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Joedyr Goçalves Bellas
Joedyr Goçalves Bellas São Gonçalo/RJ
O rio do quintal da minha casa
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No quintal da nossa casa passava um rio e minha avó, Voinha, como a chamávamos carinhosamente, batizou esse rio como lembranças.
Enquanto existir esse rio dentro de vocês, mesmo que tudo tenha se acabado, virado pó, a casa demolida, o quintal cimentado, a água do rio evaporado para ir morar em uma nuvem, um dia, quando menos se esperar, irá chover dentro de vocês e suas almas serão inundadas por lembranças que nenhum cupim é capaz de devorar, que nenhum tempo ousará apagar.
Os livros estarão empoeirados em alguma estante.
E a gente se debruçava sobre o leito do rio, quando Voinha escapulia para a sua aldeia lá de trás de todos os mundos, por trás de montanhas e morros, para nos carregar pelas mãos já descarnadas, pelas pernas cansadas, mas víamos os meninos correndo como eu corria atrás de uma bola de borracha para fazer um gol insuperável, o gol dos gols, aquele que nunca alguém tivera sequer imaginado em fazer. E eu fizera. Era a magia do rio. Voinha via sua aldeia sendo dizimada pela praga dos gafanhotos ou pela praga da cobiça humana, de querer sempre mais um pouquinho, de não se contentar, mas Voinha não chorava, dizia que tudo era parte do rio e não tinha como apagar as patas dos cavalos pisoteando hortas, arrozais, as meninas em choro escondendo a vergonha e suas vergonhas, em vão, o poder do homem em destruir não tinha limite, mas Voinha conseguia enxergar uma figueira milenar, via a mãe dela lavando a roupa no rio esse mesmo rio que nós estamos debruçados e eu aproveitava e pedia à benção aos meus tataravós, as roupas no quaradouro, os cacos de telha, os pedaços de sabão, Diana correndo a lambuzar minha cara com
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sua língua de cachorra brincalhona e eu não sei mais onde estou, não sei qual é essa época, meu pai falava dos bondes e dos corsos dos carnavais inesquecíveis, minha mãe preparando o café da manhã e me chamando para mais um dia de aula, as aulas da Voinha era a vida lhe ensinando tudo que estava ao dispor da vida para lhe ensinar, só não tinha tempo para as letras, mas os velhos da aldeia falavam pelo cotovelo e tudo ia sendo ensinado como se os livros estivessem ali ao alcance da Voinha e Voinha sabedora dos livros e das leituras, quer uma manga madura? Eu aceitava porque no rio do quintal da minha casa havia várias mangueiras a escolher. Qual é a de hoje. Manga rosa? Espada? Carlota? Carlotinha? Coração de boi? E o coração da Voinha era imenso e ser menino era ser poeta. A fantasia das palavras ditas em metáforas, mas despidas de ser esnobe, eram apenas palavras, as mais simples, as mais bonitas, as melhores ditas pela boca de Ritinha quando ela me declarou o amor eterno, aquele amor que acaba no tédio do cotidiano, que acaba nos braços de outro, que acaba numa porta aberta, que acaba porque estava na hora de acabar, mas no rio não acaba nunca, não acaba, está lá para ser visto, revisto, recordado e abrir uma garrafa de vinho e brindar ao rio que não para de correr.
Como os meninos correm.
Como os meninos corriam.
Como o rio corre.
Desembesta por estradas tortuosas a murmurar que o nome dele é lembranças e eu vejo Voinha olhando por detrás da cortina, de um apartamento sem vida, quando Voinha já pensava no último suspiro e o último suspiro veio numa travessa de prata.
E o rio não para de correr.