhões de hectares, um território equivalente ao da Argentina em tamanho, foram modificados pela ação humana (Jokura, 2021).

Um estudo, coordenado pela boliviana Viviana Zalles, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e que contou com pesquisadores brasileiros, nos diz que, sobre o crescimento da agroindústria sobre antigas áreas de vegetação, foram modificados 55 milhões de hectares de paisagem natural, sem nenhuma finalidade devida. Segundo Jokura (2021), no Brasil, o crescimento da extensão de terras com

uso alterado foi o mais elevado, chegando a 64%. Esses dados foram alcançados pelas imagens dos satélites Landsat, da Nasa e do Serviço Geológico dos EUA, mas contou ainda com os dados produzidos no Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura do Uso da Terra no Brasil (Map-Bioma) e pelo Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig) da Universidade Federal de Goiás.

Também conhecido como a “savana brasileira”, o Cerrado é o bioma brasileiro que vem sendo mais impactado pelo desmatamento no País. Segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), em torno de 10 mil km² são devastados na região por ano — área equivalente a quase duas cidades de Brasília. O Cerrado está sendo desmatado cinco vezes mais rápido que a Amazônia, bioma com o dobro de extensão. Entre os fatores que favorecem essa exploração, está a vegetação de pequeno e médio portes do Cerrado, que pode ser retirada com maior facilidade.

O Cerrado perdeu 46% de sua vegetação nativa, e só cerca de 20% permanece completamente intocada, segundo os pesquisadores. Até 2050, no entanto, pode perder até 34% do que ainda resta. Isso levaria à extinção 1.140 espécies endêmicas — um número oito vezes maior que o número oficial de plantas extintas em todo o mundo desde o ano de 1500, quando começaram os registros.

A derrubada de vegetação nativa, a expansão rural e a baixa quantidade de áreas protegidas fazem com que o Cerrado seja uma das principais fontes de emissões de Gases do Efeito Estufa (GEE) no Brasil: 7 bilhões de toneladas de gases nos últimos 30 anos. Atualmente, 45% da sua área original é ocupada por pastagens e cultivos agrícolas, enquanto apenas 7,7% do território possui áreas públicas com proteção integral para conservar habitats naturais. Essa devastação, a exploração desordenada do Cerrado, além de prejudicar a regulação climática, a preservação da biodiversidade, afeta fortemente

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o equilíbrio hidrológico, uma vez que a região é berço das nascentes das principais bacias hidrográficas do País (INPE/2022). Alguns dos mais importantes rios do Brasil — Xingu, Tocantins, Araguaia, São Francisco, Parnaíba, Gurupi, Jequitinhonha, Paraná e Paraguai, entre outros — nascem no Cerrado. Trata-se da única savana do planeta dotada de rios perenes. Concluo este breve artigo, trazendo a reflexão de um especialista sobre o Cerrado, Altair Barbosa (2017), que introduz a questão humana: “Nos tempos atuais (...) uma nova onda globalizada de invasões chegou e está se instalando, gerando forte impacto sobre o meio ambiente e ocasionando a desestruturação da população rural e urbana, num ritmo nunca visto na história da humanidade. Nosso futuro também dependerá da nossa habilidade e da nossa sabedoria em lidar com essa avalanche de problemas. Com o incremento da tecnologia e o avanço do capital, comunidades inteiras são desestruturadas e desabrigadas, criando o fenômeno da desterritorialização”. Esta traz, para a realidade atual, as categorias dos Sem (sem-terra, sem-teto, sem-emprego, sem-documentos etc). Esse fenômeno acentua ainda mais a sensação e a condição de alienação das populações ditas tradicionais do Cerrado. Expulsos de suas terras pelos poderosos, através da compra e falsificação de títulos (grilagem), os posseiros, que viviam, durante várias gerações, em suas posses não legalizadas, vão buscar abrigo nos centros urbanos ou nos postos de serviços implantados ao longo dos sistemas viários, que experimentam um repentino crescimento. Nesses locais, os sem-terra se transformam também nos sem-teto. Urgente, na reconstrução do País, uma ação afirmativa e coerente nessa direção.

Para inspirar essa ação pela reconstrução do país, VIVA A ETERNA ELZA SOARES.

Referências

Amaral, Nelson Cardoso, Dois anos de desgoverno – os números da desconstrução. Um balanço quantitativo do grau de destruição decorrente de diversas ações governamentais , In: A Terra é Redonda. 08/04/2021. https://aterraeredonda.com.br/dois-anos-de-desgoverno-os-numeros-da-desconstrucao/?doing_wp_cron=1642267554.63253998 75640869140625

Andrade, Rodrigo de Oliveira, Legislação Enfraquecida. In: Pesquisa Facepe, junho 2021, nºp.52:55, 304.

Barbosa, Altair Sales. “Cerrado. O laboratório antropológico ameaçado pela desterritorialização”. Caderno IHU Ideias, Nº. 257, vol. 15. 2017.

Cepêda, Vera Alves. A nova direita no Brasil : ideologia e agenda política” in: Democracia e Direitos Humanos no Brasil: a ofensiva das direitas (2016/2020) Marcelo Buzetto (organizador), CUT - Secretaria de Políticas Sociais e Direitos Humanos, 2021. 240 p.

INPE/ Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, “Supressão vegetação nativa no bioma Cerrado no ano de 2021 foi de 8.531,44 km²”, in: EcoDebate, 04-01-2022. Cerrado é o bioma brasileiro com maior taxa de desmatamento, diz estudo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Jokura, Tiago. Menos Floresta, mais Agropecuária, in Pesquisa Facepe, nº304, junho 2021, p.64:65.

Marcos Costa Lima é Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.

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Lula-Alckmin: Um Passo Atrás, Dois na Frente?

Apráxis, de per se, contribui poderosamente para o conhecimento do processo político em geral, das suas contradições e potencialidades, mormente quando os que a exercitam são políticos argutos, experimentados e sagazes. Mas, se só isso bastasse, não se valorizaria as Ciências Sociais, a Filosofia e a História, como instrumentos essenciais para o conhecimento mais aprofundado do referido processo. Contudo, até mesmo os que nelas se movimentam com grande desenvoltura, podem tropeçar em escolhas de natureza ideológica, conforme lembrou o grande Victor Serge, mormente em uma “conjuntura tormentosa” como é a atual, não conseguindo enxergar mais profundamente as questões nela embutidas (1951).

Assim, os posicionamentos “à esquerda da esquerda” não podem elidir os ensinamentos da história recente. Ela nos mostra que há momentos ou períodos dramáticos experimentados por muitos países que levam os seus partidos e suas lideranças políticas mais eminentes, de posições político-ideológicas bastantes distintas, até mesmo antagônicas, a dar uma trégua nas suas diferenças, com vistas ao enfrentamento do inimigo comum, interno ou externo, que ameaça a paz e o progresso social.

Depois da Segunda Guerra Mundial, na Europa, constituíram-se, na França e em diversos outros países democráticos desse continente, governos de salvação nacional, destinados à reconstrução desses países, destroçados pela guerra. Esses governos do pós-guerra eram compostos por partidos que iam da direita à esquerda do espectro político. Na França, o aguerrido Partido Comunista - o mais poderoso do país, durante parte da década de cinquenta do século passado – integrou o governo de União Nacional representado pelo seu maior expoente: Maurice Thorez, Secretário Geral desse partido, investido nas funções de Vice-Primeiro Ministro (COOK, 2008). O mesmo ocorreu em vários outros países que resistiram ao nazi-fascismo na Europa, e essa “co-habitação” em nada comprometeu, na sequencia, a combatividade e firmeza dos comunistas, especialmente franceses, na sua luta em

prol dos interesses da classe trabalhadora. Aqui no Brasil, causou surpresa o anúncio de uma provável chapa Lula- Alckmin, representando, cada um deles, lideranças de peso nas suas respectivas áreas de influência. Como nos exemplos anteriores, não se trata de “uma guinada à direita”, com a esquerda assumindo o projeto neo-liberal, como muitos temem (TRANJAN, 2021). Mas, sim, de uma escolha política incontornável, que tem como objetivo maior fazer com que o país dê passos à frente, garantindo a derrota das hostes neofascistas, e o consequente retorno à normalidade democrática. Em Israel, acaba de se constituir um governo ancorado em aliança ainda mais improvável, pois envolve partidos antagônicos que vão da extrema direita à esquerda. Ela ocorreu porque era preciso derrotar um inimigo comum, o então Primeiro Ministro Netanyahu, pelo perigo de convulsão social que representava sua permanência no poder (ISRAEL: 2021).

Em que pese tratar-se de momentos históricos e conjunturas políticas diversas, a questão a ser enfrentada, no momento atual do Brasil, é a mesma que foi posta na Europa, no pós-guerra, e alhures: qual estratégia política eleger, que alianças firmar para reconstruir o país e “normalizar” a democracia? Dito de outra forma: como enfrentar a devastação socioeconômica, ambiental e política levada a cabo pelo autoritarismo neofascista embutido no bolsonarismo, inimigo número um da Nação, no poder, e que tem como base de sustentação uma legião de fanáticos, mas também importantes setores do establishment econômico, político e militar?

Para Tarso Genro, trata-se de “colocar a unidade pela democracia em torno da repulsa contra a extrema-direita violenta e golpista, e sua ‘reconstrução’ dentro da ordem” (2021). As forças populares, durante todo o período do governo neofascista, mostraram-se incapazes de reagir à altura. Não será agora, às vésperas das eleições presidenciais, como pretendem respeitáveis intelectuais e lideranças de esquerda, que elas poderão, sozinhas, derrotar o bolsonarismo. Não é possível fazê-lo no estado em

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que se encontra a esquerda, combalida, desesperançada e sem programas e palavras de ordem até agora capazes de mobilizar o seu potencial de luta.

Sou dos que sempre criticaram o distanciamento do PT de suas bases, e, especialmente na atual conjuntura, sua incapacidade de conferir destaque a bandeiras e palavras de ordem que denunciem a fome e o descalabro social que a alimenta. Será que essa gritante omissão não teria a ver com as comoventes indagações de Bucci (2021): “como explicar o nosso desprezo pelo sofrimento alheio? Por que não fizemos nada, quando podemos fazer tudo? Os petistas também não foram capazes de mobilizar a sociedade, principalmente assalariados e socialmente excluídos para exigir que as grandes fortunas, as corporações financeiras e os setores mais abastados das chamadas “classes produtivas” dêem sua contribuição, através de taxações compulsórias, ao soerguimento do país. Mas não podemos chorar sobre o leite derramado, tampouco desconhecer que as urgências do momento não nos permitem sonhar com a tomada instantânea de consciência e com a mobilização imediata das “massas”, de modo que estas possam, agora, garantir a vitória de Lula, na sequência, a governabilidade.

Portanto, todos os setores interessados que o novo mandato do Presidente Lula redefina as políticas públicas, preservando o interesse nacional, os das classes subalternas e o papel ativo do Estado, precisam se mobilizar para que esses temas sejam contemplados em acordo programático transparente e executável? Se o acordo com Alckmin interessa eleitoralmente ao PT - inclusive porque tornaria praticamente certa uma vitória no primeiro turno -, o mais importante é que ele facilitaria a condução do próximo governo. Desafio maior do que o de vencer o pleito será administrar o país em caso de vitória, em especial a economia (SCHWARTSMAN, 2021). Mas não se pode desconsiderar dois subprodutos, nada desprezíveis, da aliança Lula-Alckmin: a modificação da imagem do PT perante a opinião pública, com a desmoralização da narrativa delirante segundo a qual esse partido pretenderia “comunizar o país”, e a consequente desagregação da “terceira via”.

Para concluir: a esquerda poderá, para desmentir de forma ainda mais cabal a construção fantasiosa sobre os perigos de um governo de esquerda, divulgar experiências exitosas como a levada a cabo em Portugal. Nela, as responsabilidades governamentais foram conferidas ao Partido Socialista após o partido firmar com as formações políticas à sua esquerda um compromisso escrito sobre pontos essenciais das políticas públicas a serem implementadas. Lá, como aqui, a direita procurou desmoralizar o que se revelou a mais exitosa experiência governamental da esquerda portuguesa, antes de ela ocorrer, denominando a sua aliança de Geringonça. Não deu certo. Esse nome passou a ser usado pela própria esquerda, e tornou-se sinônimo de acordo político exitoso. Nesse período, Portugal teve um crescimento econômico maior do que a média das economias europeias; a confiança interna e externa dos investidores atingiu um máximo histórico. Além disso, a taxa de desemprego caiu de metade nos seis anos de governo socialista: lembramos, com o indispensável e renovado apoio do que aqui no Brasil seria denominado de extrema-esquerda. Por último: nesse período, o salário mínimo subiu quarenta por cento, tendo a taxa de pobreza e exclusão social caído para abaixo da média quer da União Europeia, quer da Zona Euro (CÉSAR: 2021).

Como estamos à beira do precipício, não poderemos esperar resultados tão animadores do possível novo governo Lula. O seu período será de reconstrução da economia, do meio ambiente e da democracia. Mas a sua existência será conditio sine qua non para que, na sequência, governos de esquerda, puro sangue, possam, no bom sentido, imitar o exemplo de Portugal. Tudo dependerá do senso crítico e autocrítico e da capacidade dos partidos de esquerda, especialmente o PT, renovar seus mecanismos decisórios, de modo a estabelecer interação permanente com as bases, de tal forma que a participação popular, inclusive nos seus processos decisórios, possa servir de bússola para sua atuação (BOAVENTURA: 2020). Se isto ocorrer, as chances de a esquerda “turbinar” o processo eleitoral no Brasil e influenciar o governo eleito, como fizeram os Verdes, o Bloco de Esquerda e os comunistas em Portugal, aproximando as políticas públicas dos interesses das classes

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dominadas, serão consideráveis. Oxalá as lições que nos ofereceu a Geringonça alcancem a práxis política de nossos partidos de viés socialista e seus líderes.

Referências

AZEVEDO, Reinaldo. Alckmin vice de Lula? Progressistas vivem de olho nos conservadores do país. Folha de São Paulo: São Paulo, 16 dez. 2021.

BERGAMO, Mônica. Lula e Alckmin buscam diálogo com o poder e vitória no primeiro turno. São Paulo, Folha de São Paulo, 18 dez. 2021.

BERGAMO, Mônica.Temer diz a empresários que eles nunca reclamaram de Lula quando ele governou o país.

BUCCI, Eugênio. Um colchão por domicílio. A Terra e Redonda. 18 dez. 2021.

CÉSAR, Carlos. Nota sobre o cenário político de Portugal. 29 nov. 2021.

COOK, Don. Charles de Gaulle. São Paulo: Ed. Planeta, 2008.

GENRO, Tarso. Revolução democrática. A Terra é Redonda. 12 out. 2021.

ISRAEL: aliança com partido árabe define um novo governo de união. Notícias R7 internacional. 18 dez. 2021.

SANTOS, Boaventura. Quinze teses sobre o partido-movimento. A Terra é Redonda. 16 ago. 2021.

SERGE, Victor. Mémoires d’un révolutionnaire. Paris: Grasset, 1951.

SCHWARTSMAN, Hélio. Biologia Eleitoral. São Paulo, Folha de São Paulo, 16.12.2021.

TRANJAN, Alexandre. O grito pela opacidade contra a ideologia de união de classes. A Terra é Redonda. 13 dez. 2021.

Rubens Pinto Lyra é Professor Emérito da UFPB e escreveu, entre outras obras, Le P.C.F et l’Europe (Nancy: Centre Européen Universitaire, 1974) et La gauche en France et la construction européenne (Paris: LGDJ, 1978).

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Livro-reportagem, Jornalismo e Contexto

Por Alexandre Zarate Maciel

Biografias Retornam Com Força ao Mercado Editorial

Após terem enfrentado um período de vigilância judicial, os livros-reportagem biográficos estão entre as opções mais interessantes lançadas nos últimos dois anos no campo do jornalismo brasileiro. Personalidades da política e da cultura, principalmente, vem sendo esquadrinhadas em trabalhos minuciosos, resultado de entrevistas, pesquisas documentais e narrativa fluente. Lançado em 2021, o primeiro volume da biografia do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, chamada de “Lula, volume 1”, de autoria do jornalista Fernando Morais, lidera a lista de vendagens de não ficção desde o seu lançamento. O jornalista, que teve acesso diário ao cotidiano de Lula e realizou horas de entrevistas, já inicia a obra com o dia da sua segunda prisão, descrito em minúcias. Depois, recua no tempo para, a partir da sua infância no Nordeste, migração para São Paulo e transformação em líder operário e sindical, retratar a sua formação política. A narrativa do primeiro volume termina quando Lula perde a sua primeira eleição, em 1982, para o governo de São Paulo. O segundo só será lançado depois do próximo pleito eleitoral, com o relato das três derrotas e os dois períodos presidenciais. Outro lançamento que vem chamando a atenção é “Roberto Carlos: Outra Vez, volume 1 (1941-1970)”, do mesmo jornalista Paulo César Araújo, que teve o seu primeiro livro sobre o cantor e compositor barrado na Justiça (veja história abaixo). Desta vez, o biógrafo trabalha com uma estrutura narrativa diferente, na qual cada capítulo representa o universo de uma canção de Roberto Carlos que tenha a ver com o determinado momento de sua vida, em ordem cronológica. Por exemplo, para narrar a infância em Cachoeiro de Itapemirim (ES), remete à canção “Traumas”, na qual está presente, de forma discreta, a referência ao acidente com um trem que gerou a amputação de parte da perna do futuro cantor na sua infância. E assim seguem 50 capítulos, cada qual com um momento específico da trajetória do artista que remete a determinada música. Para o segundo volume, está prevista, com a mesma estrutura, a narração do que ocorreu na vida e carreira de Roberto Carlos de 1970 até os dias de hoje.

Fonte: submarino, 2022

Um poeta e dois cantores esquadrinhados em biografias reveladoras

Dois Joões e um Ney. Três biografias lançadas em 2021 ajudam a desvendar a trajetória do poeta João Cabral de Melo Neto e os cantores João Gilberto e Ney Matogrosso e tem em comum o trabalho jornalístico árduo das entrevistas orais e garimpagem de documentos. Em “João Cabral de Melo Neto-uma biografia”, Ivan Marques investiga da infância à morte do poeta pernambucano, tentando entender a dureza da sua poesia e mesmo de sua personalidade difícil, atormentada por uma enxaqueca persistente. “Ney Matogrosso, a biografia”, de Julio Maria, o mesmo biógrafo de Elis Regina, vai nas raízes da relação tumultuosa que o cantor teve com o seu pai para entender a posterior explosão do artista de voz e performances exuberantes, a princípio com o Secos e Molhados e depois com a carreira solo, marcada por um posicionamento coerente a favor da liberdade. Outra leitura essencial é “Amoroso: uma biografia de João Gilberto”, de Zuza Homem de Mello. Na condição privilegiada de amigo do recluso cantor, Zuza traz histórias deliciosas, como, por exemplo, o hábito por ele cultivado de ficar horas no telefone com amigos em ligações inesperadas nas madrugadas, além de

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analisar de forma profunda a sua obra e a escolha de repertório.

“Batalha das biografias” foi superada com decisão histórica do STF, em 2015

As biografias não autorizadas acabaram se tornando o produto comercial jornalístico de maior sucesso entre as várias modalidades de livros-reportagem no Brasil, principalmente em meados dos anos 1990. No entanto, nas primeiras décadas do século XXI esse lucrativo segmento se viu abalado por questionamentos judiciais. Em 2013, chegou ao auge o que se convencionou chamar de “Batalha das Biografias”. No centro da questão estava a legitimidade dos artigos 20 e 21 do Código Civil Brasileiro (2002). A lei estabelecia que “salvo se autorizadas, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas” não só pelos biografados, mas também pelos seus herdeiros em caso de morte, “se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais”. Desenvolvido em um campo múltiplo e complexo, o conflito envolveu, de um lado, os autores de biografias não autorizadas – como o diretamente atingido Paulo César Araújo, biógrafo de Roberto Carlos – e a Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel), que ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012, questionando os referidos artigos. Em outro polo estavam pessoas públicas biografadas, herdeiros e seus respectivos advogados e até mesmo artistas de renomado capital simbólico acumulado na luta contra a censura, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, reunidos em torno da entidade Procure Saber. Estes últimos se manifestaram, com algumas ressalvas, favoráveis ao consentimento prévio para elaboração de biografias. No dia 7 de setembro de 2013, durante um debate na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, foi divulgado o “Manifesto dos intelectuais brasileiros contra a censura às biografias”, organizado pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros e assinado por 48 intelectuais, entre os quais Ruy Castro, Carlos Heitor Cony, Nélida Piñon e João Ubaldo Ribeiro. O texto exalta o gênero literário biografia como de importante papel para “a construção da nossa ideia de nação, imortalizando personagens e ajudando a consolidar um patrimônio de símbolos e tradições nacionais” (Araújo, 2014, p. 429-430). No dia 10 de junho de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) finalmente considerou inconstitucional a norma que proibia a publicação de biografias não autorizadas pelos personagens retratados. A liberação foi aprovada por sete dos nove ministros que

participaram do julgamento. Cármen Lúcia, a relatora, mencionou em seu voto que a obrigação de autorização para as biografias configuraria um tipo de censura prévia. No entanto, ficou mantido o direito legítimo dos personagens citados nas biografias de serem indenizados em casos de abusos comprovados. Para Cármen Lúcia, os abusos podem ocorrer sobre qualquer direito. Mas não é “constitucionalmente admissível que se restrinja a liberdade de expressão e de informação de todos para garantir a liberdade de intimidade de um. A censura já morreu. Foi a Constituição do Brasil que garantiu o fim da censura” (EFE, 2015, on-line).

Referências

ARAÚJO, Paulo Cesar. O réu e o rei: minha história com Roberto Carlos, em detalhes. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

ARAÚJO, Paulo Cesar. Roberto Carlos: Outra Vez, volume 1-(1941-1970). Rio de Janeiro: Editora Record, 2021.

MARIA, Julio. Ney Matogrosso: a biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2021.

MARQUES, Ivan. João Cabral de Melo Neto: Uma biografia. São Paulo, Todavia, 2021.

MELLO, Zuza Homem de. Amoroso: uma biografia de João Gilberto. São Paulo, Companhia das Letras, 2021.

MORAIS, Lula-biografia. Volume 1. São Paulo, Companhia das Letras, 2021.

EFE. STF libera publicação de biografias não autorizadas. UOL Entretenimento, 10/06/2015. Disponível em: <https://entretenimento.uol.com.br/noticias/efe/2015/06/10/stf-libera-publicacao-de-biografias-nao-autorizadas.htm>. Acesso em: 19/10/2017.

Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz e doutor em Comunicação pela UFPE, Alexandre Zarate Macie l, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, seus principais autores, títulos e a visão do leitor.

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Chile: Another Good-sized Nail in Neoliberalism’s Coffin

Men [and women]make their own history, but they do not make it as they please; they do not make it under self-selected circumstances, but under circumstances existing already, given and transmitted from the past. The tradition of all dead generations weighs like a nightmare on the brains of the living. – Marx, The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte

Afew days ago, when neofascist candidate José Antonio Kast was winning the first round of the country’s presidential elections, Chile’s 2019 rebellion aimed at burying neoliberalism appeared to be at an end. However, it has been greatly reinvigorated with the landslide victory of the Apruebo Dignidad (I Vote For Dignity) candidate, Gabriel Boric Font, who obtained 56 percent of the vote in the second round, that is nearly 5 million votes, the largest ever in the country’s history. Gabriel, age 35 is the youngest president ever.

That result would have been greater had it not been for the policy of the minister of transport, Gloria Hutt Hesse, deliberately offering almost no public transport services, especially buses to the poor barrios, aimed at minimising the number of pro-Boric voters, hoping they would give up and go back home. Throughout Election Day, there were constant reports on the mainstream media, especially TV, of people in the whole country but particularly at Santiago bus stops bitterly complaining for having to wait for 2 and even 3 hours for buses to go to polling centres. Thus, there were justified fears they would rig the election, but the determination of poor voters was such that the manoeuvre did not work.

Kast’s campaign, with the complicity of the right and the mainstream media, waged one of the dirtiest electoral campaigns in the country’s history, reminiscent of the US-funded and US-led ‘terror propaganda’ mounted against socialist candidate Salvador Allende in 1958, 1964 and 1970. Through innuendo and the use of social media, the Kast camp spewed out crass anti-communist propaganda, charged Boric with assisting terrorism, suggested that Boric would install a totalitarian regime in Chile, and such like. The campaign sought to instil fear primarily in the petty bourgeoisie by repeatedly predicting that drug addiction – even implying that Boric takes drugs, crime, and narco-trafficking, would spin out control if Boric became president. Besides, the mainstream media assailed Boric with insidious questions about Venezuela, Nica-

ragua and Cuba, for which Boric did not produce the most impressive answers.

To no avail, the mass of the population saw it through and knew that their vote was the only way to stop pinochetismo taking hold of the presidency, and they had had enough of president Piñera. Their perception was correct, they knew that in the circumstances the best way to ensure the aims of the social rebellion of October 2019 was by defeating Kast and his brand of unalloyed pinochetismo.

As the electoral campaign unfolded, though Kast backtracked on some of his most virulent pinochetista statements, people knew that if he won he would not hesitate to fully implement them. Among many other gems, Kast declared his intention as president to abolish the ministry for women, same sex marriage, the (very restrictive) law on abortion, eliminate funding for the Museum in the Memory of the victims of the dictatorship and the Gabriela Mistral Centre for the promotion of arts, literature and theatre, withdraw Chile from the International Commission of Human Rights, close down the National Institute of Human Rights, cease the activities of FLACSO (prestigious Latin American centre of sociological investigation), build a ditch in the North of Chile (border with Bolivia and Peru) to stop illegal immigration, and empower the president with the legal authority to detain people in places other than police stations or jails (that is, restore the illegal procedures of Pinochet’s sinister police).

Kast’s intentions left no doubt as to what the correct option was in the election. I was, however, flabbergasted with various leftist analyses advocating not to vote, in one case because ‘there is no essential difference between Kast and Boric’, and, even worse, another suggested that ‘the dilemma between fascism and democracy was false’ because Chile’s democracy is defective. My despair with such ‘principled posturing’, probably dictated by the best of political intentions, turned into shock when on election day itself a Telesur correspondent in Santiago interviewed a Chilean activist who only attacked Boric with the main message of the feature being “whoever wins, Chile loses”.4

The centre-left Concertación coalition that in the 1990-2021 period governed the nation for 24 years, bears a heavy responsibility for maintaining and even perfecting the neoliberal system, expressed openly its preference for Boric, and assiduously courted support for im in the second round. Hence, those who believe there is no difference be-

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tween Kast and Boric, do so not only from an ultra-left stance but also by finding Boric guilty by association, even though he has not yet had the chance to even perpetrate the crime.

This brings us to a central political issue: what has the October 2019 Rebellion and all its impressively positive consequences posed for the Chilean working class? What is posed in Chile is the struggle not (yet) for power but for the masses that for decades were conned into accepting (however grudgingly) neoliberalism as a fact of life, until the 2019 rebellion that was the first mass mobilization not only to oppose but also to get rid of neoliberalism. The Rebellion extracted extraordinary concessions from the ruling class: a referendum for a Constitutional Convention entrusted legally with the task to draft an anti-neoliberal constitution to replace the 1980 one promulgated under Pinochet’s rule.

The referendum approved the proposal of a new constitution and the election of a convention by 78 and 79 per cent, respectively in October 2020. The election of the Convention gave Chile’s right only 37 seats out of 155, that is, barely 23 per cent, whereas those in favour of radical change got an aggregated total of 118 seats, or 77 per cent. More noticeably, Socialists and Christian Democrats, the old Concertación parties, got jointly a total 17 seats. The biggest problem remains the fragmentation of the emerging forces aiming for change since together they hold almost all the remaining seats, but structured in easily 50 different groups. Nevertheless, in tune with the political context the Convention elected Elisa Loncón Antileo, a Mapuche indigenous leader as its president, and there were 17 seats reserved exclusively for the indigenous nations and elected only by them; a development of gigantic significance.

The mass rebellion also obtained other concessions from the government and parliament such as the return of 70 percent of their pension contributions from the private ‘pension administrators’, which rightly Chileans see as a massive swindle that has lasted for over 3 decades. This has dealt a heavy blow to Chile’s financial capital. A proposal for a fourth return of the remainder 30 percent in parliament (end of September 2021) failed to be approved by a very small margin of votes. I am certain the AFPs have not heard the last on this matter.

The scenario depicted above suddenly became confused with the results of the presidential election’s first round where not only Kast came out first (with 27 percent against 25 for Boric), but which also elected Deputies and Senators for Chile’s two parliament chambers. Though Apruebo Dignidad did very well with 37 deputies (out of 155) and 5 senators (out of 50), the ri-

ght-wing Chile Podemos Más (Piñera’s supporters) got 53 deputies and 22 senators, whilst the old Concertación got 37 deputies and 17 senators.

There are several dynamics at work here. With regards to the parliamentary election, traditional mechanisms and existing clientelistic relations apply with experienced politicians exerting local influence and getting elected. In contrast, most of the elected members of the Convention are an emerging bunch of motley pressure groups organised around single-issue campaigns (AFP, privatization of water, price of gas, abuse of utilities companies, defence of Mapuche ancestral lands, state corruption and so forth), which did not stand candidates for a parliamentary seat.

A most important fact was Boric’s public commitment in his victory speech (19 Dec) to support and work together with the Constitutional Convention for a new constitution. This has given and will give enormous impetus to the efforts to constitutionally replace the existing neoliberal economic model. What the Chilean working class must address is their lack of political leadership. They do not have even a Front of Popular Resistance (FNRP) as the people of Honduras to fight against the coup that ousted Mel Zelaya in 2009. The FNPR, made up of many and varied social and political movements, evolved into the Libre party that has just succeeded in electing Xiomara Castro, as the country’s first female president. The obvious possible avenue to address this potentially dangerous shortcoming would be to bring together in a national conference, all the many single-issue groups together with all social movements and willing political currents to set up a Popular Front for an Anti-Neoliberal Constitution.

After all, they have taken to the streets for two years to bury the oppressive, abusive and exploitative neoliberal model, and it is becoming clearer what to replace it with: a system based on a new constitution that allows the nationalization of all utilities and natural resources, punishes the corrupt, respects the ancestral lands of the Mapuche, and guarantees decent health, education and pensions. The road to get there will continue to be bumpy and messy, but we have won the masses; now, with a sympathetic government in place, we can launch the transformation of the state and build a better Chile.

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Francisco Dominguez é Professor da Universidade de Middlesex / Inglaterra.

Chile, o Despertar Cidadão na América Latina

OChileé um país com pouco mais de 18 milhões de habitantes, um país que, nas últimas duas semanas, aparece entre as notícias mais assistidas do mundo: no dia 19 de dezembro passado, os eleitores chilenos escolheram Gabriel Boric como presidente que passará a governar o país a partir de março de 2022. Boric foi o mais jovem presidente eleito da história republicana do país e do mundo (35 anos), que venceu a disputa com o candidato conservador e de extrema direita, José A. Kast, com quase 56% do total de votos.

O Frente Amplio, uma coalizão de partidos de esquerda (a Revolução Democrática, a Esquerda Autônoma e o Partido Comunista) que ganhou as eleições presidenciais, afirmou que o Chile é um país injusto, liderado e governado por quem tem mais, e que a educação, a saúde, a previdência, a água, a luz, os transportes, quando privatizados, passaram a ser objeto de comercialização, ou seja, têm sido mais um bem de consumo do que direitos sociais. A futura coalizão governamental também denunciou que os grandes grupos empresariais de papel, carne, farmácias, entre outros, se aliaram numa espécie de cartel empresarial para fixar preços. Além disso, houve o desvio de fundos por parte de alguns membros superiores do Exército e dos Carabineros. Esses são fatores que, todos juntos, contribuíram para profundar as desigualdades e a inquietação social.

De acordo com o resultado da votação oficial divulgado pelo Serviço Eleitoral do Chile (Servel), Boric venceu com 68% dos votos de jovens e mulheres com menos de 30 anos. É uma ruptura geracional, no que diz respeito às eleições anteriores, em que as questões de valores têm um significado muito diferente em questões como direitos da mulher, casamento igualitário, identidade de gênero, aborto e eutanásia. Mulheres e jovens com menos de 30 anos, a maioria de “comunas” (prefeituras) pobres , saíram para votar, dando a vitória ao candidato da esquerda, contra o candidato da extrema direita que, no primeiro turno, obteve o maior

número de votos. As mulheres chilenas não puderam calar-se ante a mensagem de retrocesso dos direitos de gênero, duramente conquistados.

Boric está politicamente antenado com jovens e mulheres que exigem mudanças sociais e políticas profundas, mas graduais, com a participação do Estado, e um Estado mais transparente e eficiente. O progresso deve ser feito sem violência e com adesão às instituições.

Os desafios em questões sociais, políticas e econômicas não são poucos: o acesso à saúde e educação gratuitas e de qualidade, assim como a discussão do sistema previdenciário serão a chave para o sucesso do governo. Devemos lembrar que, durante a ditadura militar (1973-1990), a saúde, a educação, o sistema previdenciário, e o direito à água foram privatizados por meio de políticas neoliberais. Durante esses anos, a maioria dos economistas ligados às decisões de políticas públicas eram estrangeiros ou adeptos da Escola de Chicago. Sobre os desafios políticos, o novo presidente foi claro sobre as prioridades: “Nosso projeto também significa avançar em mais democracia e cuidar do processo constituinte, fonte de orgulho mundial e única forma de construir, em democracia e com todos, um país melhor. Pela primeira vez em nossa história, estamos escrevendo uma 3 Constituição de forma democrática, conjunta, com a participação dos povos indígenas ”.

Na sua primeira visita à Convenção Constituinte, exprime a sua vontade de confiar na independência e na responsabilidade desse órgão, ao dizer que não quer uma Constituição alinhada com o seu governo, com uma tendência de setor ideológico, mas sim uma constituição representativa da sociedade.

Em questões econômicas, o Chile deve combinar liberdade individual e empreendedorismo, crescimento e desenvolvimento econômico, livre iniciativa e supervisão. “Devemos nos mover com responsabilidade com mudanças estruturais sem deixar ninguém para trás; crescer economicamente;

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converter o que, para muitos, são bens de consumo em direitos sociais independentemente do tamanho da carteira; e garantir uma vida tranquila e segura”.

As razões são várias: uma delas é que, em outubro de 2019, teve uma manifestação cidadã mais numerosa, (quase 2 milhões de pessoas foram às ruas) exigindo, pacificamente, uma solução mais humana para as enormes diferenças estruturais em saúde, educação, habitação, disparidade salarial nas pensões.

Nas últimas semanas, o presidente eleito tem dado ênfase à moderação, às mudanças graduais e à busca de acordos para atingir os objetivos de seu governo. Curiosamente, os partidos de sua coalizão enfrentam os partidos políticos que governaram o Chile após a ditadura, a partir de 1990, por não terem avançado o suficiente em questões políticas, sociais e econômicas. Um fato objetivo é que, com a Constituição de Pinochet, as grandes reformas necessitam de quóruns. Os chamados quóruns supramajoritários (aqueles que requerem maiorias mais altas, 3⁄5) têm adeptos e oponentes. Aqueles que os defendem argumentam que sua existência tende a produzir maior estabilidade político-normativa e que ajuda a proteger as minorias do poder das maiorias. O contra-argumento indica, por sua vez, que esse tipo de quórum confere uma espécie de poder de veto às minorias, o que restringe o sistema democrático. Este será um dos aspectos relevantes que a Convenção Constituinte apresentará. Se a proposta de nova constituição for aprovada, ela modificará o sistema constitucional chileno, promovendo a possibilidade de mudanças políticas.

Quaisquer que sejam as impressões de Boric, o concreto é que deveria haver mais participação política: as principais políticas públicas não seriam decididas em quatro paredes, mas com o público, as decisões econômicas não seriam tomadas apenas por tecnocratas, mais democrática e mais representativa. Esperanças e novos ares do Chile, que podem influenciar outros países latino-americanos. Lembremos que, na década anterior, num período de aglutinação das forças da esquerda latino-americana, foram alcançados avanços significativos na

diminuição de gastos militares, colaboração de fronteiras, integração comercial, iniciativas sociais e educativas por meio do Mercosul e da Unasul.

Não será fácil para Boric governar agora o Chile: os adversários o confrontam enfatizando que ele é muito jovem e sua coalizão de governo não tem experiência. Ser jovem é um desafio, e a experiência é feita com a assessoria de quem já ocupou cargos de responsabilidade nas diversas áreas das políticas públicas.

Para isso, Boric deve mostrar que seu projeto de governo terá sucesso em termos de direitos sociais, um calcanhar de Aquiles que tem incomodado os chilenos. De fato, os grandes avanços macroeconômicos, a disciplina do superávit fiscal do Chile e a redução da 5 pobreza (atualmente 6,3%) e da pobreza extrema (2,3%) , elogiados por organismos internacionais, parecem não ser suficientes para os chilenos. O crescimento econômico que o Chile mostrou, e foi causa de elogios internacionais de setores ortodoxos, tinha a outra face da moeda: enquanto a pobreza diminuiu, a desigualdade econômica aumentava escandalosamente.

Um clima de alegria e esperança se respira nestes dias no Chile: esperanças no novo governo, que saiba combinar o crescimento econômico com o desenvolvimento humano, a igualdade de oportunidades e a redução das grandes brechas sociais. Boric terá que superar três grandes desafios para ter sucesso em seu governo: reconciliar uma sociedade polarizada desde a eclosão social de outubro de 2019, enfrentar as novas variantes do coronavírus (o combate à Covid-19 tem sido exemplar no Chile como política de saúde pública) e superar as consequências das condições econômicas da pandemia, iniciando transformações sociais profundas e graduais, passando de uma economia neoliberal das mais profundas do mundo a uma de estilo social-democrata que beneficia todos os chilenos.

Jean de Mulder Fuentes é doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro do Observatório Chileno de Políticas Educativas (Opech).

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O Negacionismo Nuclear

Onegacionismo do atual desgoverno está presente em vários atos e atitudes de seus membros, em particular do presidente da República. O termo negacionismo é o ato de negar fatos, acontecimentos e evidências científicas. Tal estratégia tem sido utilizada para a formação de uma governamentalidade (definição dada pelo filósofo francês Michel Foucault como sendo o conjunto de táticas e estratégias usadas para exercer o poder e conduzir as condutas dos governados), e assim criar as próprias verdades, o que acaba dificultando e confundindo a percepção do público em geral sobre o risco de determinados eventos de grandes impactos e repercussão, como, por exemplo, o que tem acontecido com a pandemia do Coronavírus.

A criação de uma realidade paralela caracteriza-se por negar a própria pandemia, propagandear o uso de remédios ineficazes e questionar a eficácia da vacina, o que contribuiu nestes dois últimos anos para ceifar uma quantidade elevada de vidas humanas. Segundo cientistas, se cuidados básicos tivessem sido implementados pelo Ministério da Saúde para enfrentar a pandemia, um grande número de óbitos seria evitado.

Outro tipo de negacionismo praticado tem sido o negacionismo nuclear. Com uma campanha publicitária lançada recentemente pela Eletrobrás Eletronuclear, o desgoverno federal escolheu exaltar mentiras, distorcer fatos, manipular e esconder dados sobre as usinas nucleares, cujas instalações no país se tornaram uma prioridade.

O que tem sido constatado após o último acidente nuclear, ocorrido em Fukushima (antes o de Chernobyl), é que financiadores de “think tanks” (instituições que se dedicam a produzir conhecimento, e cuja principal função é influenciar a tomada de decisão das esferas pública e privada, como de formuladores de políticas) e lobistas defensores da tecnologia nuclear é que as campanhas pró usinas nucleares, estão muito ativas e atuantes, se valendo de desinformação. A falta de transparência é a arma utilizada pelos interesses dos negócios nucleares.

Negar fatos e evidências científicas, mesmo que elas estejam muito bem expli-

cadas e documentadas, é a essência da prática que serve para explicar qualquer tipo de negacionismo, incluindo o do uso de usinas nucleares, que nada mais são do que instalações industriais, que empregam materiais radioativos para produzir calor, e a partir deste calor gerar energia elétrica, como em uma termoelétrica. O que muda nas termoelétricas é o combustível utilizado.

No caso do uso da energia nuclear, também conhecida como energia atômica, algumas mentiras sobre esta fonte energética são defendidas, disseminadas, replicadas, compartilhadas e, assim, passam a construir verdades que acabam exercendo pressão, com o objetivo de minimizar e dificultar a percepção da população sobre os reais riscos e perigos que esta tecnologia representa, além de ser cara, suja e totalmente desnecessária para o país.

A política energética atual tem-se caracterizado pela falta de apoio efetivo às fontes renováveis de energia. Ao contrário, o ministro de Minas e Energia proclama como prioritário a nucleoeletricidade. Insiste em priorizar e promover fontes de energia questionadas e mesmo abandonadas pelo resto do mundo, caso do apoio ao carvão mineral para termelétricas e da própria energia nuclear.

No mundo em que vivemos, cada ação praticada implica em riscos. Assim, precisamos decidir sobre quais são aceitáveis, já que eliminá-los é impossível. Não existe risco zero. A ocorrência de um acidente severo em usinas nucleares, ou seja, o vazamento de material radioativo confinado no interior do reator para o meio ambiente, é catastrófica aos seres vivos. É bom que se saiba que inexiste qualquer outro tipo de acidente que se assemelha a radioatividade lançada ao meio ambiente, e suas consequências e impactos, presentes e futuros.

No caso de usinas nucleares, onde reações nucleares com material físsil produz grande quantidade de calor concentrada em um espaço pequeno, no núcleo do reator, maiores são as consequências de qualquer anomalia acontecer e se tornar uma catástrofe. Quanto maior a complexidade do

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sistema, mais elementos interagem entre si e maiores são as chances de acidentes, mesmo com todos os cuidados preventivos. Neste caso, existe a possibilidade concreta de se cumprir a Lei de Murphy, segundo a qual “se uma coisa pode dar errado, ela dará, e na pior hora possível”. Eis algumas mentiras que são propagadas e que são motivadas pelas consequências políticas e econômicas que representam, e que merecem os esclarecimentos devidos:

A energia nuclear é inesgotável, ilimitada

As usinas nucleares existentes no país, e as novas propostas, utilizam como combustível o urânio 235 (isótopo do urânio encontrado na natureza). Este tipo de urânio, que se presta a fissão nuclear, é encontrado na natureza na proporção, em média, de 0,7%. Todavia, é necessária uma concentração superior a 3% para ser usado como combustível; assim é necessário enriquecê-lo, aumentando o teor do elemento físsil. Pode-se afirmar que haverá urânio 235 suficiente para mais 30-50 anos, a custos razoáveis, para atender as usinas nucleares existentes.

A energia nuclear é barata

É muito mais cara do que nos fazem crer, sem contar com os custos de armazenagem do lixo radioativo e o desmantelamento/descomissionamento no fim da vida útil da usina (custa aproximadamente o mesmo valor que a de sua construção). Logo, o custo do kWh produzido é próximo, e mesmo superior, ao das termelétricas a combustíveis fósseis. Sem dúvida, acontecerá o repasse de tais custos para o consumidor final.

A taxa de mortalidade de um desastre nuclear é baixa

O contato de seres vivos, em particular de humanos, com a radiação liberada por uma usina nuclear tem efeitos biológicos dramáticos e vai depender de uma série de fatores, entre os quais: o tipo de radiação, o tipo de tecido vivo atingido, o tempo de exposição e a intensidade da fonte radioativa. Conforme a dose recebida, os danos às células podem levar um tempo. Podem ser desde queimaduras até aumento da probabilidade de câncer em diferentes partes do organismo humano. Portanto, em casos de

acidentes severos já ocorridos, o número de mortes logo após o contato com material radioativo não foi grande, mas as mortes posteriores foram expressivas, segundo organismos não governamentais. Nestes casos, a dificuldade de contabilizar a verdadeira taxa de mortalidade é dificultada pela mobilidade das pessoas. Pessoas que moravam próximas ao local destas tragédias, e que foram contaminadas, se mudam e a evolução da saúde individual fica praticamente impossível de se acompanhar.

O nuclear é seguro

Embora o risco de acidente nuclear seja pequeno, é preciso considerá-lo, haja vista que já aconteceu em diferentes momentos da história e possui consequências devastadoras. Um acidente nuclear torna a área em que ocorreu inabitável. Rios, lagos, lençóis freáticos e solos são contaminados. Esse tipo de acidente ainda ocasiona alterações genéticas em seres vivos.

O uso da energia nuclear está em pleno crescimento no mundo

Esta é uma falácia recorrente dos que creditam a essa tecnologia um crescimento mundial. Vários países têm criado dificuldades para a expansão de usinas, mesmo abandonando a nucleoeletricidade. Como exemplos, temos a Alemanha, Áustria, Bélgica, Itália, Portugal, etc., e em outros países o movimento anti usinas nucleares tem crescido entre a população, como é o caso da França e Japão.

A energia nuclear é necessária, é inevitável.

No caso do Brasil, as duas usinas existentes participam da matriz elétrica com menos de 2% da potência total instalada, e mesmo que as projeções governamentais apontem para mais 10.000 MW até 2050, a contribuição da nucleoeletricidade será inferior aos 4%. A energia nuclear não é necessária no Brasil que detém uma biodiversidade extraordinária e fontes renováveis em abundância.

A energia nuclear é limpa

Por princípio não existe energia limpa, e sim as sujas e as menos sujas. No caso da energia nuclear, ela é classificada de suja, pois é responsável por emissões de gases de efeito estufa ao longo do ciclo do

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combustível nuclear (da mineração a produção das pastilhas combustíveis) e produz o chamado lixo radioativo. O lixo é composto por tudo o que teve contato com a radioatividade, logo, entram nessa categoria: resíduos do preparo das substâncias químicas radioativas, a mineração, o encanamento através do qual passam, as vestimentas dos funcionários, as ferramentas utilizadas, entre outros. Parte desse lixo, por ser extremamente radioativo, precisa ser isolado do meio ambiente por centenas, e mesmo milhares, de anos. Não existe uma solução definitiva de como armazená-lo. Um problema não solucionado que será herdado pelas gerações futuras.

O nuclear resolve nosso problema energético, evitando os apagões e o desabastecimento

Contribui atualmente com 2% da potência total instalada no país, podendo chegar a 4% em 2050 caso novas usinas sejam instaladas. O peso das potências total instaladas, atual e futura, na matriz elétrica é muito inferior ao potencial das alternativas renováveis (a exemplo de sol e vento) disponíveis. Logo, a afirmativa de que a solução para eventuais desabastecimentos de energia pode ser compensada pela energia nuclear é uma mentira das grandes.

O que está ocorrendo no país, caso prossiga a atual política energética nefasta, no sentido econômico, social e ambiental, é um verdadeiro desastre que deve ser evitado. Para saber mais, sugiro a leitura dos livros “Por um Brasil livre das usinas nucleares”- Chico Whitaker, “Bomba atômica pra quê? – Tania Malheiros. E os artigos de opinião “Energia nuclear é suja, cara e perigosa”- Chico Whitaker, “O Brasil não precisa de mais usinas nucleares” – Ildo Sauer e Joaquim Francisco de Carvalho, “Porque o Brasil não precisa de usinas nucleares” – Heitor Scalambrini Costa e Zoraide Vilasboas; e o estudo sobre a “Insegurança na usina nuclear de Angra 3”- Célio Bermann e Francisco Corrêa.

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Heitor Scalambrini Costa é professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

India: Monster of Pathological Nationalism Against Small Farmers

Amonster of not an entirely known shape has recently been injured, but how badly is not fully known. That only the future will tell. The monster, they say is a creation of Indian majoritarian democracy gone rogue. That monster, some say was born out of repeated attempts at perverting the Constitution by means fair and foul, constitutional and unconstitutional. The monster also kept changing its shape. It appears in empty legal forms hollowed out of truth, and were presented as laws needed for defending the land against unlawful activities by internal and external terrorists. The monster propagated a version of pathological nationalism meant to silence all opposition, all dissent, and smooth out all differences of opinion by force where necessary. In the meantime its presence was felt in every corner of the country as it kept destroying poor peoples’ livelihoods in the name of economic growth and development, in the name of abolishing black money and corruption. That monster operates in a land of multi-party democracy where electronic images have replaced the real, where advertisement is news and real news is subversive.

The serious blow that was dealt to this multi-headed monster was not sudden. Strength to deliver this blow was gathered with extraordinary stoic courage and tenacity by a very large number of Indian farmers who had originally gathered and settled in temporary tents, tractors and trollies on the border of the capital city of Delhi through winter summer and rain. They had not been allowed to enter the city. And yet, they acted peacefully with remarkable patience and just waited to be heard. They had found unacceptable the three farm laws the government had recently passed in the parliament, and had dubiously hurried through in the upper house with voice votes, because they might not have had a majority needed there. The government first tried to disperse them, treating them as rioting mobs with water cannons, tear gas, and so on. And when this did not work they barricaded the farmers on the roads leading to main

entrances in Delhi. The government tried to make a show of talks with the farmers. With altogether 11 rounds of meetings spread over several months, it avoided altogether any discussion of why the farmers wanted the three laws repealed. The deadlock continued, but the farmers had worked out a new strategy by then. The government had encircled them with barricades and police; now it was the farmers turn to encircle the whole area at different points with more and more farmers peacefully joining the movement from surrounding villages . The government kept on accusing the the farmers of being Sikh separatists, anti- nationals and left – wing extremists, Naxalites, and Maoists. A friend joked: Mao had told, ‘encircle cities with villages’. The farmers are doing precisely that without ever having heard of Mao. This is metaphysical justice for our Prime Minister Modi and his home minister Amit Shah who had absurdly accused them of being Maoists. Farmers organised all this, but without a trace of violence.

Typically, the entire family of mostly self-employed peasants participated in the movement from nearby villages. They did work on the farm by rotation. Women came every evening after the day’s work, and their number swelled along with their determination, often beyond everybody’s imagination. They had far greater staying power than daily wage earners in farms and factories. Their stoic, tenacity of daily routine now directed at furthering the movement became formidable, unimaginable for the government which was ready only for a violent showdown. It was gradually losing nerve.

In many of these areas, especially in Haryana adjacent to Punjab, patriarchy is very strong in the villages; the upper castes dominate the village councils, ‘Khap Panchyats’ and dreadful caste domination prevails. Agricultural labourers mostly Dalits supported the movement because they realised that these laws were soon going to replace with private trade and profiteering the public system of distribution of grains

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which was their sustenance. Media persons visiting these areas reported in amazement that traditional divisions are breaking down not only on the Delhi border but elsewhere; class, caste, gender and religion are all getting fused into a grand movement with a single objective: repeal the farm laws and ensure minimum support price for trade in several agricultural produce. The isolation of the government and BJP was almost complete by now as farmers simply began to boycott BJP workers in villages, surrounded public places when BJP politicians were scheduled to speak. The ruling party members were immobilised, and needed police protection to move around.

An unintended consequence of Modi-Shah regime just some months before the farmers movement had been the spontaneous mobilisation of Muslim women in thousands against the Citizenship Amendment Act(CAA) which was openly aimed against the Muslim minorities. Such unintended consequences that drew women into the movement turned out to be a most potent medicine working against Modi-style surprise announcements by surprising him instead, although it usually caught the political opposition unprepared. Such surprise announcement had earlier been very successful when Modi had declared Demonetisation and sudden severe lockdown without preparation and warning.

Even just before the farm laws, Modi government rushed through the parliament anti-labour laws and faced relatively little resistance, as mostly party based large trade unions proved incapable of putting up effective, sustained resistance. In this background the emboldened government passed the three farm laws basically preparing to hand over the official procurement and the food distribution system of the country to two of its closest corporate allies from Gujrat, the two biggest private industrial houses in India.

The farmers had started putting up almost temporary townships on some entry points to the capital of Delhi, quietly prepared for a long struggle. Now they were spreading out to several areas with new local leadership and initiatives emerging. Their leadership was their very own without

accepting advice or guidance from any political party. Instead opposition political parties felt compelled to support this massive movement. It was a collection of thirty six farmers’ unions that came together with different perspectives and membership, continuously engaged in debates and discussions among themselves, and united as a rock once a decision was taken. Quite unknowingly they showed to the world what democratic centralism can actually mean and achieve in practice. The movement remained open and transparent, peaceful against all provocations, and invincible because it had total support from all who were in the movement. It transformed the notion of party discipline imposed from the top into voluntary participation with self-imposed, coordinated discipline for a cause.

This historic movement started about a year ago on 26th November, 2020 and had its first strategic victory on 19 November, 2021 when the Prime Minister of India suddenly appeared on the T.V to announce his retreat, his intention to withdraw the three farm laws.

His sudden announcement earlier on Demonetization in 2016 was officially meant to eradicate black money. This was a few months before the U.P state elections. It gave his party the BJP a tremendous comparative edge in terms of monetary resources because it had inside information, whereas, opposition parties were caught unaware and became immobilized. The PM was then at the peak of his popularity, and able to sell himself as the White Knight, fierce fighter against black money, even if his earlier promise before the election of depositing rupees fifteen lack (lakh =one hundred thousand) in every citizen’s account by bringing back black money abroad had vanished in thin air. And yet, the poor people suffered gladly the hardship because they still believed in their prime minister, and BJP won the U.P election with a massive majority. That was 2017.

The brightness has faded. The next election in UP, the most populous state in the country with maximum representation is around the corner. The BJP has lost badly state elections in west Bengal in the east and, in Tamil Nadu in the south of India.

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Central and north Idia is now the battlefield, and the farmers movement has crystalized in many areas there. BJP intends building a huge temple in the name of the Hindu god Rama, and hopes its religious strategy of building a Hindu Rashtra would work in this traditional Hindu heartland. Against this divisive religious ideology of the BJP can the farmers offer anything, because many of them are also traditionalist Hindus? Many confessed they had voted for BJP in the last election for that very reason, and there had been Hindu-Muslim riots. Daylight simply began to go out for BJP when the farmers too came forward with their political understanding why these laws were so important for the government. Soon after the movement began, the farmers clearly identified big specific corporate interests that were driving the farm laws. They simply put the cat out of the bag among corporate fed pigeons – the politicians with Modi leading them, the media, the market liberalizers and even the IMF- World bank type economists who adorn all governments. They named the two biggest industrialists from Gujrat, close friends and associates of the prime minister as the intended main beneficiaries of these laws. Some evidence was on the ground, the silos as potential grain warehouses of Adani, making inroads into the retail food market and preparation for on-line bulk trading by Ambani. The farmers’ minimalist ideology was potent and alive, derived from their life experience. They were not afraid to state it simply and openly. It was not a party line dictated from the top.

Many tend to confuse the farmer’s peaceful movement of ideological originality with Gandhian or Anna Hazare type anti-corruption movement. This is wrong. That the movement is peaceful does not make it Gandhian. Unlike Gandhi and his view of Trusteeship of the wealth of the country with industrialistsits in charge, the farmers took an an open anti-big business stance in agriculture. That there is corruption in a prime minster selling out Indian agriculture for the profit of two corporations does not make it a part of any silly anti-corruption movement which looks only at individual money making through illegal transactions as corruption. Mr. Modi was actually intending to change the laws to make everything legal!

This movement is unique in its tenacity, and staying power, in its ability to forge unity across class, caste, gender and religion with a straightforward ideology which goes to the heart of the matter. This is why it could not be crushed. And it is now history, the government failed to crush it.

However it opens up probably a most important question of our era. Can movements born out of shared life experience of a vast number of people replace political parties and create potent, alive transformative, pro people politics with ideologies relevant to the particular movement? Political parties have repeatedly shown they are not capable. They are in the game of competitive electoral politics where money is crucial; catering to public prejudice is essential; a spade cannot be called a spade because in representational politics image is more important than reality, the ability to create illusion and hypnotise the public, and make them oblivious of ugly reality is the aim of the game. Speaking well is more important than acting. Media and advertisement are crucial aids for replacing reality with image, and for that the support of big money from big industrialists is indispensable. Cohesion of the party requires organizational discipline imposed from the top; the central leadership sets the line, and the followers follow. Vote banks created by manipulation of religion and caste to create a majority are at the core of democratic elections as we know it now. The farmers’ movement showed that these distortions can be corrected to a large extent , they can be overcome in course of a movement.

The farmers did not tell people to vote for this opposition party or that. They opposed BJP’s anti-farm policies, were disgusted by Modi’s imperial arrogance, repelled by his politics of creating religious division, and his lack of decency in dealing with them. He did not once regret the death of 670 farmers at the protest; he maintained silence over the suspected involvement of his minister’s son in the killing of four farmers by crushing them under a car, even when the minister himself had threated them openly earlier in a public meeting.

People have been invited to vote on the basis of their shared experience. They

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have been invited to judge policies that support only corporate interest. They have been made aware of the anti-democratic and anti-constitutional intentions of the government. Movements have also earlier put or removed political parties to power. The Aam Admi (AAP) party in Delhi rode to power entirely on the shoulder of an Anna Hazare led anti-corruption movement which prided in not having an ideology! Since then it has become a creature of retaining power by any means as its only ideology . The once mighty CPM (Communist Party Marxist) which prided on its Marxist ideology in west Bengal was arrogant enough to ignore the life and death question of the peasants. Then the civil society stood up with the peasants, and the Trinamul Congress captured that popular mood to ride to power. It has nearly obliterated CPM from west Bengal politics , along with shattering the BJP recently in the last election. The Congress party had earned rich dividends, won popular support and removed BJP from power in the general election of 2009 when it passed the Right to Information and nationwide rural employment guarantee act, but since then it has increasingly proved it believes in a secular liberal democracy only so long as the family dynasty is not disturbed. BJP is arrogant in its belief that clever exploitation of Hindu-Muslim religious divide will deliver it victory in elections, and tries to be clever by half by hiding all the ugly, divisive issues of the Hindu caste society, its oppression of Dalits, scheduled caste and suppression of tribal rights.

The farmer’s movement has so far acted as an antidote to many of these pathologies from which political parties in democratic India suffer.

Unemployment is an overwhelming issue but is made relevant only during elections. No political party has even tried to figure out seriously a plan to tackle it. Poverty, child malnourishment, destruction of livelihood and nature in the name of economic growth and development become transient issues highlighted only at election times. All parties contribute to these ugly tendencies when in power, and they all oppose when in opposition.

The farmers movement spelt out the name of the game clearly. It is meant to hand over the economic control of the country to a few large corporations and keep the poor undemanding and submissive by throwing occasional charity at them. There are some differences, mostly of degree. Mr. Modi has surpassed all in practising this ideology most ruthlessly with single minded devotion. The farmers movement forced open to the public this scheme of things. Not all contradictions have been solved by this movement, but a beginning has been made thanks to the understanding by India’s farmers. What is more, they have made people, ordinary poor people gain confidence that things can be altered once they too understand, unite and persist. In a way it is frightening for the entire political class, because it will not be business as usual. The farmers movement has established this as our newly gained reality beyond the political rhetoric of a dysfunctional democracy.

Amit Bhaduri received a Ph.D. (1967) in the Cambridge University and has taught in various universities as visiting professor, including Presidency College and Institute of Management, Calcutta; Delhi School of Economics and Jawaharlal Nehru University, New Delhi; Centre for Development Studies, Trivandrum; El Colegio de Mexico; Stanford University; Vienna and Linz University, Austria; Norwegian University of Science and Technology; Bremen University, Germany; and Bologna and Pavia University, Italy. Bhaduri has published more than 60 papers in standard international journals and is currently on the editorial boards of five of them. He has written six books, dentre eles Development with Dignity (India: National Book Trust, 2006).

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Habermas, Castells e Uma Nova Perspectiva Marxista do Jornalismo

Conforme observação de Jürgen Habermas (1997), a sociologia da comunicação de massa criou uma clássica e difusa imagem da esfera pública submetida ao poder e à dominação dos meios de comunicação, estimulando um ceticismo em relação às possibilidades de a sociedade civil participar do processo político ativamente, mesmo que em condições adversas. A primeira geração da Escola de Frankfurt, influenciada pelo marxismo, consolidou a crítica às manipulações ideológicas empreendidas pela mídia na sociedade capitalista. No Brasil, Ciro Marcondes Filho, bastante influenciado pelas clássicas ideias iniciais de Frankfurt, defendeu a ideia de que o jornalismo é essencialmente a expressão dos detentores do poder econômico no modo de produção capitalista.

Para Marcondes Filho, a notícia se apresenta como espetáculo e as empresas não têm interesse em ressaltar conflitos e questionamentos a partir dos “fatos”. O foco da crítica de Marcondes Filho, contudo, não é precisamente em relação à pretensão jornalística da objetividade e a dissimulação de um discurso realista, mas precisamente à transformação da informação em mercadoria e a “subordinação do seu valor de uso pelo valor de troca, conforme teorizada por Marx” (RUDIGER, 2021, p. 103). Dessa forma, os meios de comunicação se tornam meios de padronização das consciências:

“As condições históricas mais amplas em que ocorre esse processo determinaram, não obstante, que as forças comunicativas tecnologicamente desenvolvidas, em vez de promoverem a reflexão emancipatória, acabassem se transformando em meios de padronização da consciência. [...] O controle privado dos novos meios transformou-se em fonte geradora de falsa consciência, na medida em que, através deles, pode-se excluir, censurar ou neutralizar a visibilidade e reflexão públicas de certas coisas, pode-se, em outros termos, bloquear o processo de comunicação” (RUDIGER, 2011, p. 90).

Embora procedente, esse pensamento incorre em certo pessimismo quando deixa de vislumbrar, em situações de crise, a possibilidade da mudança social ao negligenciar a capacidade de um público bem informado e ciente da ética reguladora que permeia a comunicação cobrar, prescrever e, efetivamente, estabelecer o papel do jornalismo numa sociedade democrática. A autoridade do público e a deontologia jornalística, portanto, são fatores de pressão externa e in-

terna à atividade dentro das empresas capitalistas de comunicação. As ideias latentes de que, para se manter no poder, os grupos hegemônicos dependem, em última instância, da aceitação da sociedade civil, correspondem à contingência de que os meios de comunicação de massa numa sociedade democrática devem servir como instrumento de esclarecimento do público, o que limita o poder de influência da classe dominante sobre a esfera pública.

Sem abdicar da crítica da primeira geração da Escola de Frankfurt, Habermas (1997) pondera que, mesmo em esferas públicas políticas mais ou menos absorvidas pelo poder, as relações de forças se modificam quando problemas sociais levam a uma tomada de consciência de crise na periferia. Sendo assim:

“Pode-se dizer que, à medida que um mundo da vida racionalizado favorece a formação de uma esfera pública liberal com forte apoio numa sociedade civil, a autoridade do público que toma posição se fortalece no decorrer das controvérsias públicas. Pois, em casos de mobilização devido a uma crise, a comunicação pública informal se movimenta, nessas condições, em trilhos que, de um lado, impedem a concentração de massas doutrinadas, seduzíveis populisticamente e, de outro lado, reconduzem os potenciais críticos dispersos de um público que não está mais unido a não ser pelos laços abstratos da mídia - e o auxiliam a exercer uma influência político-publicitária sobre a formação institucionalizada da opinião e da vontade” (HABERMAS, 1997, p. 116).

Quando Habermas escreveu esse trecho não havia um contexto fortemente marcado pela comunicação em redes online, nem canais que permitissem uma influência tão direta do público nas discussões, temas, opiniões e debates levantados na esfera pública política. No entanto, podemos pensar suas propostas à luz do que Manuel Castells (2013) chama de transformação do mundo na sociedade em rede. Atualmente, a esfera pública ganha contornos cada vez maiores com a atuação de movimentos sociais empreendidos por sujeitos que integram a sociedade civil e que têm na internet o principal canal de mobilização e reivindicação de direitos sociais e reparação de injustiças.

No suscitar de uma consciência de crise na periferia, ou na tomada de consciência dos problemas e injustiças sociais por parte dos sujeitos, a sociedade civil tem

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novos instrumentos de encenação das suas demandas, para que estas ganhem notoriedade nas mídias tradicionais. O modelo da iniciativa externa proposto por Cobb, Ross e Ross (1976) e analisado por Habermas (1997) se assemelha bastante à dinâmica da comunicação com o empoderamento do público nas redes sociais.

“O modelo de iniciativa externa aplica-se à situação na qual um grupo que se encontra fora da estrutura governamental: 1) articula uma demanda, 2) tenta propagar em outros grupos da população o interesse nessa questão, a fim de ganhar espaço na agenda pública, o que permite 3) uma pressão suficiente nos que têm poder de decisão, obrigando-os a inscrever a matéria na agenda formal, para que seja tratada seriamente” (HABERMAS, 1997, p. 114).

Os canais de comunicação não são mais unidirecionais e as estruturas normativas da sociedade são cada vez mais estabelecidas intersubjetivamente. É por meio de um processo de ação comunicativa que as mudanças coletivas ocorrem, atualmente, em escala global e poderosa nas redes de comunicação online. Podemos pensar, inclusive, uma nova teoria marxista do jornalismo que leve em consideração o novo contexto marcado pelo que Castells (2013) chama de autocomunicação de massa, baseada em redes horizontais de comunicação multidirecional e interativa, e que permite a emergência de movimentos que propõem e praticam a democracia deliberativa baseada na democracia em rede. Uma democracia no estilo habermasiano.

“Quando as sociedades falham na administração de suas crises estruturais pelas instituições existentes, a mudança só pode ocorrer fora do sistema, mediante a transformação das relações de poder, que começa na mente das pessoas e se desenvolve em forma de redes construídas pelos projetos dos novos atores que constituem a si mesmos como sujeitos da nova história em processo. A internet que, como todas as tecnologias, encarna a cultura material, é uma plataforma privilegiada para a construção social da autonomia” (CASTELLS, 2013, p. 134).

O modelo de democracia deliberativa habermasiano está fundado na teoria do discurso, nos processos comunicativos que influenciam as tomadas de decisões. É por meio da comunicação horizontal, inclusiva, democrática, que se busca uma vontade comum, um auto-entendimento mútuo de caráter ético, a busca pelo equilíbrio entre interesses divergentes e o estabelecimento de acordos. O modelo deliberativo se desloca da noção de direitos universais abstratos

do homem para a construção dos direitos por meio de uma estrutura de comunicação linguística que normatiza regras argumentativas e discursivas (HABERMAS, 2002).

Temos um cenário em que movimentos com capacidade viral rompem a comunicação unidirecional e pautam os meios de comunicação tradicionais de baixo para cima, fazendo uso de ferramentas que podem contribuir para a construção de um modelo de sociedade menos suscetível à imposição autoritária da classe política dominante. Não ignoramos, contudo, as diversas manipulações informativas que podem ocorrer nesses ambientes online, como temos visto nos últimos anos, sendo empreendidas por líderes autoritários que espalham desinformação e negacionismo. No entanto, é necessário não perder a esperança, para que o debate em torno da comunicação se concentre nas possibilidades de rompimento com a ordem hegemônica e não na crítica reducionista e pessimista que permeia as teorias do jornalismo.

Referências

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002

HABERMAS, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

RÜDIGER, Francisco. As teorias da comunicação. Porto Alegre: Penso, 2011.

RÜDIGER, Francisco. As teorias do jornalismo no Brasil. Florianópolis: Editora Insular, 2021.

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Marya Edwarda Lapenda é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação
(PPGCOM/UFPE).

Bolsonaro: Destruidor do Futuro

Fonte: Rollingstone

Ainda que sejam aspectos relevantes de sua personalidade e de seu comportamento e que não devem ser minimizados, não é correto afirmar que o Presidente Jair Bolsonaro é um psicopata, desvairado, incoerente, manhoso, ignorante, violento, fascista e genocida e que seu governo é incompetente e sem rumo, sem um projeto para o Brasil.

Bolsonaro é tudo isso e pior do que isso tudo. Seu governo tem um projeto e esse projeto tem como objetivo a destruição do futuro do Brasil. O projeto do Governo Bolsonaro se caracteriza pela destruição, como ele declarou: “Eu não vim para construir. Vim para destruir.” Jair Bolsonaro, 2019.

O projeto econômico de Bolsonaro é um projeto ultra neoliberal cujas premissas são simples:

• todos os problemas econômicos podem ser resolvidos pela empresa privada;

• a empresa privada ainda não os resolveu devido à nefasta ação regulamentadora e empresarial do Estado.

A política econômica de Bolsonaro procura, com ardor, desregulamentar as atividades econômicas; privatizar as empresas do Estado; vender os bens do Estado; permitir

a auto-regulamentação pelas empresas; reduzir os direitos dos trabalhadores.

Na área externa, as medidas econômicas têm, com objetivo, abrir amplamente a economia ao capital estrangeiro e às importações; “aferrolhar” essa política econômica neoliberal pela adesão do Brasil à OCDE e a obrigação de seguir seus “códigos”; negociar acordos de livre comércio e neles abandonar a possibilidade de usar tarifas de importação; transformar o Mercosul em uma área de livre-comércio.

O projeto social de Bolsonaro é uma reversão aos valores mais conservadores da sociedade brasileira, que começaram a ser reformados em 1930.

O projeto social de Bolsonaro para o Brasil tem como premissa que grupos marxistas estimularam e implantaram o ateísmo; atacaram a religião cristã e suas igrejas; agridem os princípios da Família; atacam os valores da Pátria e da Nacionalidade; e incentivam a libertinagem sexual.

Acredita Bolsonaro que o interesse do indivíduo é sempre superior ao interesse coletivo; que a corrupção na sociedade é causada pelo Estado; que a intervenção do Estado na educação é a causa principal da perda dos valores; que as reivindicações

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das minorias são indevidas por serem essas minorias “inferiores”; e que o uso da força para preservar valores é legitima.

Os instrumentos de política social de Bolsonaro são eliminar a ação cultural do Estado; beneficiar ao máximo as entidades religiosas, em especial evangélicas; privatizar o ensino e legalizar o ensino em casa; ridicularizar a ciência, os cientistas e os professores; estimular o ódio às minorias étnicas, às mulheres, aos LGBTQIA+; fortalecer as polícias e o Ministério Público para combater a corrupção e “enquadrar” seus “inimigos”.

O projeto político de Bolsonaro é a implantação de um sistema político e governamental autoritário, uma ditadura fascista que garanta a liberdade para o capitalismo (para as empresas) e a submissão dos trabalhadores; consolidar na legislação valores sociais ultraconservadores e a própria perpetuação dessa ditadura. É um projeto de reversão à situação política anterior a 1930, de fortalecimento dos Estados em relação à União.

Seu principal instrumento é armar a população, as polícias e as milícias que pretende usar no golpe fascista que tentará dar em 2022.

Outros instrumentos desse projeto político são passar competências e recursos da União para os Estados e Municípios; contratar pessoal sem concurso; nomear indivíduos inexperientes e contrários à ação do Estado em cada área; reduzir recursos das entidades públicas e assim “justificar” sua privatização; e controlar o Poder Judiciário. Bolsonaro em suas “lives” ultrajantes, pela linguagem e pelo conteúdo, e no seu “cercadinho” desacredita os Poderes do Estado; acusa seus adversários de comunistas, ateus e pervertidos; acusa o sistema eleitoral de fraudulento; acusa o Congresso e o Judiciário de “não deixá-lo trabalhar”; desacredita os juízes do TSE; afirma que “desejam matá-lo” e, entre outras afirmações, ofende a imprensa e jornalistas, minimiza a covid-19 e ridiculariza os que a temem.

Na política externa, Jair Bolsonaro revelou e continua a revelar sua admiração pelos governos e líderes de extrema direita;

sua devoção irrestrita aos Estados Unidos e sua fiel adesão às posições americanas; sua admiração por Israel; seu antagonismo em relação à China; e segue a orientação de Steve Bannon, o americano ideólogo e articulador da extrema direita nos EUA e no mundo.

Jair Bolsonaro dedicou-se a destruir a política externa brasileira em seus fundamentos e assim retirou o Brasil da CELAC; retirou o Brasil da Unasul; participou, com outros governos de direita, da criação do Prosul; designou um general para integrar o IV Comando Americano; permitiu a presença de tropas americanas em treinamento no Brasil; participou das manobras de golpe de Estado na Venezuela; anunciou a mudança da embaixada em Israel para Jerusalém, em afronta às decisões do Conselho de Segurança da ONU.

Se, em algum momento, antes de outubro de 2022 Bolsonaro avaliar que não tem chances de vitória nas eleições, tentará o golpe de Estado, sua única possibilidade de escapar dos numerosos processos que terá de enfrentar na Justiça pela enormidade e diversidade de seus crimes contra os brasileiros e o Brasil.

Samuel Pinheiro Guimarães é embaixador, ex-ministro das Relações Exteriores e ex-secretário geral do Itamaraty.

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Chimamanda Ngozi Adichie e os Deslocamentos

Identitários

Mônica de Lourdes Neves Santana

Aescritora nigeriana Chimamanda

Ngozi Adichie, nascida em 1977, vem influenciando e atraindo uma nova geração de leitores de literatura africana. Proeminente nas mídias sociais e com grande influência, ela se tornou uma representante da África, explorando vidas que foram interrompidas pelo colonialismo. Com um discurso que aborda, de forma corajosa e inteligente, questões sobre o feminismo africano, religião, política e tolerância, ganhou espaço no mundo literário sendo aclamada pela crítica.

Entre todas as suas propostas literárias, algo nos chama atenção: as palavras proferidas no seu discurso no TEDGlobal, em julho de 2009, em Oxford, na Inglaterra: “Eu sou uma contadora de histórias e gostaria de contar a vocês algumas histórias pessoais sobre o que eu gosto de chamar de ‘o perigo de uma história única” (ADICHIE, 2009). Essas palavras dão voz a uma pluralidade de identidades que não devem e não podem ser analisadas a partir de uma perspectiva homogeneizada e engessada. Nesse contexto, o problema dos estereótipos é que eles são incompletos, e espalhados pelo mundo sobre a África ou outros lugares. Entendo também que a leitura detalhada de Adichie é um momento de descobertas das verdades desmistificadas sobre as mulheres africanas, representadas como seres sexuais para o casamento e maternidade.

Vivemos em uma sociedade em que, por muitos anos, ouvimos histórias únicas narradas pelo homem ocidental branco, e rotuladas como verdadeiras e definitivas. Essas histórias apresentam em seus conteúdos conflitos culturais, raciais contra as minorias que sejam os escravos, os índios, as mulheres, com o propósito de descredibilizá-los enquanto se privilegia a branquitude.

É o que observamos em Americanah (2013). Ao discutir as políticas de imigração americana, Adichie nos mostra que, para ser americano, é preciso ser branco. “Eu sou de um país onde a raça não é problema; eu não pensava em mim mesma como negra

e só me tornei quando vim para os Estados Unidos” (ADICHIE, 2014, p. 215).

Ao refletir sobre o contexto de deslocamento de Adichie, estando fora do seu lugar, entre Estados Unidos e Nigéria, nos lembramos de Edward Said, que também apresentou uma formação de hibridez, uma areia movediça, um corpo em deslocamento. Talvez essa experiência de deslocamento a ajudou a ter uma visão diferente sobre a sociedade e a trazer a mulher para o foco. Quanto às personagens da obra, elas nos levam a pensar sobre questões que compõem a identidade enquanto pertencentes a uma determinada nação. Ao discorrer sobre os preconceitos, observamos que a obra é produzida em um cenário de hegemonia única estadunidense. Isso torna as relações mais desiguais em favor da absoluta riqueza de uns e pobreza dos demais (BONNICI, 2006, p. 23).

Analisarei brevemente, a identidade da imigrante feminina negra que surge como alternativa à visão limitada da identidade do outro, retratando as dificuldades que os imigrantes africanos sentem na pele. Sobre isso, segundo Kofas (2016), após aprovação da lei de imigração de 1965, a população americana viu no imigrante uma ameaça à América do Norte e aos seus valores.

Para Amonyeze (2007), a obra Americanah analisa raça e identidade de forma a humanizar a história do imigrante, desafiando a percepção negativa do imigrante africano, questionando as normas ocidentais com seu discurso hegemônico, destacando a necessidade de que as pessoas marginalizadas escrevam suas histórias.

Vejamos a personagem Ifemelu, que sai da Nigéria e vai aos Estados Unidos estudar devido aos conflitos de um regime militar nos anos 1990. Em busca de melhores condições de vida, conhece, nos Estados Unidos, as dificuldades e desigualdades que constituem o país em conflito identitário, racial. Adichie traz à luz duas personagens: Ifemelu, que partiu da Nigéria e, longe dos

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familiares, reconstrói sua identidade e enfrenta a questão racial; e seu namorado, Obinze, também sonha com melhores chances em um país de primeiro mundo, Inglaterra, mas tem sua cultura e existência negadas pelo abandono de uma nação em que não encontra eco para sua voz.

A narrativa adichiana denuncia as tentativas de apagamento da cultura africana bem como de sua história de frustrações e impedimentos. Ifemelu tem dificuldades para conseguir emprego por ser negra, africana e imigrante. A personagem reflete problemas de identidade em sua relação de empoderamento com seu cabelo. Ela viu a mãe mudar de religião e queimar o cabelo junto com objetos religiosos da antiga religião. Ifemelu adorava o cabelo preto de sua mãe. A própria Ifemelu corta todo o seu cabelo, usando-o curto porque acredita que cabelo alisado ofendia a Deus.

Ao chegar aos Estados Unidos, Ifemelu é obrigada a desfazer as tranças e alisar o cabelo para conseguir uma vaga no emprego. “Ninguém fala nessas coisas, mas elas importam. A gente quer que você consiga esse emprego” (ADICHIE, 2014, p. 220). Além de tudo, ainda existe a questão do sotaque, que deve ser suprimido e para adotar a pronúncia americana do inglês. Ifemelu questiona se, nos Estados Unidos, não há médicas com tranças, e a tia responde: “Você está num país que não é o seu. Faz o que precisa fazer se quiser ser bem-sucedido” (ADICHIE, 2014, p. 130-131).

Há de se levar em conta que essa tentativa de mudança de cabelo, e de imitação do jeito de ser do homem branco, tem como objetivo a busca pela aceitação, o desejo de deixar o lugar de inferiorizado, de fronteira, de colonizado desde o nascimento e participar da etnia branca. Algo que nunca irá acontecer. Segundo Anzaldúa (2000), reconhecida pelas contribuições para teorias feministas, a cultura dos países de terceiro mundo foi construída pela elite branca hegemônica, que construiu o discurso da história única e autoritária.

Essa subalternidade nos lembra a autora Spivak no artigo Pode o subalterno falar? em que ela diz: “O subalterno não pode

falar. Não há valor algum atribuído à ‘mulher’ como um item respeitoso nas listas de prioridades globais” (SPIVAK, 2014, p. 165). Acreditamos que as mulheres negras vivem uma dupla opressão e colonização: a do passado, que continua e se expande. As duas personagens, Ifemelu e Obinze, pertenciam à classe média na Nigéria, mas, nos Estados Unidos e na Inglaterra, se submetem a funções subalternas para viver e sofrem para se adaptarem.

Mas quem precisa de identidade? Todos nós. Cabelos crespos, lábios grossos, cor parda, mestiça, gorda, baixa são características que fazem parte do que somos e carregamos em nosso sangue. São nossas marcas identitárias, que deveriam ser vistas como marcas de empoderamento, mas que atraem estigmas de inferioridade, muito comum entre as mulheres negras (LOPESFLOIS, 2017).

Nesse contexto, na palestra intitulada O perigo da história única (2009), Adichie nos conta a sua vida pessoal e acadêmica nos Estados Unidos como mulher vinda de um país africano. Ela relata a versão única e imaginária que as pessoas do ocidente têm em relação à identidade africana. “Nenhuma possibilidade de sentimentos mais complexos do que piedade. Nenhuma possibilidade de uma conexão como humanos iguais” (ADICHIE, 2009).

Finalmente, olhar para Ifemelu e Obinze é olhar para o resquício do colonialismo e seus imigrantes ilegais que buscam o lugar da identidade nacional para perpetuar sua história. Por isso, construímos uma leitura de Chimamanda Ngozi Adichie a fim de desconstruir histórias únicas da África dialogando com as muitas histórias contadas por ela.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Companhia das Letras. 2009.

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Americannah. Tradução: Julia Romeu. São Paulo. Companhia das Letras, 2014.

AMONYEZE, Chinenye.Writing a new repu-

28 JORNALISMO E CIDADANIA |

tation: Liminality and Bicultural Identity in Chimamanda Adichie’s Americanah; Journal of Black Studies.April- June, 2007.

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/ La Frontera. Literary Theory: An Anthology. Eds. Julie Rivkin and Michel Ryan Maiden: Blackwell Publishing Ltd. 2004.

BONNICI, Thomas. (orgs.) Pós-Colonialismo e Representação Feminina na Literatura Pós- Colonial em inglês. Acta. Sci. Human Soc. Sci. Maringá: vol. 28, n. 1, 2006.

LOPES - FLOIS, Cleonice Alves. Representações de identidade e resistência em americannah de Chimamanda Ngozi Adichie. Revista Travessias. ISSN: 198259 351. V. 11, n. 03, set/dez. 2017.

RAMOS, Neila R. C. Uma história sobre as muitas histórias de Chimamanda Ngozi Adichie. Dissertação de mestrado. Programa de Pós- graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia. Instituto de Letras. 2017.

SPIVAK Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Tradução de Sandra R. Goulart Almeida; Marcos Feitosa; André Feitosa. Belo Horizonte. Editora da UFMG, 2014.

29 Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE |
Mônica de Lourdes Neves Santana é pós-doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco.

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