LiteraLivre Vl. 5 - nº 29 – Set./Out. de 2021
Jacqueline Gonçalves Belo Horizonte/MG
O ancestral Logo quando empurrei o portão empenado da casa de vovó, fui recepcionada pelas patas pesadas de Amadeu em cima de mim. Quase caí para trás. Amadeu era o incorrigível cachorro viralata de vovó. Enquanto eu saltitava pelo quintal procurando por ela, ele me seguia fazendo festa, mostrando sua língua e agitando sem parar o seu rabo flamejante. Ao levantar as minhas vistas, me deparei com vovó sentada em um toco de árvore, que estava fincado sob a sombra do limoeiro. Ela estava em silêncio, absorta, parecia estar longe, em outro tempo e em outro lugar encolhida na concha dos seus pensamentos. Em suas mãos enrugadas, salpicadas por pintas escuras, segurava firme um pedaço de papel com visíveis picotes. Perguntei a vovó o que foi que Amadeu havia destruído daquela vez. Ela me estendeu um retrato com nódoas amarelas e me disse ser o único que tinha guardado do seu querido e finado pai. Meus olhos ficaram pétreos diante daquela imagem. Esquadrinhei cada detalhe daquela fotografia.
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Meu bisavô parecia ser um homem elegante. Não consegui deixar de observar seu tronco ereto, sentado em uma cadeira forrada por um tecido adamascado. Trajava um elegante terno à moda do início do século XX. Em uma das mãos trazia uma bonita bengala entalhada. Até cheguei a pensar que ele tinha algum problema de coluna, mas hoje sei que o objeto era apenas um adereço que fazia parte da indumentária masculina para representar status. Mas o que mais me impressionava naquele retrato, era a cabeça do meu bisavô, ou melhor explicando, a ausência dela. Sim! Cadê ela? Não estava ali. Por que Amadeu não comeu os pés ou até mesmo as pernas do meu Bisavô? Não que eu quisesse ver o meu ancestral cotoco. Claro que não! Mas eu preferia conhecer os contornos do seu rosto aos das pernas. Queria saber se olhos dele pareciam com os de vovó ou se o nariz, ou talvez os cabelos pareciam com os cabelos de papai. Além do mais, se eu tivesse visto as expressões da face do meu bisavô, poderia tentar adivinhar no que ele estaria pensando no momento do registro do fotógrafo.