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Jacqueline Gonçalves
Jacqueline Gonçalves
Belo Horizonte/MG
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O ancestral
Logo quando empurrei o portão empenado da casa de vovó, fui recepcionada pelas patas pesadas de Amadeu em cima de mim. Quase caí para trás. Amadeu era o incorrigível cachorro viralata de vovó. Enquanto eu saltitava pelo quintal procurando por ela, ele me seguia fazendo festa, mostrando sua língua e agitando sem parar o seu rabo flamejante. Ao levantar as minhas vistas, me deparei com vovó sentada em um toco de árvore, que estava fincado sob a sombra do limoeiro. Ela estava em silêncio, absorta, parecia estar longe, em outro tempo e em outro lugar encolhida na concha dos seus pensamentos. Em suas mãos enrugadas, salpicadas por pintas escuras, segurava firme um pedaço de papel com visíveis picotes. Perguntei a vovó o que foi que Amadeu havia destruído daquela vez. Ela me estendeu um retrato com nódoas amarelas e me disse ser o único que tinha guardado do seu querido e finado pai. Meus olhos ficaram pétreos diante daquela imagem. Esquadrinhei cada detalhe daquela fotografia. Meu bisavô parecia ser um homem elegante. Não consegui deixar de observar seu tronco ereto, sentado em uma cadeira forrada por um tecido adamascado. Trajava um elegante terno à moda do início do século XX. Em uma das mãos trazia uma bonita bengala entalhada. Até cheguei a pensar que ele tinha algum problema de coluna, mas hoje sei que o objeto era apenas um adereço que fazia parte da indumentária masculina para representar status. Mas o que mais me impressionava naquele retrato, era a cabeça do meu bisavô, ou melhor explicando, a ausência dela. Sim! Cadê ela? Não estava ali. Por que Amadeu não comeu os pés ou até mesmo as pernas do meu Bisavô? Não que eu quisesse ver o meu ancestral cotoco. Claro que não! Mas eu preferia conhecer os contornos do seu rosto aos das pernas. Queria saber se olhos dele pareciam com os de vovó ou se o nariz, ou talvez os cabelos pareciam com os cabelos de papai. Além do mais, se eu tivesse visto as expressões da face do meu bisavô, poderia tentar adivinhar no que ele estaria pensando no momento do registro do fotógrafo.
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De repente, senti uma raiva de Amadeu por ter me tolhido daquele momento de conexão com um parente que acabara de conhecer. Ao mesmo tempo, surgiu dentro de mim, uma fagulha de ressentimento por vovó. Por que ela nunca compartilhou a figura completa do meu ascendente de sangue português? Eu já estava matutando meu discurso de neta birrenta, quando senti um leve perfume de alfazema no ar. Notei que aquele cheiro era proveniente do lenço bordado que vovó tirou do bolso e alçava aos seus olhinhos miúdos. Naquele momento, toda minha mágoa de menina mimada se desfez. Devolvi o retrato a ela e me aconcheguei naqueles braços que eram quase tão fininhos quanto os meus. Sorrateiramente, Amadeu se intrometeu no meio de nós com aquele focinho úmido e aquele olhar de esgueira. Vovó suspirou afundando uma de suas mãos naquele pelo felpudo. As últimas coisas que lembro daquele dia, foi ter visto vovó arrancando da árvore um punhado de limões-cravo que estavam pendurados em galhos rebaixados. Seu eu fechar os olhos, ainda posso sentir todos os pelos do meu corpo se eriçando ao reconstituir na boca, o gosto azedinho da melhor limonada que eu já bebi na vida.