6 minute read

Chile, o Despertar Cidadão na América Latina

Next Article
Editorial

Editorial

Jean de Mulder Fuentes

OChile é um país com pouco mais de 18 milhões de habitantes, um país que, nas últimas duas semanas, aparece entre as notícias mais assistidas do mundo: no dia 19 de dezembro passado, os eleitores chilenos escolheram Gabriel Boric como presidente que passará a governar o país a partir de março de 2022. Boric foi o mais jovem presidente eleito da história republicana do país e do mundo (35 anos), que venceu a disputa com o candidato conservador e de extrema direita, José A. Kast, com quase 56% do total de votos.

Advertisement

O Frente Amplio, uma coalizão de partidos de esquerda (a Revolução Democrática, a Esquerda Autônoma e o Partido Comunista) que ganhou as eleições presidenciais, afirmou que o Chile é um país injusto, liderado e governado por quem tem mais, e que a educação, a saúde, a previdência, a água, a luz, os transportes, quando privatizados, passaram a ser objeto de comercialização, ou seja, têm sido mais um bem de consumo do que direitos sociais. A futura coalizão governamental também denunciou que os grandes grupos empresariais de papel, carne, farmácias, entre outros, se aliaram numa espécie de cartel empresarial para fixar preços. Além disso, houve o desvio de fundos por parte de alguns membros superiores do Exército e dos Carabineros. Esses são fatores que, todos juntos, contribuíram para profundar as desigualdades e a inquietação social.

De acordo com o resultado da votação oficial divulgado pelo Serviço Eleitoral do Chile (Servel), Boric venceu com 68% dos votos de jovens e mulheres com menos de 30 anos. É uma ruptura geracional, no que diz respeito às eleições anteriores, em que as questões de valores têm um significado muito diferente em questões como direitos da mulher, casamento igualitário, identidade de gênero, aborto e eutanásia. Mulheres e jovens com menos de 30 anos, a maioria de “comunas” (prefeituras) pobres , saíram para votar, dando a vitória ao candidato da esquerda, contra o candidato da extrema direita que, no primeiro turno, obteve o maior número de votos. As mulheres chilenas não puderam calar-se ante a mensagem de retrocesso dos direitos de gênero, duramente conquistados.

Boric está politicamente antenado com jovens e mulheres que exigem mudanças sociais e políticas profundas, mas graduais, com a participação do Estado, e um Estado mais transparente e eficiente. O progresso deve ser feito sem violência e com adesão às instituições.

Os desafios em questões sociais, políticas e econômicas não são poucos: o acesso à saúde e educação gratuitas e de qualidade, assim como a discussão do sistema previdenciário serão a chave para o sucesso do governo. Devemos lembrar que, durante a ditadura militar (1973-1990), a saúde, a educação, o sistema previdenciário, e o direito à água foram privatizados por meio de políticas neoliberais. Durante esses anos, a maioria dos economistas ligados às decisões de políticas públicas eram estrangeiros ou adeptos da Escola de Chicago. Sobre os desafios políticos, o novo presidente foi claro sobre as prioridades: “Nosso projeto também significa avançar em mais democracia e cuidar do processo constituinte, fonte de orgulho mundial e única forma de construir, em democracia e com todos, um país melhor. Pela primeira vez em nossa história, estamos escrevendo uma 3 Constituição de forma democrática, conjunta, com a participação dos povos indígenas ”.

Na sua primeira visita à Convenção Constituinte, exprime a sua vontade de confiar na independência e na responsabilidade desse órgão, ao dizer que não quer uma Constituição alinhada com o seu governo, com uma tendência de setor ideológico, mas sim uma constituição representativa da sociedade.

Em questões econômicas, o Chile deve combinar liberdade individual e empreendedorismo, crescimento e desenvolvimento econômico, livre iniciativa e supervisão. “Devemos nos mover com responsabilidade com mudanças estruturais sem deixar ninguém para trás; crescer economicamente;

converter o que, para muitos, são bens de consumo em direitos sociais independentemente do tamanho da carteira; e garantir uma vida tranquila e segura”. As razões são várias: uma delas é que, em outubro de 2019, teve uma manifestação cidadã mais numerosa, (quase 2 milhões de pessoas foram às ruas) exigindo, pacificamente, uma solução mais humana para as enormes diferenças estruturais em saúde, educação, habitação, disparidade salarial nas pensões.

Nas últimas semanas, o presidente eleito tem dado ênfase à moderação, às mudanças graduais e à busca de acordos para atingir os objetivos de seu governo. Curiosamente, os partidos de sua coalizão enfrentam os partidos políticos que governaram o Chile após a ditadura, a partir de 1990, por não terem avançado o suficiente em questões políticas, sociais e econômicas. Um fato objetivo é que, com a Constituição de Pinochet, as grandes reformas necessitam de quóruns. Os chamados quóruns supramajoritários (aqueles que requerem maiorias mais altas, 3⁄5) têm adeptos e oponentes. Aqueles que os defendem argumentam que sua existência tende a produzir maior estabilidade político-normativa e que ajuda a proteger as minorias do poder das maiorias. O contra-argumento indica, por sua vez, que esse tipo de quórum confere uma espécie de poder de veto às minorias, o que restringe o sistema democrático. Este será um dos aspectos relevantes que a Convenção Constituinte apresentará. Se a proposta de nova constituição for aprovada, ela modificará o sistema constitucional chileno, promovendo a possibilidade de mudanças políticas.

Quaisquer que sejam as impressões de Boric, o concreto é que deveria haver mais participação política: as principais políticas públicas não seriam decididas em quatro paredes, mas com o público, as decisões econômicas não seriam tomadas apenas por tecnocratas, mais democrática e mais representativa. Esperanças e novos ares do Chile, que podem influenciar outros países latino-americanos. Lembremos que, na década anterior, num período de aglutinação das forças da esquerda latino-americana, foram alcançados avanços significativos na diminuição de gastos militares, colaboração de fronteiras, integração comercial, iniciativas sociais e educativas por meio do Mercosul e da Unasul.

Não será fácil para Boric governar agora o Chile: os adversários o confrontam enfatizando que ele é muito jovem e sua coalizão de governo não tem experiência. Ser jovem é um desafio, e a experiência é feita com a assessoria de quem já ocupou cargos de responsabilidade nas diversas áreas das políticas públicas.

Para isso, Boric deve mostrar que seu projeto de governo terá sucesso em termos de direitos sociais, um calcanhar de Aquiles que tem incomodado os chilenos. De fato, os grandes avanços macroeconômicos, a disciplina do superávit fiscal do Chile e a redução da 5 pobreza (atualmente 6,3%) e da pobreza extrema (2,3%) , elogiados por organismos internacionais, parecem não ser suficientes para os chilenos. O crescimento econômico que o Chile mostrou, e foi causa de elogios internacionais de setores ortodoxos, tinha a outra face da moeda: enquanto a pobreza diminuiu, a desigualdade econômica aumentava escandalosamente.

Um clima de alegria e esperança se respira nestes dias no Chile: esperanças no novo governo, que saiba combinar o crescimento econômico com o desenvolvimento humano, a igualdade de oportunidades e a redução das grandes brechas sociais. Boric terá que superar três grandes desafios para ter sucesso em seu governo: reconciliar uma sociedade polarizada desde a eclosão social de outubro de 2019, enfrentar as novas variantes do coronavírus (o combate à Covid-19 tem sido exemplar no Chile como política de saúde pública) e superar as consequências das condições econômicas da pandemia, iniciando transformações sociais profundas e graduais, passando de uma economia neoliberal das mais profundas do mundo a uma de estilo social-democrata que beneficia todos os chilenos.

Jean de Mulder Fuentes é doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro do Observatório Chileno de Políticas Educativas (Opech).

This article is from: