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Renato Massari

Renato Massari Rio de Janeiro/RJ

Singelamente, Cris

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Chove e vejo as gotas da chuva com meus ouvidos. São pérolas brilhantes que escorrem do céu. Quero senti-las, por isso abro a janela. Pode se resfriar, Cris. Ouço isso desde pequena. Se liga, mãe, já tenho quinze anos. Mãe é mãe, ela responde, e diz que quando eu tiver um filho vou saber o que é ter preocupação. Tá bom, mãe, mas me deixa continuar vendo a chuva. Encharquei as mãos. Por quanto tempo? Ah, isso não importa. Vi a chuva sem pressa, no ritmo que a vontade ditou. Pego agora uma toalha macia, com cheiro de lavanda, seco bem os dedos e vou para o computador. Ele é quase igual ao que todo mundo usa, só tem alguns programas especiais e está conectado a uma impressora braille. O que vou escrever? Ainda não sei. Ontem conversei com as flores. No meu quarto há rosas, madressilvas, jasmins, peônias. Cada cheiro é uma linguagem que tem suas próprias palavras e me faz sentir o mundo de um jeito especial. As rosas me acalmam, especialmente as brancas. Os jasmins despertam minha curiosidade. Depois da conversa, escrevi um poema. Você é muito criativa, Cris. Mãe é mãe, mas sei que ela gosta do que escrevo. Pronto, liguei a máquina. Acho que vou escrever uma história. Começo: estou pegando um pouco de sol na varanda e ele chega. É o meu herói preferido, dois anos mais velho do que eu, o Super Dezessete. Logo me pergunta: – Bora sair, Cris? – Pra onde, tá ligado? – Tipo voar por aí. Concordo. Ele me toma nos braços tatuados e fortes. Levantamos voo. – Me empresta seus olhos? Pergunto quando ganhamos altura. – Já é – ele responde –, a voz bem firme, quente, gostosa. Voamos sobre a cidade. Não vejo ninguém dormindo nas ruas nem catando comida no lixo, na minha história a pobreza acabou. As praças estão cheias de gente que brinca, que baila, que ri. A tarde vai caindo de mansinho e o sol se deita no colo das águas, procurando a mais bela das ninfas, que tem cabelos de estrelas. Super Dezessete quer saber se vamos pousar em algum lugar. Não, tá

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ligado? Prefiro voar mais. Quero ir mais longe, até a Amazônia, podemos voar na velocidade da luz. Ele diz já é, e num piscar de olhos vejo matas exuberantes, sem qualquer vestígio de queimada. Vejo também índios cantando, onçaspintadas correndo, araras-azuis se acasalando. Na minha história a vida viceja, é a flor mais cheirosa do jardim que chamo de mundo. Retornamos a minha casa. Meu herói me tira dos braços e me põe de pé diante dele. Tô vazando, diz, mas lhe faço um sinal para que ainda não vá. Quero música, música alegre para dançar. Então dançamos e nossos corpos parecem um só. A dança bem que podia durar para sempre, mas logo vou tirar os sapatinhos de cristal e calçar as sandálias novas que minha mãe comprou. Hoje a gente vai jantar fora, é meu aniversário. Super Dezessete faz cara de espanto. Pensei que os super-heróis soubessem de tudo, só que disso ele não sabia. – E o meu presente? Não pergunto, quase suplico. Ele me beija, então perco o ar. Nisso, minha mãe me chama. Não quero ir, o gosto do beijo ainda não me saiu da boca. Digo que já vou e fico parada, a alma leve, tão leve que me sinto suspensa no ar. Super Dezessete vazou e de novo minha mãe me chama. Bom, tchau, computador, por ora deixo você descansar. Mas me aguarde. Quando a madrugada chegar e a casa estiver mergulhada no mais delicioso silêncio, eu volto. Assim vou vivendo como gosto de viver. Assim sou: singelamente, Cris.

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