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Sonia Re Rocha Rodrigues
Sonia Re Rocha Rodrigues Santos/SP
Cena de família
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Kátia passara a manhã arrumando os livros. Como acontecia sempre que resolvia mexer na estante, descobria poemas de amor escritos para Abraham,revelando um sentimento profundo e intenso. Desde a época de estudante fora apaixonada pelo professor, embora só começassem a namorar quando ela começou a residência médica, no mesmo hospital, em outra especialidade. A conquista havia sido difícil. Ele era um solteirão calado, quinze anos mais velho que ela. Kátia suspirou. O calendário marcava 29 de dezembro e ela não vira o namorado depois do Natal. — Como vai ser o Natal ? - havia perguntado a mãe, uma semana antes da festa. — Como sempre - respondera Kátia. — Antes não tínhamos o Abraham. Ele vai passar conosco? — Ele é judeu, não comemora o Natal. — Ele não vem jantar, por ser Natal? - a mãe levantou a voz, irritada com o tom da filha, e à noite, dirigira - se ao pretenso genro: — Escute, Abraham, esta segunda é véspera de Natal, tu sabes, nós todos os anos fazemos uma pequena ceia, só nós três, nosso familiares moram muito longe, mas nós comemoramos e neste dia ao invés de jantar, fazemos uma ceia bem mais tarde, lá pelas onze, com peru, castanhas, essas coisas da época, eu sei que tu não comemoras, mas querendo vir fazer companhia a nós, já sabes, nessa noite ceamos tarde. Vens?
Abraham compareceu. Kátia fizera seu pudim Getúlio Vargas de todos os natais e comprara a tradicional torta de nozes. À meia noite, Kátia havia arrastado o namorado para a árvore e lhe dera seu presente de Natal, discos de Brahms e Mozart. — Gostas ? - perguntou ansiosamente.
Abraham havia lhe dado um beijo e colocado os discos junto a sua carteira. Os pais de Kátia haviam permanecido discretamente afastados.
Um toque de campainha despertou Kátia de suas lembranças. — É o teu Abraham - anunciou Alzira secamente.
Kátia escondeu no bolso a poesia, a caminho da porta. — Oi, benzinho, que saudades! -e após o beijo costumeiro : Você perdeu meu endereço ? Não deu mais
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sinal de vida, não esteve doente, por acaso ? — Não - o outro sacudiu a cabeça. — Entra. — Não. Estou com pressa. Só vim avisar... — Entra, Abraham, boa tarde! - a mãe surgiu, excessivamente amável Como tens passado ? Bem ? Entre, fique à vontade - e sem esperar resposta dirigiu-se à filha - Kátia, estou arrumando teus vestidos, quer que eu desmanche a barra do rosa ? — Não, mãe, o rosa é para tirar os bolsos, o azul é que é para encurtar. — É isso mesmo, agora me lembro. com licença, Abraham.
O médico havia entrado e deixara se ficar parado no meio da sala, mãos às costas. Foi a moça quem rompeu o silêncio:: — Ouviu os discos que eu te dei? — Não tive tempo. — Você não está de férias? — Sim, mas estive estudando. — Ah ... - Kátia tentava convencer se de que não estava decepcionada. Sabe, a Solange nos convidou para passarmos o Réveillon no Guarujá. Vamos ? Eu nunca passei o Réveillon fora de casa, deve ser tão divertido !
Ele demorou a responder. — Vou viajar hoje à tarde. Só volto dia 3. — Viajar ? Para onde ? — Ubatuba. — Ah, vais passar os feriados com teus pais na praia?
— Meus pais não estarão lá. — Mas então... — Olhe, Kátia, tenho de pagar os impostos atrasados antes do fim do ano.
Kátia lembrou - se do que diziam a mãe e a avó: “um homem não gosta de ser pressionado”, “uma mulher não deve implorar”, “mantenha a classe”, “uma mulher não deve imiscuir - se na vida particular de um homem”, “seja meiga e submissa”. — Terei saudades - disse, simplesmente.
Abraham tentou sorrir e disse uma de suas raras piadas: — É só até o ano que vem. Até.
Alzira voltou ao ouvir a filha bater a porta, e encontrou a moça pálida, e com os olhos brilhantes. — Ele já se foi ? Brigaram ? — Não, mãe. - respondeu a filha, a olhar pela janela. — Bem, ele disse porque não apareceu todos esses dias ? — Não, mãe - a voz macia de Kátia, seu olhar perdido na paisagem. — O que ele achou dos discos ? — Ele nem os ouviu. — O que ? Não ouviu? Mas como ? Escute, Kátia, que poucocaso, tu não achas ? Se ele tivesse ao menos piedade de ti, teria mentido...
A moça retirava da estante outra pilha de livros e os espanava com excessivo zelo.
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— Preciso pensar, - continuou Alzira, que nunca desistia antes de arrancar toda a verdade da filha - no que farei para o teu “dileto amado” no Réveillon. Que achas, Kátia, de um pernil com abacaxi e ameixas ? E uma torta de ... — Podes fazer o xexelento cardápio de todos os anos. — Kátia, o Abraham não vem ? — Não. — Mas por que ? — Porque ele tem de ir a Ubatuba pagar uns impostos. - a moça sentia as faces queimarem, lutando para fingir um ar inocente e crédulo. Inútil. — Pagar impostos ? - e o timbre agudo da voz de Alzira tornou - se estridente e desagradável Francamente, Kátia! Como tu aceitas isto ? Tu finges - te de inocente! Tu não tens vergonha, permitir que um homem te trate com este descaso, com essa desconsideração ! O que ele te disse, Kátia, não foi uma simples mentira, foi um desacato! No Réveillon! Francamente! — Enfim, o que há ? - ouviu - se a voz do pai. — Oh, - Kátia tentou driblar a conversa - Abraham não vem jantar no Ano Novo e mamãe está fazendo drama. — Conta direito, menina! Sabes, marido, o “amado” veio dizer que vai para Ubatuba pagar não sei que impostos e só volta dia 3. Nem ouviu os discos dela. E nem explicou porque não apareceu nem telefonou depois do Natal. Aliás, nem ao menos quis sentar, ficou em pé, estava louco para ir embora. — Ele não veio porque estava estudando - Kátia ainda tentou defender o namorado.
A mãe, indignada, mal respirava. O pai, com um riso escarninho nos lábios, pôs -se a pensar em voz alta: — Daqui a Ubatuba são três horas de viagem, vai - se e volta - se no mesmo dia. Aquilo, os pais dele, que ele não quer que tu conheças... — Os pais dele não estarão lá... - tarde demais, ela deu - se conta de ter falado o que não devia. — Ah, sim, é claro.... - Rolando ria francamente _ Sabes que dia é hoje, minha filhinha? Sábado. Prefeitura nenhuma recebe impostos hoje, todos os balanços do ano foram fechados ontem. Mesmo que assim não fosse, o teu Abraham chegaria em Ubatuba somente à noite, e domingo e dia 31 e dia 1° todos os órgãos públicos estarão fechados. Sem contar que, se ele pagasse mesmo alguma dívida, nada o impediria de voltar amanhã. Se os pais dele não vão estar lá, com quem tu achas que ele … — Ele não precisaria mentir, se fosse passar o Réveillon com os pais, nós todos compreenderíamos - e a mãe acrescentou, sarcasticamente Porém, como ele se enjoou de lambiscar o sorvetinho, vai é saborear os manjares de alguma amante muito bem sortida!
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— Chega - disse Kátia. — Tu és uma boba! E concordas, e aceitas, aí toda cheia de nhe - nhe nhem... - continuou a mãe - Tu não tens vergonha! Eu não te criei para isso! — Chega - repetiu Kátia. — Tu não precisas passar por essa humilhação, minha filha. Este homem te desconsidera e tu desconversas, ora, não te faças de boba, pois ele mente e tu sabes que ele mente. A única explicação possível é que ele vai passar o Réveillon na companhia de outra mulher. — Cala a boca, pai. — Ele prefere passar o Ano Novo com outra e tu, idiota, te fazes de sonsa. Eu tenho pena de ti, minha filha, que te sujeitas, sem necessidade, a uma tal humilhação. — Pára. — Não, minha filha, eu não paro, tu és uma tola e o teu namorado é um grosso, um mentiroso e um mau mentiroso. O que ele quer é se aproveitar de nós, que vem encher o bucho em nossa mesa, comer e beber às nossas custas, mas que não tem a menor intenção de casar contigo, senão ele não faria esta injúria de passar o Réveillon com a amante. — Pare. — Entenda de uma vez: o teu Abraham tem uma amante!
Os estilhaços de compoteira, que Kátia agarrou e atirou no pai, dispersaram-se com estrépito em todas as direções. A mãe gritou, assustada, e o pai esquivou - se do golpe com presteza.
Kátia tremia, percebendo tardiamente a gravidade de seu ato, ela, filha sempre tão obediente. Olhou assustada para o pai, que riu triunfantemente antes de sair. Somente então a mãe recuperou a voz : — Tu quebrastes o meu cristal de quatro mil reais!
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