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Beto Filho

Beto Filho Belo Horizonte/MG

Sapatos De Salto

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Os saltos eram altinhos, uns seis ou oito centímetros.

Ao mirar a cena desenhada em minha cama, tentei imaginar por quantos lugares esses saltos haviam passado.

E se tivessem tocado as ruas do centro da cidade? Ratazanas, baratas, urina, fluídos diversos. E se tivessem amassado um cocô de cachorro? Ou coisa pior...

Mesmo se tratando de um salto alto, o solado suspenso, o fato é que alguma coisa sempre respinga na gente.

Pensei no chão dos banheiros das boates e dos bares, nas cabines químicas. O chão aceita tudo.

Pois eu não podia entender como ela fora capaz de dormir com os sapatos!

Até que com a roupa do corpo, suada e suja, vá lá. Com a maquiagem e um gosto de uísque na boca, também vá lá.

Mas com os sapatos?!

Ela continuava deitada ali, na minha cama, virada para o lado do seu braço esquerdo e imóvel.

Espiei o seu corpo magro, jovem, liso e vi manchas de cor amarronzada nas laterais do pé direito. Reparei bem os pés, os dedinhos delicados, embora as pontas das unhas, pintadas de um vermelho descascado, também estivessem um tanto amarronzadas.

Observei com bastante cuidado e constatei que aquela textura não era de cocô de cachorro; e nem de gente.

O mais provável é que ela tenha afundado os saltos numa superfície de terra úmida, talvez ao sair de uma casa modesta da periferia. Pisou e não recuou; foi em frente, soberana.

Eu não sabia nada a seu respeito. Tínhamos nos conhecido de madrugada, numa avenida movimentada da região sul, quando fui sugado por suas pálpebras azuladas, por sua boca vermelha, por seu semblante indefinido e aéreo.

Um vestidinho colante realçava as suas poucas curvas, os seios estavam empinados pelo sutiã. O cabelo era tão comprido que devia ser falso. E as longas unhas nos dedos das mãos, certamente, eram tão postiças quanto os cílios.

Mas foi aquele semblante vago, displicente, o que realmente me dominou.

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Sem ter muito o que dizer, parei o carro, olhei para ela e disse “oi”. Ela me respondeu com outro “oi”. A sua voz estava meio travada, assim como a minha.

Ofereci carona para lugar nenhum e ela aceitou.

Segui para a minha casa e não me lembro do que falamos no trajeto. Acho que nem cheguei a dizer para onde íamos, e ela também não fez nenhum questionamento. Mascava um chicletes sabor hortelã, que deixava um cheirinho gostoso no carro.

Quando chegamos, ela quis saber se havia uísque. Fui ao banheiro e ao voltar ela já dormia, encolhida e com os sapatos. Dormi também, mas tirei os meus.

Nem sei por que fomos parar na minha cama, na minha casa. Por algum motivo, eu queria levá-la comigo. Era só isso.

Por volta das dez horas da manhã, ela acordou meio atordoada. A expressão em seu rosto era outra. O semblante era tenso. Precisava partir às pressas. Havia a filha pequena, a moça que tomava conta da criança, o horário opressor.

Sugeri um café. Recusou. Conferindo o celular, equilibrou-se nos saltos. Ajustou o cabelo e a roupa do corpo, que nem havia tirado, enquanto mirava o espelho do armário.

Perguntei se precisava de alguma coisa, ela me pediu uma ajuda para o táxi. Dei uma quantia boa. Agradeceu e disse tchau. Nem fez xixi.

Ouvi o “toc toc” dos saltos e a porta da rua se abrindo; depois, a porta se fechou num barulho seco.

Imaginei que poderia encontrá-la pela noite, o rosto marcado de gliter, a pele branca e macia como a neve; e aquele semblante aéreo, indefinido, tão incerto quanto os sentimentos que me vinham.

Por que ela não tirou os sapatos? Preguiça? Pudor? Por nada?

Difícil saber, mas sei que aqueles sapatos de salto eram inibidores. Eles como que formavam uma rede de proteção para os pés e o corpo todo. Eles me repeliam.

Levantei-me da cama e, na saída do quarto, pisei em algo grudento. Era um chicletes sabor hortelã, levemente amarronzado.

Tive vontade de guardar aquela massinha suja.

Joguei-a no lixo, tomei água gelada, voltei a dormir.

Eu nem sabia o nome dela.

@sorbilliroberto

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