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Maria Clara Lima
Maria Clara Lima
Recife/PE
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A linha forte
Num tempo não muito longínquo, uma menina costureira descobriu uma linha mágica. O carretel estava perdido no ateliê, no fundo de uma caixa de papelão abarrotada de lã e cashmere. Ela usou a linha para terminar o ponto cruzado no suéter de um freguês exigente. Quando tentou refazer a terceira volta, na intenção de que o remate saísse perfeito, não conseguiu afrouxar a costura. A linha tinha se agarrado na blusa com tanto ímpeto que a única maneira de arrancá-la dali era rasgando ao redor, cavando um buraco no tecido. Intrigada, a garota cortou outro bocado do fio e improvisou um alinhavo no primeiro pano que encontrou. De novo experimentou folgar a costura; de novo os pontos não desataram. O que a linha cerzia não tinha no mundo quem soltasse.
Ouvindo o grunhido que há uma semana lhe escapava do estômago, a menina decidiu costurar a saciedade. Levou a agulha até o umbigo e atravessou um ponto invisível de uma extremidade a outra do buraco. A fome sumiu no instante em que ela amarrou o nó. Ficou tão contente com o resultado que foi alardear a notícia para a tia, adormecida numa cadeira de balanço, no quarto vizinho. Mas a mulher cinquentenária gritou furiosa por ter sido incomodada no meio de um sonho e expulsou a criança: menina feia, menina mentirosa, chispa daqui, chispa. A garota retrocedeu, cuidando para fazer o mínimo barulho enquanto fechava a porta.
Como um pensamento revolucionário, veio a ideia de costurar o afeto: o devaneio despretensioso — e se ela não fosse tão sozinha? — logo virou uma obsessão incontornável. A menina beijou a boneca de pano, a única lembrança que a mãe tinha lhe deixado, e decidiu que, no peito esquerdo do brinquedo, pregaria o amor. Segurou a agulha com ternura
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e coseu em zigue-zague no coração da boneca.
A vida inteira, a garota nunca quis outra coisa além de ser amada. No entanto, quando finalmente costurou esse desejo, não soube reagir à atenção e aos mimos que recebeu. Começou a sentir saudade da época em que podia escutar a própria consciência, sem ninguém lhe paparicando a tiracolo. Tentou desmanchar o amor da boneca e é claro que a linha não cooperou. Puxou com as unhas, com a tesoura, com o alicate, com a faca — nada. Sem quê nem porquê, partiu para a agressão gratuita. Chutes na barriga, arranhões nos braços, murros na cara. No fim, largou o brinquedo no chão, desfigurado.
Então a garota encarou os olhos lacrimosos da boneca, de cima para baixo, como se avaliasse a extensão dos estragos, e chorou angustiada por não poder descosturar toda a vergonha que crescia dentro de si.
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