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Angélica Alves Ruchkys

Angélica Alves Ruchkys

Belo Horizonte/MG

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Crônica de uma escrita acadêmica

Não sou novata, mas titubeio. Experimento a tensão da pré-escrita. E não é uma escrita qualquer, mas a escrita de ciência. Um certo volume de leituras anotadas se avolumou. Agora, elas vão se precipitar em escrita. Espero. Trabalhei um bocado. Estou cheia de discursos alheios, de palavras anônimas e de raciocínios meus. A tela em branco aguarda, não sem impaciência. Escrever um texto, qualquer texto, é um ato de estreia. O estranhamento com a escrita acadêmica dos primeiros anos de faculdade pode ter ido embora, mas o sentimento de estreia complica o jogo. Tenho um plano, claro! Um claro plano... Uma estrutura para sustentar a coreografia dos meus pensamentos dialogicamente entretecidos com aqueles que li. Acerquei-me das vozes que me acolheram, bem ou mal, com uma tese, algumas razões que a justificavam e perguntas. Sem pelo menos uma intenção de leitura, não haveria diálogo e, se houvesse, não seria frutífero, se se considerar que o fruto é uma escrita autoral. Gostaria de dizer isto para o maior número de colegas que estão começando. Não se vai aos teóricos da academia despido de perguntas próprias, de inquietudes, de incertezas claramente concebidas. A pergunta move a leitura. Sem ela, não há comoção. Da leitura tem que advir um abalo. Tem que entrar sua memória, sua história, porque o senso crítico te remete a você mesmo. E criticidade é essencial, eu diria também. Escrever tanto quanto ler não é jornada puramente racional; é emocional e emocionada. Ler para escrever dá trabalho. Destaquei trechos, registrei datas e páginas, organizei-os sob rubricas inventadas por mim: “Pontos em comum entre x e y. Argumento em favor de z. Definição de w”. Está tudo aí e não está nada ali na tela em branco, que, a essa altura já até suspira. O que há entre o texto e o

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não-texto? “Fases da escrita; a leitura, uma delas”, alguém diria. A leitura anotada, registrada, de fato, se impõe. Só o pesquisador desatento não escreve enquanto lê. A tela em branco é ilusão. Há muito material autoral escrito, às margens dos textos lidos ou fora delas. Mas um certo mistério ainda insiste por trás do juntar tudo. Juntar, não. Costurar. “Peças” precisam se encaixar; outras, se interpenetrar; outras ainda esquecer que um dia foram “autônomas”. Um desfile de palavras-texto preenche a tela. O texto já se escreve. A escrita descontinua. Detém-se. É sempre difícil se deparar com um certo dito do outro, muito preciso, aquele que você gostaria de ter dito. Você se apaixona por esse dito e como toda paixão, a princípio, não quer mudar nada. Mas a voz autoral te pede mais do que repetir. Não que eu não use as aspas. Às vezes, só as aspas resolvem. Mas em muitas outras, a realidade discursiva do “meu” texto demanda um gesto a mais, um passo à frente, uma apropriação inteligente que integre não as palavras, mas o pensar do outro ao meu. Isso só é possível quando há algo misteriosamente “meu”. Enquanto o eu se revela, o tu está sempre em mira. O tu, o leitorespecialista, o avaliador da revista onde busco publicar. O escritor, leitor de si mesmo, se dirige a um possível leitor outro. Projeta-o. Nessa alternância de posições, vou-me constituindo, vou-me incluindo no cenário acadêmico. Encontro meu lugar em meio ao controle dos dizeres. O texto a essa altura flui. Os ditos se organizam. As notas se transfundem e se transformam no texto já encorpado. É um pouco menos frágil meu estado de espírito na altura em que o texto ganhou musculatura. Muito da redação científica extrapola a normatização técnica. O que mais captura a voz e silencia é a dificuldade de dialogar. Por mais tímido que se sinta em relação às vozes dos outros, você tem que ser o primeiro a zelar pelo seu nãosilenciamento. Há uma identidade a convocar. Não é sobre concordar, discordar. É sobre posicionamento. Você tem razões, motivos, declarados ou não, para problematizar, ressignificar. Mesmo quando “concorda”, não é nunca um ajuste

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completo ao pensamento do outro. Há sempre algo que sobra. Sobra que vem do que te fica sussurrando enquanto você lê. Tela escrita, enfim. As páginas no word se sucedem de cima para baixo. O artigo está no quase. Releio meu texto recémpartejado. Fruto que me sorri. Reler um texto que se acabou de escrever é uma delícia e uma responsabilidade. Para além do êxtase, é hora de descentrar-se do que escreveu: encadeamentos, modos de se reportar ao discurso do outro, referências, adequação às normas técnicas, ajustes mínimos e máximos. Reescritas. Nelas, o abalo inicial da estreia já não está lá, aqui, mas não é menos laborioso o trabalho. Afinam-se as cordas do texto, sopesa-se a carreira semântica de certas expressões, calibram-se as afirmações mais contundentes, afinase o tom. É chegado o momento de o texto ganhar vida pública, colocar-se em circulação, cônscio de sua incompletude, de sua condição de elo da cadeia bakhtiniana infinita de outros ditos.

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