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editorial

Biografias Retornam Com Força ao Mercado Editorial

Após terem enfrentado um período de vigilância judicial, os livros-reportagem biográficos estão entre as opções mais interessantes lançadas nos últimos dois anos no campo do jornalismo brasileiro. Personalidades da política e da cultura, principalmente, vem sendo esquadrinhadas em trabalhos minuciosos, resultado de entrevistas, pesquisas documentais e narrativa fluente. Lançado em 2021, o primeiro volume da biografia do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, chamada de “Lula, volume 1”, de autoria do jornalista Fernando Morais, lidera a lista de vendagens de não ficção desde o seu lançamento. O jornalista, que teve acesso diário ao cotidiano de Lula e realizou horas de entrevistas, já inicia a obra com o dia da sua segunda prisão, descrito em minúcias. Depois, recua no tempo para, a partir da sua infância no Nordeste, migração para São Paulo e transformação em líder operário e sindical, retratar a sua formação política. A narrativa do primeiro volume termina quando Lula perde a sua primeira eleição, em 1982, para o governo de São Paulo. O segundo só será lançado depois do próximo pleito eleitoral, com o relato das três derrotas e os dois períodos presidenciais. Outro lançamento que vem chamando a atenção é “Roberto Carlos: Outra Vez, volume 1 (1941-1970)”, do mesmo jornalista Paulo César Araújo, que teve o seu primeiro livro sobre o cantor e compositor barrado na Justiça (veja história abaixo). Desta vez, o biógrafo trabalha com uma estrutura narrativa diferente, na qual cada capítulo representa o universo de uma canção de Roberto Carlos que tenha a ver com o determinado momento de sua vida, em ordem cronológica. Por exemplo, para narrar a infância em Cachoeiro de Itapemirim (ES), remete à canção “Traumas”, na qual está presente, de forma discreta, a referência ao acidente com um trem que gerou a amputação de parte da perna do futuro cantor na sua infância. E assim seguem 50 capítulos, cada qual com um momento específico da trajetória do artista que remete a determinada música. Para o segundo volume, está prevista, com a mesma estrutura, a narração do que ocorreu na vida e carreira de Roberto Carlos de 1970 até os dias de hoje. Fonte: submarino, 2022

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Um poeta e dois cantores esquadrinhados em biografias reveladoras

Dois Joões e um Ney. Três biografias lançadas em 2021 ajudam a desvendar a trajetória do poeta João Cabral de Melo Neto e os cantores João Gilberto e Ney Matogrosso e tem em comum o trabalho jornalístico árduo das entrevistas orais e garimpagem de documentos. Em “João Cabral de Melo Neto-uma biografia”, Ivan Marques investiga da infância à morte do poeta pernambucano, tentando entender a dureza da sua poesia e mesmo de sua personalidade difícil, atormentada por uma enxaqueca persistente. “Ney Matogrosso, a biografia”, de Julio Maria, o mesmo biógrafo de Elis Regina, vai nas raízes da relação tumultuosa que o cantor teve com o seu pai para entender a posterior explosão do artista de voz e performances exuberantes, a princípio com o Secos e Molhados e depois com a carreira solo, marcada por um posicionamento coerente a favor da liberdade. Outra leitura essencial é “Amoroso: uma biografia de João Gilberto”, de Zuza Homem de Mello. Na condição privilegiada de amigo do recluso cantor, Zuza traz histórias deliciosas, como, por exemplo, o hábito por ele cultivado de ficar horas no telefone com amigos em ligações inesperadas nas madrugadas, além de

analisar de forma profunda a sua obra e a escolha de repertório.

“Batalha das biografias” foi superada com decisão histórica do STF, em 2015

As biografias não autorizadas acabaram se tornando o produto comercial jornalístico de maior sucesso entre as várias modalidades de livros-reportagem no Brasil, principalmente em meados dos anos 1990. No entanto, nas primeiras décadas do século XXI esse lucrativo segmento se viu abalado por questionamentos judiciais. Em 2013, chegou ao auge o que se convencionou chamar de “Batalha das Biografias”. No centro da questão estava a legitimidade dos artigos 20 e 21 do Código Civil Brasileiro (2002). A lei estabelecia que “salvo se autorizadas, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas” não só pelos biografados, mas também pelos seus herdeiros em caso de morte, “se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais”. Desenvolvido em um campo múltiplo e complexo, o conflito envolveu, de um lado, os autores de biografias não autorizadas – como o diretamente atingido Paulo César Araújo, biógrafo de Roberto Carlos – e a Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel), que ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012, questionando os referidos artigos. Em outro polo estavam pessoas públicas biografadas, herdeiros e seus respectivos advogados e até mesmo artistas de renomado capital simbólico acumulado na luta contra a censura, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, reunidos em torno da entidade Procure Saber. Estes últimos se manifestaram, com algumas ressalvas, favoráveis ao consentimento prévio para elaboração de biografias.

No dia 7 de setembro de 2013, durante um debate na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, foi divulgado o “Manifesto dos intelectuais brasileiros contra a censura às biografias”, organizado pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros e assinado por 48 intelectuais, entre os quais Ruy Castro, Carlos Heitor Cony, Nélida Piñon e João Ubaldo Ribeiro. O texto exalta o gênero literário biografia como de importante papel para “a construção da nossa ideia de nação, imortalizando personagens e ajudando a consolidar um patrimônio de símbolos e tradições nacionais” (Araújo, 2014, p. 429-430). No dia 10 de junho de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) finalmente considerou inconstitucional a norma que proibia a publicação de biografias não autorizadas pelos personagens retratados. A liberação foi aprovada por sete dos nove ministros que participaram do julgamento. Cármen Lúcia, a relatora, mencionou em seu voto que a obrigação de autorização para as biografias configuraria um tipo de censura prévia. No entanto, ficou mantido o direito legítimo dos personagens citados nas biografias de serem indenizados em casos de abusos comprovados. Para Cármen Lúcia, os abusos podem ocorrer sobre qualquer direito. Mas não é “constitucionalmente admissível que se restrinja a liberdade de expressão e de informação de todos para garantir a liberdade de intimidade de um. A censura já morreu. Foi a Constituição do Brasil que garantiu o fim da censura” (EFE, 2015, on-line).

Referências

ARAÚJO, Paulo Cesar. O réu e o rei: minha história com Roberto Carlos, em detalhes. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. ARAÚJO, Paulo Cesar. Roberto Carlos: Outra Vez, volume 1-(1941-1970). Rio de Janeiro: Editora Record, 2021. MARIA, Julio. Ney Matogrosso: a biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2021. MARQUES, Ivan. João Cabral de Melo Neto: Uma biografia. São Paulo, Todavia, 2021. MELLO, Zuza Homem de. Amoroso: uma biografia de João Gilberto. São Paulo, Companhia das Letras, 2021. MORAIS, Lula-biografia. Volume 1. São Paulo, Companhia das Letras, 2021. EFE. STF libera publicação de biografias não autorizadas. UOL Entretenimento, 10/06/2015. Disponível em: <https://entretenimento.uol.com.br/noticias/efe/2015/06/10/stf-libera-publicacao-de-biografias-nao-autorizadas.htm>. Acesso em: 19/10/2017.

Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz e doutor em Comunicação pela UFPE, Alexandre Zarate Maciel, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, seus principais autores, títulos e a visão do leitor.

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