3 minute read

Benjamim Franco

Benjamim Franco Taubaté/SP

Escrito-Tempo

Advertisement

Estar longe do coletivo não era assustador como imaginava. Na verdade, era libertador. As histórias dos antigos, de monstros reais e imaginários, e a prática do banimento como castigo máximo – tudo isto era mais assustador do que aquilo que estava vendo.

Por mais que o mormaço e o calor machucassem, Enzo se sentia leve, livre. Queria cantar, mas sabia não ser sensato: não estar sob o olhar dos antigos, o alcance dos guerreiros, também não significava segurança. Não poderia imaginar como fora o campo: as curvas das montanhas eram bonitas o bastante. Melhor do que o alojamento, tão claustrofóbico.

A cidade antiga estava ao alcance. O que sobrou dela. Fora ignorada no Dia do Juízo, segundo as histórias herdadas dos antigos: mas conflitos, fome, e doença a fizeram secar e morrer. O estômago de Enzo roncou: ele não queria mais cantar. Símbolos e marcações demarcavam o lugar: pintados nas paredes, fincados em postes, gravados e arranhados nas mais diversas estruturas. Para ele, não importava nada.

Com a exceção de VENENO, PERIGO, NÃO ENTRE, e, mais importante, ENZO, as palavras não lhe significavam nada. Talvez seja por isso que aquela caixa de metal no meio da praça, grande o bastante para abrigar meia dúzia de pessoas, lhe foi apelativa. “Capaz de ter comida lá”, ele disse, pensando alto. Mal lembrava que precisaria levar o que encontrasse para o alojamento.

Como o menor macho do coletivo, a tarefa era feita para ele. Como adulto mais jovem, era descartável o suficiente: não faria falta se não voltasse.

Na porta de correr, buracos de balas. Mas era um abrigo. O trovejar, e as primeiras gotas de chuva, reforçaram a ideia de conferir o que havia ali. A porta era pesada, estava travada. Enzo precisou de toda a força para levantá-la, e mesmo assim, apenas o suficiente para alguém de seu tamanho passar. Enzo sacudiu seu bastão, procurando por perigos, bichos, armadilhas: não encontrando nada, decidiu entrar.

O céu escurecia, e a luz que vazava através dos buracos de bala desaparecia. Enzo ligou sua lanterna:

20

dentro da caixa, haviam pilhas de papel dobrado, porosas ao toque.

Nas paredes de metal, haviam cartazes envelhecidos, com fotos de coisas que pareciam 3 pás, propaganda política, e banners cheios de objetos do passado, espremidos entre textos e cores. E havia um expositor, repleto de cacos de vidros, com apenas um objeto dentro, uma mistura entre cartaz, foto, e livro, tão pequeno e delicado.

Refletia a luz da lanterna: era vermelho, e na sua frente, havia o retrato de um velho raivoso. Enzo o apanhou, e o objeto se abriu. Dentro dele, estavam as coisas mais lindas que ele já viu.

Havia pessoas, gente feia, sim: velhas e feias e bravas, mas de trajes novos, bem-cuidados, inteiros. A comida era tão grande, reluzente, e apetitosa, mesmo que Enzo não soubesse se era doce, amargo ou salgado. Havia carros brilhantes e prédios imensos; bichos de pelagem cheia, lustrosa, sem falhas. Os homens musculosos e as mulheres esbeltas faziam até mesmo os membros mais belos do coletivo parecer feios, comuns, ridículos. E mesmo as palavras, de tão nítidas e vivas, lhe soavam como importantes segredos.

Enzo olhava as imagens de novo e de novo, até a chuva passar, através da noite, e até a bateria da lanterna acabar; lambeu a comida, apalpou os prédios e objetos e as pessoas, se deu prazer ao ver aqueles corpos. Foi o melhor dia de sua vida.

Era meio-dia quando ele acordou, cansado, faminto, dolorido. Assustado pelas batidas na porta de metal. Gritavam para que ele abrisse a porta. Ele não sabia o que fazer.

Um homem grande ergueu a porta; Enzo levantou as mãos, ainda segurando a revista, e levou um tiro.

Após o disparo, silêncio.

Os homens trocaram palavras. “Achou alguma coisa?”

“Nada de mais. Só uma revista”.

O atirador a tomou da mão de Enzo. Folhearam a revista, gargalhando.

twitter.com/benjamimfranco

This article is from: