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Caique de Oliveira Sobreira Cruz

Caique de Oliveira Sobreira Cruz Salvador/BA

Vó Odete

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É surpreendente e invejável o extremo vigor da minha avó, "Dona Odete", com os seus avançados 88 anos de idade. Uma raiz extraordinariamente fincada que segue resistindo ante as piores tempestades e calamidades, com o afronte de quem sabe resistir, persistir e superar barreiras de todas as ordens. O grande literato do século XIX, Honoré de Balzac, mediante o seu realismo estético, provavelmente lavraria tal personagem, a grosso modo, da seguinte forma:

As mãos, com incontáveis calos, demonstram o ardor de uma vida inteira de trabalho, destinada a realizar as obras da sociedade, gerando novo valor e, portanto, caracterizando-se como uma inveterada trabalhadora, pertencente ao "populacho", à "plebe" e aos famosos "pés de poeira", em nosso contexto, às "massas". A pele é totalmente marcada pelas agruras da seca e do sol quente na face, por décadas (88 primaveras), sem a proteção de fórmulas químicas destinadas a absorver e amortecer a intensidade da radiação ultravioleta, de tal sorte que tanto o UVA quanto o UVB já se tornaram os seus principais companheiros. Os olhos, incontornavelmente espezinhados, tão caídos que podem expressar, por intermédio de uma linguagem não vocalizada, que estes globos oculares, em conjunto com as órbitas, presenciaram muitas catástrofes sociais e, também, individuais, que, talvez, nem mesmo a aritmética possa precisar, apenas assinalar com um símbolo: ♾. As olheiras apontam para alguém que guarda os sofrimentos de todos para si. Ao "decair do crepúsculo" encontra-se digladiando contra esses sofrimentos, um embate recorrente, datado para todos os dias antes de adormecer.

Todavia, apesar dos pesares, sabores e dissabores da vida, os olhos continuam abertos, atentos e

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prontos para distribuir afeto. Somente o universo orgânico e a natureza podem compreender a razão desses olhos, diante de todas as mazelas, não fecharem. Eu, no limiar dos meus parcos 28 anos de idade, tendo compartilhado, em muito, algumas tragédias familiares que ela também sofreu amargamente, tenho preferido que os meus olhos se fechem para sempre e eu possa descansar intimamente com a natureza. Noutro giro, como é possível essa mulher que logo completará nove décadas ainda estar de pé? Como pode ser a matriz fundante da nossa casa (os “Oliveiras”), o pilar da nossa árvore genealógica? Nem os melhores livros que eu li, apontam-me uma resposta aproximada, mas, a bem da verdade, é que ela é muito mais forte do que eu, e nenhuma intelectualidade me concedeu tal envergadura. Os cabelos pintados, registram o desejo de permanecer como sempre foram, sendo a mais categórica representação de que há uma guerreira disposta a continuar o seu trajeto por mais anos, com a sabedoria de que ainda há muito o que fazer, por nós e, pelo mundo. A caneta nas mãos de quem nunca teve acesso e direito à alfabetização escolar-formal, são significativos da busca por alcançar aquilo que a sociedade lhe negou. Relembrando aos incautos que os seres humanos fazem a sua própria história, porém, não a fazem sob as circunstâncias que querem ou que escolhem como mais viáveis, mas, sim, pelas tendências que o sociometabolismo do capital lhes impõem como horizontes limítrofes. Ela teve que aprender sozinha e mostrar que podia neste mundo em que nunca fomos, haja vista que, no mundo em que queremos e seremos, todos devem ter acesso ao conhecimento (muito mais do que o escolar-formal). Porquanto que, a despeito das desigualdades sociais, ela se levantou diante do capital e do Estado que restringiram o seu direito básico a saber escrever o seu próprio nome. Seca, miséria, exploração, opressão, falta de oportunidades, o não acesso à “educação”, discriminação, o pão que o diabo amassou, não foram capazes de derrubá-la.

Essa arcada lhe confere a força física, mental e a retidão moral para estar de pé. Essa é a envergadura da classe trabalhadora, os mais fortes

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que temos. "Dona Odete" é um exemplar clássico do que observou Marx ao ter os seus primeiros contatos com os trabalhadores, e avistou ali, segundo ele, a verdadeira civilidade, a verdadeira solidariedade que abria um leque de possibilidades para uma nova sociedade igualitária, livre e justa. A bondade estava lá, também a ajuda mútua, o respeito e, sobretudo, o “calejamento” (não a técnica artística, mas na terminologia do senso comum) para aguentar sustentar a sociedade nas costas.

Então, não podemos deixar de acreditar que esse mundo possa ser transformado, pois existem várias "Donas Odetes" nele, que guardam em si a potencialidade e a vitalidade capaz de revirar a nossa história e, pelas suas mãos, construir novos horizontes societais. A classe trabalhadora é portadora das possiblidades de um novo mundo, "as parteiras do novo mundo" em alusão ao camarada Engels, é a classe que contém as condições objetivas e, se amadurecidas, as subjetivas, para carregar o destino da humanidade, a emancipação geral do gênero humano, o fim das explorações e opressões, impondo fim ao nosso “interregno” de “sintomas mórbidos”.

A verdade é que "Dona Odete", aos 88 anos, é a mais forte trabalhadora que temos em uma ramificação de mais de 50 descendentes. Se entre os patrícios, eles têm uma "Rainha" de 96 anos, nós, aqui, teremos certamente, uma proletária centenária, em breve.

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