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Carlos Eugenio Vilarinho Fortes

Carlos Eugenio Vilarinho Fortes

Palmeira das Missões/RS

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Nicodemos

Anos 1980. No finalzinho. Não havia defensoria pública na Comarca. E em lugar nenhum. Aos réus pobres eram designados defensores dativos. A cada caso o Juiz nomeava um defensor. Normalmente. Atribuição dada aos advogados mais novos. Ganhava-se experiência, era o argumento. O que não deixava de ser verdade. Naqueles dias. Já se falava nos altos índices de criminalidade. Embora nem façam sombra aos de hoje. Os delitos mais comuns eram os contra a propriedade. Notadamente o furto de pequena monta. Havia uma legião de larápios na cidade. Conhecida da polícia e da justiça. Freguesia de caderninho. Entre estes, Nicodemos. O nome, singular. A figura, idem. Vinte anos. Se. Alto e magro. Ousado e imprudente. Figurinha carimbada. Mesmo jovem, talvez pela extroversão, tinha certa fama. Tinha histórias. Nada de grave. Pequenos furtos. Tráfico miúdo. Para prover o próprio pito. Algazarras. Brigas. Nada demais. E sempre uma peculiaridade. Sua marca. Porém, a par disso, um ingênuo. Inconsequente. Mais tarde, na vida, pela vida, por esta vida, bandido. Pois bem. Entre tantas que fez, certa ocasião Nicodemos caiu preso, em flagrante, acusado de furto. Furtara, desta vez, um banco de automóvel, que havia sido de um fusca, e que agora ornava a varanda do vizinho. Vizinho dele, Nicodemos. Depois, contou que cobiçou por meses o banco. O vizinho usava para acomodar as visitas. Foi pego. Antes de conseguir esconder a res furtiva. Chapado. Na madrugada. Ajeitara a ‘conquista’ no fundo do pátio. Da sua casa. Sob uma pitangueira. Acomodou-se, e dormiu. A polícia o prendeu assim. Ali. Antes de clarear o dia. Dormindo a lo largo. O réu não ficou preso. A prisão em flagrante foi relaxada e ele posto em liberdade. Consideras as condições.

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Mas o processo estava apenas no início. Nicodemos não tinha nenhuma condenação, ainda. Por aquele tempo assumiu na Comarca um novo Promotor de Justiça. Dr. Webber. Grande, vermelho e austero. Bonachão fora do processo, carne de pescoço, na lide. Alugou casa e trouxe a família. Poucos dias depois, na casa nova, gatunos lhe fizeram uma visita. Levaram o que estava no varal. Roupas e calçados. A polícia não conseguiu descobrir os autores e nem recuperar os objetos furtados. Foram atrás de alguns suspeitos, considerando as características do fato, mas deram com os burros n’agua. Logo a seguir. Alguns dias depois. Do furto na casa do promotor. Aconteceu a audiência de interrogatório –depoimento do réu – no processo do Nicodemos, o da poltrona do fusca do vizinho. Interrogatório era o primeiro ato do processo, depois de recebida a denúncia (a acusação). Depois isso mudou. O juiz, dr. Luiz. Ótima pessoa. Diligente e inteligente. Bem-humorado. O promotor, dr. Webber. Nicodemos estava todo enfeitado. Banho tomado, roupa nova, cabelo lambido. All star verde. Advogado e acusado conversaram. Estratégias da defesa. E foram para a sala de audiência. Antes do Juiz e do Promotor. Acomodaram-se na bancada da defesa. Atrás de uma mesa lateral. Logo entrou o dr. Luiz, pouco depois, o promotor. Na audiência. O Juiz, no seu pedestal. O Promotor ao lado, um apêndice. O defensor e o réu, lado a lado, abaixo. Atrás de uma mesa, na lateral da sala. Rebaixados, de lado. Este olhar enviesado. Injusto. À acusação e à defesa. Começa na imagem. Na sala. Definir o lugar é definir o papel. A importância. Iniciada a solenidade, de imediato, o Juiz pede que o acusado sente na cadeira disposta exatamente na frente do próprio Juiz, e do promotor – a cadeira do réu. Nicodemos, sempre sorridente e solerte, saiu de trás da mesa. Quando se aproximou da cadeira. O promotor saltou. Aos gritos. Saiu de onde estava. Em direção ao réu. Este boquiaberto. Agora. Estupefato. –Seu bastardo, este tênis é meu. Dizia o promotor. E apontava para os pés de Nicodemos. Uma mescla de humor e constrangimento. Incontidos.

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Tomou o ambiente. O promotor praticamente arrancou o tênis dos pés do réu. Que. Por sua vez. Numa reação/confissão. Instintiva. Sacou o pisante novo. Por uma pitada de raiva. E um dedo de escárnio. Certamente. Dr. Webber considerou pedir a prisão em flagrante de Nicodemos – em tese, no mínimo, crime de receptação. O Juiz, positivo, na letra da lei, adiantando-se, disse que não era o caso. Por toda a evidência. Réu primário, endereço certo e atividade lícita – de fachada, claro. Mas eram outros tempos. Situação inusitada. O Magistrado, então, com cancha, acalmou os ânimos. Acalmou o promotor. De igual sorte, legalista. Bons tempos. Não se ponderava. Nem importava o que era, mais ou menos, razoável. Naqueles dias. O caso, em tela, era para o anedotário. Não para paladinos justiceiros. No final das contas. Porém, nem tudo, às mil maravilhas. No então. Pilatos sempre lava às mãos. Nicodemos foi interrogado. Descalço. E foi embora descalço. Arrumou outro processo. Começava uma promissora carreira. O promotor saiu carregando o tênis. O troféu. Não sem antes tomar um chazinho calmante, que a moça da cozinha providenciou. Fora do fórum, o defensor: – que mancada foi esta? Nicodemos, vexado: – all star verde, doutor, como é que eu ia imaginar. All star, e verde. De fato, outros tempos. Como se diz. Quem viveu, viveu.

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