Revista LiteraLivre 33ª edição

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Volume 6, nº 33 – Mai/Jun. de 2022. ISSN 2595-363X SNIIC: AG-67335 Jacareí – SP - Brasil Expediente: Publicação: Bimestral Idioma: Português Distribuição: Gratuita online em pdf Conselho Editorial: Ana Rosenrot, Julio Cesar Martins e Alefy Santana Editora-chefe: Ana Rosenrot Diagramação: Ana Rosenrot – Alefy Santana Suporte Corporativo: Julio Cesar Martins – Alefy Santana

A Revista LiteraLivre foi criada para unir escritores de Língua Portuguesa, publicados ou não, de todos os lugares do mundo. Toda a participação na revista é gratuita, com publicação em PDF e distribuição on-line. Direitos Autorais: Os textos e imagens aqui publicados podem ser reproduzidos em quaisquer mídias, desde que sejam preservados os nomes de seus respectivos autores, que seja citada a fonte e que a utilização seja sem fins lucrativos. Seguindo também a doutrina de “fair use” da Lei de Copyright dos EUA (§107-112) A responsabilidade pelo conteúdo de cada texto ou imagem e dos textos das colunas assinadas é exclusiva de seus autores e tal conteúdo não reflete necessariamente a opinião da revista.

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Olá, amigos(as) autores(as) e leitores(as), recebam a 33ª edição da Revista LiteraLivre. Nesta edição, trazemos, como sempre, os melhores e mais ecléticos textos e fotos de todos os lugares do mundo. Trazemos também, os e-books: “Poesia Desmedida – Multiversos” do Jorge Gonçalves de Abrantes e a antologia “Da Favela para o Mundo 2” seleção da Valéria Barbosa; o lançamento da Revista Ikebana e a convocatória para o Projeto Literário "Trechos de Poesias". Agradeço aos autores(as) participantes e aos leitores(as) fiéis que estão sempre conosco!! Vamos mudar o mundo através das palavras!!


Artigo Tim Soares

Coletivo literário traz integração e democratização para a literatura Fundado em 2018 pelo advogado e escritor Adam Mattos, o Corvo Literário conta hoje com mais de trinta escritores e está buscando novos membros. A proposta é a publicação de um texto por dia no site corvoliterario.com dos mais variados gêneros. Aqui o que manda é a diversidade. Um texto erótico pode suceder um soneto de amor que pode suceder um conto de terror que pode suceder um poema de cunho político. Não há barreiras para nenhum gênero literário, o que torna o ambiente totalmente democrático possibilitando que cada autor mostre a sua melhor faceta literária. A diversidade está também geograficamente falando. O coletivo conta não só com escritores de todos os cantos do Brasil, mas também de Portugal e Moçambique. Tal democratização é uma bandeira levantada pelo fundador. Adam Mattos se considera um agitador cultural e militante em prol da propagação da literatura lusófona de forma livre no mundo. O coletivo já tem duas antologias publicadas, “Corvo Literário – Poesias, Contos, Crônicas e Cordel Brasileiro” que reúne textos dos mais diversos gêneros e “Corvo Literário Insanidade” que como o próprio nome diz, reúne textos ambientados na loucura, proporcionando textos viscerais, sendo este segundo título publicado em parceria com a editora Magnólia. Ambos os títulos podem ser adquiridos através do próprio site do coletivo. E não para por aí, uma nova antologia já está em desenvolvimento e deve ser publicada ainda esse ano. O coletivo também conta com o desafio semanal. Toda segunda-feira é proposto um tema ou um formato de texto para que os membros do coletivo


possam sair da sua zona de conforto e se arriscarem em outras vertentes da literatura. O desafio acontece desde 2021 e vale até certificado de Corvo Mestre dos Desafios para deixar as coisas mais interessantes e incentivar e fomentar a produção literária. O coletivo está com a porta aberta para novos membros. Qualquer um pode mandar textos. Mas não é para qualquer um. Os materiais são avaliados pelo próprio fundador e só os melhores escritores são inseridos no Corvo Literário. Essa iniciativa é justamente para manter o alto nível entre os escritores. Hoje o site conta, além de Adam Mattos, com mais dois editores para garantir que as atividades do coletivo sejam cada vez mais dinâmicas. Vale a pena conferir.

https://corvoliterario.com/


Convocatória Projeto Literário "Trechos de Poesias" O projeto literário "Trechos de Poesias" tem como intuito difundir e incentivar a arte literária através de trechos poéticos de artistas do Brasil sem nenhum ônus para os participantes. * O projeto se propõe a publicar Trechos de Poesias levando em consideração a sua relevância e beleza poética e que estejam de acordo com o tema do evento. * O tema é AMOR, porém caso haja ofensa à cor, raça, manifestações políticas e religiosas de foro preconceituoso, assim como apologia ao crime, drogas e afins, o autor será automaticamente desclassificado. * As análises serão feitas por escritores da Academia Capanemense de Letras e Artes (ACLA) que levarão em consideração o rigor ortográfico, a adequação ao tema e as regras contidas neste edital. Obs: a comissão julgadora não terá acesso aos nomes dos inscritos, receberá apenas os textos que serão numerados como forma de identificação. * As premiações: - 1° colocado: *Certificado impresso com a devida colocação; * A obra "Delicadezas" (Conceição Maciel); * A obra "O Laço e o Compasso" (Paulo Vasconcellos); * E-book contendo os poemas dos participantes do concurso. - 2° colocado: *Certificado impresso com a devida colocação; * Antologia da ACLA "Poematizando"; * E-book contendo os poemas dos participantes do concurso. - 3° colocado: *Certificado impresso com a devida colocação; * Antologia da ACLA "Poematizando"; * E-book contendo os poemas dos participantes do concurso. * Do 4° ao 20°classificados: Certificado Digital de Honra ao Mérito; * E-book contendo os poemas dos participantes do concurso. * Os demais participantes receberão Certificado Digital de Participação no evento. * E-book contendo os poemas dos participantes do concurso. * Para participar os interessados devem enviar um TRECHO de uma poesia


AUTORAL (de no MÁXIMO 10 LINHAS/VERSOS) em cujo trecho deve fazer alusão ao tema da convocatória que é o AMOR, não esquecer de colocar o seu nome, cidade e estado/país onde reside no CORPO do email: (daconceicaomaciel55@gmail.com) No campo ASSUNTO escrever: TRECHOS DE POESIAS Exemplo: "(...) De tudo ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento. (...)" Trecho da poesia "Soneto de fidelidade" Autor: Vinícius de Moraes Cidade: Rio de Janeiro-RJ * Início e término da convocatória: de 02/05/22 à 02/07/22 * Resultado final: assim que todos os textos forem analisados. * O resultado será divulgado no Blog do Paulo Vasconcellos e na página Trechos e em todos os meios que apoiam este certame. Os Certificados estarão disponíveis na página Trechos. https://www.facebook.com/trechosdepoesias/ * Apoio Academia Capanemense de Letras e Artes (ACLA); Página Trechos; Blog do PV; Jornal de Capanema; WG INFORMATIVO. Em tempo: O participante deve responder pela autoria e originalidade da obra inscrita e caso haja violação de direitos autorais, ele assume integralmente a responsabilidade perante os organizadores do projeto e terceiros. Caracteriza a aceitação dos termos deste edital, o envio e submissão do texto autorizando a sua publicação.

Att: Organizadores (Conceição Maciel e Paulo Vasconcellos)


E-book Poesia Mesmedida - Multiversos Leiam, gratuitamente, o trabalho poético do autor Jorge Gonçalves de Abrantes: Poesia Desmedida – Multiversos. Sinopse: A Poesia Desmedida é o pensar, o dizer e o escrever do poeta que não se limitam e nem são limitados pela métrica. A Poesia Desmedida não é o verso metrificado dos parnasianos, mas é o verso desmetrificado; desprovido de régua e mesura. A Poesia Desmedida não é uma canção de um cântico apenas, pois canta o vento e o amor; a morte e o tempo; a vida e o infinito; o verbo e o assombro; a fuga e o porvir; o Universo e o multiverso. A Poesia Desmedida não é uma lira de uma nota só, mas é uma lira de muitas notas, tocada por mãos diversas e cantada por vozes várias. A Poesia Desmedida também não é o verso ora livre ora branco dos modernistas, mas é o verso rimado e ritmado nas cordas da Musa desmesurada. Leitura e download:

https://drive.google.com/file/d/1klSvA07SBRI1noXDKJk2bI6c9H4rkJ_N/view


Neste Número: Fotos........................................................4

Eva Irene Corrêa Martins..................51

Fotos........................................................7

Francisco Cleiton Limeira de Sousa. .53

Wagner Dias Caldeira...................................4 Roberto Schima..............................................7

Fotos........................................................9 Jamison Paixão.........................................9 Adam Mattos..........................................11 Agnes Fernandes & Fernando Fernandes 12 Alan Rubens...........................................13 Alberto Arecchi.......................................14 Aline Bischoff.........................................18 Amélia Luz.............................................19 Ana Maria Fázio de Freitas......................21 Ariane de Medeiros Pereira.....................22 Ariel Von Ocker (Gabriel F. Montes Lima) 24 Benedita Azevedo...................................26 Benjamim Franco....................................27 Carlos Jorge Azevedo.............................29 Carmem Aparecida Gomes.....................30 Catarina Dinis Pinto................................31 Charles Luciano......................................32 Clarice de Assis Rosa..............................33 Sem retorno...........................................34 Cleidirene Rosa Machado........................35 Conceição Maciel....................................37 Daiane Barros.........................................38 Daniel Cardoso Alves..............................40 Daniela Genaro.......................................42 Dorilda Almeida......................................43 Edih Longo.............................................44 Edna das Dores de Oliveira Coimbra.......46 Elidiomar Ribeiro....................................47 Elza Melo................................................49 Eni Ilis....................................................50

Fernando Manuel Bunga...................52 Gabriel Oliveira Monteiro.................55 Gabriela Garcia de Carvalho Laguna. 56 Gardel Dias da Assunção..................57 Gedeane Costa.................................58 Gislene da Silva Oliveira...................59 Giulianno Liberalli............................61 Glória Aplugi....................................66 Guilherme Hernandez Filho..............67 Helena Schiavoni Sylvestre...............68 Hélio Guedes...................................71 Hernany Tafuri.................................72 Ícaro Marques Estevam....................73 Igui N’orante....................................74 Ilana Sodré.......................................76 Iracema de Alencar..........................79 Iraci Marin........................................81 Iram Leal..........................................83 Ivo Aparecido Franco.......................84 JAX...................................................85 Jeferson Ilha.....................................88 Joaquim Bispo..................................89 Joaquim Cesário de Mello.................91 Joedyr Bellas....................................92 Jorge Gonçalves de Abrantes............94 José D’Assunção Barros....................95 José M. da Silva................................97

José Manuel Neves.........................101 Josy Souza.....................................102 Junior Valderano............................103 Leandro Emanuel Pereira................104 Letícia Érica Ribeiro........................105


Lira Vargas...........................................107

Rosangela Maluf............................176

Luís Amorim.........................................109

Ruan Vieira....................................180

Marcel Luiz...........................................113

Samira Martins Marana...................184

Maria Carolina Fernandes Oliveira.........115

Schleiden Nunes Pimenta...............187

Maria Inácia..........................................117

Shanaia Ketlen Santana..................193

Maria Pia Monda...................................120

Sigridi Borges.................................195

Mauricio de Oliveira Silva......................123

Sonia Re Rocha Rodrigues..............197

Mayara Lopes da Costa.........................126

Tauã Lima Verdan Rangel...............203

Mônica Monnerat..................................131

Vadô Cabrera.................................207

Nercy Grabellos....................................134

Valeria Vanda Xavier Nunes............212

Nilza Amaral.........................................136

Victor Alves Ciscar.........................217

Patrícia Machado..................................138

Vitor Sergio de Almeida.................221

Paulo Luís Ferreira................................140

Willian Fontana..............................223

Poesia Maria.........................................149

Artista do Mês...............................229

Reinaldo Fernandes..............................152

Roberto Schima.................................230

Lizédar Baptista....................................108 Madô Martins.......................................111 Marcos Rocha.......................................114 Maria Eduarda dos Santos.....................116 Maria Luiza Vieira Silva.........................118 Mario Loff.............................................122 May Cass..............................................124 Mestre Tinga das Gerais.......................128 Nazareth Ferrari...................................133 Nilde Serejo..........................................135 Otávio Patuço.......................................137 Paulo Cezar Tórtora..............................139 Pedro R. R. Guimarães..........................146 Regina Alonso......................................150 Renato Bruno........................................154 Ricardo Garcia......................................157 Roberto Schima....................................161 Rogerio Luz..........................................169 Rommel Werneck..................................170 Roque Aloisio Weschenfelder................171 Rosa Maria Soares Bugarin....................173

Rosangela Mariano.........................178 Sabrina Siqueira.............................181 Sandra Lee Ribeiro.........................186 Sérgio Soares.................................189 Shirlei Pinheiro...............................194 Sinval Farias...................................196 Taís Curi........................................201 Teresa Azevedo.............................204 Vagner Santos Pereira....................208 Vanderlei Kroin..............................216 Vitor Geovane................................219 Wagner Azevedo Pereira.................222 Yuki Eiri.........................................227 Fantasia Visual...............................230 Caricaturas....................................231

Jamison Paixão..................................231


Lançamento da Revista Ikebana............234

LiteraAmigos.................................237

E-book “Da Favela para o Mundo 2”......236

publicação na revista.....................242

Revista SerEsta.....................................235

Modelo de envio de textos para


LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Fotos Wagner Dias Caldeira Parauapebas/PA Floresta Nacional de Carajás

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Parque Zoobotânico – Carajás

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Orla de Marabá

https://www.facebook.com/wagner.caldeira.7

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Fotos Roberto Schima Itanhaém/SP

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Fotos Jamison Paixão Las Palmas de Gran Canária/Espanha

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https://www.facebook.com/paixaodeoliveira https://www.facebook.com/jpartes.desenho.3

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Adam Mattos Curitiba/PR

Medo Estou com medo Não, melhor, estou apavorado Tudo pode acontecer muito cedo E me deixar descontrolado

Não é fácil conviver comigo Menos ainda sendo eu a conviver Não se engane, sou um bom amigo E até proporciono momentos de lazer

Mas por dentro sou um turbilhão Uma explosão atômica diária Mato por dia um leão Que tenta destruir minha batalha

Me mutilo, me abomino e me amaldiçoo Paciência e resiliência Por que minhas falhas não perdôo? E tento achar sentido na existência?

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Agnes Fernandes & Fernando Fernandes Manaus - Porto Velho/AM

Crônicas da pandemia Eu queria poder mentir, Dizer que está tudo bem, Mas a saudade me maltrata, Mesmo estando longe. Aqui, no além...

O sol se pôs e renasceu. Até perdi as contas... Apenas vivo, dia após dia... A dor de está longe, você sente? Não vejo sorrisos agora... Usamos máscaras lá fora, Desde a aurora...

Mas está difícil sorrir, porque somos reféns De um anoitecer sem fim... Sem você, apenas saudades. Sem ninguém...

Lá fora... Lugar nenhum, Lugar de ninguém... De pessoas que vem e vão.

Reféns de células destrutivas Que mudaram nossas vidas. Estamos em casa há dias. Nada mudou... A quem pediremos ajuda?

E em vão, Continuam sozinhos. Sem vintém... Sem ninguém...

Horas, dias, meses... Dois anos!

https://www.facebook.com/fernando.fernandes.33483903

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Alan Rubens São Luís/MA

Ser Feliz Sou Feliz: Pelo pai que tive Pela mãe que tive Pelos irmãos que tenho Pelos parentes e amigos que tenho

Sou feliz: Porque os mares são infinitos Em sua beleza Porque os rios saciam nossa sede Porque os pássaros cantam Porque as árvores nos dão frutos

Sou feliz: pela minha existência Por poder falar com as pessoas E por gostar de passar sempre Uma mensagem de paz e amor

Sou feliz: Porque os animais nos dão sua carne Como alimento… Mas não sou feliz: Quando vejo a fome, o ódio Quando vejo a destruição Quando vejo uma criança Chorar o seu infortúnio Quando uma pessoa reclama Pela falta de um lar Quando vejo O sofrimento com as guerras…

Sou feliz: Por poder enxergar, sorrir Por poder andar, gesticular Por sentir, amar e ser amado Por ficar triste, e angustiado Sinalizando que tenho sentimentos Sou feliz: Por essa natureza tão rica e bela Porque as flores nos agraciam Com seu perfume Porque o sol nos aquece com seus raios Porque a lua e as estrelas embelezam Nossas noites

Mas acima de tudo sou feliz: Porque tenho fé, Porque Deus existe dentro de mim E de cada um de nós Alimentando-nos de esperança…

https://alanrubens.wordpress.com

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Alberto Arecchi Pavia – Itália

Nas espiras do labirinto A Basílica de São Miguel, tinha a

que devia levantar-se e subir os

fachada toda decorada com esculturas:

degraus,

sereias, dragões e guerreiros estavam

presbitério,

interligados em uma dança silenciosa

grande

com cenas bíblicas edificantes, com os

mosaico a seus pés. Lembrou-se da

trabalhos dos homens durante os meses

Virgem na vara, pivô do labirinto

do ano, com os signos do zodíaco.

universal. Nesse momento, foi como

Muitos desses relevos mantinham cores

se seus músculos respondessem aos

vivas. A partir do canto de um edifício

estímulos de outra vontade. Paulo foi

conventual, a cabeça de um bode estava

arrastado por seus próprios pés sobre

a observá-lo com expressão obscena,

o caminho do labirinto circular. Com

esculpida em uma gárgula grotesca,

uma lentidão exasperante, seu corpo

como para exorcizar o diabo e mantê-lo

movia-se

fora do edifício.

longo

Paulo entrou na Basílica de grandes abóbadas,

em

forma

de

cúpulas.

até

o

altar

viu

e

No

de

si

um

representado

no

diante

labirinto,

para

maior.

seguir

estreito,

32

o

percurso

cursos

para

frente e 31 vezes para trás. Todos os pontos

cardeais

viram,

um

após

Mergulhou na meditação, como uma

outro, seu rosto girando lentamente e

sombra envolta em um manto, no centro

depois

da grande nave. Seus pensamentos iam

dragão alado, um lobo que montava

às

O

uma cabra, um homem montado em

significado de tudo isso lhe escapava.

um pássaro branco e um cavalo alado

Ele

uma

eram as imagens que cingiam o lugar

orgulhosamente

de seu ritual. Para o leste, ele via o

profecias implorava

iluminação, estava

por

e

às

aparições.

insistentemente que

convencido

de

que

era-lhe

virando

de

repente.

Um

desfile dos meses, dominado pela

devida. Uma voz interior sugeriu-lhe o

imagem

do

verso: “Tudo o que pertence ao corpo do

observar

o

diabo não está no centro de Jerusalém,

viagem simbólica à busca da verdade.

a cidade santa, mas nas espirais do

Paulo ficou assim capturado nas

labirinto”. Como fosse mandado por uma

espiras inextricáveis do labirinto. Seu

força externa e superior, Paulo sentiu

andar

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Ano-Rei homem

seguia

as

que

parecia

pequeno,

pedras

na

negras


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embutidas no chão, como bobinas de

investigar) abriu as mandíbulas e

uma cobra. Um movimento que fazia

Paulo sentiu-se perdido. Desmaiou.

com que ele perdesse a orientação e

Quando recuperou os sentidos,

afundasse em uma estranha alegria. As

estava

circunvoluções

escuridão

causavam-lhe

uma

de

bruços

preenchia

no a

chão.

A

Basílica.

O

sensação de perda e sentia obscurecer a

labirinto desaparecera. Seus olhos já

visão. Afinal, no centro do labirinto,

não viam mais nada. Tateando como

encontrou

A

um cego, pareceu-lhe encontrar com

tinha

as mãos o tronco de uma árvore.

características humanas, era parecido

Uma voz interior exortava-o a subir.

com um homem mouro, armado com

Ele se sentia totalmente fora da

cimitarra em forma de crescente, a

realidade. Pensou por um momento

cabeça enfaixada em um turbante preto

no espetáculo grotesco de si mesmo

que também cobria-lhe a boca. O centro

subindo o tronco de uma árvore, que

do labirinto não permitia fuga nenhuma:

não existia nem deveria estar lá,

era preciso lutar, e o jovem só podia

perto do altar de uma igreja escura. A

confiar em sua habilidade e na força de

voz mandava, imperiosa. As mãos e

suas

os

parte

um

Minotauro

superior

mãos.

do

Conseguiu

horrível.

corpo

esquivar

os

pés

encontraram no

tronco

uma

boa

áspero.

Ele

primeiros dois golpes e abater o inimigo,

aderência

com uma prontidão e uma força que não

subiu, sem nenhuma sensação de

conhecia. Até lá, a janela na forma de

fadiga. Mão após mão, apertando os

cruz, esculpida na fachada, recolhia os

joelhos ao tronco, procurando pontos

últimos raios do sol. No feixe de luz lhe

de apoio, subia continuando a refletir.

pareceu ver, como um fantasma, o rosto

Suas roupas eram desconfortáveis,

de uma mulher que tinha uma tiara com

especialmente

um brilhante, na testa. Aos poucos, a

pesado que enredavam-se com o

pedra adquiria mais brilho. Os raios do

tronco. Suas mãos estavam suando.

sol davam-lhe vida.

Ele tirou do cinto um lenço, para

as

calças

de

pano

O jovem sentiu-se forçado a fechar

secá-las. O pano caiu, voando para

os olhos. Um instante. Quando os abriu,

longe. Sua mente agora percebia com

o diamante estava cravado na frente da

clareza

Besta e a luz que emanava piscando,

sensação de uma grande paz, de uma

agora, era cor de sangue. O monstro

luz que entrava e penetrava-lo. Subiu

horrível (Minotauro, Leão, Tarasca ou o

durante uma longa eternidade, no

que mais fosse, nem teve o tempo para

nevoeiro escuro da noite, além do

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a

verdade,

ele

tinha

a


LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

teto da Basílica, para um céu que não

Paulo finalmente identificou-se com a

podia ver. A solução que ele pesquisava

brilhante.

tinha de estar no topo, agora a coisa

“E vi um anjo que estava no sol,

parecia tão simples, era estranho não

e clamou com grande voz, dizendo a

ter

tinha

todas as aves que voavam pelo meio

procurado a soluçao da sua vida a oeste,

do céu: Vinde, e ajuntai-vos à ceia do

leste,

grande Deus.

pensado sul

e

nisso norte,

antes. mas

Ele ainda

não

procurara no centro, acima dele. Era esta,

então,

a

porta

para

a

Para que comais a carne dos reis,

nova

e a carne dos tribunos, e a carne dos

dimensão que tão tinha aguardado e

fortes, e a carne dos cavalos e dos

procurado?

que sobre eles se assentam; e a

Via na névoa em torno dele, com

carne de todos os homens, livres e

uma luminescência estranha, os rostos

servos, pequenos e grandes. E vi a

das pessoas que o acompanharam em

besta, e os reis da terra, e os seus

sua pesquisa, percebendo as vozes deles

exércitos

como sussurros no interior da cabeça.

guerra àquele que estava assentado

Eles eram como bolhas de ar sob a

sobre o cavalo, e ao seu exército. E a

água,

besta foi presa, e com ela o falso

tendendo

tentando

para

emergir.

a

superfície,

Pareciam-se

reunidos,

para

fazerem

com

profeta... E ainda vivos, foram ambos

seres sem corpos, só consciências. Ele

lançados em um fogo de brasa e

sabia apenas que estavam todos indo

enxofre...

para cima. O que tornou-o eufórico, ele

E vi descer do céu um anjo, que

não iria nunca parar. Era como se desde

tinha a chave do abismo, e uma

uma vida inteira estivesse esperando

grande

por isso, para subir essa árvore. Mas

prendeu o dragão, a serpente antiga,

não, agora já não havia mais nenhuma

que é o Diabo e Satanás, e amarrou-

árvore,

e

sua

mão.

Ele

subir,

o por mil anos. E lançou-o no abismo,

em

uma

e ali o encerrou, e pôs selo sobre ele,

substância etérea e luminosa. Entendia

para que não mais engane as nações,

que esta era uma pedra preciosa: estava

até que os mil anos se acabem. E

movendo-se

depois importa que seja solto por um

com

Continuava

na

a

flutuando

ele?

cadeia

segurança

mesmo

no

interior

da

brilhante, não havia nenhuma fonte de

pouco de tempo...

luz, mas a luz estava em toda parte,

E vi um novo céu, e uma nova

emanava de tudo. Ele viu, entendeu:

terra. Porque já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

não existe... E veio a mim um dos sete

circulando

anjos que tinham as sete taças cheias

em todas as correntes de ar e não

das últimas sete pragas, e falou comigo,

decide chegar ao chão. De repente,

dizendo: Vem, mostrar-te-ei a esposa, a

um

mulher do Cordeiro... E ele me mostrou

desenhando

a cidade de Jerusalém, que descia do

pano plana, como uma pipa, e vai

céu... Sua luz era semelhante com pedra

ficar pego em um ferro saliente de

preciosíssima, como o jaspe cristalino...

um dos grandes pilares de arenito.

Nela

não

raio

de

luz um

chega brilho

pendurado

Oscila

do

nada,

branco.

lá,

até

O

entrará

coisa

alguma

Vai

nem

quem

pratica

alguém, algum dia, terá a coragem

abominação ou diz mentiras, mas só os

de subir para ir despegá-lo. Ninguém

que estão inscritos no livro da vida do

poderia imaginar que aquele pano é

Cordeiro”.

um tecido velho de séculos, o único

contaminada,

ficar

preguiçosamente.

que

No mesmo ponto no espaço, séculos

rasto concreto da passagem de um

mais tarde, um pano empoeirado, sujo

homem que conhecia, como poucos

de grama e suor, aparece no alto da

ou talvez como ninguém, os lugares e

cúpula da igreja de São Miguel e cai,

as épocas da vida da cidade.

https://www.liutprand.it

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Aline Bischoff Osasco/SP

Soneto à Rubra Rosa Em memória das mulheres vítimas de feminicídio Tu foste, a cólera do vento a desfolhar-me sem

Ingrata vida que não poupou nem mesmo a

fim,

rosa.

Arrancando-me deste solo, em desvarios de

Acaso sangraram-te meus inofensivos

furacão.

espinhos?

Eu, rubra rosa irremovível do teu maltratado

Essa minha inútil forma de proteção

jardim,

amorosa?

Sucumbi aos inúmeros redemoinhos do seu

Perdi-os todos em seus desvairados

coração.

torvelinhos.

Arremessada com violência pelos ares,

Passado o vendaval, algum estranho indagará:

Jazo descolorida, murcha e desprezada.

— Rosa! Qual foi o teu crime que não o vi?

De quem passa, só atraio tristes olhares.

A qual em derradeiras palavras, responderá:

Por invisíveis pés, ainda sou pisoteada.

— Nenhum! Dessa feita, tão somente existi!

https://www.facebook.com/AlineBischoffArtes

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Amélia Luz Santo Antônio de Pádua/RJ

As Veias da Paulicéia Alma paulista explodindo alegria Em quatrocentos e cinquenta anos de vida! Pelas ruas de São Paulo passo silenciosa Questionando o tempo, inflamada de um orgulho diferente. Imagens que vejo emocionada contando o tudo do nada. O planalto, os jesuítas, a fundação, o povo juntando, formando a nação... Que belo rosto tens, oh! São Paulo, com traços de tantas raças Unidas num belo retrato, preso à parede da tua sala de visitas... Das pegadas firmes dos bandeirantes de outrora, A expansão, o desbravamento, a colonização. O formigueiro imigrante, o nordestino retirante, Buscando sobrevivência nos teus seios fartos... Tens a imagem do Brasil, multifacetada em detalhes: O café, os Barões, as ferrovias, a política café com leite O centralismo de Vargas, a Revolução, As batalhas armadas e a dura derrota sem perder a razão. A máquina, o aço, o vigor industrial a imigração. O ABECÊ, o trabalhismo, as lutas de classe! Exploro São Paulo com o meu olhar cívico. Comemoro a “Desvairada” ao lado de Macunaíma, Conjugando o verbo “intransitivo amar”. 1922 – Sobre a cômoda, um convite despertando um gigante Para sua verdadeira identidade cultural: Semana da Arte Moderna – Teatro Municipal. São Paulo, sim, é São Paulo, do país, o farol cultural! Pela Avenida Paulista passaram abraçados com Menotti, Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade. Cecília Meireles segue após cochichando com Drummond E Graciliano Ramos com Clarice Lispector em prosa, em conflitos,

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Percebem que é nas situações banais que se vê com firmeza A importância da aventura de um passaporte para Pasárgada Antes apresentado pela vida amarga do Bandeira. Assim ao fazer arte começa-se uma nova viagem Por um caminho repleto de emoções e controvérsias. Abrir a alma para esta ousadia é um imperativo do tempo, Que a sensibilidade esteja sempre presente na tripulação Em retalhos de poesias “Estou farto de lirismo comedido.” “Parques do Anhangabaú nos fogaréus da aurora... Oh largueza dos meus itinerários” ... “Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, o burguês-burguês! A digestão bem feita de São Paulo!” Concluo: “Não serei um poeta de um mundo caduco.” “Em Pasárgada tem tudo, é outra civilização.”

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Ana Maria Fázio de Freitas Assis/SP

Beija-for Meu pequeno beija-flor encantado com o jardim espalhas a todas o teu calor, só não te lembras de mim. Sugas da Melissa a alegria e da Margarida o frescor. Roubas da Açucena a magia e da Magnólia o esplendor. Enfeitiças a Camélia mimosa e deixas a Hortência apaixonada, mas rejeitas a pobre Rosa que por ti quer ser beijada. Meu pequeno beija-flor és belo, és vaidoso, és cruel, retiras das flores todo o néctar e a mim ofereces teu fel. Pequenino passarinho que voa de flor em flor, vem ligeiro passarinho, vem me dar o teu amor

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Ariane de Medeiros Pereira Caicó/RN

O horizonte a nascer A varanda em vida

Fonte: Acervo pessoal da autora O encanto não vinha do final do dia O entardecer era o momento paradisíaco Já não a transmutava a outras passagens Os sentimentos estavam quietos e adormecidos Faltava um novo encanto em sua vida O vazio fazia morada naquele coração Que desejava o fogo ardente e estremecente Os dias transcorria sem grande alteração E a bonita florzinha não se contentava Com sua sorte em melancolia Clamava, mexia, brandava, Mas, ninguém a ouvia

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Foi preciso ela se resguardar em seu interior Passou a escutar as vozes mais baixa que existia Percebeu que o que a fazia vibrar Era o vente gelado, porém aconchegante Do amanhecer que a despertava Passou a admirar o belo amanhecer Que a encanta em vida e possibilidades O céu anunciava, um novo momento Talvez, aquele que ela mais desejava!

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Ariel Von Ocker (Gabriel F. Montes Lima)

A Imitação da Mulher e a Rosa de Clarice LISPECTOR, Clarice. A Imitação da Rosa. In: Blog Clarice Lispector. Disponível em:

https://claricelispector.blogspot.com/2008/07/imitao-da-rosa.html?m=1.

2008. Acesso em 04 de Jan de 2022.

Nascida Chaya Pinkhasivna Lispector em 10 de dezembro de 1920 e naturalizada brasileira, a insigne escritora Clarice Lispector (1920-1977) é dona de um amplo repertório literário. Sua escrita é marcada por uma narrativa fluida, que busca predominantemente apreender o sentimento provocado pelo objeto do que o objeto que o provocou. Sua literatura trouxe à tona, como dizia Antônio Cândido, o conceito de epifania à produção poética brasileira, bem como a possibilidade de se construir uma narrativa que quase não contemple os fatos, mas somente a impressão do fato. Em A Imitação da Rosa, conto agrupado originalmente no livro Laços de Família, o modo de criação clariceano se revela de maneira criativa e profunda. O enredo aparentemente simples sonda a vivência de uma feminilidade tímida e ousada, cuja ânsia por florescer (como uma rosa) deságua em um senso de desesperança e enlevo perante a vida. A trama se desenvolve quase em um monólogo interno feito pela

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protagonista Laura. É depreendido que ela estivera internada em um sanatório recentemente. Isso a move em um sentimento contínuo de reflexão. Tal sentimento é alimentado pela normalidade contínua e repetitiva de sua vida cotidiana ao lado do marido Armando. O conflito principia com Laura observando um ramalhete de rosas. A mulher deseja, então, leva-las para presentear Carlota, sua amiga e esposa de João. Aqui, se deve observar que tais personagens são apresentados no conto pela ótica da protagonista e algo em seus prenomes lhes confere um aspecto de absoluta igualdade, como se ali pudessem haver inúmeras Carlota e inúmeros João. Entrementes, Laura entra em conflito com o desejo pelas rosas e o compromisso que firmara de dá-las de presente. Há, por um lado, uma ânsia, um frêmito inominado de ter para si algo belo somente para tê-lo. Isso é um conflito psicanalítico, me


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parece, onde se opõem o princípio do prazer e os arbítrios da moralidade. Afinal, a vontade de ter para si algo belo é também, por si mesma, um conflito, na medida em que percebe-se a inutilidade da beleza. Contudo, a inutilidade não mitiga o desejo e justamente isso desperta no sujeito um outro sentimento: a atonicidade perante a (des)razão de ser humana e não ter sentido para desejar o que deseja. Na história, Clarice mostra que, na mesma noite do ocorrido, Laura e Armando iriam jantar com o casal Carlota e João (entendido assim como um todo conectado de sujeitos). Porém, Laura se olvida de arrumar-se e perde a hora para o jantar. Ao fim do sem que a pensamentos notamos um ações.

conto, Armando chega e, narradora sonde seus como faz com Laura, curioso alívio em suas

Esse conto é misterioso e ímpar. Seu título é, evidentemente, uma alusão à obra de Tomás de Kempis A Imitação de Cristo. Não foi a primeira vez que Clarice Lispector se valeu desse recurso em suas produções. Igual estratégia se pode observar em A Paixão Segundo G.

H., que faz uma referência ao texto evangélico A Paixão de Cristo e, quiçá, às cantatas de Johan S. Bach Mathäus Passion e Johan Passion. A estética de Lispector aqui, como em outros trabalhos, não está propriamente na linguagem, que exprime o pensar e a história. Pelo contrário, é no que não é palavra, no que não é enunciável linguisticamente falando que reside o cerne da narrativa. Assim sendo, podemos retirar de A Imitação da Rosa uma alusão que tomo emprestada da filosofia: o texto de Lispector é como uma vela acesa em um campo de trigo. Não ilumina quase nada. Porém, nos permite ver a imensa escuridão que há ao redor. A escritora, pois, não busca, como a própria esclareceu em sua última entrevista, o adorno da linguagem. Seu texto, antes, é simples em termos vocabulares. Contudo, engana-se o leitor que, confundido pela simplicidade da prosa, ignore a complexidade dos sentidos expressos através da sua literatura.

@ariel_von_ocker

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Benedita Azevedo

Canteiros ao luar

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Benjamim Franco Taubaté/SP

Código de Coação Dormia quando chegaram. Não se deram ao trabalho do silêncio: pelo que

nem imaginava que horas eram. Só que sentiria saudades do sol.

pude perceber, e isso só depois, o

O oficial arrastou a cadeira de

esquadrão arrombou a porta da frente

minha escrivaninha. — Mande uma

da pensão, e marchou até meu quarto.

mensagem para seu quartel-general

A dona não ousou reclamar; mas foi

— Sentei, e o outro guarda, ainda

jogada ao chão, quebrando a bacia

mais claro, com o rosto cheio de

mesmo assim.

cicatrizes de acne, retirou a capa de

Acordei num susto só, procurando o

máquina de costura que escondia, de

revólver por puro treino: não daria nem

forma inadequada, devo admitir, um

pra atirar na minha própria cabeça. Já

aparelho radiotransmissor.

estavam no quarto. O chefe, um oficial

— Lilás, aqui é Mangue. Câmbio.

cheinho, de olhos apertados, repousava

A transmissão nunca fora tão

a mão em sua pistola, ainda no coldre. — Mostre-nos o rádio — ele disse, num

inglês

castiço,

sem

sinal

algum

de

sotaque. Ergui

— Lilás na escuta. Câmbio.

Todo o meu treinamento veio à mente. Tudo que eu teria que fazer se

as

mãos,

e

um

de

seus

capangas, um loirão com cara de bobo, que não devia ter idade pra beber, me puxou até o chão, e depois me pôs de pé. Caminhei até o rádio, pensando em nossa

clara. Mau sinal.

causa,

lembrando

de

meu

treinamento. Olhei pra janela fechada:

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fosse capturado. Além de aguentar o máximo

de

tempo

possível,

de

estratégias para fechar o corpo e preservar a mente, haviam também palavras,

de

pouco

ou

nenhum

sentido, mas de utilidade prática: uma delas era – tinha que ser! – o


LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

código

de

coação.

Tal

palavrinha,

— Mangue, positivo. Só preciso

supostamente inconspícua, seria o sinal

que

você

faça

pra

de que eu fora capturado, e tudo foi

gentileza

para o beleléu.

exigências da administração central.

apenas.

gente

Por

uma

conta

de

Esvaziei a mente, esqueci o medo, e

A palavra ‘café’ é o código de coação,

confiei no meu treinamento: daria meu

tá bem? Então é pra usar só se for

melhor chute.

uma emergência mesmo. Do mais,

— Lilás. Poderia passar aí mais tarde

para, ahn, tomar um café? Adoraria

venha sim. Câmbio! O

oficial

rádio,

café. Câmbio — O som do código de

segurou o riso. E tem horas que eu

coação me acalmou, ainda que por um

desejo não ter sobrevivido pra contar

segundo. Os instantes que antecederam

essa história.

vezes.

twitter.com/benjamimfranco

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mas

e

segurou

para ver o filme da minha vida três

barriga,

o

passar aí depois e tomar um, ahem,

a resposta foram tempo o suficiente

sua

desligou

não


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Carlos Jorge Azevedo Santa Marinha do Zêzere-Baião, Portugal

Guerra Confrange ver o planeta em guerra Semeando total destruição, Faça-se luz na alma de quem erra E que reformule sua vil ação. Cintilam no céu estrelas com sangue De seres incrédulos, inocentes Que ostentam pavor no rosto exangue, Quanto horror que vivem tantas gentes! Há desilusão por toda a parte, Urge formar exército de paz Que enfrente com labor tal tormento, Jorrem soluções, com engenho e arte, Que a mente do homem é capaz De ultrapassar tão cruel momento!

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Carmem Aparecida Gomes Ipameri/GO

Dentro da Mala O meu coração está difícil de agradar... Ele insiste em lembrar o que ficou no passado naquela mala. Não ficou guardado, ficou enterrado no passado. E por isso hoje eu sou um ser solitário, tristonho e calado. Juntei tudo de nós dois guardei e tranquei na mala para jamais ser lembrado e eu a enterrei bem fundo na beira daquele lago. E achei que seria suficiente dizer adeus. Como pode o nosso amor retornar do passado... Eu enterrei a mala no passado com os nossos beijos, nossos abraços, nossos juramentos eternos... Beijei e enterrei a sua foto, o seu sorriso e o seu ‘eu te amo’. Malditas lembranças! Maldito coração! Tudo de nós dois ficou dentro da mala... Infelizmente, a mala não ficou esquecida no passado.

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Catarina Dinis Pinto Amarante, Portugal

Cheguei a tua vida Cheguei a tua vida Na hora errada, no instante que não nos pertencia Roubei-te ao tempo e tu a mim o coração Poderás estar aí na distância Deitado sobre a tua cama E pensarás na minha ausência No amor do passado. No amor que e te arrancou da ilusão Que te deu cor a vida Pelo qual juraste tantas palavras Tentaste é verdade Mas não conseguiste seguir nenhum dos caminhos Atrás de ti apenas dor Depois de ti o vazio. 4-06-2012

https://www.facebook.com/Autoracatarinadpinto-254206278801280/ https://www.facebook.com/catarina.dinisramos

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Charles Luciano Catende/PE

Terra, solo, piso e chão Homem, ser telúrico, Adão, retirado da terra por Deus. Terras distantes, nossa terra, terra firme, terras multicores. Terra do paraíso, terra de cemitério, do início ao fim, respectivamente. Solo dos planetas, solo lunar, solo regado pelo suor e pela chuva, solo arado por homens e animais, solo dos mares e dos rios, solo onde o paciente põe sementes. No piso eu simplesmente piso, cerâmico, de madeira ou vidro. Piso sujo, piso varrido, piso que no comércio é vendido, piso de uma só cor, piso personalizado. Chão, lixo em teu seio é jogado, cuspe em ti é lançado, significando rejeição ou grave doença. Chão asfaltado, chão totalmente alagado, chão para erguer casa, prédio, empresa, chão enormemente castigado, por terremotos vindos de baixo.

https://clubedeautores.com.br/books/search?where=books&what=charles+luciano

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Clarice de Assis Rosa Ituiutaba/MG

Dualidade Amo-te, de forma branda e voraz, não conheço outra forma de amar. Amo-te, nas minhas incertezas e nos meus momentos de júbilo. Amo-te, às vezes de forma suave, outras vezes, arrebatadora. Amo-te, às vezes compreendendo sua indiferença, outras vezes, angustiada por não conseguir lhe despertar sentimento. Amo-te, quando, de esgueira, observo seu sorriso e me lembro que ele foi a porta da minha perdição. Amo-te, ora carinhosamente, ora desajeitadamente. Amo-te e, às vezes, dói-me o seu desprezo, então me lembro de que amar é doar-se, sem esperar reciprocidade. Amo-te, em meus devaneios e oscilações. Amo-te, mesmo quando, confusa, sem enxergar um caminho a seguir, afasto-me, acreditando que a saudade incomoda menos que o seu descaso. Movimento-me, irracionalmente, num pulsar de avanço e recuo, tentando encaixar-me em uma emoção que possa doer menos. Amo-te, nos meus delírios e inconstâncias, até mesmo quando tento provar a mim mesma o contrário, revolvendo-me entre certezas e dúvidas. E por te amar, às vezes, fere-me a sua indiferença – recuo, outras vezes, arrebata-me a intensidade do que sinto – avanço. Amo-te, mesmo incompreendida, dominada por emoções que o fazem questionar o que sinto ou a minha personalidade. Amo-te e, levada por esse amor sobejo – avanço; deparo-me com a sua algidez- recuo. Tomada por sensações desconhecidas, movimento-me, buscando a razão. Não a encontro; perco-me. Desarmo-me fácil, quando menos se espera, com um mínimo de atenção. Rapidamente, já estou a te amar, e a sorrir, unicamente por amor. Amor que segue inexplicável, sem peso, nem espera, apenas amor, ainda que mergulhado em oscilações, diante da sua inflexibilidade. Em minha inquietação, na tentativa de entender as emoções que me assolam, desisto de entender e de lutar, apenas me permito sentir. Amor, às vezes, a minha perdição – recuo, às vezes, a minha salvação- avanço.

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Sem retorno Feira de Santana/BA

Cláudia Gomes

O dia amanheceu como todos os outros dias. Ora sol ora chuva. Pessoas saindo para o trabalho. Pássaros cantando, engaiolados. Na janela do sétimo andar do prédio mais antigo da Avenida Brasil, a moça observava a rotina lá embaixo. Chegada e partida de transeuntes. Mas a moça, na janela, ainda observava a mudança das horas nos movimentos que seus olhos viam. No entardecer, a moça que ainda continuava na janela, guardou a esperança do retorno do esposo que havia ido à padaria há dias. Houve partida. Não houve chegada. A sirene dos carros da polícia era a música que tocava em seu coração. Olhou as roupas masculinas espalhadas pelo chão e que não seriam mais lavadas. Lavou depois a camisa do time preferido dele com suas lágrimas. Pegou o jornal da semana passada. Viu a foto do esposo. A moça da janela perdeu-se em seu sofrimento. Desejou o fim de todas as balas, perdidas!

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Cleidirene Rosa Machado Catalão/GO

Somos Todos Selvagens! Eu era uma criança ainda. Frequentava a escola todos os dias. Minha professora de ensino fundamental era bastante rígida com os assuntos docentes, porém, tirando isso, ela era uma pessoa doce e que sempre ia em defesa daqueles que necessitassem. E eu sempre tive meus momentos de necessidade. Quando eu chegava em casa, minha avó vinha abrir o portão e eu ia passando para dentro, sempre com muito medo. Cães enormes e ferozes estavam ali, eles rosnavam alto, salivavam com raiva quando me viam e parece que sentiam o meu medo vindo de longe. Eu sempre imaginava que eles iriam arrebentar as correntes e me atacar com força e sem nenhum remorso. Todos os dias eram assim. Aqueles animais pareciam nunca se acostumar com meu cheiro. Com meu olhar e com minha carne magra. Eles nunca me aceitariam como amiga. Eu só queria passar a mão na cabeça deles, afagar as orelhas, deitar eles no chão de barriga para cima para mostrar que eu poderia acalentar e até abraçar aqueles cães furiosos como se fossem bons cachorros. Eu nunca desanimei de meus dias e minha avó sempre pareceu me

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incentivar a correr o risco, porque era um risco seguro. Era eu, os cachorros e suas fortes correntes. Havia dias na escola que nós alunos, todos nós, entravamos no ônibus da prefeitura, esses eram dias de fazer visitas a lugares diferentes e as vezes, a povos diferentes. Diferentes de mim? Será mesmo que isso era verdade? Eu subia os degraus daqueles ônibus e me sentava em um dos bancos junto ao meio de tudo, nem na frente, nem atrás, mas, ao meio. Eu praticamente não saia de casa, sempre ali olhando para os cães ou para os outros animais que estavam junto a mim. Cavalos, coelhos, porcos, pássaros, etc... Me lembro até mesmo de um filhote de onça com os olhos lacrimejando friamente e olhando pra mim. Era a minha casa, meu lar. Então quando a escola dizia que iriamos fazer um passeio eu ficava eufórica. Naquela tarde, nós iriamos conhecer um lugar especial, pessoas especiais. O ônibus começou a andar. Na hora, eu imaginei que fosse um lugar longe dali, mas, hoje, depois de muitos anos, descobri que era um lugar bem perto do Colégio Estadual


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Anice Cecílio , do bairro Santa Terezinha. Chegamos a uma colônia indígena. Na época eu não sabia onde eu estava. Hoje descobri que era próximo a Mitsubishi de Catalão. Concessionaria de veículos? Um lugar com currais, pequenas casinhas, muitas árvores, miquinhos e frutas. Em minha memória, a grande maioria daqueles que estavam ali, eram rapazes e crianças do sexo masculino. Todos sem camisa, usando um short e um par de chinelas. Eles falavam a nossa língua portuguesa e foram muito educados ao nos receberem. Eu não me lembro sobre o que conversamos, mas, deu para notar que aquela colônia indígena... aquele povo que todos diziam ser selvagens... na verdade... eles e o lugar, pareciam bem menos perigosos que a minha própria casa. Ficamos ali, na colônia, com todas as novidades do lugar. O tempo passou rápido. Ao voltarmos p a escola, a conversa entre alunos e a professora, mostrou que algo havia mudado, pelo menos em mim, talvez a minha maneira de ver o mundo. No outro dia, uma surpresa. Uma das coordenadoras adentrou a sala para um comunicado. Ela trouxe consigo 5 pessoas, quatro deles eram crianças

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maiores que todos da nossa turma. Eles eram diferentes, não apenas em idade, algo na aparência, na maneira de falar, de olhar... então a quinta pessoa também se mostrou. Ele era um índio, um garoto que também era bem maior que todos nós, mas, tinha modos educados. Ele estava vestido com roupas normais, usava uma calça jeans, camiseta e tênis. O cabelo cortado mais ou menos como os índios nativos... de um liso um pouco arrepiado em cima. Falava muito bem o português, sua pele era mesmo de cor vermelha, olhos um pouco puxados para o lado e uma interrogação que iria continuar por alguns dias. A minha reação foi dizer “oi”, eu faria amizade com os novos colegas, eles eram diferentes, e por isso, iguais a mim. Eu já era amiga de um japonês, também de duas crianças homossexuais, de uma gordinha, e percebia que eu própria era a garota que vivia em um mundo selvagem totalmente distinto de tudo ao meu redor. Aos olhos de outros, talvez as coisas não fossem tão normais assim, mas, no meu futuro, depois de longos anos, fui perceber que a vida é assim mesmo, que podemos optar por ser feliz, por aceitar o outro e acima de tudo, aceitar a si mesmo


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Conceição Maciel Capanema/PA

Tatuagens de Ilusões Eu queria não me entristecer Com a falta de afinidade com a rotina A vontade se agiganta E o horizonte ensolarado Machuca minhas retinas Não é fácil caminhar em linha reta E saber que há tantas curvas à minha espera No aguardo das minhas desventuras. Eu queria desafinar a canção Cantar bem alto Até chamar a tua atenção Aceitar o teu convite ilusório E viver a tua (a minha?) ilusão... Enquanto me aninho inteira no teu colo E me distraio iludida ouvindo Teus difusos e falsos sussurros Que ecoam gritantes em mim Formando tatuagens de ilusões.

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Daiane Barros Teresina/PI

Qem sou eu? Aí está uma pergunta difícil demais

literatura

da

minha

biblioteca

para ser respondida. Quem sou eu?

particular. Mas, a realidade é que os

Quem sou eu? Quem sou eu? Esse

livros, o vinho e os bens materiais

questionamento

na

são meios de fuga da realidade.

minha mente doentia dia e noite, noite e

Seguindo essa perspectiva, eu vivo

dia.

fugindo da realidade. Viver é isso?

Quem

responder.

fica

sou

martelando

eu?

Não

Simplesmente,

consigo

não

sei

a

Uma eterna e vã tentativa de fuga?

resposta e talvez, só talvez, nunca

Seria

muito

melhor

ser

um

saberei. Na maioria das vezes, eu atuo.

alienado. Eles não sofrem essas

Finjo ser uma pessoa positiva, de bem

dores. Eles não questionam a si

com a vida, aquela que nada abala. Mas,

mesmo nem o mundo que vivem.

no fim do dia, não passo de uma

Eles simplesmente existem e isso

garotinha

basta. Gostaria de ter essa sorte.

assustada.

Eu

tenho

um

milhão de coisas a dizer, mas meus

Mas

pensamentos caóticos não se alinham.

irrefreável e inquieta não para. Não

Não fazem sentido. Sou um mar de

me deixa descansar um só minuto.

confusões e inseguranças.

Está

Devoro livros, notícias e todas as

minha

sempre

mente

incrédula,

questionando

a

realidade, isso que chamamos de

formas de arte possível. Mas nada, nada

realidade.

disso me preenche. Continuo vazia, me

matemática. O resto é dúvida e

perguntando:

Fico

incerteza. E como dói viver num

imaginando quando e como finalmente

mundo tão efêmero. Onde nada

alcançarei a paz. Se é que ela existe.

dura, nada é eterno e tudo se

Até

desfaz em questão de milésimos de

me

Quem

imagino,

sou

eu?

bem-sucedida,

na

minha poltrona preferida, bebendo meu vinho favorito e relendo um clássico da

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segundos.

Lógica?

Vejo

na


LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Há dias que acredito saber quem

morrerem por serem quem são.

sou. Há dias que me pergunto o que

Quando na verdade nenhum de nós

diabos estou fazendo aqui. Qual a minha

sabe quem é. Talvez o problema

missão? Eu tenho missão? Ou é só meu

esteja justamente nessas pessoas,

complexo de Deus me fazendo pensar

essas pessoas aterrorizantes que

que

fui

dizem saber quem são. Elas são

mandada para este mundo com um

capazes de tudo. Qualquer coisa.

propósito. Alguém me perguntou se eu

Talvez eu não queira ser quem sou.

queria vir ? Quem em sã consciência

Talvez o problema seja eu, não o

gostaria de viver num mar de dúvidas.

mundo. Porque o mundo segue, eu

Onde um dia, as pessoas te juram amor

que

eterno

madrugada me perguntando quem

tenho

e

significância,

no

outro,

que

fingem

não

te

conhecer? Onde está o livre arbítrio? Me

estou

aqui

às

00:20

da

diabos sou eu.

sinto jogada num mar de circunstâncias.

Talvez, talvez, talvez... Eu quero

Onde as ondas me levam para lá e para

certezas. Meu Eu tem ânsia pelas

cá e nunca consigo alcançar as margens.

certezas. Mas, tudo que vejo é o

Não consigo contemplar a imensidão do

fundo do mar, cheio de mistérios. O

mar

homem explorou mais o universo do

pois

estou

ocupada

demais

tentando não me afogar.

que o fundo do mar, assim somos

Cadê aquele que acalma o mar? Senhor,

porque

me

abandonaste?

A

nós,

fazemos

de

tudo

para

evoluirmos externamente, mas por

frase de Jesus Cristo na cruz. É a frase

dentro,

que todos nós cristãos fazemos quando

estraçalhados,

estamos

tormentas.

nossa essência e apenas seguimos

Procuramos entender, compreender e

os outros numa busca incessante

até nos convencer de que tudo tem um

pelo que os outros consideram a

propósito. Mas, qual o propósito de

chave para a felicidade. Mas, depois

sofrer? Qual o propósito de um inocente

da meia-noite, aquela vozinha surge

sofrer? Qual o propósito de pessoas

das

serem escravizadas por causa da cor de

gritando aos quatro ventos: QUEM

sua pele? Qual o propósito de pessoas

SOU EU?

num

mar

de

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estamos não

profundezas

do

quebrados, conhecemos

inconsciente


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Daniel Cardoso Alves Belo Horizonte/MG

Um Preto doutor

Preto, nordestino, pobre e favelado...

Superado, eliminado... Ultrapassado

Sou filho de doméstica... De pai não

Bitolado, aloprado... Defasado

declarado

Estigmatizado, renegado...

Aos olhos do opressor... Fui tachado:

Injustiçado

Sujeito sem futuro... Determinado

Desacreditado, pormenorizado... No

Retirante no sudeste... Criminalizado

máximo, um sujeito esforçado

Forasteiro invasor... Desprezado

Guerreado, marginalizado... Invejado

Sotaque arrastado... Ridicularizado

Odiado, ameaçado... Atacado

Culturalmente inferior... Hostilizado

Multi e ado, preto, nordestino...

Paraíba, baianada... Violentado

Maltratado

Cabeça chata, preguiçoso...

Multi adjetivado... Um pobre

Discriminado

Excomungado?

Sem requinte, atrevido... Subjugado

Não! Contrariando os olhos que

Analfabeto, ignorante... Incapacitado

petrificam, me firmei:

Palhaço, sem noção... Rotulado

Preto obstinado... Não adestrado

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Avesso ao Ser paralisado... Encorajado

Destino transformado... Inusitado

Sangue de insubordinado... Politizado

Preto, nordestino, pobre e favelado...

Subversor da opressão... Determinismo

Nunca estagnado

e Preconceito aniquilados

Fazedor de minha história... Admirado

Cultura de poder... Privilegiado

Vida de luta... Proletariado

Cidadão de batalha... Pelejado

Sujeito de labuta... Exaltado

Ser aquilombado... Jamais alienado

Em suma: sou sim Preto, nordestino,

Prova do provável... Doutor renomado

favelado, doutor e arretado!

@danielcalves_

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Daniela Genaro São Paulo/SP

Casa e coração Numa fria madrugada, encheu a casa de água. Nem sei se era chuva... Nem sei se era mágoa... Sei que, ao invés de naufragar, mergulhou os pés no chão e foi fazer café. E assim sem quase dizer nada com seu barco-poesia nos salvou da enxurrada.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Dorilda Almeida Salvador/BA

Liberdade é não ter medo Liberdade, libertas Sua vontade própria Independência Pessoa livre com senso crítico Que percebe a si mesmo Liberdade é não ter medo De cuidar da própria vida É um investimento real É a maior conquista Que alguém pode fazer Liberdade De ser, de agir Não ser escravo De preocupações Sua singularidade faz Você ter processo de escolha Sair das amarras Pensar, refletir e surgir Cheia de vontade de si

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Edih Longo São Paulo/SP

O brilho do olhar de uma mulher Comece sem pressa: Os pés macios foram feitos para pisar leve e transportar com um balanço suave o resto a ser analisado. Não se aventure demasiado, pois pisam sem o mínimo dó seus pensamentos, tornando-os desvairados. As pernas torneadas sustentam os joelhos delicados que escondem atrás, uma reentrância perigosa para um escalador imprudente. As coxas cientes de suas trajetórias, farão sua saliva escorrer como cão sem dono que sofre por um carinho ou um prato de comida. As nádegas, irmãs convexas das virilhas, precisam de fôlego. Arredondadas, cuide-se para não derrapar. O púbis triangular requer maiores estudos. Pare um pouco para repousar. Oxigene-se. Hidrate-se. Deposite com sutileza a seiva que a fecundará, mas não se precipite e explore os outros arredores antes de penetrá-la. A barriga elástica é como se fosse uma brinquedoteca. Através da marquinha chamada umbigo e que parece ser nada, ela alimenta lindas bonecas e bonecos que correm atrás da bola infantil do mundo. Não se perca nas curvas que a margeiam. Chamam-na de cintura e um observador mais arguto; no auge de sua admiração, imortalizou-a

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na forma de um instrumento — o violão — perdendo-se nas notas de uma canção. Mais acima; uma rampa sem maiores tropeços aparentes; poderá levá-lo a dois pequenos montes, onde o ar poderá lhe faltar. Explore-os com suavidade e não se esqueça que, apesar de inocentes, são responsáveis pelo alimento universal. O pescoço parece uma ponte que une o colo macio com o resto ainda a explorar; mas se passar por ela bem devagar, arrancará suspiros e encontrará o maior segredo do mundo! Como um tesouro escondido, lá está o ápice: a cabeça. Há que se ter fôlego para desenterrá-lo; por isso, respire e aspire fortemente. A boca esconde um dragão sem São Jorge e que bagunça qualquer coração desavisado. Explore-a se realmente desejar, senão estará em perigo. Os sussurros poderão se triplicar através de sons que a cavidade retumba e, isso o fará surdo à razão. O nariz reconhece o seu cheiro de macho; dilatando-se e mandando sinais de êxtase para a pele arrepiada; cujos poros exalam o seu perfume que poderá; sem qualquer benevolência, deixá-lo fora de si. Pule


LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

as duas aberturas que abrem e fecham com languidez as lindas cortinas que as decoram e que ladeiam o nariz. Ande pelos tentáculos laterais que ela possui, mas fuja das suas extremidades; desça os braços; mas não ultrapasse dos limites de seus punhos, as mãos; pois abusarão de suas vontades; deixando-o sem defesa, vencido em suas palmas. Suba e, não se surpreenda com o clarão dúbio; hesitante entre a alegria e a tristeza que verá em ambas aberturas já citadas. Aqui é necessária uma explicação: os olhos são as portas por onde entrará em seu espírito. As cavernas que escondem mistérios e que o joga, como num túnel interminável, nas profundezas de seu ser. Ah, o olhar! O olhar é escravagista e quando quiser fazer o caminho inverso; ela já o mantém prisioneiro. Todo o percurso que fez foi em vão, se não observou o que mais era necessário: desviar-se do olhar. Não adianta se segurar em seus cabelos. São como bambus que se envergam e não lhe darão nenhum

remanso. Emolduram, apenas, o cartão postal que é o seu rosto. Se não desviou o olhar do olhar, amigo, sua escalada terminou. Jogue todos os apetrechos de alpinista. Está perdido e nenhum aviso de SOS poderá salvá-lo. Não adianta fazer fogueira, pois já arde nela e o fogo que sente é a prova. Já se alojou em seu cérebro; desceu corroendo a garganta e se instalou no coração que corre com disritmia e explodirá em mil pedaços que recolherá com mãos mágicas de fada; quiçá, de bruxa malvada, brincando no salão em festa do seu peito conquistado. Entregue-se sem medo. Todos os seus sentidos são soldadinhos de chumbo diante do exército de encantos que a defende. E fará de você senhor e escravo. Agora, solte o ar e descanse. Eis o grande segredo da multiplicação da humanidade: tudo começa com o brilho do olhar de uma mulher!

FIM

www.facebook.com/edih.longo

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Edna das Dores de Oliveira Coimbra Rio de Janeiro/RJ

Qando foi? Quando foi que deixamos de fato de sermos humanos, de vermos o sofrimento do outro e agirmos como subumanos? Quando foi que deixamos que a agonia de um homem nos deixasse parados, como se estivéssemos anestesiados? Quando foi que deixamos de enxergar o medo nos olhos de um anjo ou quando fomos impelidos a jogarmos outro anjo, por uma abertura na tela, que lhe protegia de cair da janela? Quando foi? Talvez quando o choro foi sufocado, a boca foi cerrada, os ouvidos foram tapados, o olhar foi desviado e o passo para ajudar não foi dado. Talvez quando a cor do nosso irmão tenha influenciado a nossa decisão ou quando a sua etnia ainda seja para nós uma grande questão. Talvez quando as palavras tenham perdido o real sentido e a mente tenha esquecido a forma correta de raciocínio, então os sentimentos foram se obscurecendo e o coração se enfurecendo. Talvez quando o Bem em nós tenha se retirado, não suportando nosso egoísmo exacerbado, nosso comportamento de descaso e o grande peso do nosso pecado.

https://www.facebook.com/edna.coimbra.921

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Elidiomar Ribeiro Rio de Janeiro/RJ

A árvore da palavra e da sabedoria Baobá.

Cientificamente

denominado

do Rio de Janeiro com nome de

Adansonia digitata L., classificado na

origem africana. Apesar de não haver

ordem Malvales e na família Malvaceae,

registro

pode

estima-se

ser

encontrado

nas

savanas

da

data

que

de

ele

seu

está

plantio, ali,

pelo

quentes e secas da África Subsariana.

menos, desde 1863. Especula-se que

Aparece também em zonas de cultivo e

uma muda tenha sido trazida por

em áreas povoadas.

pessoas escravizadas que aportaram

Um dos maiores símbolos da cultura

clandestinamente no local (o odioso

africana e objeto de culto de religiões, o

tráfico negreiro já era proibido à

baobá serve até de "caixa d'água" nas

época).

regiões áridas da África. A árvore, que

Quissamã

pode chegar a 11 metros de diâmetro, é

história

capaz de armazenar 120.000 litros de

impressionante

(e

água, algo de imensa utilidade nas

cruel)

argola

savanas africanas. Seu fruto é rico em

pessoas

sais minerais e sua flor, polinizada por

transformou a árvore da sabedoria

morcegos,

muitos

dos africanos em local de suplício e

males. Na mitologia, é a árvore da

cativeiro. Terrível ironia: a árvore

palavra e da sabedoria. Seus galhos

sagrada da África, venerada por seus

desajeitadamente espichados para o alto

filhos, foi por eles trazida ao Brasil e

representam a invocação dos deuses

aqui se transformou em carcereira

para que ajudem seus filhos.

dos trabalhadores do ciclo da cana-

Imponente, um baobá adorna a frente

de-açúcar.

do

humana,

Museu

é

remédio

Casa

de

contra

Quissamã,

em

Quissamã, o único município do Estado

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No

tronco há

do é

uma

do

várias lugar.

baobá

de

marcas

da

A

paradoxalmente de

escravizadas,

Marco que

mais

deve

da ser

prender o

que

crueldade sempre


LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

lembrado,

para

que

jamais

seja

grande

árvore,

altar

sagrado

dos

repetido.

povos de África, que continuam não

O Museu Casa de Quissamã fica situado

tendo muito a quem recorrer.

na Rodovia RJ-106. Quando a pandemia

Que

permitir, vá lá e visite o esplêndido

sabedoria nos perdoe. E olhe por nós.

baobá. Aproveite e peça desculpas à

Apesar de nós.

a

árvore

da

https://www.instagram.com/labeuc.elidiomar/ https://twitter.com/Elidiomar_

Desenho de Elidiomar Ribeiro

Foto de Elidiomar Ribeiro

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palavra

e

da


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Elza Melo Capanema/PA

Florir amor Se eu fosse o amor Seria sementes boas Que frutificam a vida Seria abraços demorados Sonhos delicados Seria um mundo melhor Onde a paz fluiria Se eu fosse o amor Seria uma ponte De bons sentimentos Cultivaria a bondade Ligaria o presente e a saudade Seria um dia de esperança A pureza da criança Um mundo feliz Sonhei ser poeta E o amor fez florir em mim Todos esses sentimentos.

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Eni Ilis Campinas/SP

Saraivada de EU Eu eu eu eu eu eu eu estilhaço! Lascar quantos muros vidraças! Tempestades de vento sem direção? Num repente, munição se esgota, pesa silêncio. Fica o escombro de tanto eu arremessado. Acertou o alvo? Certamente, tantos foram disparados. Certificar a extensão da destruição. Êxito, pois. Êxito pleno? Há que se averiguar. A saraivada agora é outra, é revirar, esquadrinhar, revolver. Espreita e atenção. Êxito, pois. Êxito pleno? Há que se avaliar. Elencar e comparar as impressões, essa a nova saraivada. Há que ter tempo para descobrir a coerência entre o constatado e intencionado. Se houver, êxito. Se houver, farpas, discrepâncias, êxito ainda a caminho. Nova saraivada, pois. Rever, repassar, comparar para achar a dissonância e instaurar a coerência. Há que se instaurar a coerência para se certificar do êxito pleno. Só assim e não acaba, pois há que se garantir e manter. Não só. Garantir e alardear para o êxito não perder o brilho, não perder a eficácia, não perder a verdade. Imprescindível não perder a verdade. Eis que necessário o permanente reabastecimento de munição. Não pode faltar. Ah, não! Eu eu eu eu eu. Eis ai mais que a garantia, a veraz possibilidade de expansão eu eu eu eu. Êxito, pois. Sim. Que êxito? Renovar a artilharia, renovar o ataque, renovar a saraivada. A guerra não acaba: EU!

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Eva Irene Corrêa Martins São Paulo/SP

Faça de Conta Faça de conta

Faça de conta que nada sofri.

que tudo acabou.

Faça de conta que eu tive vitória.

Que nada de ruim aconteceu. Que a noite chegou.

Se o pensamento ajuda.

Que o dia amanheceu.

Tudo positivo vou pensar. Quem sabe as coisas mudam.

Faça de conta

De um dia pra outro o

que a tristeza acabou.

Valdir* pode chegar.

Que a alegria voltou. Que o sol está lindo.

Como espero por este dia.

Que quem saiu já voltou.

Faça de conta que é verdade. Como a criança que espera o Natal.

Faça de conta que tudo passou.

Ganhar brinquedo e

Faça de conta que é uma história.

gritar: Felicidade!

*in memorian: Valdir, que um dia saiu de casa e nunca mais voltou

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Fernando Manuel Bunga Uíge, Angola

Haibun Dito ninguém acredita, só mesmo visto este céu estrelado angolano. O menino boquiaberto, é o meu maninho, admirou-se ao ouvir que as estrelas são maiores que o planeta terra. Sobre a mesma rede de descanso, vamos contando as estrelas, em meio isso, informo-o que as estrelas só parecem ser pequenas porque estão muito distantes da terra e que o conjunto de estrelas visíveis numa determinada posição, são chamadas de constelação, ademais, enfatizo que antigamente acreditava-se que elas formavam figuras de animais, pessoas e objetos. Dito isso, pego o seu dedo indicador e vamos unindo os pontos no céu, fazendo assim a figura de um animal africano que ruge. Enquanto isso, o menino vê um rastro de luz no céu... Estrela cadente O menino de janelinha pede algo modesto

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Francisco Cleiton Limeira de Sousa São Paulo/SP

Pobre Imaginação Eu

não

imaginava

que

passar

dois

alto que se pode ir. Poderia chegar

meses sem você fosse impactar tanto na

bem mais rápido à meta estabelecida

forma de encarar minha rotina. No

por mim desde sempre, mas parei no

início, em minha cabeça a gente era do

meio do caminho e passei a pensar

mesmo tamanho, ainda que você não

que

achasse, conforme você mesmo disse.

lentamente ao lado de outra pessoa.

Hoje eu me vejo cada vez menor, nesse

Às vezes eu sou muito egocêntrico,

curto período de tempo que mais parece

com intenção, porque as pessoas

um século. Concordo contigo que me

precisam saber que a gente chega lá,

empolguei por muita coisa, que até pode

não importa se logo ou não. Mas a

não ter sido em vão, mas vou ter que

humildade e o silêncio lideram a

ser mais amigo do tempo e entendê-lo.

minha personalidade. Quando abro a

É porque eu demorei a perceber que as

boca para opinar, parece que erro,

intensidades são diferentes. E por receio

não acrescento, sou inútil. Reavalio a

é que eu passei a tentar controlar a

minha postura e concluo ser melhor

minha. O receio acabou, porque nesse

continuar no meu silêncio.

mesmo tempo, volto a entender que

paro de dizer e passo a fazer. Fazer é

recomeçar pode ser duro, mas pode ser

tão mais eficaz. Até eu que sou a

incrível e o passo que faltava para viver

favor da conversa, e ao tentar fazê-la

uma nova versão de nós mesmos. Posso

por diversas vezes, compreendo que

tanto sentar num banco, ler um livro e

chutar o balde também pode ser uma

esperar você chegar depois de uma vida

opção. Escrevo aqui porque sei que é

e considerar que nada aconteceu. Mas

desgastante demais ler isso daqui,

também posso escrever um livro, deixar

perca de tempo. Mas como é bom

para que possa ser lido, se for de

escrever,

interesse, e voar para o mais longe e

nossos

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posso

chegar

desenhar

em

pensamentos,

ainda

que

É aí que

letras fazer

os de


LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

qualquer

nossos

podem ser a mesma coisa para você,

psicóloga,

preferirá a primeira opção. E antes

respectivamente. De quebra, treina-se a

que eu vá, até pensei que as nossas

escrita. Pena que depois das pessoas

vidas

conseguirem atingir certo alvo, passam

partilhadas, mas passo a entender

a considerar que aquilo já não é o

que eu vivo a minha, você a sua, e

bastante,

que

quando é conveniente, a gente até

quando o tempo passar será possível

une as duas, mas só até o necessário.

melhores

papel

e

ouvidos,

suficiente.

caneta e

Acredito

pudessem

perceber que entre lucro e valor, que até

https://cleitonlimeira3930.wixsite.com/poesie-sea-1/blog/ https://www.facebook.com/cleiton.limeira.3

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ser

totalmente


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Gabriel Oliveira Monteiro Paragominas/PA

A Mulher Uma guerreira com beleza, Vencendo lutas, quebrando barreiras. Nos anos trinta na política começaram carreira, Na ciência com grande feitos a bagagem está cheia. Todos os dias quebram diversos dilemas, Lutadoras de nascença como a deusa Atena, No quesito evolução estão no topo da cena. Com feitos históricos algumas são imortalizadas, Joana D’arc, Anne Frank e Frida Kahlo, Imponentes e imponderadas. A mulher, nesta luta constante, Não perdeste a sensibilidade em nenhum instante. Teus feitos e conquistas não acabam aqui, São apenas um prenúncio de tudo que está por vir. https://www.facebook.com/gabriel.monteiro.56481 @gabriel monteiro

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Gabriela Garcia de Carvalho Laguna

A roseira que mora no meu coração A roseira que mora no meu coração é poesia, piada brincadeira,

risada e amigos. Todo dia que nasce,

chama a tristeza, princesa, e a leva travessa, põe pra ninar. Canta e sonha

com toda leveza, doçura e magia, que a infância te lembra: venha conquistar.

O corre não vai parar

e o percurso será mais belo com as flores, sorriso, desperta alegria

por onde passar.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Gardel Dias da Assunção Fortaleza/CE

Em vida me pesa certa insistência

Quando andante em meu próprio mundo, sinto em mim uma luz perdida que teima em brilhar, que parece não alertar o íntimo, não apontar algo Parece-me um toque na alma numa solidão ardente, um grito nervoso na batida do coração, aquele pulsar sombrio que ainda vida segue Um olhar solto, sem sentindo e que ainda respira numa luz de fim de túnel escuro, respira, e sente, e se move, move... Na minh'alma a dor patina, saindo do peito e indo na mente, uma teimosia em viver que não acaba mais, não acaba…

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Gedeane Costa Recife/PE

Fragmento Celeste Oscilante fragmento celeste oscilante um pedacinho da lua fragmento terrestre delirante a criação poética nua um pedacinho da lua vaga a criação poética circula o primeiro, se acaba.... o segundo, perpetua... as estrelas são companhias tanto da lua como dos poetas a criação nunca se encerra um pedacinho do coração, a poesia que remendar se espera a alma dos viventes da terra.

http://paginasinfinitas.blogspot.com/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Gislene da Silva Oliveira Paragominas/PA

Almas taxionômicass Quisera os céus ou algum ser superior que permitido fosse organizar os sentimentos que nos bagunçam em pequenos porta-sentimentos, feitos de potinhos de arroz. Aqueles sentimentos que surgem e podem colorir as nossas vidas, mas que vão ficando espalhados pelos instantes de conversa, pelos minutos infinitos de prazer, no riso frouxo das piadas sem graça, nas palavras e delírios inconscientes acalentados pelo álcool, pelos gestos de carinho, pelas canções divididas. E até pelos momentos em que nada se diz e nos bagunçam tanto porque tudo é entendido no silêncio de um olhar. E num arrobo de criatividade, pegaríamos os potinhos, organizaríamos em uma base giratória, muito prática para movimentarmos, daríamos uma demão de tinta preta para cobrir tudo o que não nos fosse mais interessante... E então, poderíamos criar uma nova história, escolher os traços e as cores que quiséssemos, pensaríamos em desenhos bem coloridos, assim não mais teríamos potinhos de arroz ou engrenagem de brinquedo, agora estaríamos diante do nosso próprio PORTA-SENTIMENTOS! Quem dera que como mágica nossas bagunças fossem

se

arrumando

e

cada

sentimento

se

encaminhasse para seu devido lugar, sem etiquetas, rótulos ou amarras... Imagine só como seria ter um potinho para medo, um potinho para a saudade, um potinho para dúvidas, um potinho para os prazeres, um potinho para a paixão, um potinho para o amor e um pote bem grandão para os sonhos...

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Assim com tudo organizado, sem sentimentos revirados, pudéssemos sair dançando entre nuvens, ofuscando as constelações, puxando as barbas de Deus, que por certo nos perdoaria por sermos amantes e crianças ensandecidas que descobriram o que ele guardou só para si: O amor de muitas vidas. Ah, se permitido fosse... E nossas bagunças? E os sonhos? Deixemos os sonhos de nossas almas taxionômicas à parte…

https://www.facebook.com/gislene.oliveira.56/ https://intagran.com/@portuguescomgis.

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Giulianno Liberalli Nova Iguaçu/RJ

Refetindo A Verdade Nobisvaldo

era

a

felicidade

em

pessoa.

Acabara

de

comprar

seu

apartamento e fez a mudança, saiu todo cheio de si da casa dos pais para morar sozinho. Não seria mais o “filhinho da mamãe” e ela também estava feliz pela conquista de independência dele. Enquanto mobiliava a casa se deu conta de que não tinha um espelho no quarto, foi até uma loja muito bonita que ficava no outro quarteirão que se chamava A MELHOR IMAGEM. Achou engraçado o nome do lugar, ao entrar se deparou com uma enorme variedade de espelhos, com vários tamanhos, formatos e molduras. Ficava até complicado escolher um, como seria para o seu quarto optou por um retangular, quase da sua altura e com detalhes bem trabalhados na madeira da moldura, um espetáculo. — Uma bela escolha, senhor. — disse-lhe o vendedor Aurelisberto. Pendurou o novo espelho na parede do quarto, entre a cama e o armário, perfeito para se admirar depois de se arrumar. Era noite de sábado, tomou um banho e se vestiu para encontrar a galera, parou diante do espelho para ver se estava tudo certo e, de repente, uma voz veio do espelho: — Rapaz! Que camisa é essa? Nobisvaldo levou um susto, não esperava um comentário vindo do seu espelho novo, estava acostumado com o da casa dos pais, mais velho e menos falante, só respondia se fosse questionado. — Minha camisa? O que tem ela? — Tudo, meu querido. Essa cor de salmão degradê, pelo amor do guarda, parece que está fugindo do Zé Colmeia.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

— Mas eu sempre gostei dela. — Tá na hora de desgostar então. Credo. Mesmo assim ele saiu com a camisa, deu pouca atenção ao comentário do espelho. Nunca foi de ligar para o que os outros falam, não seria para esse que daria corda. Na segunda-feira de manhã vestiu a roupa do trabalho e parou na frente do espelho para arrumar a gravata e veio crítica novamente. — Gravata azul bebê de bolinhas verdes? Chegou o carnaval e ninguém me avisou! — Qual o problema? Acho que combina com a camisa verde, afinal as bolinhas também são verdes. — Você só pode ser solteiro com essas escolhas de roupa. Quem te ensinou a combinar cores assim? Van Gogh ou Pablo Picasso? — Eu mesmo. E minha mãe nunca reclamou. — Porque ela é a sua mãe, óbvio! Dã. — Quer saber? Vou trabalhar. — Beleza. Mas e essa barba aí? Resolve isso, parece que raspou a cara com um barbeador cego, ainda tá cheia de falha. E foi Nobisvaldo trabalhar, no banheiro do escritório observou bem o rosto e teve que dar o braço a torcer, estava com a barba mal feita mesmo. Comprou um barbeador novo e deixou o rosto liso feito uma carinha de anjo, parou diante do espelho antes de dormir. — Aí rapaz. Agora sim está com cara de gente que toma banho, precisa se policiar mais hein? — Estou cansado, agradeceria se também sossegasse e pegasse mais leve com os seus comentários. — Pode deixar, vai lá dormir. Serei mais calmo.

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A semana passou, o espelho fazia um ou outro comentário ácido sobre as roupas, os hábitos do Nobisvaldo no quarto e tal. Um dia a irmã dele foi visitá-lo, para conhecer o apartamento, quando entrou no quarto o espelho a saudou. — Ora. Olá moça bonita! — Oi. Você é o espelho novo do meu irmão. — Irmão? É irmã dele? Putz, mas você levou toda a beleza da família. O carinha aí é um artigo mais ou menos, se é que me entende. — Nada. Ele é bonito. — Tá bom. Me faz um favor? Ele não sabe escolher camisas. Pode vestir algumas para eu dar uma opinião? Pode ser aí mesmo... — Ok. Já deu. — Nobisvaldo puxou a irmã para fora do quarto e disse a ela para evitar entrar lá quando fizesse uma visita, aquele espelho estava ficando muito espertinho. Noite de sexta-feira. Nobisvaldo tomou um banho caprichado, saiu do banheiro enrolado na toalha e colocou as roupas na cama para escolher o que usar. Ouviu o espelho murmurar. — Hum… Hum… — E agora, qual é o problema? — Estamos precisando fazer uma dieta. Está ficando com uma barriguinha… — Você está ficando chato… Escolheu as roupas e tirou a toalha. — HA HA HA HA! — O que é? Do que está rindo? — Meu amigo! A natureza foi maldosa contigo! Não está faltando um pouco mais de… Como posso dizer? Dimensão? Tamanho? Isso não é currículo, é um crachá. Kkkkkkk. Fora que aí atrás está mais para reco-reco do que para um pandeiro.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

— Agora chega. Nobisvaldo cobriu o espelho com a toalha e o levou para a loja no dia seguinte, aquela foi a gota d´água. O vendedor o cumprimentou, mas ficou assustado com a expressão irada dele olhando para o espelho coberto que carregava. — Bom dia meu amigo, o que houve? — Bom dia. Vim trocar esse espelho. Está fora de controle. — Como assim? — Vou te mostrar. Ele colocou o espelho no balcão e o descobriu, quando o vendedor olhou para o seu reflexo veio àquela voz irônica novamente. — Aurelisberto! Que cara remelenta é essa? Não lavou o rosto para vir trabalhar? — Hum… Deu para entender o problema. Peço desculpas ao senhor, pode escolher outro. Vou mandar esse para uma revisão. Deu uma volta pela loja enquanto o vendedor encostava o espelho sincero, que ainda reclamava da aparência dele, na parede atrás do balcão. Ele parou diante de outro, um pouco menor e ovalado, com uma moldura de aparência mais aristocrática que logo o cumprimentou. — Olá. É um prazer receber uma pessoa do seu porte aqui na loja, como vai? — Muito bem, obrigado. — Bem está o senhor. Vai receber alguma premiação ou promoção no trabalho? Parece um imponente diretor de empresas de tão alinhado. — Vou ficar com esse aqui! — Levou o novo espelho para o balcão, o vendedor embrulhou e ele agradeceu. — Obrigado pela atenção. — Eu peço desculpas pelo outro, meu amigo.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Ele saiu satisfeito da loja com o novo espelho de hábitos mais educados do que o anterior, da porta ainda podia ouvir as reclamações dele ecoando pelo salão de vendas. — Pode levar esse bajulador aí ô Nobisvaldo! Já que não me quer mais fala para sua irmã vir me comprar! Sem meus conselhos tu vai continuar na pista, sem pegar ninguém! E você Aurelisberto? Quando vai cortar esse cabelo horroroso e parecer uma pessoa de verdade? Não sei o que acontece com esses caras… Ei! Ei! Não me vira para a parede não, seu cara de travesseiro amarrotado e babado! Ei!

Moral da História: Sinceridade é uma qualidade, mas sem exageros.

linktr.ee/giuliannolliberalli

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Glória Aplugi Leidschendam, Netherlands

O que é vivido Há cura que ausenta-se de mim Ou eu que me ausento? Há cores que me deixam de colorir Ou eu que as deixo? Há perfumes que fogem de mim Ou eu que me recuso? Beijado pela essa dor Nasce em mim outra cor Falando somente à mim Escolho-me sobreviver assim Mergulhando neste sentido Para assentar o que é vivido!

https://www.facebook.com/glo.pin.1/

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Guilherme Hernandez Filho Santos/SP

A raposa e as uvas Plantadas lindas parreiras Em meio daquele caminho Alinhadas em carreiras Adubadas com carinho Atraíram a raposa Uvas muito suculentas Pulando toda pomposa Sobre as mesmas opulentas Tentou e muito insistiu Saltando para pegá-las Sem sucesso desistiu Por verde considerá-las.

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Helena Schiavoni Sylvestre Americana/SP

O pedido de aniversário Havia acordado com a cabeça explodindo. Mal conseguia abrir os olhos devido à claridade do dia entrando pela fresta da janela do quarto. Sequer despertara por completo e já estava arrependido pelas quinze doses de tequila tomadas na noite anterior. Fizera aniversário e quis comemorar com tudo o que tinha direito. Mas não imaginou que fosse acordar no dia seguinte sentindo o corpo todo rígido e pesando uma tonelada. Tentou mexer-se na cama. Percebeu-a pequena para seu tamanho. Estranhou. Passados alguns minutos, com os olhos já adaptados à luz do Sol, reparou na sua aparência recém-adquirida: meia dúzia de longuíssimas pernas e uma rígida carapaça. Horrorizado, levantou-se de supetão e percebeu que não apenas sua cama ficara pequena, mas todo o seu quarto. Com alguma dificuldade, olhouse no espelho do armário e encontrou outros sinais da sua monstruosidade. Num impulso, jogou o objeto na parede, com a esperança de que os vidros estilhaçados o fizessem voltar à sua forma anterior. Passado o ímpeto de raiva, parou para pensar sobre o que poderia tê-lo levado a acordar sob aqueles moldes. Lembrou-se do bolo.

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Perguntou a si mesmo o que acontecera com o pedido que havia feito na noite anterior ao cortar seu bolo de aniversário. Tinha certeza de ter fechado bem os olhos e invocado com muita fé. Queria se transformar em borboleta. Uma bela borboleta de asas azuis, para pousar de flor em flor e poder tocar suas pétalas sensíveis com as minúsculas perninhas. Agora estava ali, metamorfoseado na forma de um inseto asqueroso. Tinha certeza que o problema estava na espátula de bolo. No ano passado, também foi o caos. Pediu para ganhar a habilidade de ficar invisível, e acabou sumindo do mapa. Foi parar em Fiji, um país completamente desconhecido localizado no meio do Pacífico Sul. Com seu novo corpo, de tamanho descomunal, arrastou-se até a cozinha. A primeira pessoa que o encontrou metamorfoseado foi sua mãe. Olhou-o de cima a baixo antes de soltar um rápido sermão. — Felipe, Felipe... De novo essa história? Da próxima vez eu mesma vou cortar esse bendito bolo. E agora, o que te dou pra comer no café? Pão com manteiga ou meia dúzia de


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folhas verdes? – Embora sua face expressasse desaprovação, por dentro ela ria com o próprio sarcasmo.

— Qual é seu problema, cara? Fala comigo.

A verdade é que o rapaz estava sem a menor vontade de tocar numa refeição. Embora seu estômago roncasse, sentia que, se ousasse colocar qualquer tipo de alimento na boca, regurgitaria de imediato. Seu mal-estar já não se dava por conta das bebidas da noite anterior, mas pelo fato de ter se transmutado em uma aberração. Era início do fim de semana, e como borboleta, havia feito infinitos planos. Visitar o jardim de sua avó estava na lista. Nas redondezas, ele não conhecia outro lugar com uma variedade de flores tão grande. Ali, iria se perder no tempo procurando encontrar os pólens mais vistosos e vigorosos para transportar às outras plantas do terreno tão bem cultivado pelas mãos daquela senhora. Mas naquela roupagem assustadora, seu único objetivo era permanecer enfurnado em casa, sem ousar colocar sequer uma de suas pernas horrendas porta afora. Trancou-se no quarto e ali permaneceu. No dia seguinte, preocupado com a condição do filho, o pai de Felipe resolveu bater à sua porta.

— Este é meu problema. – apontou o próprio corpo com as longas pernas para o pai.

— Filho, sou gentileza?

eu.

Pode

abrir,

por

— Não quero, pai. Me desculpe. — Você está trancado desde ontem. Sabe que amanhã é dia de trabalhar, não é? — Sei. Mas não vou.

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Felipe hesitou, mas resolveu abrir.

— É, sua mãe me contou. Foi o bolo, não é? Eu disse pra ela se livrar daquela droga de espátula. — Agora não vou por os pés pra fora de casa nunca mais. — Felipe, não pode permanecer trancado em casa com medo do que os outros vão achar de sua aparência. — Posso, sim! — Filho, escuta só. Sei que não é tão simples assim, mas deixar de fazer o que você deseja por conta do que os outros vão achar, é uma espécie de suicídio em vida, entende? — Não é tão fácil, pai. Agora eu sou nojento, asqueroso. Olha só pra isso! Quem vai querer ficar perto de um monstro? — Ué, eu ainda estou aqui, não estou? Felipe esboçou um sorriso, apesar das lágrimas que vertiam até as bochechas. O pai do rapaz deu-lhe, então, um abraço desajeitado. No dia seguinte, Felipe acordou e, sem mesmo abrir os olhos pela manhã, pensou mil vezes antes de tomar a decisão de levantar-se da cama. E o fez com muito custo. Seguiu o conselho do pai e partiu


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com seus produtos pelas ruas da cidade. Felipe fazia vendas de porta em porta. Como de expectativa do rapaz, era impossível contar nas duas mãos o número de pessoas que o olhavam com desgosto. Outros ainda, com uma curiosidade bastante peculiar. O fato é que ninguém olhava Felipe com naturalidade. Estava absolutamente certo que, na condição de borboleta, arrancaria olhares de admiração e respeito nas ruas. Afinal, Felipe tinha consciência de que além de carregar uma beleza incomparável nas asas, esse inseto traz consigo a representação popular de felicidade e boas energias. Sabia que ele, por outro lado, na condição em que se encontrava, carregava o fardo de ser abominado pela humanidade.

despesas e até mesmo dar uma vida mais digna aos pais.

Entretanto, por mera coincidência, ou não, desde o dia em que saiu às ruas metamorfoseado, o vendedor passou a fechar muito mais vendas do que antes. Questionou-se se as pessoas compravam dele por medo do que sua condição como inseto asqueroso poderia lhes causar, ou ainda se estavam querendo se livrar daquele ser abominável o quanto antes. O fato é que, afinal, estava vendo vantagem em se encontrar naquele estado. Com as vendas em ascensão, viu uma oportunidade de finalmente ajudar os pais, que mal conseguiam manter a casa com seus salários miseráveis.

— Sabe aquele aniversário?

Felipe já nem se importava mais com os olhares curiosos ou mesmo desgostosos. Estava conseguindo contribuir com as

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— Pai, preciso lhe dizer que sou muito grato ao senhor. — Grato pelo que, filho? — Se o senhor não tivesse me incentivado a sair da toca aquele dia, nós não estaríamos tão bem hoje. — Ah, sim... – disse o pai de Felipe meio cabisbaixo. — Ué, o que foi? Aconteceu algo? O pai suspirou fundo. — Preciso te contar uma coisa. Eu já devia ter te contado isso, mas nunca tive coragem. — O que foi, pai? O senhor está me assuntando! seu

bolo

de

— Sei. — Você não foi a única pessoa que fez pedido aquele dia. — Eu me lembro. Outras pessoas se juntaram a mim na hora de cortar o bolo. Inclusive você foi uma delas. — Pois é, filho. — E o que tem isso? — Então... Não foi exatamente seu pedido que deu errado. Foi o meu que deu certo. Felipe olhou para o pai com aquele par de olhinhos arregalados. Finalmente compreendera a razão de sua monstruosidade.


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Hélio Guedes Petrópolis/RJ

As tomélias e as fautas venusianas Nada se acaba, pois as coisas desse mundo Podem estar somente se transformando. Observe as tomélias, principalmente no outono. Delas caem folhas que irão florescer. Tomélias não existem. Folhas não florescem. Observe também um estudioso músico Que não sabe tocar um instrumento Como, por exemplo, uma flauta venusiana Ou que não entenda de acordes in rabiata. Flautas venusianas não existem. Assim como os acordes in rabiata. Agora, se você gosta do perfume das tomélias, Da leveza das folhas ao florescer, Do som mágico das flautas venusianas, Tocadas em acordes in rabiata, Não se preocupe, Você poderá estar somente começando Como um péssimo e excêntrico botânico Ou um músico que não conheça música, Sem entender, claro, desse ilógico mundo. E, tenha certeza, poderá estar Nascendo um poeta que colhe tomélias Nascidas de folhas caídas, ao som de Flautas venusianas em acordes in rabiata. https://www.facebook.com/helio.oliveira.771282

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Hernany Tafuri Juiz de Fora/MG

Autorretrato canibal Cozinho os meus ossos,

com este perfume

aos poucos, sozinho,

de rosas-mortes

mirando, selvagem que sol,

tão fortes quanto irreais.

este sou atômico. Grisalhos cabelos Descalibro meus ouvidos,

encobrem meu rosto,

orelhando mil e duas besteiras,

desnudam meu resto,

porém, contido, todavia,

atormentam o todo de mim.

sem escutar algo que vá além deste silêncio: harmonia!

Meus olhos castanhos, juvenis e estranhos,

Desequilibro meu corpo,

vertem uma única lágrima

junta após junta,

anunciando

ao dar moral à saudade abissal

o meu fim.

que reveste o eu que me resta

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Ícaro Marques Estevam Ipatinga/MG

Veredas Não há dia que eu não peça Qualquer rastro de conversa Em dias sóbrios... Na esquina da mesmice Qualquer reles sandice É veneno para o ócio. Onde estamos só há monotonia Com seus pesares e pesos De dias mortos e vividos. Resta-nos o dispersar da agonia Para que haja sonho em nossos espíritos obesos Recheados de sentimentos insípidos.

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Igui N’orante Luanda, Angola

No colo duma Ninfa me deitei (Um soneto ao Real Gabinete Português de Leitura)

Quadro: A Ninfa do Mar (1881) – de Edward Burne-Jones. (N. do A.)

– A Luís de Camões No colo duma Ninfa me deitei: A flor da perenidade amei No amanhecer da Alvorada, Assentando afagos àmada: “Ó faustosa estrela cadente,

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Que simboliza nossa redenção Sendo do fim o Volver do ente, Qu’os deuses dão o brio d’afeição. Astro que emblema Afrodite, Suscite que o feito da ação Vivamos com nossa visão pia.” O Amor é o vício-limite Aos males abstratos e pagãos Que são expostos em norma ímpia.

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Ilana Sodré Salvador/BA

Dois conselhos — Ah, Isabel! De novo? Mamãe grita irritada da porta do banheiro. Não consigo responder, a náusea revira meu estômago e eu trato de enfiar o rosto no vaso sanitário mais uma vez. Estou concentrada em colocar toda a bebida dessa madrugada para fora, mas consigo me concentrar no falatório quase indecente de minha mãe. — Você vai morrer desse jeito, está certo beber que nem uma alcoólatra toda noite? - o riso escapa em soluços, junto com ele a última leva de vômito quente pousa na latrina. — A senhora já foi jovem, dona Matilde. Eu estou apenas vivendo. - é uma desculpa, eu sei disso, mamãe também sabe e ainda assim não deixa de ser a verdade. Desde que terminei com Paulo meu lema é viver o hoje. — Fui jovem sim, mas não estava interessada em orgias e festas regadas a álcool. — Tenho certeza que minhas histórias têm animado seus dias. - começo a escovar meus dentes e encontro seu olhar através do espelho em cima da pia. Não é só desgosto, ela tem fome naquele olhar. Se alguém lhe desse uma oportunidade de voltar no tempo e ser jovem de novo ela iria sem hesitação e viveria a vida como deve ser. No fundo seu olhar me transmite a inveja de ter

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tido Mateus e então se trancado em casa como uma boa dona de casa, mãe e esposa - até a morte de nosso pai, há três anos. — Você está cada dia mais ousada, Isabel. Veja só, eu ouço para saber exatamente em que enrascada você se meteu. Arqueio a sobrancelha direita e mamãe não segura meu olhar por cinco segundos, desvia rapidamente. Mesmo sendo negra, consigo ver seu rosto ficando vermelho. Deixo que ela finja que ao me ouvir não sente a mesma emoção que eu sinto em minhas aventuras diárias. — Hoje fui ao circo. - a afirmação inocente não a engana - Lembra de Denis? Amigo de Paulo? - ela assente enquanto guardo minha escova. Seguro em seu braço, o engancho no meu e nos guio até meu quarto, para termos privacidade. - Pois bem, o circo que está na Paralela agora é da família dele. Nem sabia que Denis era contorcionista. Fui para ver o espetáculo, fiquei encantada com o número dele. — Não explica a bebedeira. – mamãe, sentada em minha cama, mordendo o lábio inferior e segurando uma mão na outra com força, não é novidade para mim.


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— Ele é realmente um bom cara, mas bebi um pouquinho demais na volta, para tirar o gosto do irmão gêmeo dele da boca. — Você saiu com Denis, mas ficou com o irmão dele? — Eram gêmeos! Como eu ia saber disso? É como um pacote de pegue um, leve dois, então me diverti bastante. Quando o movimento diminuiu nós fomos para a Casa Dos Espelhos. acabo suspirando, o momento gravado na minha mente. - Denis é lindo de morrer, imagine então dois? O irmão de Diego é a cópia perfeita. Olhos castanhos, barba rala, o cabelo dele tem dreads e os dois só se diferenciam nisso e na tatuagem que Diego tem na coxa esquerda, quase perto da virilha. — Isabel! Como você sabe que esse garoto tem tatuagem em um lugar tão íntimo? — Pedi pra ver. - mamãe arregala os olhos, eu sorrio. - Por que a senhora acha que fomos para a Casa Dos Espelhos? Eu precisava ver tudo em muitos ângulos. - mamãe se engasgar com o ar. — Aí que vergonha, você dormiu com os dois Isabel? Nessa tal Casa de… - aceno e ela engole em seco. - Virou uma devassa? — Estou aproveitando. Qual o problema? Mateus uma vez trouxe duas meninas e passou com elas para o quarto na frente da família toda. — O quê você fez nessa casa dos espelhos? - sorrio. Estou em pé, na frente da porta fechada.

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Chego mais perto de mamãe, sento ao seu lado e mantenho minha voz baixa quando começo a falar. — Descobri que os dois têm um número especial assim que começaram as apresentações no circo. Um quadro lindo, os dois conseguem emparelhar uma garota entre eles. Juntos são como um sanduíche humano, não sei onde começa um e termina o outro. A garota sortuda, também contorcionista, faz parecer tão fácil que eu pedi a Denis para me ensinar. — E ele? - mamãe lembra claramente de Denis, o amigo do meu ex poderia ser um deus africano, ou melhor, um rei, de carne, osso e gostosura. Sua pele quase brilha, de tão escura. O queixo é forte e quadrado e os lábios… Ah que lábios! Grossos, deliciosos e macios em qualquer parte do corpo que tocam. — Meu amigo queria que eu aprendesse. A senhora sabe, eu sou uma aluna aplicada. - baixo mais ainda a voz. - Ele foi tão bom quando me co… Interrompo a narrativa e suspiro propositalmente. — Ele foi bom fazendo o quê, Isabel? Você quer dizer te comen… - ela nem completa, mas o sussurro é urgente, aceno com a mão para que chegue perto. — Conduzindo, mamãe! Que mente poluída! - com os lábios comprimidos, ela levanta furiosa. — Não vai contar? Tudo bem! Mas estava perguntando para seu próprio


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bem. Onde já se viu… Nem sei o que você anda fazendo. — Estou vivendo. — Ter aula de acrobacia é viver? - o desafio em sua voz é petulante e seus olhos pegam fogo. — Não, mas o sexo durante aquelas quatro horas abençoadas é um bom começo. - minha mãe senta, curiosa. — Com dois? E o respeito? - seus olhos desmentem sua pose moralista, posso ver as engrenagens de sua mente mexendo de forma atabalhoada. — Isso é liberdade de verão. — Sem vergonhice! - suas mãos, no entanto, abanam com força e eu alcanço meu celular na cômoda ao lado da cama e abro o Instagram de Denis para que ela veja as fotos. — No verão ninguém é de ninguém, né, minha mãe? — Eu sou de mim mesma! - afirma categoricamente, mas seus olhos estão comendo Denis e quando eu clico no perfil de Diego a velha quase enfarta. — Hoje vou ao cinema. Mas ganhei um ingresso dos garotos. Já disse que não

posso ir hoje. - tiro o ingresso da capa do celular e coloco na mão dela e levanto devagar para não despertar suspeitas. - Para o circo? - mamãe estuda o ingresso de forma minuciosa e eu alcanço a porta. — Sim. Eles estavam animados quando eu disse que daria a senhora. Foram muito gentis, mamãe. — Oh! — Vou te dar um conselho, mãe. Não de filha pra mãe, é de mulher pra mulher mesmo. — Qual o conselho, Isabel? - quando ela levanta a cabeça, meu sorriso se espalha em meus lábios. — São dois na verdade. - faço uma pausa dramática - Encontre com os gêmeos hoje, na Casa dos Espelhos… Ah, leve camisinhas extragrandes. mamãe está tremendo, o ingresso chega a cair de suas mãos e eu corro pela minha vida depois de gritar a plenos pulmões o segundo conselho: — E divirta-se!! Hoje ninguém é de ninguém, dona Matilde!

https://medium.com/@ilanasodre

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Iracema de Alencar Jacarepaguá/RJ

Materna sepultura

Dancemos nós já todas três, minhas amigas, Debaixo destas amendoeiras floridas, E quem for formosa, como nós, formosas, Se um brotinho amar, Debaixo destas amendoeiras floridas Virá dançar. Dancemos nós já todas três, minhas irmãs, Debaixo deste ramo destas amêndoas,

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E quem for bonita, como nós, bonitas, Se um brotinho amar, Debaixo deste ramo destas amêndoas Virá dançar. Por Deus, minhas amigas, enquanto outra coisa não realizamos, Debaixo deste ramo florido dancemos, E quem for bela, como nós somos, Debaixo deste ramo assim que nós acharmos a materna sepultura dançaremos.

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Iraci Marin Caxias Do Sul/RS

A Terceira Mulher Morava sozinho pela segunda vez.

Às vezes, sentia satisfação com

Primeiro foi a Leonora. Era alegre e

as lembranças que recuperava nas

parecia iluminada. Fazia amizades com

fotos antigas da família, quando

facilidade, e ali estava um problema. Ou

ainda era jovem e moravam no

mais de um. As situações foram se

Vale. Eram fotos de um tempo de

misturando, se acumulando e ele perdeu

aconchego, de leveza. No presente,

o fio; o tempo, ou seu desejo, apagara

a vida tinha peso. O trabalho era um

várias

sua

subterfúgio. Não chegava a ser a

perspectiva, ela se comportava como

sua realização, mas era o amparo

esposa de todos. A desconfiança ganhou

das horas. Em casa, ah, em casa

volume,

e

era o caso.

desembocou num sofrível estado de

Outras

linhas

do

passado.

palavras

Na

ásperas,

convivência, até o findar breve.

alguma

Bem depois veio a Jacinta. Quieta,

vezes,

passagem

recente,

sem

recuperava da

existência

saudades

sem

se esgueirava para os cantos da casa

lágrimas.

quando ele chegava; queixava-se com

Leonora cantarolava pela casa, no

frequência, ou resmungava. Até nos

banho,

poucos

ela

morada do Vale. Jacinta limpava e

encerrava o momento com um “ai!”

limpava, tudo ficava brilhoso, até o

carregado de desolação, tristeza ou dor.

assoalho fosco ganhou cor.

Nunca teve certeza.

uma com seus escapes, às vezes ele

momentos

íntimos,

Tudo terminou

Apenas

e

fazendo-o

lembrar-se

comum.

dividirem com ele o seu tempo. Por

ele

a

procurou,

tateando seus seios. Sem esperar novo movimento, ela empurrou a sua mão e pulou para fora da casa.

de

Cada

pensava,

cama,

forma

da

sem aviso, completando os dias em Na

uma

recordava.

não

isto se distraíam consigo mesmas? Olhava-se

no

espelho

com

languidez todas as manhãs. Em

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

ocasiões do dia, lembrava suas mazelas,

uma

umas mais agudas, outras bem singelas,

crescer, como, numa outra direção,

e percebia que assim era sua vida,

cresciam

forrada de desconfortos. Repetia suas

para elas, florescendo no fundo do

camisas amarrotadas, as calças surradas

quintal,

e

a

floração fazia contraste com a vida

alimentação que ele mesmo preparava.

dele, apagada, igual a uma flor

Repetia o dia com as poucas palavras

seca, sem chance de floração, mais

que pronunciava. Mas não queria repetir

parecida com uma estrada cheia de

as experiências anteriores.

pedregulhos.

marcadas

pelo

uso

diário,

Nestes momentos de pensar em si,

situação as

que

buganvílias.

solenes

Talvez

ele

uma

e

percebia Olhava

belas.

terceira

Sua

mulher

percebia as contradições de um tempo

pudesse absorvê-lo num grande e

e a melancolia de outro. Ser cinzento

duradouro elã.

era

uma

condição

própria,

talvez

permanente, e sem a sua escolha. Era

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Mas onde estava esta mulher?


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Iram Leal Jacarepaguá/RJ

Campos Verdejantes Nos campos verdejantes a vida se renova, transborda, se transforma. Explode a alegria no coração do sertanejo e a esperança ressurge como se fosse algo inseparável dele mesmo. Os pássaros cantam como se estivessem em um concerto, expressando todo o prazer trazido pelas primeiras chuvas de janeiro. Nos campos verdejantes o prazer de viver desabrocha desde os primeiros pingos de chuva fria de inverno, ou dos primeiros raios de sol que surgem a cada manhã. Nos campos verdejantes encontro-me com minha essência. Sinto-me livre. Viajo em meus devaneios. Aos campos verdejantes quero retornar e permanecer até o meu último suspiro. Até meu último sopro de vida.

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Ivo Aparecido Franco São Bernardo do Campo/SP

Toque de humanidade Quando Bruce falou Sobre um toque de humanidade Nas ondas de uma FM qualquer Muitos não entenderam, nem entenderiam

Só uma fração bem pequena Dentro da catedral de Stanley Spencer Bem pouco para quem ocupara o universo inteiro!

Primeiro colonizaram nossa terra Depois tomaram a matéria prima Em seguida povoaram o espelho Com milhões de demônios indomáveis

Caberia a mim a difícil tarefa de ressuscitá-lo Por isso, sou feito aos pedaços! Apenas alguém abstrato Os outros só não enxergam isso Porque também são abstrações

Eles vieram dos tubos catódicos Do padrão RGB E distorceram minha imagem latina Transformaram-na quase em Medusa

Meu corpo é feito de igrejas destruídas Anglo imagens distorcidas Ideologias mal resolvidas Por isso ressuscitei Deus!

Quando isso aconteceu Não pude fazer nada Pois em algum lugar do espaço-tempo Nietzsche e Marx matavam Deus

E foi assim que renasci várias vezes Muitas delas, fissionado em partículas quânticas Reunidas no multiverso do modelo padrão Pois tudo começa e termina no absurdo!

Deus era senhor do tempo Deus era senhor do espaço Mas não do espaço-tempo Não sobrou muita coisa do Corpo celestial

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JAX

A menina, o menino e a casa mágica A

menina

e

o

menino

estão

Aprenderam, num instante, que

eufóricos com a descoberta de uma casa

o lobo somente tem o nome de mau.

mágica na qual tudo acontece e é

Não passa de um cachorrão manso,

possível.

grande ator que finge perseguir os

Quase todos os adultos com quem conversaram

porquinhos (chega a babar como se

sobre

o

assunto

estivesse

magia

como

simples

espetáculo, vai com eles tomar um

truque para entreter plateias. Os poucos

chope no bar da esquina. Aliás, basta

que acreditam em magia, dela têm

olhar a barriga dos quatro para ver

verdadeiro pavor. Chegam a benzer-se

que gostam muito de comer e de

quando mencionam a palavra.

beber. Folgazões, vivem no seu conto

consideram

a

faminto).

Findo

o

Entre a incredulidade da maioria e

de fadas como se a vida fosse fácil.

o medo da minoria, as crianças sabem

Não é bem assim, mas cada um se

que existe um ponto de equilíbrio, que

ajeita como pode.

elas já descobriram sozinhas.

Quando

A magia existe e pode quase

batente

seus

permitem,

eles

de

têm

a

sempre ser do bem. Basta a dose

companhia

correta de coragem e bom-senso para

Vermelho, embora ela procure ser

lidar com ela.

ajuizada e não exagerar na cerveja.

A menina e o menino eram ainda

Trata

da

horários

de

manter

Chapeuzinho

a

silhueta

para

bem pequenos quando descobriram a tal

quando for jovem e adulta. Quem

casa.

sabe

Na

primeira

vez

em

que

ali

entraram, é verdade que se assustaram um pouco. Deram logo de cara com os

não

encontra

seu

príncipe

encantado? Na

visita

seguinte

à

casa

três porquinhos, perseguidos pelo lobo

mágica, as crianças maravilharam-se

mau.

com as aventuras de outro menino,

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

pouco maior do que elas, que percorre o

ver a precisão das flechadas e logo

mundo a bordo de pequeno veleiro. Não

propõe à menina que desenhe um

se trata do jovem capitão de quinze

belo alvo colorido para se divertirem

anos,

em seu quintal.

nem

de

Nils

Holgersson,

conhecidos personagens da literatura

Alguns dias depois, é a vez de

infanto-juvenil, mas o explorador mirim

D. Quixote entretê-los com seus ares

também faz das suas, para encanto de

de pretenso cavaleiro andante, mas

quem o acompanha.

de triste figura, à imagem do seu

A menina e o menino admiram-se

pangaré

claudicante

(a

rima

é

das peripécias que o petiz vive em

meramente casual). A menina e o

diversos

África,

menino contêm o riso, no entanto,

impressionam-se com o conhecimento

pois enternecem-se com o drama do

que ele tem de tantas espécies vegetais

quixotesco sonhador.

e

lugares.

animais.

Na

Ficam

sensibilizadas,

Ambos

vibram

delirantes

demonstra pela Natureza. Seria bom se

Munchausen. Seria possível alguém

todos

enfrentar tantos desafios e sair são e

valorizar

assim

melhor

esse

e

soubessem mundo

que

também é uma casa mágica.

do Barão

as

ademais, pelo carinho que o navegante fossem

aventuras

com

de

salvo? Bem, a magia funciona dessa maneira: o que parece impossível às

Na companhia do pequeno herói,

vezes traduz certa falta de vontade

os dois sobem as montanhas dos Andes,

ou

navegam

Amazonas,

aprendem a importância de esforçar-

atravessam as Rochosas, no Canadá,

se, de dar tratos à bola até chegar a

visitam

e

uma solução pelo menos razoável

experimentam comidas exóticas na Ásia.

para o desafio. Solução perfeita é

Quanta novidade para descobrir!

querer demais. Só o bom Deus tem o

pelo castelos

rio na

Europa

Em outra ocasião, as crianças

de

imaginação.

As

crianças

dom da perfeição.

conhecem ninguém menos que Robin

Em mais de uma oportunidade,

Hood! O célebre arqueiro encontrava-se

a turma do Picapau Amarelo está

na casa mágica, a praticar com seu arco

presente na casa mágica. A menina

e flechas certeiras. O menino gostou de

aprecia

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a

inteligência

e

a


LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

sensibilidade de Narizinho enquanto o menino

vibra

com

a

valentia

do

Dos mistérios policiais aos do amor, muito mais vai ocorrendo para

Pedrinho. Ambos divertem-se muito com

estimular

os disparates da boneca Emília. Passear

freqüenta

pelo sítio na companhia dessa turma

Aventureiros

constitui um extraordinário prazer.

profusão,

Tristes, porém, ficam as crianças

a

imaginação a

casa

nela

ao

de

nobres,

quem

mágica.

aparecem

lado

pachorrentos,

de

em

cidadãos pobretões,

no dia em que veem dois batalhões de

mocinhas encantadoras, vilões, gente

soldados a defrontar-se. Que horror, a

feia, gente bonita, jovens, velhos,

guerra!

bichos

Chegar

a

tal

extremo

de

insensatez e crueldade nega a condição

variados,

deslumbrantes, o que for.

humana. Em terra de magia, alguém até

A

consegue assistir a essas lutas insanas

cessam

com relativa indiferença, por saber que

adquiriram o hábito.

são de mentirinha, mas ai de nós se

Crescem,

ocorrem na vida real!

locais

menina de

e

ir

o

ali.

menino Desde

casam,

não cedo

constituem

família e continuam a comparecer à

Mais aprazíveis, para a menina e o

casa mágica, na companhia de filhos

menino, parecem as inventivas charadas

e netos. O gosto pela magia há de

decifradas pelos detetives da sua casa

perpetuar-se por gerações a fio.

mágica. Charlie Chan, Sherlock Holmes,

Para quem não descobriu, o

Arsène Lupin e tantos outros craques

verdadeiro nome da casa mágica é

em resolver mistérios desfilam ante seus

biblioteca.

olhos,

a

surpreendê-los

deduções.

Quantas

com

suas

Com

situações

aventuras,

enigmáticas surgem e desvendam-se,

mil na

histórias,

infinita

magia

mil dos

livros.

para seu deleite! Março 2022.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Jeferson Ilha Santa Maria/RS

Epicentro A nova direita Olhos que não enxergam Ouvidos que não ouvem Cérebro que não raciocina Coração que não ama Êxtase Orgulho eufórico de destruição Um estado de ser destrutivo De incompreensão Incompreenseres Abalo O epicentro da imbecilidade Contra humano A nova direita Ou Os cristais sensíveis de não me toque https://www.facebook.com/jeferson.ilha @jeferson_ilha

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Joaquim Bispo Odivelas, Portugal

A angústia do dirigente na iminência do embate — Estou ansioso, Lampreia!; achas que vamos conseguir mostrar um bom jogo no domingo? — Presidente, estou convencido de que vai ser dos melhores da temporada. — Ah, ótimo! Adoro desfrutar de uma partida de futebol, no seu conceito mais puro: o embate vigoroso entre duas equipas de garbosos mancebos, virtuosos no tratamento de uma bola com os pés, envolvidos numa sã competição inspirada no lazer varonil, e comandados por duas mentes altamente estratégicas que analisam ao pormenor as forças e as fraquezas da equipa adversária. — Felizmente, nisso, somos dos melhores. — O adversário é difícil, hem!? — Muito difícil! Tive de chegar aos oitenta mil. — Então, quer dizer que estamos com força anímica para vencer! — Com tendência para 3–1. É o que está combinado. — 1? — Presidente, fica sempre bem um golo de honra, para abrilhantar a nossa vitória. — Mas, atenção; a forma física deles parece estar em alta. — Sim, mas a preparação física de véspera vai incluir uma jantarada bem

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regada. Só para alegrar um pouco a noite. — Jantarada é uma boa solução. E os nossos, estão motivados? — Muito! Já lhes lembrei que a claque ficaria muito aborrecida se eles não se esforçassem. — Ah, pois ficaria! E não é para brincadeiras… — Para nenhum se esquecer disso, já marquei uma conferência de balneário para a próxima sexta. — Conferência de balneário parece-me bem. E os árbitros? — O costume: nevadas ou bombons, conforme os gostos. Nevadas russas e chocolatinhos de Cabo-Verde. — Não há nenhum com gostos menos exóticos? — Um preferiu uma digestão em Ibiza. — Muito bem, Lampreia! Gosto de ver tudo bem encaminhado, mas, sabes, às vezes, temo que este desporto transmita, aos mais novos, uma imagem de competição desregrada; que se perguntem onde fica o desporto pelo desporto, o prazer do esforço físico, o ideal de que o importante não é a vitória, mas sim a participação.


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— O clube tem sempre a participação como lema. Queremos que as claques compareçam massivamente no estádio, com todos e com tudo — cornetões, matracas, very lights —, sobretudo quando a bancada adversária for poderosa. A bola é redonda e o nosso clube não tem proteção celeste, digamos assim. — Muito bem, Lampreia! E a pedagogia social, o fair play, a gentileza para com o adversário? Não nos esqueçamos que os jovens copiam, na vida de todos os dias, o que observam em campo! — Se o Paulinho Quebra-ossos tiver que meter os pitões na fronha do Juvenal Gazela… é chato, mas é a vida. Às vezes, é a única maneira de acalmar um espírito demasiado fogoso e impedir um golo certo. Aí, é altura de o Juvenal mostrar o seu fair play e dar a outra face, não é? — Isso mesmo. Aprecio o espírito cristão. — Os espectadores gostam sempre de ver uma boa metáfora bíblica. Estamos à espera de quarenta mil. — Como é isso, Lampreia? Pensei que o estádio só comportasse trinta e três mil! — É! Mas não pude suportar a imagem de sete mil rostos juvenis, chorosos por não conseguirem ingresso. — Ah! Muito bem, Lampreia!; vejo que tens bom coração.

— Obrigado! O desporto sadio toca-me fundo. Acredito que é o melhor sustentáculo de mentes saudáveis e um formidável gerador de cidadania responsável. — Estou absolutamente de acordo. Isso e uma imprensa livre. — Sim, sai amanhã mais uma dose das escutas aos nossos adversários, que enviei aos jornais de referência: Offside, Penalty e Hattrick. — É isso que precisamos: jornalismo desportivo de investigação. — Já avisei os repórteres que a avença está a pagamento. — Perfeito, Lampreia! O desporto deste país nem sabe quanto te deve. Nem o clube de todos nós. — Cerca de seis milhões. Já fiz as contas. Mas não se preocupe; o perdão do empréstimo bancário do Banco de Benemerência Nacional ao clube já está assegurado. — Nem sei como te agradecer, Lampreia! — Sugiro um apoio vigoroso do clube à minha candidatura autárquica! — Podes contar com ele, Lampreia! Um amigo na Câmara é bom para o clube e é bom para o desporto. Bola para a frente!

http://vislumbresdamusa.blogspot.pt/

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Joaquim Cesário de Mello Recife/PE

Sapatos Velhos Em que lugares ainda me levarão meus sapatos? eles que me trouxeram até aqui eu que nem bem sei como cá cheguei As calçadas em que eles pisam já não têm as iguais pedras que sustentaram meus antepassados e os caminhos embora levem à mesma praça as crianças nela há muito já são outras Os sapatos conhecem todos meus aperreios e a agitação agoniada das pernas Aqui em cima em que carrego a máscara não sabem o íntimo dos espelhos o que tenho guardado embaixo nos calçados Meus sapatos de tão gastos jamais viram sapateiro prefiro-os assim: puídos, amassados e surrados não se deve camuflar a velhice dos agasalhos que hospedam no calor dos seus couros meus calos tantas vezes machucados Dos meus percursos conhecem os sapatos inclusive das minhas mais secretas pisadas dos encharcados e esburacados aos enlameados - minha mãe nunca me deixou andar descalço Ah! do que sabem meus sapatos nem aos confessionários revelo Os sapatos velhos se amoldaram aos meus pés ou será que foram eles que me fizeram?

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Joedyr Bellas São Gonçalo/RJ

“O Menino” As cruzes. Cruz credo. Em frente ao cemitério o menino não passava nem amarrado, nem ameaçado de morte, porque de morte ele iria para a última morada, como dizia o vovô quando o menino perguntava pela vó, a vovó foi para a última morada. E a última morada, na imaginação do menino, era onde moravam os fantasmas, as assombrações e o menino de fantasmas e assombrações não queria saber. Sabia da bola dente de leite no paralelepípedo e da seta no bolso de trás do calção onde ele carregava as bolas de gude e a seta quando ia pro morro caçar passarinho, não caçava, tinha pena e medo, se pelava de medo. Um dia ele falara todo de peito estufado, hoje vou pro morro e vou matar rolinha. E ele falara isso logo para uma senhora cheia de miçangas no turbante branco na cabeça e parangolés nos pulsos, dona Rosa, a Rosa das magias, dos feitiços, das rezas para desinchar pé inchado de cachaça ou de trabalho feito. Diziam até que ela reconstruía casamentos, mas que um belo dia, pela mocidade dela, toda bonita e fagueira, acabara com um casamento. O homem ficou bobão e caidinho por Rosa, nessa época ainda era Rosa, só Rosa, eu já a conheci como dona Rosa e dona Rosa falara para o menino que rolinha era bichinho de Deus e quem matasse rolinha ou qualquer outro bicho da criação ia penar dentro do cemitério. E desde esse dia o menino nunca mais matara passarinho algum. Subia o morro com a sete no bolso e ficava sentado em cima de uma pedra encantado com a passarada. Desconfiavam os colegas do menino que ele nunca matara passarinho nenhum. Nem calango. Cruz credo. E o menino levava a vida dele assim. Pés no chão. Brigava por Ritinha, corria atrás de borboleta, pegava tanajura pra vó fazer farofa, tanajura na cabeça dele não estava na lista dos bichos que não podia matar. A galinha ensopada no fim de semana com batata também não. De bife de boi com farofa e batata frita não precisava nem de arroz nem de feijão, a mãe obrigava. Então ele comia

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tudo. Feijão com arroz, farofa, batata frita e bife de boi. Boi podia matar. É alimento, pregava dona Rosa, o que se come, o que mata a fome do homem, pode rezar uma reza a Deus e sacrificar os bichinhos que iam pro prato e pra barriga do homem. Dona Rosa gostava de conversar com o menino e o menino arregalava os olhos com a conversa de dona Rosa. Mas em frente ao cemitério ele não passava, quando passava, sempre junto com a mãe e dentro de um ônibus, fechava os olhos, abaixava a cabeça e não queria nem saber. As irmãs dele, as mais velhas, uma namoradeira a outra querendo casar, viviam falando de caçoada para o menino que os fantasmas e as assombrações pegavam menino que passava em frente ao cemitério. Ele tremia. Arregalava os olhos, chorava, fazia queixa pra mãe, a mãe ria, o avô ainda implicava mais um tanto e ria de se escangalhar, de botar a mão na boca e não deixar que os dentes escapulissem para fora da boca, uma vez os dentes do vovô ficaram grudados no pernil de porco, outro bicho na lista dos que podiam matar. Fora um nojo só. O menino correra para o banheiro, as irmãs do menino esconderam o riso e a mãe das meninas e do menino pegara a dentadura, limpou, entregou ao vovô e o almoço acabou naquela hora. O avô amuado sentou na cadeira de balanço e ficou olhando distante, bem longe. O menino saiu do banheiro, sentou no colo do avô e falou pro vô que ele morria de medo de cemitério. O avô riu e, depois desse dia, o menino foi crescendo cada dia mais um pouquinho e o medo de cemitério foi ficando pra trás, balançando numa cadeira de balanço no colo do avô.

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Jorge Gonçalves de Abrantes Lastro/PB

O Livro do Poeta Certa vez Um poeta disse que talvez Fosse sua vida um livro aberto! Eu, porém, vos digo, Estimado e ilustre amigo: A minha vida é um livro entreaberto!

https://maldohorror.com.br/poebos-abel/

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José D’Assunção Barros Rio de Janeiro/RJ

Só Ando Só Eu só ando só... E sempre riem de mim aqueles que andam juntos em matilhas de cães Eles gargalham alto ou debocham baixo. Seus olhares parcos buscam estranhezas em mim só para tentar explicar por que eu ando só Jamais aceitariam, senão estupefatos, que eu prefira o silêncio ritmado dos meus passos ao ruído das novas piadas velhas que todos eles exalam. Se pudessem interditariam minhas viagens: Colocar-me-iam à força em uma excursão de turismo com roteiro previsto e previsível. Se tal direito tivessem me cobrariam relatórios dos lugares por onde estive: onde, quando, e – sobretudo –

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nunca só Mas contrariando a moral do rebanho meus passos confiantes e solitários continuam a desafiá-los. E eu só ando só Nunca me perdoarão por preferir o suave murmúrio dos regatos às suas piscinas borbulhantes e dançantes ou por escolher o brilho sereno da lua contra o fogo de neon de suas discotecas bruxuleantes Por fim, a noite termina, e eu só ando só enquanto todas as matilhas se dispersam …

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José M. da Silva Rio de Janeiro/RJ

Rap da Revolta fico ouvindo você falar da fome e do abandono e das balas perdidas sentado aí na sua poltrona confortável com as pernas cruzadas e comida no prato seus filhos vão pra escola particular com livros novos publicados neste ano você viaja, você se diverte, você come fora, você se protege, você tem dinheiro no banco e eu fico aqui rindo do nada porque tenho nada e nada perco a risada é de graça nada contra sua riqueza mas você não sabe nada da nossa pobreza você viaja de helicóptero do seu escritório pra sua prefeitura com o chão encerado eu leio no jornal com meu português sofrível que você tá sendo processado a televisão informa que você roubou, matou, corrompeu e continua solto e recorrendo sinto na carne a justiça que só vale pros outros enquanto você sorri satisfeito e aliviado você briga com o inimigo e depois faz as pazes como se tudo fosse natural nada contra sua esperteza mas você não sabe nada da nossa infinita dureza ouço vocês falando de democracia, igualdade, melhorias, povo e educação mas meu filho está fadado à pobreza, ignorância e violência contra o próprio irmão os filósofos e sociólogos e antropólogos e especialistas e donos da voz soltam o verbo acusando e defendendo com frases empoladas que eu não entendo e não sei rebater vocês falam de deus e representam a família mas fazem aborto quando a filha ameaça a eleição nada contra sua hipocrisia mas você não sabe nada da nossa agonia

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você diz que conhece o brasil e entende o problema do sujeito das ruas acho que não porque quando chove continua tudo alagado quando eu fico doente morro na fila porque o médico fantasma está com dor de barriga você fala em distribuir riqueza e acabar com a linha da pobreza mas o morro continua morro, o rico continua rico, o pobre continua pobre, fodido e sacrificado nada contra seu desprezo mas você não sabe nada do nosso povo indefeso agora é moda falar na constituição e ser contra a corrupção no politicamente correto mas meu bolso está vazio, minha mesa sem comida e meu coração um vácuo total eu parcelo, me endivido, não durmo e dou a volta porque não tenho nada a perder só pra ter o mínimo da subsistência, o mínimo necessário a uma mísera existência, o mínimo de prazer você é capitalista, condena o comunismo, diz que é solidário mas não paga o fgts da tua diarista nada contra sua falsidade mas você não sabe nada da nossa necessidade eu trabalho, me esforço, ensino às crianças que o ódio não resolve os problemas mas é difícil ver você no shopping torcendo a cara quando o pobre entra pra ver como é que é sabe, eu tô cansando de tanta palhaçada, de ser o cu da sociedade e viver no sovaco do mundo não quero o que é seu, só queria poder dizer que tenho um pouquinho, uma coisinha à toa de meu o mundo gira, entra ano e sai ano e eu continuo aqui sem perspectiva, sem dignidade nada contra o que você faz e tem mas você não sabe nada daquilo que nos convém tem muita coisa errada no país, e não é de agora, a coisa vem de longe a política passa de pai pra filho, pra avô, pra chegado, pra marido, pra amante, e nada muda todo mundo sabe disso, tem jornal, tem revista, tem internet, tem muita informação

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só que a gente é enrolado, manipulado, sacaneado com a desinformação a gente é invisível, não tem trabalho, não tem dinheiro, não tem educação nada contra a sua preferência mas você nunca fez nada sobre a nossa inexistência a gente morre de doença que não mata mais ninguém no mundo afora a gente morre na pandemia a rodo e ninguém faz nada pra ajudar, pra vacinar morre gente na fila do hospital, a polícia mata e o policial sempre tem razão pobre, negro, gay e trans, e índios e quilombolas são massacrados todo dia o rico é cada vez mais rico e o pobre é cada vez mais pobre nada contra sua total desatenção mas você não sabe nada sobre nossa condição tô aqui na minha quebrada, olhando pro céu, rezando pra não chover já perdi tudo duas vezes e já nem sei o que fazer, não tem como se proteger é difícil entender vento tudo na tevê, no ar-condicionado, lamentando as imagens amanhã é a mesma coisa, choveu demais, não foi previsto, é impossível de prever e a gente perde tudo, casa e vida, perde saúde, perde a dignidade e nada acontece nada contra o seu descaramento mas você não se importa com nossos sentimentos não importa a tragédia, não importa a tristeza, não importa quem sofre e quantos morrem não importa a rua alagada, a estrada interditada, a casa desabada, a família desmembrada não importa quantos morrem, não importa quem mata, não importa quem não tem esse ano tem eleição, tem asfalto, mentira, copa e carnaval, de olho no ano que vem é mamata, é roubalheira, a atenção é desviada, fake news, bbb, novela e propaganda nada contra sua inteligência mas você nem disfarça sua total incompetência não adianta berrar, não adianta brigar, é preciso resistir, é preciso agir tem que conscientizar, tem que conversar, tem que tentar, tem que insistir

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o passado nos condena, o presente é um absurdo, voltou tudo de ruim tem que ir em frente, preparar o futuro, expulsar quem não presta, pensar e analisar só tem um jeito de mudar, é preciso consertar, e pra isso tem que saber em quem votar já é tarde e vou embora mas antes de partir deixa eu te dizer nada contra você mas antes que eu me esqueça antes que eu desapareça pare de falar bobagem sobre o que não conhece aproveite o amanhecer e vá se foder repetindo pra ficar bem claro mais uma vez pra você entender nada contra você mas antes que eu me esqueça antes que eu desapareça pare de falar bobagem sobre o que não conhece pare de mentira e trairagem assuma que a pobreza não te apetece aproveite o amanhecer e vá se foder @microstoriesjms https://operamea.weebly.com/

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José Manuel Neves Almada/Portugal

Murmúrios do rio Sentei-me no cais e pus-me a olhar O rio que ia para o mar deslizando. Ouvi no murmúrio do seu ondular, O lamento das ondas soluçando. Era a saudade de levar nos braços, As quilhas das antigas caravelas. Era tristeza por ver só os pedaços Do orgulho que lhes enfunava as velas. Em todos os mares,a onde chegava, O rio ouvia falar dos homens valentes. Que com a força que os comandava, Ligaram pelo mar todos os continentes. O Sol apareceu e pintou-me na água Do rio, que embalou a minha sombra. Misturando a sua com a minha mágoa, Chorou o passado que já a poucos lembra. O rio continuou o seu eterno caminhar E olhando para traz disse-me adeus. Eu julguei ver umas mãos a acenar, Mas eram apenas ondas nos olhos meus.

https://joseneves.tambemescrevo.com/

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Josy Souza Juiz de Fora/MG

Canção do Vampiro

Sou alguém feito de sombras, não tenho interesse que me conheçam, não desejo me aproximar de ninguém. Todas as noites ela vem bailando ao meu encontro, com suas garras, ela me envolve debaixo do céu sem estrelas, encoberto por uma densa camada de nuvens escuras que escondem a estranheza de uma lua banhada em vermelho. Todas as pessoas a temem, mas não eu, pelo contrário, este é o meu mundo. Ela me acorrenta em seu ritmo insano. Eu me deixo ir, dançando sua melodia sombria. Entrego-me ao seu prazer, que se mistura ao meu, e, ao final, não sei quem: se ela ou eu. Na verdade, o que resta é o tormento, e descubro que a resposta não é qual dos dois, mas sim sua combinação, porque ela faz parte de mim, de quem sou. Irrevogável e mortal.

@josysouzaescritora

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Junior Valderano Diadema/SP

O Escolhido Por muito tempo, tentei descrever o amor Em versos e poesias, canções e cantigas. Que falam sobre o amor. Amar por si só, não é o bastante Então por que nos apaixonamos, Por quem não nos ama. E veneramos, quem não mereça se venerado. E gastamos tempo, dinheiro, papel e caneta Com um amor platônico. Que já nasceu predestinado, ao desprezo e a desilusão. Então por que não desistimos do amor. E passamos a escrever, sobre outros sentimentos, Alegria, tristeza, ódio, sofrimento, ingratidão e angustia. Nada disso adianta, paro e percebo o quanto te amo e não vivo sem você. E que não importa, se não me amas. Amo por você, amo por todos O amor me escolheu, no momento em que te vi. E apesar de tudo, sou grato. Por ser um louco apaixonado. Quantas pessoas vivem sem nunca ter amado.

https://www.facebook.com/junior.valderano/

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Leandro Emanuel Pereira Matosinhos, Portugal

Borboletear afncadamente Borboletas de cores indecifráveis; Tão belas na fluência; Usando as suas asas notáveis; Tocam o céu com sapiência... Não ousam ser indelicadas; Com o vento que as orienta; Mesmo que visadas; Por tempestade de passada lenta... Saciam-se com o néctar; Das plantas suas parceiras; E o seu pólen espalham ao viajar; Numa troca de cortesias lisonjeiras... E assim sem à natureza questionar; A sua posição hierárquica; As borboletas conseguem perdurar; Com harmonia idiossincrática...

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Letícia Érica Ribeiro Brasília/DF

Uma prosa qualquer Não, não senhor, meu avô não era doutor. Minha avó, a que me criou, não sabia escrever. Minha mãe não fez faculdade, não senhor. Ah, meu pai? Ele só estudou depois de eu crescer. Não, na minha casa não tinha livros, não senhor. Nunca fiz curso de inglês, nem natação. No café manhã, quase nunca tinha pão. Não, não tinha quem ajudasse a fazer a lição. Meu sonho? Meu sonho era chegar da escola e poder brincar, mas tinha que trabalhar. Às vezes, ia pra igreja, rezar pra eu aguentar. Rezar nos dá direção, o senhor tá certo. Isso mesmo, nos conduz à salvação. Não, nunca tive muito afeto, abraço, ternura. O carinho era escasso, igual que não tinha fartura. Mas não estou reclamando, não senhor! É, minha vida até que era boa, se não! Se não fosse... Deixa pra lá, o senhor não vai querer saber... Sofri vários abusos, durante a infância, mas por eu nunca ter contado, pensam que eu inventei. Até queria ter inventado! Como inventei várias vezes, que eu tinha um namorado. Só pra agradar o pessoal que falava que ser lésbica era coisa do mal.

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Mal sabiam eles que o mal vestia roupa de pastor, que abusava das "jovens" em nome do Senhor. Como não sabiam também que o que invocava a deus e pregava o amor tinha sido meu abusador. Igual ao que tentou me salvar com orações de descarrego e sessões de "cura gay". Não, imagina! minha vida não foi difícil, não! O senhor tá certo, de novo. Basta olhar como vivem as meninas no Sudão. Perdoa o senhor, acho que eu é que esqueci das bonitezas que me passaram. Eu sei, não posso me queixar, afinal sobrevivi. E essas cicatrizes, no corpo e na alma, são feridas que já sararam. É, o senhor tem razão! Essa tal de depressão é só uma doença boba, de quem tem mente vazia e não é agradecido. É eu sei, deus sabe de todas as coisas. Temos que tirar lição do vivido, porque na vida é assim mesmo, tem aquele que escolhe e aquele que é escolhido. Não! Deus me guarde de reclamar. Eu só estou lhe contando, porque o senhor me perguntou. Na verdade, eu só tenho que agradecer. Falando nisso, muito agradecida pela prosa!

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Lira Vargas Niterói/RJ

Chuva na Vidraça A chuva no passado, parecia diferente! Começava com gotas. Eu abria a veneziana e ficava olhando, torcia para não virar chuvarada, e a vidraça se misturava e borboleta se afogava, e eu chorava. Sabia que dia de chuva não podia ir ao parque namorar, ai que dor! Não podia ver o meu amor! O céu ficava cinza e a vidraça também, até o apito do trem era triste, o trilho brilhava e o farol também, ai de mim! Não podia ver meu bem. Os pássaros escondidos, numa folha qualquer e eu na vidraça batucava ansiosa, para a chuva parar de chover, queria ver meu bem querer. Subia ansiosa, na janela para ver, se no caminho tinha água da chuva que caia, E lá da cozinha minha mãe dizia :hoje ninguém sai de casa. Como casar? se chovia e não podia ver meu amor. Que horror! E torcendo para a chuva parar, de roupa nova, cabelos arrumados, blush no rosto e olhos pintados. Na rádio a melodia assim: descendo a rua da ladeira, só quem viu que pode contar, cheirando a flor de laranjeira “ e meu coração acelerado descia uma ladeira sem fim, ai de mim, que chuva ruim. E hoje passeando no passado, a chuva foi tão boa. Desci a ladeira e fui ver meu amor, de roupa molhada, ele sorria e dizia é linda minha flor de laranjeira, e eu toda faceira... Ai chuva que bom, no aconchego do frio, sorrindo assim, beijos molhados, roupas coladas e corpos entrelaçados. Chuva que ficou no passado e que fim! Ai de mim. E sem vidraça, sem pingos de chuva, sem borboletas afogadas, uma melodia triste assim: hoje vou rezar uma prece, que apresse a lembrança, que saudade! Que tristeza que nada, é um passeio no lugar que não se acaba, o passado lá longe, passado sem fim. Ai de mim. Ainda ouço o apito do trem, que saudade de meu bem! E olhando pela janela, ele não vem. Vejo uma estrela no céu, será ele também? Chuva na vidraça, passado que não passa.

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Lizédar Baptista Anápolis/GO

Pianjo d’Anjo 1

A terra rachada A vegetação contorcida Seca Chateada

Caíram luminosas como lamparinas Do firmamento plúmbeo Caíram as mais límpidas gotíc’las Em seguida, as mais densas gotas

Aquele bioma tão judiado Cerrado J’há muitos dias secado

Renascia O campo que morria

O céu ‘Cinzentado Fechado

Volvia A vida que já se perdia Revolvia A terra que há anos não mexia

Lá n’alto Qu’o mais alto planalto Chorou um marmanjo alado

Os campos secos vestiam-se de verde outra vez

S’as cristálicas lácrimas cálidas Expressaram empatia por sôfregas campinas

aquelas

As gotas

1

Assim como o deserto do Neguebe Teve uma ressurreição de truz E no fim Não há quem negue

Neologismo para choro proveniente do verbo piangere, chorar em italiano

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Luís Amorim Oeiras, Portugal

Tantas faces e vozes Se ela fosse divisível em fragmentos e

inclusive,

nenhuma das partes falasse consigo,

oposição

então desejaria por certo voltar a ser o

índoles

que antes fora e, caso tal verídico

aspecto nem conteúdo negativo, uma

refilasse, ele iria acalmar e fazer tudo

dualidade

por alcance em prol da conversa entre

caminho por altura então distante.

as

Hoje,

distintas

faces

apartadas.

Outra

só à

que

por

pretérita

envolventes que

tudo

constante

vivência, já

não

marcava

por

demais

o

as têm seu

afastado

opção, seria o pegar de chaves rumo a

parece, mas ainda que tantos rostos

outro lugar pois aqui já nada mais iria

ele apresente, tal é apenas uma

abrir

sem

multiplicidade curiosa de vozes que

qualquer futuro possível de envolvência

não podem ficar sintetizadas nem

agradável

no

sequer resumidas a uma só. Em jeito

longínquo passado. Quando este teve

de conclusão, talvez ela tenha levado

vigência, ela fora grandiosa e de nível

as chaves no trajecto mais pacífico

em personalidade altruísta e até na

que a libertasse de tantas faces a

paciência muito elogiada e aplaudida

rondar suas almas, mas como ele na

pela

actualidade tem diversas, numerosas

nesse

estado

como

de

se

comunidade,

constrangimentos

alma,

verificava

mas

ele

com

tinha vários

mesmo,

quase

se

dizendo,

vidas

caricaturais estranhos rostos e a fé que

inquantificáveis que aquelas múltiplas

ela colocou nele apenas pedia uma

vozes

calma

exigiram,

extra,

libertação

para

decisiva

que

é

libertadora

tanto

possível

numa

bem

perspectiva deveras plausível que ela

aparência sua como se fosse alguém

venha a encontrar-se durante o seu

similar no controlo do seu viver. Agora,

percurso

mais

contexto, seria talvez o ideal pretexto

ele

tem,

ele

ânsia

deixar

faces

até

houvesse

por

numerosas

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com

uma

delas.

Nesse


LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

para regressar enfim ao local de partida,

uma dessas faces singulares dele e

havendo ainda hipótese alternativa que

seguirem

se

prazerosa viagem.

possa

considerar

no

realmente

exequível, simplesmente ela dar boleia a

facebook.com/luisamorimeditions

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juntos

em

sorridente


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Madô Martins Santos/SP

O incansável pesquisador Há anos, meu amigo se dedica a estudar antepassados de sua família e de outras, por encomenda e diletantismo. Frequenta arquivos, pesquisa documentos escritos em português e outros idiomas, inclusive, arcaicos. Elabora árvores genealógicas com prazer e, encantado, torna públicas algumas histórias de parentes distantes, encaixando novas peças no quebracabeça de tempo e espaço. É seu hobby, quase obsessão. Por isso, quando morre uma celebridade, vai conferir sua origem, idade, relacionamentos, ordenando os fios que compõem o novelo de cada vida. Tenho a tentação de lhe pedir que desvende minha ancestralidade, porque nem mesmo sei o nome completo dos bisavós. É verdade que um primo, com o mesmo gosto do amigo, já me enviou longas listas com todos os parentes, mas nunca achei tempo para estudar a preciosidade. Sei que lacunas assim respondem por parte de minhas inseguranças. De quem teremos herdado, o pai e eu, o gosto pela leitura e escrita? Onde teria origem o jeito alegre e displicente de a mãe encarar a vida? Amava os quatro avós e o tempo todo que com eles convivi não foi suficiente para me

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contarem de suas mães e pais, tios, avós...Tínhamos tanto o que fazer e conversar naquelas casas acolhedoras, que me bastavam as informações e ensinamentos oferecidos espontaneamente pelos mais velhos. De todos os interessados nos antecedentes familiares, minha mãe foi a que conseguiu mais subsídios. Anualmente, os Emmerich se reuniam para trocar histórias, e lá ia ela com os irmãos. Chegou a conhecer o brasão da família e nos trouxe uma cópia impressa. Conversou com primos e tios de vários graus, vindos de toda parte do país. E contava que os mais ousados planejavam viajar para a Alemanha, a fim de investigar a fundo sobre propriedades lá deixadas e jamais reivindicadas. O grupo, porém, era restrito. Dele participavam apenas os que traziam o sobrenome na certidão de nascimento, o que não era meu caso ou do pai ou da irmã. Assim, quando os ânimos se exaltavam em casa, a mãe nos chamava de “vocês, os Martins”, mostrando o quanto éramos distantes de seu clã. Emmerich não consta no nome das duas filhas, porque ficariam


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extensos demais. Às vezes, me ressentia de não tê-lo, diante de alguma rua ou fato histórico em que os titulares eram protagonistas. Na escola, nunca souberam que um dos parentes trouxe para a região o bonde puxado a burros e eu temia contar, com medo que não acreditassem. Nunca divulguei que uma boa parte de São Vicente pertencera à família, nos áureos tempos em que os trisavós vestiam camisas com botões de brilhantes. O trabalho de meu conhecido genealogista oficializaria fatos como estes, dando-lhes a devida credibilidade e separando lendas da realidade. Por enquanto, meu passado se assemelha a uma nebulosa onde brilham estrelas anônimas, sem nome ou rosto. Mesmo que nada tenha a ver comigo, vibro com a persistência do amigo, que volta e meia traz à luz fotos de vilarejos onde moraram seus

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antepassados, atas centenárias ainda legíveis, relatos fantásticos, tanto de mulheres à frente de seu tempo quanto de mortes trágicas, inclusive, por fome. Revelações que parecem tiradas da cartola de um mágico, mas que demandaram sempre muitas horas de dedicação e estudo. Recentemente, ele voltou a surpreender. A morte de Lygia Fagundes Teles o fez levantar dados sobre a escritora, o que revelou sua verdadeira idade, entre outras curiosidades. De sua pesquisa constam as certidões de nascimento da acadêmica e do primeiro casamento, além de informações sobre o primeiro livro jamais republicado. Coisas de quem leva a sério a história da humanidade e a ela dedica boa parte de seu tempo, junto às atividades profissionais de jornalista e escritor, de onde, por certo, lhe vem toda essa inquietação.


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Marcel Luiz Contagem/MG

Lição de casa / escrever não escrever / talvez crer / sem obrigação / se muito / ler - melhor não / então pensar / caminho sem volta / ou viver / única opção / enquanto arte / rimar com morte / eu posso / sentar e olhar / o início do pôr-do-sol / eu posso / sentar e olhar / o fim do pôr-do-sol / escrever / razão & motivo

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Marcos Rocha Teixeirópolis/RO

Refexão

https://instagram.com/poetarmarcosrocha?utm_medium=copy_link

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Maria Carolina Fernandes Oliveira Pouso Alegre/MG

O absurdo Moro numa casa de gente branca construída por gente preta (por muita gente preta porque é uma casa grande). Eu faço reciclagem pra gente preta recolher todas as quartas e todas as sextas meu banheiro é limpo por uma mulher preta. Minha casa está sempre cheia de gente preta assim como no Brasil tem sempre mais gente preta do que branca nessa casa de gente branca então como é que dizem que ainda existe racismo?

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Maria Eduarda dos Santos Uberlândia/MG

Cria(n)do em contornos Um ponto. Feito um ponto a partir de

aquele primeiro ponto que um dia foi

um lápis. A feitura desse ponto não se

seu e sempre tem no meio do outro

condiciona a uma parada, quando o lápis

contorno, o novo, algum ponto esqui-

se encosta na pontinha esquerda da fo-

sito que é a um de seus pontos fami-

lha, não há quem o pare, contudo, não

liar ou que diz ao contorno primordial

há também, quem o mova em uma con-

coisas ainda não sabidas sobre ele.

dução ideal, mesmo ela sendo pelo eu

Às vezes, por acaso, sorte, astros ou

preterida.

qualquer pretérito perfeito o lápis se

Um esbarrão aqui, um escorregão ali e

distrai e rabisca por mais tempo que

pronto, tá feito um contorno. Nesse con-

deveria as linhas desses dois (ou três

torno as primeiras inscrições que deram

ou quatro…) contornos diferentes, e

forma e lugar ao ponto são rememora-

juntos, eles, com seus pontos mil em

das, mas ele não é mais um ponto.

consonância, formam na linha do

Talvez, um ponto pode até ser sempre

tempo algo que chamamos de arte.

ou quase sempre, em alguns casos, um

Outras vezes o lápis não é tão gene-

ponto, mas um contorno já não é um

roso assim com o tempo e o contorno

ponto, é um conjunto deles e vez ou ou-

apenas dá uma nuance nova ao pri-

tra esse conjunto de pontos, por uma

meiro e ele segue sozinho contorna-

esbarrada de lápis, encontra outro con-

do.

junto de pontos. Aquele bom e velho

Nessa grande e tortuosa “linharada”

contorno não está mais só, um novo

artística, o ponto segue sempre con-

contorno nele foi criado. Agora, a ponti-

tornado pelos seus e pelos pontos do

lhada toda se alvoroça.

outro. O lápis é sempre contingente e

O primeiro contorno, as vezes vê no se-

quem o segura (ou o distrai) não so-

gundo, algum ponto que lhe lembre

mos nós.

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Maria Inácia Natal/RN

Casulo Há tanto tempo não leio um livro, tanto tempo que não sinto o arrepio de entrar na história que uma boa leitura dá. Nas histórias, me via como criança, me sentia como o Sancho pança, que na história Miguel de Cervantes, pôs-se a contar. Hoje, realmente me sinto como criança, sem forças nas mãos, preciso de alguém que histórias para mim possa contar. Limitei meu corpo, por um erro, pois naquele momento, não conseguia meus desejos controlar. Bebi exageradamente, fiz outras coisas que a minha mãe não queria saber, que o seu filho realizará. Traí minha rainha, minha turmalina. Espero que possa me perdoar. Já não consigo andar como antes, mas encontrei uma amiga, ela me ajuda e eu também vou tentar a ela ajudar. Vou tentar me afastar da dor, pois somente o amor, a conseguir apagar. Sempre fui menino, mesmo em um corpo adulto, sorria, pulava, me divertia... como disse, hoje estou limitado, mas não limitei a alegria que sentia. Só o amor transforma, a raiva nos endurece, o rancor envenena. Sou invejoso, ciumento, minha atual condição, não me fez uma pessoa melhor. Mas, com a ajuda da amiga, me sinto menos pior. Amem suas mães, as escutem e mesmo que pareçam rudes, elas só querem todo o bem para vocês o mundo possa oferta.

https://www.youtube.com/channel/UCGKDNP9W3LhWxIm5hyIol5g https://www.instagram.com/inaciamusic/

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Maria Luiza Vieira Silva Arapiraca/AL

Eu não sei. Eu não sei o que dizer.

deixando sem ter onde me apoiar, me

Poderia ser apenas isso, apenas essa

deixando sem forças, e parece que

frase e só. Porque eu realmente não sin-

você gosta de me ver cair. Eu te olho,

to como se conseguisse falar sobre isso,

mas não te vejo mais. Me dói ver em

eu me sinto angustiada, meu peito dói

você a sombra de um estranho. Seus

tanto, e entre tantas pessoas, eu nunca

olhos estão tão vendados, que por

achei que seria você a fazer isso comigo.

mais que eu grite, por mais que eu implore, você não consegue enxergar

Eu não sei o que dizer. Eu poderia sim-

o mundo a sua volta. Você enxerga

plesmente parar de escrever, mas eu es-

apenas a sí.

taria deixando de ser quem eu sou, e isso é o que você quer! Eu não vou dei-

Eu não sei o que dizer.

xar você me tirar de mim.

Eu pude ouvir a carne se dilacerando

Eu sei que você não entende a minha

em meu peito

forma de ver o mundo, mas isso não

O tom amargo da sua voz, tirando a

significa que ele não funcione, assim

doçura de tudo que há de bom

como o seu. Ele apenas funciona de uma

Seus gritos ecoando em minha cabe-

forma diferente e isso não o torna pior,

ça

pelo contrário.

Mas bem, eu não sei o que dizer Apenas sei que eu tentei

Mas bem, você não quer realmente ten-

Não só tentei te falar

tar entendê-lo, você nunca tentou, ou

Não só tentei conversar

tudo seria diferente agora. Você não en-

Não apenas tentei me importar

tende, então apenas tira pedaço por pe-

Apenas sei que tentei, eu tentei es-

daço de cada carne do meu corpo, me

crever sobre você

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Tentei escrever cada palavra, para ver se essa dor que fez morada em mim se

E se eu não sei, para que escrevo?

esvai. Mas existem dores que são dolori-

Bem, também não sei. Apenas sei,

das demais para serem escritas

que tudo que escrevo é poesia, então

Existem dores que simplesmente

não

porque desperdiçar o que para al-

saem do talo da sua garganta para ir

guém pode soar como uma linda me-

parar em uma folha de papel. Mas eu

lodia?

tentei escrever sobre você. Eu tentei, eu apenas não sei o que dizer.

https://www.facebook.com/marialuiza.vieirasilva.927

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Maria Pia Monda Belo Horizonte/MG

Mais bonita do que eu A mulher pela qual você me largou é mais bonita do que eu. Não estou dizendo isso por falsa modéstia. Sei que nunca fui particularmente atraente e reconheço que o tempo esculpiu minhas feições, em si mesmas já ásperas, de tristeza e desconfiança. Nem digo isso por inveja, embora desde a primeira vez que a vi, entendi o motivo, não só da sua escolha, mas também do nosso terrível fracasso. Você tinha passado para pegar uma camisa de time, uma das muitas coisas que você deixou para trás e que ocasionalmente vem buscar aqui, na casa que dividíamos. Se eu não soubesse que você não sente mais nada por mim, eu poderia confundir esses episódios com meros truques que você usa para ter certeza de que eu não me esqueça de ti. Mas, não. É apenas egoísmo. Você quer que eu não guarde mais nada do que é seu. E eu até compreendo o porquê. Para tornar sua tarefa mais difícil, toda vez que eu tropeço em algo que reconheço ser seu, eu escondo. Faço isso também para mim- eu admito- embora eu não consiga dizer que vantagem essa atitude me traz. Eu tinha enfiado aquela camiseta no fundo da minha gaveta das calcinhas; queria que você se sentisse constrangido e envergonhado de vasculhar nela. Você estava já há alguns minutos no quarto onde havíamos passado milhares de noites e, pelo jeito que você abria e fechava portas e gavetas, imaginei que você estivesse nervoso. – Quer tomar um café? - Gritei da cozinha. – Estou com pressa. - Você respondeu. - Rita está em baixo, me esperando. Não pude resistir. Larguei a moka que, apesar da sua recusa, eu começara a encher e saí na varanda. Olhei para a rua e lá estava ela, encostada na porta do seu carro. Imagino que estivesse muito quente para ela ficar sentada dentro de uma prisão de metal, plástico e vidro temperado, esperando por você. O privilégio de olhá-la de cima para baixo, devido à posição que eu ocupava, não amenizou o desânimo em constatar a beleza dela. A harmonia do rosto era um todo, que eu imaginava juntando os poucos detalhes que um ponto de vista complicado me permitia recolher. A ponta fina do nariz, as

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raízes dos cabelos perfeitamente retocadas, a linha mandibular, desenhada como um arco delicado e leve, eram suficientes para eu ser ciente do fascínio dela. A roupa que ela usava, ressaltando a cor da pele e as formas sensuais da figura, era indício de uma elegância inata que, em mim, eu nunca reconhecera. Eu estava me concentrando sobre a postura dela, visivelmente descontraída e esnobe, quando você se aproximou. Vacilei, sem esconder meu embaraço. — Achou sua camisa? — Não. — Se eu a encontrar, te ligo. — Não precisa se preocupar. — Ela é bonita. - Eu disse de repente, indicando para baixo. Você não retrucou nada. Algo no seu olhar parecia me convidar a mudar de assunto ou a ficar calada. — Estou falando sério. Ela é muito linda. Você sacudiu a cabeça e se dirigiu para a sala. Quando chegou na porta, nem se virou ao me dizer - A gente se vê. Fiquei na varanda, pelo tempo necessário ao te ver sair do prédio e te encaminhar em direção dela. Vocês se abraçaram. Depois, quando se separaram, você rapidamente se voltou e olhou para cima, olhou para mim. Ela intuiu a direção do teu olhar e olhou também, ela me olhou também. Com uma expressão de desafio, de superioridade, talvez de desprezo. Depois disso, cada vez que a encontro, a certeza se torna mais sólida. Mesmo que, às vezes, eu ache um defeito nela, mesmo que, afinal, ela não seja tão bonita, eu preciso acreditar que ela é maravilhosa. A mulher pela qual você me largou é mais bonita do que eu. Não estou dizendo isso com sinceridade. Só estou dizendo isso porque, se não o fizesse, a raiva que sinto por você poderia me sufocar.

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Mario Loff Tarrafal, Cabo Verde

Poema talvez o novo é ser invisível talvez o desconhecido é bem novo e íntimo o novo é bem jovem pelas bandas do quotidiano verdade mesmo, por esse tempo é proibido ser velho.

o problema está no mais novo? talvez até ser mais novo, proibido é ser velho, talvez até estar velho, aqui não entra ninguém com esse feitio de ser jovem, desde que andamos a puxar o tempo, e o desconhecido arranca o mais precioso de nós, Nós temos alguns instantes de apagamento.

por agora, o novo foi idolatrado e usado para viver e para matar, É proibido ser velho nesse tempo. é proibido sair sem a máscara se as nossas caras não for de um fulano novo, maus novos homens novos, por esse tempo é proibido ser novo, com esse nome no sangue, ser jovem. ser-se jovem.

é proibido ser se humano nesse tempo, sem máscaras e sem algo ácido, contra o tal ato invisível, meio morte e meia oportunidade, que venha as zaragatoas e um golpe de vida, anunciada, basta que antes de darmos por nós, o folgo seja só um perigo, contra nós.

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Mauricio de Oliveira Silva Vitória da Conquista/BA

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May Cass Teresina/PI

Zumbindo o caos interno "Tenho

tenho

O corpo pede uma pausa. Ontem

passado

trabalhei minha primeira hora extra.

morri, mas esse ano eu não morro" é a

Meu primeiro emprego de carteira

frase da letra musicada de Belchior que

assinada em um ano do começo do

não sai da minha cabeça, às vezes.

ainda incompleto caos que se instalou

chorado

pra

sangrado cachorro.

demais, Ano

A cabeça não para. Os pensamentos não

param.

O

zumbido

no

ouvido

também não para.

em 2020: uma pandemia do Covid-19 abraça o Brasil e com esse envolto laço milhares de pessoas já têm

Acabei de fechar o livro "Hibisco

falecido e caminhamos para rumo do

Roxo" da Chimamanda Adichie. Até ler

primeiro

silenciosamente faz barulho em minha

país.

mente. Descanso a mente em uma vaga

milhão

Como

de

infectados

sobreviver

a

no essa

parada: me deito. Olho para o teto de

tempestade ainda é uma incógnita.

forro pvc - ainda é o mesmo teto há uns

Governo desumano, governando por

6 ou 7 anos - não sei se ainda estarei

redes sociais e nos deixando com

nessa mesma casa neste novo Ano que

cara de pomba lesa, marcaram o

se iniciou, 2021.

cenário político de total descaso com

Zumbido nos ouvidos. Parece uma perturbação

que

foge

dos

sentidos.

Parece ao mesmo tempo tão subjetivo

a saúde, a educação, muito,

muito

com a CLT e

descaso

com

a

população em diversos setores.

que deixo o corpo berrar zumbidos de

Beiramos a ruína. Atravessamos

grilos altamente indecifráveis e altos

o caos em fagulhas de esperanças

demais

compartilhadas em bolos de fatias

que

ocupam

toda

a

minha

atenção.

minúsculas

como

se

fossêssemos

fazer o milagre dos 5 pães para 10mil

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pessoas

nessa

jornada

que

ENFRENTE

a

podridão

continuaremos, mais uma vez, em um

sentimentos/emoções

looping inverso: já sabemos o que cada

como os pensamentos não tão bons

um pode e deve fazer por si mesmo e

que surgem para fazerem barulhos na

pelo próximo, muito mais que álcool em

mente.

gel nas mãos, muito mais que ficar em

A

minha

escrita

ruins,

dos

é

assim

uma

voz

casa recebendo o salário de concursado

silenciosa que embala a minha mente

(a), ou mesmo a aposentadoria. Esse

e me fala no meu inconsciente: não

novo ano, nos pede ENFRENTAMENTO!

vou te deixar sozinha enlouquecendo.

ENFRENTE a pobreza interna que te corrói as vísceras;

Escreve que eu estou contigo. As palavras se tornam a voz que tanto

ENFRENTE a inveja dos que você admira e que te servem como ambição

quis ouvir. E o zumbido no ouvido continua.

para chegar onde deseja;

https://www.instagram.com/mayaracass/

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Mayara Lopes da Costa Santos/SP

O Brilho dos Meus Olhos Há muitas coisas que as pessoas

doloroso encarar a maldade dita e

acreditam que eu não vejo ou que eu

feita

não

restando

entendo...

com

base

em

qual

sem

o

menor

apenas

pudor,

encarar

nos suas

premissa eu já não sei, preguntem a

minúcias e observá-la passando por

elas. Indago-me se algum dia deixarão

nós em câmera lenta. Às vezes eu me

de ter raiva do brilho dos meus olhos.

pergunto: o que será de tão dolorido,

Ou, se algum dia irei perdê-lo, esse

passaram essas pessoas para me

brilho, que só me gera estrago. Se

olharem com os olhos sem brilho?

algum dia terei a malícia necessária para

A única parte ruim de ter brilho

não ser vista como esta, a enganada. Se

nos olhos é que não haverá um dia

algum dia pararão de dizer frases soltas

em

e

tentando apagá-lo. Mas, tudo bem,

ambíguas,

pensando

que

não

compreendo. Aguardem só.

que

não

aparecerá

alguém

porque são eles de lá, e eu (e Deus)

Eu preferia não entender mesmo; e

daqui todo dia também brilhando

às vezes finjo que não entendo, pois,

novamente e deixando essas pessoas

quando a maldade ocorre assim, bem

confusas sobre quem elas pensam

debaixo do nosso nariz, é tão mais difícil

que

deixar

que

podem chamar do que quiserem! E

entranha por todo o corpo, e é quando

que fiquem sentados esperando que

passo a duvidar se seguirei sendo a

caia algo do céu, pois eu irei atrás do

mesma. É quando tenho vontade de

que acredito.

de

inalar

seu

cheiro,

são.

“Bobinha”;

“ingênua”,

arrancar o brilho, este brilho dos meu

Já vi e passei por tantas, tantas

olhos, mas, também é quando meus

coisas, mas ainda sei que meus olhos

olhos lacrimejam e o brilho só aumenta.

sempre irão brilhar no fim do dia.

Ainda assim lamento, porque é tão mais

E se querem saber, prefiro mesmo ser

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a enganada, a rejeitada, a esquecida e a

que aceito as consequências pela

humilhada, do que viver com o fato de

forma de olhar com a qual encarnei

que eu mesma tenha deixado algum

neste mundo. Com este brilho, que

rastro de dor e mágoa por onde passei

eu

ou deixei legado. No entanto, não se

olhassem por alguns segundos, com a

deixem confundir, porque pelo brilho dos

lente

meus olhos são vocês os enganados.

emprestar ao mundo.

Mas eu estou tão certa de quem sou eu,

@itismayara

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gostaria que

eu

que tanto

também gostaria

me de


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Mestre Tinga das Gerais Corinto/MG

Sintonia e Qerer O janeiro chuvoso onde as águas beijam as barrancas com gosto, o sertão em êxtase com a terra molhada e mais uma vez, lá os dois protagonistas de mais um encontro. Tudo que é bom se repete e porque não voltar a um lugar aprazível, onde tudo ao redor conspira a favor daqueles que são dominados pela ânsia de estarem sempre junto. Mais uma vez, aos pés da imponente Serra do Cabral, onde aconteceu um dos mais lindos encontros. Desta vez, sem mergulhar profundamente na espera em madrugadas frias, mas, com os olhos no firmamento e ouvindo o barulho da chuva que pelo chão ecoava e deixava o ambiente lindo. Eu desta vez, cheguei mais calmo, pois, sabendo que não demoraria a chegar aquela que tanto aguça a minha saudade, ali sentado esperando aquela que carinhosamente a chamo de “meu anjo”. Veio-me a mente mais uma de minhas brincadeiras com ela, onde, nós o fazemos muito bem quando em nosso cantinho, e reciprocamente nos tornamos crianças e em momentos adolescentes por entre carinhos e olhares penetrantes.

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E chega o ônibus trazendo aquela que faz dos meus momentos, um porto seguro. Eu no embalo da surpresa resolvi me esconder e uma das garçonetes fazendo parte da trama me avisa da sua descida do ônibus. Eu ligo em seguida dizendo que estaria em outro município, pois, o ônibus havia quebrado e eu chegaria após as 21h. Ela olha por todos os lados e a minha procura, não se contém e senta-se no banco da rodoviária. Notei certa tristeza em seu olhar e não me contive e passei à sua frente onde a ignorei olhando para outro lado. Ela silenciou-se e voltei e ao me direcionar a ela meu coração pulsou fortemente e nos abraçamos como se fossemos não mais desgrudar. Direcionamo-nos ao hotel e ali mais uma vez foi o cenário de mais um encontro de almas ávidas pela distância. Abraços e beijos, roupas pelo chão, bocas vorazes, mãos atrevidas, suores incontidos e o sal batizando aqueles que não medem esforços para vivenciarem momentos de pura entrega. Corpos cansados e olhares intensos, ela em meu braços e a minha mão acariciando a sua fronte, deixei a


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minha alma penetrar à dela e a dela já moradora da minha, se misturavam e a pergunta: - Por quê? Explica-me? Eu calado, respondi com os olhos num sinal de mistério e atônito, pois, mergulhava num labirinto lindo, cheio de descobertas e magias. O adormecer, foi preciso para deixar os corpos leves e soltos para que tão logo a esperada noite chegasse, pudéssemos esbaldar nas delícias supimpas do aconchegante e feliz restaurante. Desta vez, não tomamos o chope sonhado, pois, como até as máquinas adoecem, a válvula havia estragado, mas, pudemos tomar aquela cerveja gelada e ela escolheu mais uma das iguarias dentre muitas do maravilhoso cardápio. Ela ficou incumbida de escolher o prato e lembrando-se da “Costelinha ao Molho Barbecue” ela preferiu o: “Lombo com Fritas ao Molho e Queijo”. Delicia! E a cerveja gelada ajudava na condução daquele belo momento. A chuva chega e entra em cena e os alaridos são sufocados pelos pingos no telhado, mas, ali continuava a imperar toda a alegria daquelas pessoas que também se sentiam felizes aos sorrisos e degustação e nós, aos carinhos, éramos observados ao ponto da D. Marta nos apelidar de: “Casal 20” e os nossos sorrisos fartos brotaram para a felicidade de nossas almas. Hora de recolhermos e mesmo debaixo de chuva nos dirigimos aos aposentos e

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ela num olhar que me cativa propôs a uma dança ao som de músicas românticas, onde abraçados e viajando no tempo, nossos corpos bailavam e em instantes foi impossível não iniciar mais uma cena de amor, por entre casquinhas – carinhosamente ditas por nós – que entre beijos e abraços, mergulho profundo e carícias, começamos novamente o ato amor numa cama aconchegante de lençóis alvos e travesseiros como espiões daqueles que invadem um ao outro em sintonia com o querer. Depois de todo aquele ato, vem a pedido dela pra que rezássemos para dormirmos e assim os inocentes embriagam em sono profundo, da famosa “conchinha” e grudados, deixando os seres respirar bem suave reger a noite chuvosa e aos dengos dos pingos na janela. Ao acordarmos, nossas bocas colaram-se e depois o “bom dia” seguido do recomeço e a volúpia entra em ação, deixando-nos nus e envolvidos num querer sem fim. O banho a dois deixou os nossos corpos serenos e leves e a mesa do café, esperando para atenuar a fome, que os dois corpos exalavam. Passear pela cidade estava no roteiro e foi cumprido, onde saímos pelas ruas a contemplar a serra e também as pessoas e até mesmo sondar a sorte na lotérica, mas, a sorte já estava ali entre nós dois, o sentimento de poder sentir o calor do


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outro. Por entre o almoço e o retorno ao hotel, mais cumprimentos às pessoas e a chegada ao quarto para aquele sono da tarde. Ao levantarmos ela: - Vamos tomar café na rua? E eu: Com pastel? E ela: - Pode ser. E fomos até a padaria e após nos dirigimos à Igreja de Nossa do Carmo e rezamos o terço com fervor, aonde, somente nós dois na igreja e a rápida chegada do Coroinha que ao nos vir, nos cumprimentou rapidamente e saiu. Saímos e curiosamente resolvemos ir pelo outro lado da cidade, aonde deparamos com uma boate e adentramos as ruas e chegamos a um lindo riacho com suas águas cantantes e uma mata virgem cercada de um verde magnífico. E veio a hora de maior alegria do meu “anjo”. Ao ver os trilhos da Central do Brasil, notei que se incorporou nela o desejo de andar por sobre eles e de mãos dadas o fizemos em meio às lembranças e os nossos equilíbrios deixavam a gente mais crianças ainda, num fim de tarde maravilhoso.

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Chegamos novamente ao hotel e não precisa dizer mais nada. Mais carinhos e entregas e beijos e sorrisos e um delicioso banho, para que logo mais nos deliciássemos de mais uma das iguarias supimpa. A noite chega e depois dos momentos lindos a cabeça já deixava armazenar a despedida no domingo e nós dois nos adormecemos e pela manhã ao arrumar as malas, e cada peça de roupa que era colocada na mala, expandia a tristeza do ir e o silêncio rodeava as roupas e os nossos movimentos. Chegam hora da partida e a monotonia ali contida e até mesmo um silêncio mórbido em saber que cada uma iria para seu destino. E chega o ônibus que ela ia viajar. O inevitável beijo e olhares úmidos e ela embarca sob o clima de solidão daquele que a partir daquele momento iria para outra paragem. Meus olhos furtando a saída do ônibus fui até á margem da 135 para acompanhar a ida daquele carro até a curva tomar ele de mim e ali selava mais um encontro por entre a sintonia e querer. Que venha logo outro encontro para que as teclas do meu computador possam bailar e criar mais uma história de amor entre dois seres ávido pela liberdade.


LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Mônica Monnerat Santos/SP

Além do Palco Distribuídas em camarins, as meninas bailarinas corriam para lá e para cá, ajeitando os “tutus”, retocando a maquiagem, protegendo os pés para calçar as sapatilhas de ponta e rindo algumas vezes, de nervoso. Assim acontecia também com o Corpo de Baile Juvenil da prestigiada escola, reconhecida não só pela exigência e rigor, como também pelo nível técnico de excelente qualidade. De longe, eu observava aquela cena, e ao mesmo tempo recordava-me de mim, quando as apresentações estavam próximas. E constatava até um pouco surpresa que a emoção de uma estreia permanecia a mesma, mesmo diante de uma geração tão acostumada aos avanços tecnológicos. Num certo momento, uma das meninas do grupo fez uma expressão de pânico: havia esquecido o arranjo de flores dos cabelos em casa. O choro e o desespero foram inevitáveis. As companheiras ainda tentaram revistar o camarim, torcendo por um possível engano. Nada encontraram. Não daria para ligar para a casa da bailarina, pois além de o festival ser em outra cidade, seus pais já estavam acomodados na plateia aguardando a apresentação. Seguiu-se um silêncio sepulcral. Só se ouvia a respiração ofegante das meninas. Poderia até imaginar seus pensamentos: “E agora, o que faremos?”, “É uma competição, vamos perder pontos...”, “E a professora, o que fará conosco?” Subitamente, uma das meninas, já com sua coroa de flores pronta para ser colocada, timidamente falou: — E se cada uma tirasse somente uma flor de seu arranjo? Talvez conseguíssemos montar o enfeite da Bia... A aceitação foi imediata. Bia, que agora já se mostrava um pouco mais calma, enxugou as lágrimas. Em menos de 15 minutos, os arames contorcidos deram forma e graça ao enfeite. E com a habilidade especial que só a emergência proporciona, os espaços dos arranjos originais foram devidamente preenchidos, redistribuindo-se a distância entre as pequeninas flores.

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Ao passar pelo camarim para desejar-lhes boa sorte, notei que estavam eufóricas. Contaram-me o ocorrido (como se as paredes não tivessem ouvidos). Em seguida, despediram-se de mim rapidamente, pedindo que não contasse nada à professora. Em silêncio dirigiram-se às coxias, aguardando a vez. Desci para a plateia e assisti à performance. Estavam mesmo impecáveis, em todos os sentidos. Figurinos, adereços, coreografia, musicalidade, expressão e técnica em harmonia e beleza. Durante um breve intervalo que se seguiu após o número, permaneci sentada no mesmo lugar, pensando no quanto a dança contribui na formação de uma pessoa. E em vez daquele envolvimento sentimental que geralmente aflora quando algo muito sonhado dá certo, e que te impede de ver a situação de uma forma mais realista, parei para refletir sobre o momento de tensão vivido por elas há poucos minutos. No meio da situação difícil, do desafio, vi naquelas meninas amizade, espírito de iniciativa, solidariedade, sentido de colaboração, agilidade, união e alegria. Coisas que o ballet proporciona, e que na maioria das vezes o palco não mostra. Ah, e a disciplina para lidar com todos esses percalços... estava tudo lá, mas não se via: a coreografia, a roupa e a graça das meninas roubaram toda a cena. Aplaudi muito essas jovens bailarinas quando saiu o resultado: primeiro lugar. Ao serem anunciadas, radiantes, retornaram ao palco e fizeram a reverência. Ao saírem correndo como é de praxe, não perceberam, porém, a pequenina flor que se soltara, caída no palco, a testemunhar, discretamente, o percurso nem sempre suave, entre a dedicação e o aplauso...

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Nazareth Ferrari Taubaté/SP

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Nercy Grabellos Rio de Janeiro/RJ

Vida de Poeta O poeta fala de amor Com sedução e imaginação Vai desabrochando como uma flor Sentindo palpitar o coração. Ele não tem riqueza Tem apenas os versos a ostentar Costuma falar com delicadeza Dos versos que deseja partilhar. Quisera eu ser um poeta feliz Na vida poder descobrir Os segredos da estrofe raiz. Na criação dos meus versos Atravessar o tempo a discernir Os segredos do universo.

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Nilde Serejo São Luis/MA

Fotografa Ainda guardava aquela fotografia Que evitava vê-la por anos Recusou olhar para o passado Doía-lhe profundamente. Lembrava com detalhes a última pose Ele sentado no tronco da árvore Um sorriso tímido e cheio de alegria, Enquanto ela batia a foto. A lente da câmera deveria reunir toda aquela paisagem Árvore, alguns pássaros, campo ao fundo E todo verde que estava em volta A foto ficou fechada ali numa só imagem: a dele.

https://poesenhandoavida.wordpress.com/

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Nilza Amaral

Amor à antiga, amor cortês Sempre que penso em mulher penso na minha Efigênia Que tem dons esborratados de me deixar estrofanto. Um

dia,

sem

mais

nem

menos,

trocando mil abjuras,

Efigênia propôs

embrabecida: – Vou encetar um contesto onde todos os galantes terão que provar seu corte. Com o vencedor casarei e embraiarei praias adentro para Sempre. Vieram de terras longes cavalheiros de espartilho, cavaleiros de armadura, Prontos para a guerra dura. E deu-se o encetamento, o tal concurso iniciou-se. De dentro de seu enclaustro Efigênia sussurrava, gemia, encausticava. Encastelada por dias, Efigênia epilogava. Eis que chega a minha hora, oh, que ânsia pela senhora, entro e grito sem fiasco! Fibrino, teso, ansiável, olho de esguelha e que vejo? Uma fieira infindável de cavalheiros mais mortos que a própria morte, Que pejo! – Melicia da minha vida, era por mim que esperavas. E lá dentro a tal melgueira, entre pedaços de amor, transformou-se por instante Em paraíso perdido, a recamara do amor. – Efigênia, que audácia, sou o seu selêucida, sou seu seleto, sou seu amante dileto. Tiro correndo as roupetas, a armadura derrubo, cio no leito do amor, parvalhão que sou, gaiato, ganho o concurso no at0. Sempre que penso em mulher, penso na minha Efigênia, rebordo logo de amor Rainha de meu troneto, inspiração de soneto, musa de amor tão perene.

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Otávio Patuço Pirajuí/SP

Na Arte da Vida Sonhei que era um artista circense, um palhaço da magnífica arte da vida, capaz de provocar um riso inocente e revelar o grande suspense da vida. Era eu, um mensageiro da paz e da beleza um mágico no espetáculo do mundo, tinha o poder de fazer sumir a tristeza escondida no mistério mais profundo! Diante de uma plateia tão inocente tornei-me um malabarista criança, a balançar a alma, o corpo e a mente equilibrando-os na corda da esperança! Acordei diante da realidade egoísta, mas vou conquistando a minha meta! Não sou palhaço nem malabarista... Sonho, mas na arte da vida sou poeta!

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Patrícia Machado Brasília/DF

Vazio sem fm Transita em mim, sorrateiramente Um vazio desconhecido Despropositado e persistente Segue ora latente, ora desencobrido Como animal irascível, irrefreável Caminhava ao léu, hesitante, Até encontrar a minh’ alma vulnerável, Onde se abrigou orgulhoso, jactante Um vazio que eu, sozinho, calado Nutro em cada pensamento Em tudo que é sonhado Vazio que, sem fito, aterroriza Semente do mal, carcinoma Que morosomente me agoniza.

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Paulo Cezar Tórtora Rio de Janeiro/RJ

Na Praia Teu corpo bronzeado é uma esguia espada Que corta as ondas, refletindo a luz E toda essa graça de enguia dourada Atrai, e enfeitiça, e encanta, e seduz... Já subjugados por tanta beleza Os pobres mortais que a admiram da areia Comungam felizes de uma certeza: És obra divina, poesia, sereia. E essa volúpia do mar excitado Que enlaça e beija esse corpo molhado É uma apoteose de amor sob o sol. E eu sou mais um que, na areia, encantado, Padeço a aflição de quem foi fisgado, ― É doce a agonia do peixe no anzol...

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Paulo Luís Ferreira São Bernardo do Campo/SP

Pássaro sem Asas

Imagem:Google imagem

Deusdete desvia a vista do espelho para a parede. Mais uma vez está perplexo. Sua fisionomia denota uma dura expressão de desarranjo emocional num misto de decepção, abandono e impotência diante tanta falta de vontade e perspectiva. Náufrago de uma vida absurda, sem vento, sem lucros, da qual nunca pode fugir. É como se estivesse

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num hospício ou numa clausura. Fala com o invisível. Deusdete continua olhando sua opaca imagem refletida. Ensimesmado, relembra de uma frase que alguém lhe disse, ouvida ou simplesmente lida: “Após o advento do espelho cada um é responsável pela cara que tem”. De seu hipocondríaco espírito brotou um


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pensamento incauto, e disse para si que se parecia com qualquer homem do mundo menos com ele mesmo. Viera ao mundo como um tiro sem alvo. Um pássaro sem asas. “Teria eu sido feito de barro mais ordinário que todos os outros homens do mundo?” – interrogou-se. – ainda lembrou de que, certa vez, alguém o chamou de deus-do-dedo por não saber pronunciar seu nome corretamente. Haveria nesta incorreção fonética algum resquício de verdade ou seria uma infâmia contra sua mísera condição de incompetência humana? “O que é ser deus-do-dedo? Nada! Quem é deus de dedos não é nada, melhor seria ser o rei da cocada preta, como diz o dito.” Uma metade de seus pensamentos o acusa de falta de empenho, de homem pobre, rude, sem mínima vocação para achar uma saída por cima, quando se está no fundo do poço; a outra metade desculpa-o por ter sido um homem desprovido de preparo adequado para enfrentar esses tempos modernos repletos de concorrências e desigualdades. Seu aprendizado não passa de pequenos conhecimentos rudimentares: o suficiente para fazê-lo um trivial funcionário público. Embora saiba que ninguém é glorioso por si mesmo, apenas subjugado pela vontade dos outros. E deslumbrou a viver no melhor de todos os mundos, os possíveis e improváveis. Serenou. Passou o olhar pela parede estampada de belas e famosas mulheres nuas. Todas

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emparedadas, perfiladas, como condenadas diante o pelotão à espera do fuzilamento. Uma delas, mascarada. Outra com um suave véu azul turquesa cobrindo os olhos, como a pedir clemência. E mais uma de chicote na mão, ameaçadora e impiedosa como se estivesse querendo tirar-lhe todos os seus fracassos à custa de sexo, dor e sangue. Cabisbaixo, visualizou seu pênis sob as calças. Tentou em vão inspirar-se para uma masturbação, mas perdera a libido para isso, precisaria de dedicação e paciência, o que já não tinha. Desvaneceu. Sentou-se na privada. Pôs a mão na testa pensativo. Pensou em sua mãe falecida; e nas mulheres que por ventura tivera um fugaz amor. Pensou em Deus. Defecou, defecou e defecou. E chorou, chorou e chorou. Pensou mais um pouco em Deus e chorou. Chorou e defecou, e chorou mais um pouco. E pensou em Deus como um ser realmente divino. Um ser solícito. Supremo em seu poder absoluto, Onipotente e Onisciente. “Para tudo Ele diz sim!... Eu quero derrubar aquele prédio... Sim! Diz Ele, quero descarrilar aquele trem, sim!... Vamos causar mazelas ao mundo? Sim!... Vamos jogar bomba atômica? Sim!... Vamos flagelar os homens... E os navios negreiros?... Sim!... Matar criancinhas africanas de fome, secar o solo nordestino, guerras, holocausto... Corrupção, ditaduras... Um verdadeiro anjo... Para tudo Ele diz sim!... Sim, sim!...”


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Num lampejo, desanuviou os profanos pensares, desenrolou um pedaço de papel higiênico e secou as lágrimas. Desenrolou outro e limpou o ânus. Abriu a torneira do chuveiro. Jogou água sobre as mãos esfregandoas numa impaciente avidez. Lavou o rosto. Abriu o chuveirinho e lavou os pés por entre os dedos. Decidiu que não iria tomar banho, sentia-se enfadado. Secou-se, apagou a luz e voltou para a sala arrastando os chinelos pelos tacos desgastados e sem brilho, recoberto de fuligem, uma lástima de imundo pó e ácaros. – queixava-se Deusdete. Sentou-se no velho e ensebado sofá. Olhou para a entre coxas, onde repousava sob as calças seu flácido membro a incriminar sua incompetência. Frustrado, restou-lhe o controle remoto. Com força apontou em riste para o centro da tela da TV, apertando a tecla Power. Simultaneamente explode o som e a luz como se assim viesse de um trovão, de um relâmpago, resplandecendo e ofuscando seus olhos quase cegos. O locutor fala em grave locução ao seu ouvido quase mouco: — “O Imperador da Dinastia Ming, Hong Wu, é considerado o tirano mais intransigente e irracional da história chinesa. Mandou executar tantas pessoas que, durante seu reinado, os funcionários do governo tinham o hábito de dar o último adeus à família cada vez que era convocado para uma audiência matinal e, ao fim do dia, trocarem congratulações entre si por terem sobrevivido até a noite. A dinastia Chin queimou vivos muitos estudiosos a fim

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de suprimir o conhecimento e o confucionismo. E no ocidente civilizado, neste último século que nos precedeu, – sem incluir Hitler, que matou nas câmaras de gás mais de seis milhões de judeus – e o nosso tão aclamado e idolatrado, século XXI, um ser humano tem sido morto, legal ou ilegalmente a cada vinte segundos. Este índice é três vezes maior que os primeiros cinquenta anos do século passado.” — Deusdete cansou-se do comentário. Desligou a TV. Virou a cabeça para o teto, observou o velho lustre de falso baccarat. Olhou em volta. No centro da mesa uma fileira de formigas caminhava em direção a um torrão de açúcar; sobre a toalha plástica de um branco encardido, uma fruteira de vidro embaçado de gordura compunha um singelo e mísero retrato de uma natureza morta: meia dúzia de bananas nanicas maduradas, duas laranjas, dois caquis, uma manga e três limões. Repentinamente levantou-se, ligou a vitrola e escolheu um Long Play e escutou: “Jesus Alegria dos Homens”, em seguida as “Quatro Estações”, ouviu a “Primavera”. Cansou e quis ouvir Nelson Gonçalves, depois Ângela Maria, por fim, pois Luiz Gonzaga cantando “Luar do Sertão”. Enfastiado desligou o aparelho. Foi até a janela. Recostou-se no parapeito e olhou para a rua. Em frente à portaria do prédio, o rabecão


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do IML estacionado. Um pequeno cortejo empunhava a caixa de lata em direção a um corpo estendido no chão, e dali à viatura. A sirene foi ligada. Lentamente o camburão foi abrindo espaço entre os curiosos. Tomou velocidade e, em ziguezague, saiu rasgando as ruas da cidade atropelando o trânsito, levando mais um corpo morto pela metrópole. A polícia tinha pressa: aproximava-se a hora da xepa, a sopa não pode esfriar. Enjoado de toda cena e meditabundo, Deusdete, numa última perscrutação, observa a natureza dos prédios à frente de sua janela e viu estarrecido, uma paisagem urbana, triste e morta. Alheio a tudo, puxa um cigarro do bolso, estica-o, e já na boca, somente consegue acendê-lo no quinto palito de fósforo. Continua a olhar para fora, olhar por olhar, impassivelmente alienado, sem procurar por nada. Mas ainda se imaginou como um pássaro, a sobrevoar a cidade, mas como se ele não tinha asas? Retorna à surrada poltrona. Sentase olhando a TV desligada. Cochila. Num sobressalto desperta ao escutar um canto vindo do corredor externo: “Une, dune, tê... Salamê, minguê... Um sorvete colorê... Une... dune... tê... O es-co-lhi-do foi vo-cê...” Encaminha-se para sua cristaleira. Ligou o rádio e girou o dial aleatoriamente para cair em uma estação qualquer. Um noticiário dizia em voz aguda uma coisa qualquer sobre

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cultura inútil: — “Lorde Byron, moreno, bonito e romântico poeta inglês, tinha um pé defeituoso de nascença, do qual muito se tem escrito. Entretanto, era o esquerdo ou o direito? Os estudiosos não têm certeza. Há controvérsias sobre o assunto.” — Desligou, procurou cegamente com as mãos, na parte de baixo do armário uma garrafa de cachaça. Achou, puxou para si, fitoua decepcionado. Estava vazia. Naquele momento gostaria muito de um gole... Vira a garrafa no copo, não cai nenhuma gota. Procura em todos os potes onde possa ter alguma moeda. Desespera-se. Acha um cofrinho de banco, desses de papelão. Não achando com que o abrir rasga-o com as mãos. As moedas caem, ele se agacha e conta. Em seu rosto uma expressão de contentamento. Percebe que dá para comprar a cachaça. Vai até a porta. Põe a mão na maçaneta e resoluto abre a porta. No corredor, uma menina risca a giz o chão com muita força, reacendendo as linhas que desenha sua amarelinha, enquanto cantarola: “Meu limão meu limoeiro, meu pé de jacarandá... “Une... dune... tê... O es-co-lhi-do... Foi vo-cê...” Fazendo com que Deusdete, enquanto espera o elevador pense em reminiscências de infância. Lembra-se de um promíscuo lápis de


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carvão que o ensinou obscenidades balcânicas antes que soubesse escrever a palavra bunda... “Por que não cultivara a virtude do bem e aculturara o espírito há mais tempo?, como insta Epicuro. – conjeturou – Fazendo-o descer pelas escadas num repente, como um coice de mula brava. Após vinte minutos volta Deusdete. Ao caminhar para sua porta escuta um grito agudo, petrificando-o: — O senhor tá cego?!... Não vê onde pisa, não?... Deusdete volta-se assustado olhando para o chão. Estava pisando nas linhas riscadas a giz. Sem ação, defronta-se com o olhar travesso, redondo e vivo da menina. Ela ameaça rir da falta de jeito e da irritação de Deusdete. Que o deixa ainda mais nervoso. Num alvoroço chega à sua porta tentando abri-la. A menina, com as pernas entreabertas sobre as asas de sua amarelinha fala amistosamente: — Meu nome é Mildred, com “D” mudo e o seu qual é? — Trump Bin Ladem! – responde Deusdete irritado, com um berro – “ahhh!” Ao chegar à sua porta para, num impulso abre-a, entra e fecha rapidamente, recostando-se e abraçando a garrafa de cachaça contra o peito. Olha-a segurando-a pelo gargalo numa clara intenção de arremessá-la contra a parede. Desesperado, rasga o jornal que a embrulha. Sua memória confusa traz à lembrança vontades e desejos que

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gostaria ter sido diferentes para uma vida melhor. “No século passado diziam que o século vinte e um seria a salvação da humanidade. Hei-me aqui, no começo deste mesmo esquizofrênico século e nada mudou. O avanço tecnológico, os computadores, a medicina, a AIDS, as cores, para quê?... Para quem?... Pessoalmente eu não dei certo... E os outros todos, deram? Descobriram o tal buraco negro? E a bomba atômica... Desativaram? E a miséria dos povos do terceiro mundo. E também do segundo e o egoísmo do primeiro?... Não, só grandes templos foram construídos para salvar almas; mas que almas se os animicidas já às assassinaram! Hoje só se é feliz quem é dono de padaria, publicitários, jogadores de futebol, fabricantes de luz néon, traficantes, políticos corruptos, e os apresentadores de televisão. Mediocremente acreditei que a humanidade só caminharia com a minha ajuda. Eu que tanto me dediquei aos livros contábeis para viver na prática... Mas que prática?... Sempre fui um livro caixa honesto. Na verdade a corrupção nunca beijou meus pés. Nunca fui tão importante para alterar alguma coisa. Alteraramme... Sempre fui hóspede de mim mesmo. E aqui estou eu pobre e enlouquecido. Felizes são todos os outros eu só tenho lembranças.” Este lamuriante embate interno aprofundou ainda mais a psique de


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Deusdete. Desse modo foi adentrando numa convulsa crise de choro. Em seguida quedou-se. Mais calmo, levantase e vai até a garrafa de cachaça sobre a mesa, e num gesto brusco destampa-a no dente, pega um copo na cristaleira e enche-o até a cinta. Toma-o de um só gole. E fala para si e para as paredes: “No fundo no fundo a vida é uma porra mesmo! Parece que carrego todos os

mortos e vivos do mundo sobre a minha cabeça.” Observa o nível da pinga através do vidro escuro, entorna mais meia dose no copo e bebe, agora a degustando devagar. Já embotado em sua embriaguês existencial deposita a garrafa sobre a mesa. Mira o vão da janela, toma impulso e se atira. Esquecera-se de que nasceu sem asas.

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Pedro R. R. Guimarães Pelotas/RS

Pedaço de Pão O

seu

olhar

e

pairava em sua cabeça, porque em

totalmente sem expressão. Os braços

seu entendimento, não havia mais

caídos

postura

nada a fazer. E a sua fé? Na sua

curvada, como se em seus ombros

educação sempre houve lugar para a

houvesse sacos de areia. Estava sentado

espiritualidade.

na

admirava

ao

beira

era

lado

do

vago,

do

cais.

parado

corpo,

A

sua

frente

à

por

Os

santos

dedicação,

que

amor

e

imensidão do mar em uma tonalidade

abnegação a uma vida totalmente

azul-escuro

voltada

que

aumentava

sua

para

a

religião,

naquele

grandeza e ao mesmo tempo, provocava

momento, também não o ajudavam,

medo. Para ele tudo estava perdido. Não

não o comoviam e não provocavam a

havia salvação de nada.

esperança em seu coração e na sua

Muito menos

esperança. Nem mesmo a lembrança de

mente.

seus pais era motivo para reanimá-lo.

A “derrubada” aconteceu pela manhã.

Como

Levantou cedo, como de costume e

eles

pensariam

se dele?

sentiriam? Sua

mãe

O

que

ainda

o

foi fazendo a sua rotina. Cortou a

olharia com amor e carinho, com toda

barba, tomou banho. Após o café,

aquela ternura que lhe era peculiar? E

sentou-se para ver televisão e ler o

sua mulher e os dois filhos? Como eles

jornal. Foi ali naquele momento. Só

ficariam? Sempre foi muito admirado

noticias ruins. Mortes, assassinatos,

por eles, o que restaria? Será que o

guerra,

entenderiam? Ficariam bem? Mas nada

desfalques, corrupção e a economia

que pensasse parecia ter o poder de

de mal a pior. Começou a sentir um

fazê-lo mudar de ideia.

aperto no peito, que parecia uma

Ele estava decidido a se jogar no mar.

falta de ar, mas não era, e por dentro

Por fim na sua vida, era só isso que

era como se houvesse uma corrosão

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refugiados,

roubos,


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que começou a destruir tudo de bom

fora um tênis, mas agora eram mais

que

com

buracos e manchas em cima de uma

vontade de chorar, mas sem conseguir.

sola encardida de todos os tipos de

Começou a suar frio e de repente deu

sujeira, com a metade de um cadarço

um pulo do sofá abriu a porta e saiu de

em cada um.

casa

parados.

E antes que ele pudesse pensar em

havia.

a

Estava

esmo

e

engasgado,

de

olhos

Caminhava

devagar

e

suas

pernas

algo para falar ela virou-se e disse: -

pesavam.

Depois de algum tempo,

Quando estou com fome venho e

enxergou o mar e lentamente foi indo em sua direção e surgiu no seu intelecto aquele pensamento: - Vou atirar-me ao mar! E ao chegar à beira, sentou-se e ficou taciturno.

sento aqui. Ainda em silêncio ele a olhou. Viu dois olhinhos verdes e brilhantes. Algumas

sardas

no

rosto,

mãos

pequenas e ágeis. Era magra, mas

Ainda estava pensando em como seria a

atenta e ligada em tudo a sua volta.

morte. Falecer, expirar, perecer, fenecer,

Mas o que chamou a atenção dele foi

extingui-se,

a

terminar,

cessar.

Nesse

vivacidade

do

olhar.

Ela

não

momento percebeu um movimento a

pareceu ter notado a perturbação

suas costas. Mas não chegou a olhar

dele. Deveria ter nove ou dez anos de

para trás porque alguém se senta ao seu

idade. – Você também está com

lado e diz: - Eu também gosto de sentar

fome? Pergunta ela. E sem esperar

aqui e ficar só olhando!

resposta

A tensão no pescoço ainda era forte,

sorriu.

pois não sabia há quanto tempo estava

pareciam não ser dela. Ele sem saber

ali e ainda sob o efeito do torpor,

o que fazer ou dizer permanecia

começou a olhar para o lado para ver

calado.

quem havia falado.

Ela ficou seria e falou: - Ok, desta

Era uma menina. Roupas surradas e um

vez

pouco

claros,

rapidamente a mão no bolso e tira

desarrumados e sem qualquer tipo de

um pedaço de pão separa em dois e

corte. O que usava nos pés era algo que

estende um para ele.

sujas.

Cabelos

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disse: Dentes

posso

-

Somos

brancos,

ajudar.

dois!

E

alinhados

E

coloca


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Nesse momento ele percebe o que está

nada! Em seguida levantou-se com

acontecendo.

um

Mecanicamente

pega

o

leve

sorriso

e

aquele

olhar

pedaço de pão oferecido e ela sem olhar

enérgico: - Até outra hora! E saiu

para ele diz: - Pode comer, é bem

rapidamente da mesma forma que

gostoso! Mas já vou avisando que não

chegara.

tenho mais e não sei se hoje, vou

Atônito com o que aconteceu, não

conseguir alguma coisa para comer.

teve tempo de perguntar o nome, o

Ele

que fazia e onde morava.

começou

a

ficar

envergonhado,

sentia o rosto quente e não queria ficar

Voltou para casa, abraçou sua mulher

rubro

sentimento

demoradamente e ao olhar para seus

incomodando. Precisava fazer alguma

filhos seus olhos encheram-se de

coisa e fez. Começou a comer o pão. Ela

lágrimas, ajoelhou-se e abraçou-os.

sorriu aprovando e não disse nada. O

Eles nada entenderam.

e

com

aquele

sabor daquele pão era tão gostoso que ele ficou pensando se já tinha comido algo tão aprazível. Pensou: - Preciso falar alguma coisa. Virou-se para ela e falou: - Muito obrigado! Mas a sua voz saiu gutural e como não fosse sua. Ele ficou assustado com aquela rouquidão e ela sem nenhuma reação replicou: - De

Os trabalhadores do embarcadouro comentam

que

um

homem pergunta e procura por uma menina

na

magrinha,

faixa

cabelos

de

dez

claros

e

anos, olhos

verdes e espertos, que não sabe o nome, mas diz a todos que tem muita esperança de reencontrá-la.

www.pedrorenatorguimaraes.com.br

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seguidamente


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Poesia Maria Rio de Janeiro/RJ

Inspiração La nave va... A vida segue... Melhor estilo não há, do que viver de forma leve! A existência de cada ser, na maioria, em luta constante nos deixa por fim perceber que tudo muda a cada instante... Se hoje se está na base no topo, poderá estar amanhã! E como toda lua tem sua fase, a vida vira, em renovado afã! Se você perdeu a esperança e esfriou seu coração, desperte sua alma de criança e busque uma nova inspiração!

https://poesiamaria1.blogspot.com/?m=1

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Regina Alonso Santos/SP

Sem perdão A coceira começava no ardor da

Em qualquer lugar o desejo se

tarde. A mãe vigiava, Menina, vá se

manifestava. A ardência era forte no

lavar com água, sabão... e vinagre. A

quintal,

avó fazia o sinal da cruz e emendava, E

consumido

troque a roupa de baixo.

movimento das sombras de pessoas

O susto maior foi na primeira

quando de

via

o

sol.

arvoredo

Na

sala,

o

desconhecidas e o brilho dos cristais

comunhão. Quando sentiu o olhar do

retalhavam

padre, ao colocar a hóstia na sua boca,

intocadas.

seu

corpo

nas

partes

a pequena escutou ecoar na igreja, Você

Na festa de casamento da filha

não é digna de receber a eucaristia! O

da vizinha, o bolo de vários andares

sacerdote era Deus, o Cordeiro Imolado,

exibia

tinha aprendido durante o catecismo, a

brancos

duras penas... até sangrar, ajoelhada

noivos

nos pedregulhos do jardim da igreja. As

sentados entre a mãe e sogra, que

lembranças eram um tormento sem fim,

vigiavam sem disfarçar. Percebendo a

aumentando

adolescência,

cinta apertando o bucho cheio da

quando as amigas começaram a se

noiva, a menina-moça perguntava, O

afastar.

que podia de pior acontecer? Com a

na

Teimosa feito mula demorava a se convencer

dos

especialmente

conselhos quando

a

da

mãe,

genitora

cara

no

alto,

aos se

suja

dois

beijos,

olhavam

de

glacê

pombinhos

enquanto

os

constrangidos,

do

bolo,

a

molecada ria, apontando o barrigão e tomando cascudo.

recomendou, Filha, perdão a gente tem

De volta a casa, a mãe jogou

que pedir! Diante da própria imagem

longe o sapato de bico fino, o pai

refletida no espelho do quarto, ela se

tirou a gravata e desatou a falar

perguntava, Perdão de que, minha mãe?

encarando a jovem bem no fundo dos

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olhos, Menina, deixa para fazer filho na

penca de filhos, que lhe ocupam o dia

hora certa. A gente é filho de Deus. A

todo.

gente não é bicho.

cantando, à espera da noite, quando

Subiu correndo para o quarto e jogando-se na cama, soluçou, Ô pai,

Não

se

queixa.

Trabalha

a casa adormece em silêncio. A

porta

do

quarto

abre.

A

perdão! Não entendo... Sou igual à

mulher acorda ao sente o corpo do

cadela

homem colado ao seu.

do

vizinho,

sem

nenhum

controle! Se um homem me olha, sinto

Pai, não quero perdão para o

uma comichão tão forte. Não consigo

amor, que também é carne... e me

disfarçar...

dá prazer.

Hoje essa conversa é ‘para boi dormir’. Casada, a jovem tem uma

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Reinaldo Fernandes Brumadinho/MG

O Preço do cafezinho Os preços andam pela hora da morte. É a crise! Bom, deve ser, né? Me disseram que chá quente com limão é uma delícia. A gente pega o limão, corta em rodelas, põe o xá na chícara, ops, o chá na xícara, põe uma rodela dentro e bebe aos poucos, aos goles, degostando cada trago. Sabendo disso, fui ao supermercado. Comprei uma caixa por R$ 3,67. Para o final de semana, deixei o chá, e decidi fazer uma macarronada: macarrão talharim: R$ 5,60; massa de tomate: R$ 4,26. Como apareceram dois casais amigos, mais eu e minha esposa, adicionados todos os gastos, a macarronada saiu por R$ 6,20 para cada boca. E olha que comi tudo que eu tinha direito! Tanto que assim que meus amigos se foram, espojei-me na poltrona e fiquei olhando para o teto. Na mesinha do centro, uma conta do supermercado olhava para mim. Peguei-a para dar uma olhada. Fiquei correndo os olhos: açúcar, pacote de 5 quilos, R$ 11,98; arroz, pacote de 5 quilos, R$ 16,98, feijão R$ 5,98; filet mignon, R$ 39,90. Larguei a lista, meu pensamento saiu do supermercado, foi para a oficina mecânica. Eu mesmo não reparara, porém um dos faroletes do meu carro estava com uma lâmpada queimada. Comprei a lâmpada em uma loja e o moço do balcão recomendou: – Passa ali na Oficina do Toninho e pede ao Fernando para trocar para você. Assim fiz. O eletricista me atendeu prontamente. Em poucos minutinhos ele fez a troca da lâmpada. Sou freguês da Oficina do Toninho há anos. Sabe aquele cara que, qualquer problema no carro, vai sempre à mesma oficina? Então, esse cara sou eu. Balanceamento, alinhamento, troca de

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óleo, troca da correia dentada e do virabrequim, e até problema na rebimboca da parafuseta, era tudo lá. –

Né nada, não, Reinaldo!, esperei o Fernando me dizer quanto lhe

perguntei quanto era o serviço, ao final de dois minutos, no máximo três. Mas quebrei a cara, ou o para-choque, como queira o leitor. – Me dá aí alguma coisa pro cafezinho, falou Fernando, com aquela cara de santo que enganaria qualquer beata. Abri a porta do carro, peguei uma nota de dez reais, e lhe entreguei. O cara fez uma cara de descontentamento que poucas vezes vi na vida. Por pouco não derrama lágrimas ao pegar o dinheiro na minha mão. Ao que parece, não gostou de receber apenas dez reais. Êta cafezinho caro! Ou vai ver ele se referia a um Cappuccino da Kopenhagen. Grande.

https://www.facebook.com/reinaldo.13.fernandes/

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Renato Bruno São Gonçalo/RJ

Acerto de contas Quando Ricardo recebeu a notícia, ele tinha acabado de sair do banho e estava deitado pelado na cama. Até então, tudo tinha saído conforme ele queria e o cheiro de casa limpa lhe dava um certo orgulho, naquele momento. Estava, finalmente, morando sozinho, estava empregado e, naquele mês, não estava devendo ao banco, no cheque especial. Não era pouca coisa para ele. Tinha até comprado um aparelho de arcondicionado – de segunda mão, é verdade, mas ele estava ali, funcionando naquele quarto e isso era o bastante. Por isso, quando o telefone tocou, sua alma estava leve. Não havia nada que ele temesse frente ao mundo. Tanto foi assim que Ricardo se deixou ficar deitado na cama, enquanto o telefone tocava, tocava, tocava... Mas, depois de um certo tempo, percebendo uma certa insistência naquela ligação, ele levantou e pegou o aparelho, que estava no chão, carregando a bateria. Era a irmã e o silêncio que seguiu, naquele quarto e sala, em Duque de Caxias, logo após ele dizer “pronto”, mostrou a gravidade da situação. – O médico já passou aí? – Já. Falta agora o psiquiatra... – Eu vou arrumar umas coisas por aqui, colocar algo de comer na mochila e vou passar aí. – ...

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– Beijo. Fica com Deus. Isso vai passar. Pode ter certeza. Isso vai passar... – Desculpa. Eu não devia ter ligado... – Deixa de ser besta... Você é minha irmã. Ela é minha sobrinha. À tarde, eu devo estar chegando por aí... A irmã de Ricardo sempre dera trabalho. A cidade onde moravam era pequena e ela, desde nova, andava no meio da molecada, rindo e tirando sarro com os meninos mais inocentes da turma do irmão. Com os malandros maiores que moravam na mesma rua, ela evitava contato, sem, no entanto, deixar de provocá-los também, fazendo insinuações e poses “distraídas”. O problema é que, mesmo ela rindo, aquelas palavras sujas, ditas por aqueles marmanjões à distância, no fundo, a feriam e a magoavam, pois faziam com que ela, depois, se desse conta do moto continuo que era a sua vida. À noite, todas aquelas obscenidades retornavam através dos seus sonhos e a oprimiam, fazendo com que ela se sentisse suja e lembrasse o que queria e precisava esquecer, para, enfim, na manhã seguinte, poder acordar e viver mais um dia.


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Ricardo, bem mais novo do que a irmã, reproduzia naquela época a raiva e o ciúme que ele mesmo testemunhava nas palavras do pai e, por isso, bancava o pirralho chato atrás de Suzana. Se os colegas, na rua, falavam alguma coisa, Ricardo logo respondia com um xingamento e não havia quem o segurasse, se a rima fosse feita: “Hey! Suzana, eu quero a sua xana! Hey! Suzana, eu quero a sua xana!” Não foi uma, nem duas vezes, que ele havia voltado para casa machucado, depois de uma briga por causa da “honra”. Aliás, para ele, tudo parecia valer a pena, se esse tudo, no final, fosse recompensado com a aprovação do pai. A questão é que, com o passar dos anos, ele enfim entendeu o desajuste da sua própria família e, depois de ter passado tanto tempo enxergando o pai como um herói, conseguiu se perdoar, aprendeu a ter compaixão – mas, para isso, teve que sofrer, e muito. E qual filho não teria sofrido no seu lugar? Seu calvário começou aos 12 anos, logo depois do sumiço da irmã. Naquela época, ainda moravam todos em Ressaquinha, uma cidade minúscula de Minas Gerais, entre Conselheiro Lafaiete e Barbacena. A casa onde a família morava não era grande, mas, como todas as casas da região, tinha um quintal, um cachorro para brincar e um pasto, nos fundos, onde ele e a molecada atiravam pedras em passarinhos e caçavam ovos de galinha, para cozinharem no mato, depois das brincadeiras.

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Certo dia, depois de ter matado aula, Ricardo acabou caindo numa poça de lama e as costas da camisa branca do uniforme ficou toda manchada. Um verdadeiro vexame! Foi assim que, imaginando que pudesse lavar a roupa escondido, Ricardo voltou para casa mais cedo, vindo, inclusive, pelo pasto que ficava separado do quintal apenas por uma cerca de arame farpado. No entanto, chegando na varanda, onde ficava o tanque, ele viu através da janela da cozinha, aquele mesmo pai, em pé, fazendo sexo com uma menina que ele, pai de Suzana e de Ricardo, esposo de Ana, colocara dentro de casa, “para ajudar a mãe na arrumação”. Nesse dia, Ricardo, andando em direção à frente da casa, pelo lado de fora, ficou tão atordoado com aquilo que só tomou pé do que tinha visto, depois que encontrou a mãe sentada na porta da frente, chorando, com uma sacola de compras ao lado. Daí tudo lhe veio como um raio: o sumiço da irmã, a agressividade do pai, os silêncios da mãe e a tal garota, vinda não se sabe de onde. E o que mais o chocava era não ter explodido em fúria, era não ter reagido, não ter sentido nada daquilo que já tivesse sentido antes. Vendo-o, assim, como um cachorro atropelado rodando em círculos no meio da estrada, a mãe de Ricardo o puxou e o comprimiu com toda a sua força, num abraço. Foi quando Ricardo, enfim, chorou. Um choro de vergonha: por tudo aquilo


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que já havia pensado, alguma vez, a respeito da mãe e da irmã; por tudo aquilo que já havia feito, imitando o pai; por tudo aquilo que ele, tão esperto, não havia visto. Contudo, quando aquela mãe, enxugando as lágrimas, porque entendera que aquilo precisava ter um fim, mandou que Ricardo fosse chamar Dona Mila, ela, sem saber, havia selado o destino dos dois irmãos. Ricardo e Dona Mila, quando voltaram, tomaram ciência de que havia acontecido uma desgraça. Dona Mila criou Ricardo e Ricardo criou uma forma de conviver com a tristeza daquela história. A culpa, por muito tempo, foi uma pedra no sapato, dentro da vida dele. Ora o deixava explosivo; ora inseguro e triste, mas Dona Mila o amou e a família dela também. Isso, por sua vez, cicatrizou as feridas do menino e fez dele um homem. Como o mundo dá voltas, Ricardo e a irmã se encontraram novamente, bem mais tarde. Os dois estavam mudados e isso ajudou na aproximação. Ambos choraram muito, lembrando o que viveram; e ambos se perdoaram por tudo o que fizeram e também por tudo o que deixaram de fazer. Ela, já com 32 anos, tinha dois filhos: uma menina, de catorze, do primeiro “casamento”; e um menino, de dois, do atual esposo, que, por sinal, era muito bom para ela.

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Fernando era mais velho, frequentava a igreja e trabalhava. Ricardo, então, com vinte e cinco, não tinha mulher nem filhos e viu, na família da irmã, uma forma não só de recompor uma origem, mas de se redimir com o próprio passado. Além disso, Fernando e ele se davam muito bem. O problema era a menina e o antigo marido. A sobrinha era o pavor da irmã de Ricardo, pois o comportamento começava a lembrar o dela, quando Suzana era jovem; e o “ex” era um completo vagabundo desocupado, metido com drogas, que volta e meia aparecia na vida da irmã, não só desacatando Fernando, mas também estimulando a rebeldia da filha. Ricardo, então, fazia o que dava, mas, hoje, quando a irmã ligou contando que a filha tentara se matar, tomando duas cartelas de comprimidos, chegou à conclusão de que aquilo precisava ter um fim e não seria a polícia que iria resolver. Por isso, depois de olhar os cômodos limpos daquela casa simples que tanto trabalho lhe dera para alugar, enfiou um revólver na cintura e partiu para a rodoviária, sem intenção de voltar, senão para casa da mãe, de onde não deveria ter saído naquele dia desgraçado.


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Ricardo Garcia Porto Alegre/RS

A Fonte Ao me formar na faculdade ganhei além de um diploma um professor particular, pois me apaixonei pelo professor Marcelo, o mais doce e querido professor. Ele era engenheiro e dava aulas como uma maneira de devolver tudo o que aprendeu, de verdade um homem maravilhoso que me mostrou um mundo. Apesar de nossas diferenças de idade ser pouca, sei que ele teve uma vida antes de nosso relacionamento e tudo bem, sou muito bem resolvida com isso. Quando me disseram que ele era namorador, não dei bola eu também fui, nada mais comum para solteiros. Algumas colegas dizem que ele era tão ruim que suas namoradas que foram alunas, saiam da faculdade e nunca mais voltavam. De verdade não dei bola, pois os meus também não gostariam de me ver nem pintada em ouro. Segui nosso relacionamento apesar de tantos avisos. Após o fim do curso, seria o momento em que poderíamos abrir nosso relacionamento, decidimos morar juntos em sua casa e unir nosso enlace. Assim o fizemos só não tivemos lua de mel de imediato pois ele estava com uma obra muito grande em andamento e por ser o engenheiro chefe não poderia se ausentar. Sua proficiência era

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tanta que ele tinha uma oficina completa em casa, onde também deixava aflorar seu lado artista com lindas esculturas em torno de um chafariz, que embelezavam o que agora é nossa propriedade. Mulheres em corpo inteiro feitas em concreto. Como foi criado por sua mãe e tias apenas, tinha um carinho pelo feminino em sua veia artística. Nossa vida seguiu um mar de flores, cafés da manhã na cama, jantares românticos, presentes, uma vida que jamais sonhei. De verdade fomos felizes por um ano, até o dia em que fiquei sem celular e pedi a ele para usar o dele. Aquele sorriso doce e cativante que tanto me apaixonou, se fechou em uma expressão áspera, um olhar duro que não transparecia sentimentos e sim aspereza. Naquele mesmo dia ele me deu um aparelho novo, o mais moderno do mercado, mas de verdade não me recordo de ver o aparelho dele novamente pela casa, como sempre esteve jogado pelos móveis. Sexto sentido é uma coisa que não se deve brincar, apesar de termos uma vida maravilhosa, não querendo pensar besteiras, me apeguei naquela situação. Comecei a


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notar que de verdade seu aparelho nunca mais foi visto e mesmo quando ele estava comigo, não tinha mais o hábito de atender clientes ou mandar mensagens perto a mim. O que será que ele poderia me esconder? Seguimos nossas vidas, felizes até finalmente chegar nossa lua de mel, fizemos uma linda viagem para Espanha, onde ficamos em lugares maravilhosos, o romance era o tema de nossa relação. Nos divertimos muito, tanto que esqueci de todo e qualquer problema que eu pudesse achar que tinha. Um dia andando por uma das ruas principais encontrei Paula uma amiga e colega de faculdade, nos formamos juntas e até pensamos em abrir um escritório juntas. Como priorizei outros assuntos, deixamos um pouco de lado nossos planos, mas tínhamos contato próximo, para tocar nossa empreitada. - Oi Paula como você está? - Nossa que alegria em te encontrar Julia, tão longe de casa, o que faz por aqui? - Lua de mel com o Marcelo, lembra ele lecionava a cadeira de Estruturas de Concreto. - Você não... lembra da minha irmã, ela foi uma das meninas... O semblante de Paula tomou um tom tão sério, tão nervoso que de verdade não entendi o que estava acontecendo. No mesmo momento ela olhou para todos os lados como se estivesse procurando alguém, me pediu desculpas e saiu apressada, como se estivesse com medo de algo. O que me trouxe com os pés no chão, porque uma

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pessoa que estudamos juntos, que tínhamos carinho ficaria tão transtornada em me ver, e mais importante, onde estava o Marcelo naquele momento? Subi pela rua e encontrei Marcelo me esperando com lindas flores e o mesmo sorriso que me cativou tanto. Comentei com ele se ele lembrava de Paula, o que prontamente me disse que não, que ela me pareceu estranha e que depois no hotel mandaria uma mensagem para ela, para me tranquilizar de não ter dito nada errado para ela, mesmo sem imaginar o que poderia ser. Jantamos em um restaurante próximo ao hotel, voltamos e tentei mandar uma mensagem para Paula, mas não consegui ter confirmação de recebimento, parecia que eu estava bloqueada para ela. Me lembrei que a irmã de Paula, havia fugido alguns anos atrás e ninguém sabia o paradeiro dela. Quando voltamos, retomei minha vida, procurei Paula para avanças em nossos planos, mas não encontrei Paula em lugar nenhum, nem seus pais quiseram me dizer onde ela estava. Porém encontrei algo mais tentador, o famigerado celular de Marcelo estava sobre a mesa do escritório que dividíamos, ouvi o som das ferramentas batendo na oficina dele e não me contive, mexi no aparelho. Senti vergonha, pois não era correto fazer aquilo, ainda mais que fora aquela ocasião, ele nunca me deu motivos para


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suspeitar de nada. Porem um sexto sentido me dizia para continuar, tentei algumas combinações de senha e nada. Até que tentei a data de nascimento da mãe dele, e o celular se destravou e os sons na oficina continuavam. Aplicativos normais como em todo celular, ele por nunca se apegar usava os aparelhos mais simples que existiam. Sem pensar duas vezes olhei suas mensagens, para minha calma e tranquilidade, muitos fornecedores, muitas empresas, sua mãe, suas tias e eu mesma. Mais vergonha eu sentia agora, pois de verdade desconfiei de um homem que não me escondeu nada e eu parada em meio ao escritório com um pesar profundo e uma tristeza ímpar. Sua mãe por mais que poderia parecer uma bruxa, falava que gostava de mim, para ele cuidar bem de mim pois eu era a peça central de tudo. Naquela noite fiz sua comida favorita, sobremesa favorita e fiz o possível para tentar tirar de meu peito a vergonha. Pensei em contar para ele o que tinha feito, mas senti medo de desapontar alguém que de verdade só me fazia bem. Tratei tudo de forma normal e me prometi nunca mais tocar no celular dele ou desconfiar dele. - Então, satisfeita, encontrou alguma coisa? - Como, como assim? Eu sabia, no fundo eu sabia que de alguma maneira ele tinha descoberto que eu havia mexido no celular dele, senti meu rosto corando, suor começar a brotar nas têmporas e de verdade não sabia como responder para ele. Ele

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apenas levantou e me abraçou, encostou meu rosto em seu peito e me disse que estava tudo bem, que tudo terminaria bem. Terminar não era a palavra que eu gostaria de ouvir, mas como sua mãe e suas tias viriam nos visitar no dia seguinte, imaginei que ele não tomaria nenhuma decisão. O dia amanheceu ensolarado, o clima estava muito bom minhas sogras, porque as tias diziam também ser mãe de Marcelo, me trataram com muito carinho, me trouxeram vestidos lindos feito em tecidos que elas mesmo teceram, eu de verdade me sentia radiante de tudo estar bem, o carinho todo. Resolvemos fazer uma ceia no jardim, pois o céu apresentava uma lua imensa, brilhante, tudo colaborava para uma noite perfeita. Começamos com uma oração nossa ceia, as tias de Marcelo eram muito religiosas, não entendi muito bem pois não sabia o que diziam, de verdade nunca me apeguei no fato de não saber a ascendência de meu marido. Elas fizeram a oração quase como se fosse uma música, aquilo me deixou tão relaxada, com um pouco de sono diria até, então me deitei no ombro de meu marido e senti o chão por sob nós sumir, senti-me leve como uma pluma. Meu corpo agora não me respondia, Marcelo me confortava e me carregava para a cama. Passado algum tempo que não consegui precisar, senti um calor


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como nunca havia sentido na vida, meu corpo queimava, abri os olhos sentindo algo cobrir meu corpo e meus olhos viram arames de construção perfurando meu corpo, fazendo meu corpo ficar com um braço para cima, com a mão estendida para o céu, igual as estátuas da fonte em nosso jardim. Naquele momento percebi, que as alunas que deixavam a faculdade, não deixavam só o curso, mas a vida, pois Marcelo transformava-as em estátuas para a fonte. Suas tias e mãe agora dançavam em torno do local onde meu corpo era coberto de cimento. Senti meus

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músculos e osso se fossilizando, não tinha como explicar o que sentia e não consegui gritar, minha boca estava costurada. Marcelo vestia uma roupa estranha, como se para uma cerimônia, não sei como não perdi a consciência enquanto ele me cobria de cimento, como um caldo grosso ele me transformava em uma de suas estátuas. Senti vontade de chorar, mas meus olhos foram cobertos pelo cimento e último pensamento que tive foi...


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Roberto Schima Itanhaém/SP

Caixa de Memórias Tempo... O Tempo com "T" maiúsculo possuía seu peculiar toque de Midas. Cuidava de transformar montanhas em rochedos, rochedos em seixos e seixos em areia. Conduzia toda a alegria, a tristeza, a realidade, o sonho, a humildade, o orgulho, a honestidade, a hipocrisia, a sinceridade, a mentira, a dignidade, a cafajestice, o amor e o ódio a uma vala comum sete palmos de terra abaixo ou a um punhadinho de cinzas disperso pelo vento. Nem mundos inteiros ou sequer as estrelas do firmamento escapavam de seu poder. Os sábios diziam que tudo era relativo, todavia, o poder de mutação do Tempo era absoluto. Intuitivamente, o idoso sabia disso, pois sentia-o na própria pele. Sem mergulhar nos meandros filosóficos dos mistérios infindáveis do universo e dentro de sua simplicidade de exmotorista de caminhão aposentado, Seu Jidelson, nos quase noventa anos de vida, compreendia a transformação do ovo em lagarta e da lagarta em borboleta. Não fora sempre assim. Mais do que ninguém, ele bem o compreendia, pois, por mais irreverente e avoado que tivesse sido na juventude, nas décadas que se seguiram a vida lhe ensinara um mínimo de senso de

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contemplação, humildade e reverência. O Tempo lhe roubara muita coisa: inúmeros pertences pessoais, os cabelos negros, várias pessoas que amava - principalmente a esposa, Joceline -, fragmentos preciosos de memória e, em particular, sua própria vida que, invariavelmente, se esvaía. Dormia a maior parte do tempo. Ao menos em sonho, sentia-se livre e feliz. - Já deu banho no velho? indagou o filho de Seu Jidelson para a irmã. - Dei e tomei banho junto reclamou a mulher. - O pai tá um caco, mas se esperneia mais que lambari na frigideira. A próxima vez é sua! - Não precisa lembrar. Comigo ele fica quieto. - Sorte sua! Os irmãos, beirando os setenta anos, tampouco eram jovens. Bem poderiam ver refletidos no Seu Jidelson seus próprios futuros. Mas, por ora, preferiam fazer-se de cegos. Se compreendiam o porquê do pai protestar ao se ver nu diante da filha, sob seus cuidados e despojado de toda a dignidade, tampouco davam a entender. Tinham-no por caduco,


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gagá, esclerosado, e assim preferiam pensar a ter de lidar com o sofrimento causado pela decrepitude avançada e o desfecho inevitável. A menina entrou correndo na casa. - Biso! Biso! Biso! Chamava-se Jelvane, a bisneta raspa de tacho, vivaz no alto de seus dez anos. Mostrava-se alheia às questões de gente grande, exceto num ponto: não via o idoso como alguém que perdera os parafusos. Era o seu aniversário e, em razão da saúde debilitada de Seu Jidelson, a comemoração estava sendo realizada onde este morava. Ela deveria ser o alvo das atenções, porém, após a cantoria de parabéns, entrega dos presentes e tiradas de fotografias, as pessoas reuniram-se em rodinhas com aqueles que tinham maior afinidade, ignorando-a por completo, bocas cheias de bolo, doces, salgados, cerveja ou refrigerante. Ela ganhou bonecas, roupas, material escolar e bijuterias. A família reunida conversava entre si sobre seus problemas corriqueiros, as novidades, as fofocas e assuntos afins. A data fora mais um pretexto para se reunirem e trocar figurinhas. Risadas e queixumes revezavam-se. Brincadeiras, provocações, desabafos, gozações. Exageravam nas realizações, minimizavam os fiascos e omitiam o fundamental. Jelvane tornara-se transparente. Mas havia uma exceção. Também ignorado: Seu Jidelson. - Biso!

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Apesar da vista fraca, os olhos injetados num canto obscuro do quartinho adjacente à sala originalmente destinada a ser uma despensa - procuraram pela bisneta. - Jel? - Sou eu! Quando o olhar da menina encontrou o do bisavô, o rosto do idoso se iluminou. Acenou para a bisneta, chamando-a. Prontamente, Jelvane largou a boneca de plástico no chão e correu junto ao velho. O corpo esquálido da tonalidade de papiro estava sentado sobre a cama. Pesava pouco mais de quarenta quilos e em nada lembrava o homem que fora em seu auge, quando tinha mais do dobro desse peso e o triplo do vigor de qualquer um naquela casa. O toque de Midas. A metamorfose. E o Tempo. - Vem cá, Jel - pediu numa voz fraca. - Tá bom, biso. A criança se sentou de um pulo, sem se dar conta das dores provocadas nos ossos do velho, o qual tampouco deixou transparecer. - Como está a festinha? - Tá - respondeu a bisneta, dando de ombros. - Entendi. Os dois riram. Ele admirou a juventude da menina, as covinhas, seu ar impetuoso e indiferente diante de toda uma vida que esperava por ela.


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Foi dominado por uma mistura de alegria e tristeza diante das incertezas do amanhã. Acontecesse o que acontecesse, era a vida dela e todos tinham seu caminho a trilhar, suas histórias por escrever, lembrar ou esquecer, incluindo Jelvane. Falou: - Não tinha dinheiro pra comprar seu presente... - Nem precisava, biso. O senhor é o meu presente. O ex-motorista de caminhão se comoveu diante das palavras da menina e do beijo estalado que recebeu na bochecha flácida. Era muito mais do que esperaria dos demais familiares em um mês... em um ano. - E você é o meu, Jel. Fico feliz por ter vivido o suficiente para conhecê-la. Pena que Joceline, sua bisavó, não teve essa oportunidade. Veja isto aqui. A bisneta franziu o cenho. Era uma caixa de madeira escura e sem brilho. Pelo aspecto gasto, devia ser muito antiga. A criança a tocou. Sentiu sua solidez e o peso. - É pesada - disse. - O peso de uma vida - falou o bisavô, sorrindo. - Abra. Jelvane obedeceu. Havia todo um sortimento de objetos dentro dela. Seus avós e seus pais consideram essas coisas apenas bugigangas, cacarecos, trecos, tralhas... lixo enfim. Espero convencê-la de que são ao menos um pouquinho mais do que isso. Como deve saber, estou

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doente e não viverei muito. Aliás, vivi mais do que o bastante... - Não quero saber! - exclamou a menina, levando as mãos às orelhas. Seu Jidelson sorriu outra vez, desta vez sem achar graça. - Não há nada a temer, Jel. É só outra etapa. É o descanso. É a ausência de dor: a dor no corpo, a dor das recordações, a dor do vazio das conversas, a dor do silêncio, a dor da solidão. Eu já vivi tanto! Havia tanto por dizer, todavia, o mundo é surdo. Entre todas as contradições, talvez a existência humana seja a maior delas. Quando você acha que já aprendeu o suficiente para fazer-se ouvir, chegou o tempo em que ninguém mais quer lhe escutar. - Eu escuto... - murmurou a menina. Ao se dar conta do olhar lacrimejante da bisneta, o idoso interrompeu suas divagações. - Ah, o que é isso, anjinho? Nada de tristeza! É o seu aniversário. Está ficando mocinha e seu sorriso é um presente que você dá para todos nós. Sim, você sempre foi minha melhor ouvinte. Então, deixa eu contar sobre o conteúdo desta caixa. Para os pais e avós de Jelvane, aquelas coisas podiam não passar de tranqueiras, contudo, diante dos olhas ávidos e curiosos da menina, constituíam-se num verdadeiro tesouro. E, a medida em que Seu Jidelson narrava a história de cada


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uma delas, seu valor elevava-se às alturas. Retirando pequenos envelopes plásticos, o velho descreveu: - Estes são os dentes de leite do primeiro cão que eu e sua bisavó tivemos, Rex. Pequenininhos, não? Quem poderia imaginar o gigante que ele iria se tornar? Este aqui são mechas de seu pelo em diferentes fases da vida. Ah, Rex! O que ele tinha de grande, tinha de dengoso. Quando manuseio esses dentinhos e o pelo, é como se um filme passasse diante de mim. Vejo Rex: a época que ele veio, como foi crescendo, nossos passeios e brincadeiras, quando envelheceu e se foi. São uma ponte até ele, vínculos concretos entre mim e aquela criaturinha adorável. Ele nunca me deixou ou deixará. E eu jamais esqueci. - Eu gosto de cachorro, biso, mas papai não deixa eu ter um. Diz que faz barulho e sujeira. - Bem sei onde está o barulho e a imundície... Você teria adorado o Rex, Jel. Isto aqui é uma pedrinha de rio que apanhei num dos passeios ao lado de sua bisavó, ainda no tempo em que namorávamos. Veja como é redondinha e lisa. Bonita, não? A natureza é farta em prodígios. O rio era um lugar gostoso para caminhar. Havia muitas árvores nas margens que faziam sombras deliciosas nas tardes mais quente. Alamandas trepavam nos troncos e galhos, enfeitando-os de flores amarelas. Víamos o peixes nadarem contra a correnteza de águas transparentes: guarus, tilápias e traíras.

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O modo como os feixes de luz se refletiam nos cabelos de Joceline... Depois, derrubaram tudo, a poluição tomou conta, os peixes morreram e, finalmente, canalizaram o rio. Chamaram de progresso. Do que eu chamei você é nova demais para saber... - Todo rio que vejo tem água suja e fedida. O idoso fez cara feia. - É o valor que se dá a natureza. Sabe, Jel, um dos grandes erros da humanidade foi o de se divorciar dela, construir cidades, cimentar e asfaltar tudo, matar a terra, derrubar as árvores e se achar algo especial, independente, superior e acima. Uma besta que é, isso sim. Somos parte da natureza, contidos nela. Antigamente, as pessoas mantinham um pedaço de terra no quintal onde cresciam árvores ou arbustos, cultivavam suas verduras e ervas ou, ao menos, um jardim. Hoje em dia, nem isso... - A mãe diz que planta faz sujeira. - Seu pai e sua mãe fariam melhor se enxergassem a sujeira da alma. - O que, biso? - Ah, nada não. Deixa pra lá. Ei, aqui está uma mecha de cabelos de Joceline! Loiros por causa da descendência holandesa. Devia ter por volta de dezessete anos. Foi uma moça bonita e delicada. Veja, esta é uma fotografia dela. Pena que desbotou com o tempo.


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- Ela se parece com a vovó! - Sua avó é que se parece com ela - corrigiu. - Esta outra pedra, um quartzo, apanhei no fundo do quintal da casa dela. Para seus pais, Jel, é só uma pedra. Pra mim, é o passado ainda vivo em minhas mãos. Faz com que eu me recorde daqueles momentos ou busque na memória o que vivenciei. As pessoas adoram dar lições de moral. Dizem que devemos deixar o passado onde ele ficou - para trás - e seguir em frente. Por isso, não fazem questão de preservar as coisas, jogando-as fora. Quando muito, tiram fotografias. Mas quantos, de fato, observam as antigas imagens e procuram extrair algo mais profundo delas, daquele momento, das pessoas que lá estão eternizadas, além de um comentário superficial do tipo: "Como fulano era gordo! Olha que penteado esquisito! Que carro velho! Que vestido cafona!" Todavia, o passado é a base daquilo que nos tornamos. Sem a base, ficamos sem chão! Você sabe ler porque, no passado, um professor ensinou. Você tem educação porque, desde pequena, aprendeu de alguém. De que vale uma árvore sem sua raiz? Jelvane ficou pensativa. Sabia que o bisavô falava coisas importantes e sempre se mostrou satisfeita por ele tratá-la de igual para igual, por mais que ela fosse muito nova para acompanhá-lo. Ele fora seu principal mestre. Embora sem estudo formal, sempre gostara de ler de tudo um pouco. Ensinara-lhe a criar muitas coisas. Aprendera a fazer aviões de papel; um em particular lembrava uma

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ave de asas abertas a planar no céu e levava mais tempo a cair do que os outros modelos. Tinha um brinquedo simples, feito de carretel de linha vazio, um toco de vela, palitos de fósforo e elástico. Girava-se o palito no elástico, o qual passava dentro do carretel e armazenava a energia cinética. O toco de vela atuava como freio. Soltava-se o palito e o carretel girava, fazendo o conjunto andar feito um carrinho. Aprendera a fazer uma capucheta a partir de folhas de jornal o qual empinara durante um passeio à praia. Sempre considerara as brincadeiras de meninos mais interessantes do que bonecas e panelinhas. Divertia-se com essas coisas simples e engenhosas muito mais do que brinquedos sofisticados de pilha onde não passava de espectadora. O mundo de Seu Jidelson, outrora tão grande quanto longas e esparramadas eram as estradas percorridas por seu caminhão, reduzira-se ao cubículo onde vivia confinado. A seu modo, o aposento era também uma caixa de madeira a conter suas bugigangas: retratos na parede, uma estante e seus alfarrábios, revistas, sapatos, um calendário de mais de meio século, uma bengala e um boné. E, claro, ele próprio. - Cada objeto tem uma história, um significado para mim - explicou o ex-motorista de caminhão. - A molecada do meu tempo se alegrava com muito pouco. Toda a infância


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podia se resumir a um punhado de bolinhas de gude, um pião e a fieira, um telefone de barbante e duas latinhas, ou até um par de mãos vazias numa brincadeira de esconde-esconde. Veja, essas tampinhas de garrafa e marcas de cigarro, Jel. Colecionei quando tinha mais ou menos a sua idade. Eu e meus amiguinhos perambulávamos pelas ruas, procurando e catando na frente dos bares, na sarjeta e em terrenos baldios. Para nós, era uma grande aventura: nunca sabíamos o que iríamos encontrar. Uma tampinha mais difícil era motivo de festa. Divertíamo-nos a colecionar, trocar as repetidas, admirar as gravuras. Na época de São João, soltávamos balões de papel de seda. Quando algum caía, corríamos atrás. Despedaçávamos o balão e pegávamos os pedaços de papel sujos de fuligem. Fazíamos recortes que, no final, pareciam flocos de neve. Embrulhávamos numa pedra e atirávamos para o alto. Lá em cima, o papel se desprendia e era levado pelo vento. Claro, os balões eram perigosos, contudo, para as crianças que fomos, tudo era só alegria. Qualquer perigo daquele tempo nem se comparava ao que o mundo se tornou hoje... Mostrou outras fotos envelhecidas e explicou quem eram as pessoas, como foram as suas vidas e o que se fez de cada um deles. - O que é isso? - apontou a menina. Lembrava vagamente uma serpentina de carnaval. - É um rolo de fita. Era assim que se gravavam vozes e músicas. Neste

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aqui estou eu e sua bisavó. Tem seus avós matraqueando quando eram crianças e até sua mãe ainda bebê. Como era chorona! Há muito tempo que não ouço, pois o aparelho para reproduzir não existe mais. É pena. Queria tanto escutar a voz de Joceline outra vez! Oh, nesta caderneta tenho tudo anotado: a origem de cada objeto, seu significado, alguma curiosidade. Traz minhas impressões sobre a vida em geral e a que vivi, o que pensei, o que fiz e o que sonhei. Só não garanto que dê para ler tudo: minha caligrafia nunca foi boa. A criança ouviu e observou atentamente. Como o bisavô, era considerada um tanto esquisita. E, dentro dessa esquisitice, deu-se conta da preciosidade que ele mantivera guardado naquela caixa de madeira por décadas sobre a história da família em geral, a dele em particular, o mundo em que vivera e que, agora, não passava de um conjunto de recordações desbotadas e fragmentárias. Viu um cadeado antigo, ainda com a chave, um relógio de pulso Cyma sem a pulseira, um minúsculo vidro de perfume cujo conteúdo não soube identificar, figurinhas de goma de mascar, cédulas dos anos 50 e 60, calendários de bolso, medalhas de "Honra ao Mérito", um soldadinho de plástico... - Brinquei muito com ele - falou o idoso. - Ele vinha de brinde numa maria-mole. Juntava modelos diferentes e brincava de guerra na rua, erguendo barricadas de caixinhas


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de fósforo e morros de punhados de terra ou areia. Sim, eu sei que a guerra não tem nada de bonito, assim como balões podem causar incêndios, mas crianças são crianças e imitam gente grande para o bem e para o mal. - Eu queria brincar de guerra também! O velho riu. - Seus pais me matariam se eu tivesse preservado meu revólver de espoleta e desse a você. - Espoleta? Ele explicou. - Fazia um barulho danado. - Que pena que não tem mais... O homem frágil concluiu, quase ofegante de tanto esforço ao falar: - É o que eu posso lhe dar de aniversário, Jel. E entregou a pesada caixa para a bisneta. Se fosse um baú de tesouro pirata ela não teria arregalado mais os olhos ou segurado com maior cuidado. Deixou a caixa um momento na cama e abraçou apertado Seu Jidelson. De algum modo, compreendeu o significado do presente. Não era somente um presente de aniversário. O velho legava a ela o seu passado, a sua própria vida. Jelvane assumiu para si o compromisso de encontrar o aparelho que permitisse ao bisavô ouvir novamente a voz da falecida esposa. Suplicou aos pais nesse sentido. Embora de má vontade, o pai pesquisou na Internet. Sempre havia alguém que colecionava coisas antigas como rádios, televisores, computadores. Quem sabe,

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não haveria um gravador de rolo? A busca demorou até terminar numa pessoa que possuía um aparelho desse em condições de funcionamento. Ele não vendia, mas por uma determinada quantia, poderia converter a gravação da fita para o formato digital e passar para um pendrive. - Vai custar sua mesada... - Não tem importância! Foi feito. Então, feliz da vida, Jelvane foi até a casa dos avós, onde o bisavô residia. - Biso! Biso! Biso! O idoso já estava nas últimas. Mal encontrou forças para erguer as pálpebras. Não passava de um graveto seco prestes a se desprender da árvore. O coração doía enquanto Jelvane ajeitava os fones de ouvido em Seu Jidelson. Então, pressionou a tecla Play no visor do smartphone, conforme o pai ensinara. Sentiu-se recompensada quando o esboço de um sorriso surgiu dos lábios do bisavô. - Joceline... - sussurraram os lábios cansados. - Joceline... Lágrimas brotaram dos olhos do velho. Sorria e chorava. Chorava e sorria. - Meu Deus... Joceline! A medida em que a gravação prosseguia, seu sorriso abriu-a mais e mais. O rosto se iluminou. Seus pensamentos viajaram por memórias passadas, quando o mundo era


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diferente, senão melhor era, pelo menos, o seu mundo. Fazia parte dele e nele sentia-se em casa. - Oh, Joceline... Assim, Seu Jidelson faleceu, ou melhor, descansou. Apesar da tristeza, Jelvane sentiuse leve e satisfeita diante da missão cumprida. Na nova etapa, seu bisavô seguiria feliz ao lado da mulher que amava. Alguns parentes lamentaram. Outros acharam ruim o inconveniente. Jelvane se consolou diante da preciosa caixa de memórias herdada do velho. O Tempo com "T" maiúsculo e seu peculiar toque de Midas cuidou de, anos depois, fazer de Jelvane uma mulher adulta. Ao relembrar o bisavô, escreveu um livro sobre suas recordações e o que dele aprendeu. Mencionou a festa do décimo aniversário, o minucioso conteúdo da caixa, o significado do presente para ela e o rolo de fita. Incluiu retalhos históricos da época de cada objeto, imagens e a genealogia de seus antepassados. Foi um relato emocionante, eloquente, de natureza pessoal e documental. Lançou-o através de uma plataforma de autopublicação. Não se poderia dizer que se tornou um best seller. Tampouco seria a intenção de Jelvane.

Significava uma homenagem ao bisavô. Representava seu amor pelo exmotorista de caminhão. E, desafiando o Tempo, era uma maneira de fazê-lo viver para sempre. Colocou um exemplar da obra dentro da caixa de memórias, foi até o cemitério e a enterrou junto à sepultura de Seu Jidelson. Do retrato na lápide, o homem esquálido sorria para ela. - Obrigada, biso. Talvez goste de saber: também estou organizando a minha própria caixa. Na lápide, a inscrição era a estrofe de um poema que o falecido jamais concluíra. Constava na caderneta que viera junto com os outros "cacarecos" da caixa de memórias. Dizia: Em meio ao deserto, eu sou um rochedo. Como tantos outros em volta, estou a ficar. Sob o Sol, a Lua, os planetas e as estrelas, aguardo o meu tempo e a eternidade acabar.

http://www.revistaconexaoliteratura.com.br/search?q=roberto+schima https://clubedeautores.com.br/books/search?where=books&what=roberto+schima https://www.wattpad.com/user/RobertoSchima rschima@bol.com.br

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Rogerio Luz Rio de Janeiro/RJ

Cidade São Sebastião Corria a céu aberto o Rio Carioca sob pontes gentis. Agora é veio oculto, fio que de janeiros sufocados envenena o martírio. Redentor Em torno da visão sobre a coluna ausente pelo cone de sombra à base da pirâmide torso arcaico de Apolo: - força é não veres nada. Ipanema Derrama-se do céu uma flor de nudez sobre deserta areia: onda e maciez mar e mulher.

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Rommel Werneck Santo André/SP

Magno Soneto Ah! Esses beijos que mandas nos poemas Mas que não tocam jamais minha face! São minuetos vazios do engano São sanguinárias mentiras que contas Oh! Esses lábios sedentos esperam, Eles desejam um verso escrever, Ação de graças, louvores intensos Êxtases santos a Deus exalar E se pudéssemos ó compor versos Juntos casados colados perdidos Quem sabe unidos faríamos mais! E nossos lábios selados enfim Professariam estrofes à noite Vozes douradas num magno soneto! 2009 www.rommelwerneck.com

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Roque Aloisio Weschenfelder Santa Rosa/RS

Meu Dinheiro Não Meu Eu me pago todos os dias para o

pagos, estatísticas de qualificação dos

governo: sou o próprio imposto, palavra

alunos

imposta para suprir o poder público de

índices.

Vejo

recursos a fim de me prestar serviços de

violência

em

saúde, de educação dos filhos, netos e

notícias demais na rádio e assisto isso

todos que não nascem sabendo, de

o tempo todo na televisão.

segurança em casa e fora dela, de

estradas não asfaltadas, outras com

infraestrutura para o transporte sempre

buracos,

quando preciso e sei lá quantos serviços

engarrafamentos

públicos mais.

falta

Comprei

algo

e

paguei

pelo

brasileiros

péssimos

assaltos, geral,

roubos,

aliás,

pontes

de

muito

com

ouço Vejo

caindo,

gigantescos

duplicação pouco

das

por

rodovias,

investimento

em

produto, mas também paguei o imposto

transportes

embutido no preço final. Sei lá se o

condições

governo recebeu o imposto, mas

inexistência dos mesmos em muitas

o

paguei. Vou ao supermercado de uma

ferroviário, de

aeroportos

más e

a

regiões que deles necessitam.

cooperativa, que sempre encaminha os

Fico pensando: como é fácil

impostos ao governo, uso o carro e a

pagar os impostos! Como é difícil o

gasolina

prefeito

notebook,

é

altamente em

que

tributada.

escrevo,

O

gerou

receber

as

verbas

para

manter a administração municipal,

impostos, a internet e a energia elétrica

para

investir

também os têm acrescidos na conta.

projetos

em

melhorias!

complicados,

licenças

São de

O que fazem com meus impostos?

toda ordem, só para construir uma

Vejo gente nas filas do SUS, pessoas

ponte, uma nova creche ou escola,

doentes não atendidas na hora da dor. Vejo escolas precárias, professores mal

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um hospital então, até para instalar um cemitério ele cria cabelos brancos.

O que mais engole o dinheiro dos

impostos

é

a

ganância

e

a

Para onde vão nossos impostos?

desonestidade. A isso, soma-se a

Eles são simplesmente engolidos por

impunidade, causada por uma justiça

uma máquina burocrática gigantesca,

lenta,

por salários altos demais de poucos que

impostos e taxas que pagamos a

trabalham

cada dia, a cada compra e até dos

policiais

quase e

nada,

enquanto

professores

os

numerosos

necessários

recebem

misérias

são

e

desestimulados.

PPs

também

descontos

mantida

em

com

nossas

os

rendas

advindas de salários e outras fontes

Os

de remuneração. Ah! se, por escrever

impostos são sonegados, os impostos

esta crônica, eu receber prêmio em

são

dinheiro, parte dele irá para os cofres

desviados

burocráticos, máquina

de

são

nos

meandros

absorvidos

papéis

e

de

pela

sistemas

do governo. Um dia morrerei e se deixar

complexos para fiscalizar e para se

alguma

prevenir contra a não prevenção. Nossos

inventário, boa parte vira imposto.

impostos

nos

Enterrarão meu corpo num caixão

superfaturamentos das obras públicas –

altamente tributado. Nunca saberei

até

onde este imposto vai parar!

são

muitas

enterrados

nunca

inauguradas,

virando

chegam

a

prédios

ser

herança,

na

mal-

assombrados ou elefantes brancos. https://www.facebook.com/roquealoisio.weschenfelder/

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hora

do


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Rosa Maria Soares Bugarin Brasília/DF

Sonhando Árvores Árvore florida, nas cantigas de verão, que põe calores de sol e ardências de desejos, em negras noites quentes... Árvore que se branqueia na neve do inverno, no grande adormecer da natureza... No hiato do tempo, buscando o renovar... Árvore que canta com os amorosos, no verão das ações, das praias, das queimadas de florestas e de corpos... Árvore sensual que se desnuda no outono e se oferece ao sol que a encandeia... Árvore fecunda que se cobre de frutos, coloridos, tropicais, suculentos, que saciam a sede, a fome, a saudade dos sabores de outrora... Árvore generosa que dá sombra e abrigo

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e faz a trégua e o afago, no gelado suor do viandante... Árvore secular que perpetua a vida e finca no solo as raízes da eternidade, no estável de ser sempre, o ponto firme, seguro porto, farol de referência, chave do abraço e da energia... Árvore verdejante, que apazigua o olhar, que torna a alma esperançosa, no espelho glauco da natureza em flor... Árvore sonora, onde pássaros cantadores volteiam, repousam, criam filhotes, em ninhos suspensos, na folhagem cúmplice e discreta e entoam harmonia de sons que adormecem o sofrer e fazem pensar na criação de Deus, perfeita e majestosa... Árvore mulher, adornada de cores, rebrilhando ao luar, nas rendas que lhe põe no seu vestido verde, recamado de estrelas, suave resplendor, na certeza da vida... Árvore poderosa, que irrompe nos espaços brancos, lançando aos céus,

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braços longos a dançar ao vento... Árvore... Ontem, semente pequenina, frágil, germinando a vida em silenciosa gestação, contendo a força do desabrochar, para contar a magia da vitória de florescer e cantar o crescer e viver seu destino... Destino de árvore... Árvore de tronco sólido, rugoso, que vira berço a acalentar os sonhos... Que vira mesa a recolher risadas... Que vira cama a proteger amantes... Que vira barco a desbravar os mares... Que vira O carro que o boi conduz... Que vira fogo a afastar o frio... Que vira brasa de recomeçar... Que vira esquife em condução final... Versátil! Nobre! Altaneira! Vida pura! Transcendência! No imortal ciclo de seu destino imortal, De ser sempre inteira, em cada pedaço. De escrever estórias, nas noites dos tempos. Testemunha real, eterna, compassiva, maternal, da intensa fragilidade humana...

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Rosangela Maluf Belo Horizonte/MG

Presentes que me dous (1) Mais um domingo de céu azul e sol brilhante. Mais um dia de isolamento social, de permanência em casa com muito medo da virose que, a cada dia, faz milhares de vítimas. Sem poder abraçar ninguém com medo de nos infectarmos. Beijar então, nem pensar. Procuramos ao máximo distanciar-nos uns dos outros, nos resguardando e resguardando o outro também. A pandemia tem feito de nós seres muito diferentes do que éramos. Uns poucos, buscando o ressignificado de tudo, tentando mudar para melhor; outros experimentando o fundo do poço, intensas situações de estresse, de ansiedade, de tristeza, de agonia, de mais pobreza, de fome. Ninguém, nunca mais será igual ao que era antes! Seria este o objetivo deste vírus devastador? Vai saber... Acordo e abro os olhos. Sei que vivemos há quase um ano, numa reclusão involuntária, mas necessária. Coloco-me inteiramente presente no aqui e agora. Tenho exercitado disciplinadamente esta conexão com o presente e , confesso, tem-me feito muito bem. Estou em minha cama. Meu colchão, com o top pillow que me dei de presente. Uma simples camada de nylon(?), traz às minhas noites um

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conforto indescritível. Sinto a textura do lençol. Sinto a temperatura do meu corpo, em contato com o algodão macio. Ainda de olhos fechados, me viro de lado e - atenta a tudo que me toca - sinto a maciez do travesseiro em que me deito, e outro que posso abraçar ou não. Vivo intensamente este despertar. Curto o meu corpo. Exploro as sensações em minha pele. Inspiro e expiro. Espreguiço gostosamente enquanto bem-te-vis cantam lá fora, em uma árvore próxima à minha janela. Ouço aquele canto e conto: dezoito vezes e o pássaro continua lá, saudando a manhã que se inicia. Quero, eu também, saudar o dia que surge. Será um dia muito diferente do que eu gostaria de viver e justamente por isto, preciso fazer dele um dia especial. O melhor dia que eu puder proporcionar a mim mesma. No caminho para o banheiro encontro os três gatos que chegam pra me desejar bom dia. Na verdade, o que eles querem é um carinho. Afago o pescoço de cada um deles. Adulo os três. No banho concentro-me novamente no aqui e agora. Que bênção dispor de um banheiro confortável, com água, muita água e


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quente! Impossível não pensar nos milhares de pessoas sem acesso a este prazer tão corriqueiro pra nós. Escolho a temperatura mais quentinha. Mergulho na delícia daquele banho. Inspiro e expiro. Uso o sabonete que adoro, aquele que deixa, em seu rastro, um cheiro delicioso por muitas horas. Com os olhos fechados, lavo os cabelos, sensação deliciosa. Estou totalmente aqui e agora. Só o barulhinho da água que cai, o resto é silêncio. O prazer de uma toalha que, efetivamente, me seca. O contato gostoso e macio de um tecido exatamente pensado pra isto, enxugar. Devagar. Sem pressa. Agradecida por ter um corpo sem defeito, nem congênito nem adquirido, cabeçatronco-membros. Habilidade para me locomover sozinha, sem depender de ninguém. Poder estar sozinha, sem acompanhante, só minha presença me basta. Nenhuma dor, nenhuma doença, nenhum desconforto. No ritmo da minha

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respiração o agradecimento torna-se um mantra. Repito mil vezes, obrigada! Pela vida, pela saúde, pela cama macia, pelo cantar do passarinho, pelo banho quente, pelos cheiros tão bons, pelos gatos que, deitadinhos no tapete, me supervisionam. E assim, em casa, a sós comigo, me sinto plena. Feliz. Corpo sadio. Mente equilibrada (dentro do possível). Foco na realidade. Pratico os cuidados recomendados e nos quais acredito. Sem exageros ou neuroses. Passando por momentos difíceis como todos os seres, no mundo inteiro. Tudo vai passar, vai sim, mas não vai ser fácil, não vai ser rápido e talvez não seja esta a última vez. Sigamos em frente, sempre, com imensa esperança de que a Ciência vencerá o vírus & suas mutações. Afinal, a resiliência é só o que nos restou...


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Rosangela Mariano São Leopoldo/RS

Sonho Sonhei com um planeta sem dor, sem desamor, sem temor, sem pavor... Sonhei com um planeta azul... e não imerso em breus de tristezas insanas... Sonhei com um planeta sem batalhas, sem armas assassinas, desumanas... - Ah, espetáculo deprimente da ignorância humana!! Sonhei com um

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planeta com pão na mesa, mãos em prece e olhos de futuro... Sonhei com um planeta de respeito verde, violências silenciadas, bombas desativadas, cercas derrubadas... ... Ciência valorizada, ... Escolas abençoadas, ... Esperanças renovadas... Sonhei com um planeta de passaporte único: o do amor e da solidariedade....

http://lunaraescritora.blogspot.com

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Ruan Vieira Propriá/SE

Transitoriedade Nasci, cresci, vivo, morrerei O que fui, não sou, o que sou, não serei O que antes não via, vejo Durmo e acordo, sonho e desejo Na mente, mil pensamentos Da boca, silêncio, pausas, sussurros Na vida, sofrimentos Da mão, toques, feridas, murros Solidão partilhada em uma multidão Caras, facetas, rostos, máscaras vis mascaram a solidão Minha tentativa falha de esquecimento A negação Lembranças invadem meu pensamento O coração Muito tudo, quase nada Quase tudo, muito nada Existo, confuso, insisto, conflito, motivo Apesar disto, grito, sufoco, choro, riso, vivo.

https://instagram.com/libertospelapoesia?utm_medium=copy_link

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Sabrina Siqueira Santa Maria/RS

O brechó da Rio Branco O fato de a minha mãe ser filha temporona fez com que eu tivesse tios bem mais velhos. Com dois deles, convivi bastante e guardo boas memórias. Uma é a tia Lira, a primeira ghostwriter da família, já que escrevia os discursos do marido vereador e ficava no anonimato. Eu a acompanhei em alguns apontamentos de jogo do bicho e entendi depressa a importância de um almanaque de interpretação dos sonhos nesse métier, já que o apontador é antes de tudo um terapeuta dos mistérios do inconsciente. Outro, o tio Ivan, foi quem escolheu o meu nome, que eu adoro. Meus pais adolescentes não recorreram à ciência para saber o sexo do bebê, até porque acho que não existia exame para isso em 1979. O que não significa que não tenham usado de alguma astúcia para antecipar a surpresa da natureza.

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Morávamos em São Sepé e, em cidade muito pequena, naquela época, cartomante era como circo, vira e mexe chegava uma. O jovem casal visitou a vidente separadamente e ambos escutaram dela que teriam um filho homem, algum dia. Pronto! Nasci Fabrício e com muitas roupas azuis. Mas num instante as crianças que se tornaram pais de primeira viagem solucionaram o problema renomeando a recémnascida como a protagonista de seu gibi favorito: Mônica. O tio Ivan, na primeira visita à afilhada, ainda no hospital, teve um insight da baixinha enfezada que eu seria e me salvou de um destino caricato, sugerindo Sabrina. Esse nome ele tirou de alguma fotonovela da moda, mas eu gosto de contar a história com o verniz de que a inspiração teria sido o


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filme de Billy Wilder, produzido em 1954, em que estrelavam Humphrey Bogart e Audrey Hepburn, de quem meu tio nunca ouviu falar. Ele me salvou de uma existência caricaturesca com o nome Mônica que, apesar de legal, não é o mais adequado para quem, como eu, mede 1,50m, é dentuça e tem personalidade forte, por lembrar em demasia a criação de Maurício de Sousa. Mas não impediu a si próprio de repetir os erros de algumas personagens literárias. Para mim, o tio Ivan é como Leonardo, protagonista de Memórias de um sargento de milícias, de Manoel Antônio de Almeida. Apesar de não ter nascido de uma pisadela com um beliscão, teve uma infância de travessuras e uma juventude de peripécias, com amores repartidos para as muitas mulheres que cruzaram seu caminho. Diferentemente de Dorian Gray, no entanto, personagem de Oscar Wilde que não sofre as vicissitudes da boemia e nunca envelhece, a sucessão de noitadas e ternuras sem ter fim, com numerosas amantes, foram deteriorando a saúde do tio Ivan. Entre relacionamentos oficiais, casamentos, namoros e encontros casuais, o tio me deu primos que escapam à contagem da minha mãe e dos quais eu conheço uma minoria. A eles a presença paterna deixou muito a desejar, mas eu não posso me queixar do tio/padrinho. Nos Natais da minha infância, ele foi algumas vezes a batida na janela, simulando um Papai Noel apressado, que coincidia com a chegada do tio Ivan para a ceia, e será que eles

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não tinham se esbarrado agorinha ali na entrada? Tinham sim, mas o Noel não podia esperar, pediu que entrasse com os presentes, passados a ele providencialmente por minha mãe, um pouco antes. Demonstrações da capacidade de atuação do galã Ivan Siqueira. No final da década de 1990, mudei para Santa Maria para fazer os famigerados cursinhos prévestibulares. Em uma tarde, tio Ivan me salvou da chatice de horas debruçada sobre apostilas, vindo me visitar com um dos carros que estava consertando, como chapeador. Aqueles carros que ficam um pedaço de cada cor, meio lixados, meio massa aparecendo, estourando e rodando por milagre. Acontece que uma das paixões do tio trabalhou um tempo como sacoleira, vendendo roupas em casa, foi embora e deixou sacos cheios de roupas, esquecidos há muito na garagem. Foi aí que ocorreu ao tio que, em Santa Maria, centro urbano com amplas possibilidades de comércio, poderia fazer um bom dinheiro vendendo aqueles modelitos em algum brechó. Ao que respondi “deixa pra mim!”, pois já tinha avistado vários dos tais empreendimentos na Avenida Rio Branco! E fomos, o tio Ivan e eu, levando o calhambeque cheio de sacos plásticos com a moda popular de alguns anos atrás, ficar ricos em uma tarde de semana. Na Rio Branco, avistei do outro lado da avenida alguns brechós, e o tio


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pediu que eu atravessasse e fosse explicando o excelente negócio que se afigurava ao responsável, enquanto ele faria a volta e procuraria lugar para estacionar a banheira tatuada de massa automotiva e procedimentos para desamasse. De alguma forma o meu discurso foi muito bom, porque a proprietária do brechó saiu na calçada para ajudar o tio a localizar uma vaga. Nisso, ele tinha feito o retorno na Rua Vale Machado e vinha subindo lentamente, à procura de parar próximo de onde a senhora e eu estávamos. O carro, em frangalhos, estourava a valer e fez menção de estacionar no espaço que, por sorte, vagara bem em frente à loja. Então a proprietária começa a movimentar os braços veementemente para que o veículo decrépito se afaste da vaga, dizendo “aqui, não!”. Virando para mim, lamentou, “bem agora que teu tio está por chegar, aparece essa lata velha e quer pegar a vaga!”, e volta-se de novo para o carro, gesticulando enfaticamente e esboçando alguma raiva. Ao que o tio, de dentro do carro, responde com um sorrisão e acenos, acreditando tratar-se da efusividade das boas-vindas do povo da cidade grande. Desfeito o mal-entendido e estabelecida a saia justa entre a lojista e eu, não

pensem que as coisas não poderiam piorar. Na ocasião, tio Ivan já havia vencido um câncer na laringe que o deixou sem as cordas vocais e, em função disso, falava com a ajuda de um aparelho que produzia uma voz mecânica, um segundo sobressalto que a comerciante de roupas usadas não fez questão de disfarçar. O que estaria por vir, no entanto, seria um susto desagradável para nós três. As roupas por muito tempo esquecidas em sacos plásticos na garagem, assim que começaram a ser manuseadas pelo tio para serem mostradas à mulher, deixaram o ambiente tomado por um cheiro forte de xixi, e a maioria das peças estava bolorenta, grudada e mijada de ratos, ou gatos, ou os dois; e eu juro para vocês que quando pensa em administrar um brechó, uma pessoa não supõe que vai viver tantas indignações em uma tarde só! Livres da leptospirose e com um troco que a lojista aceitou pagar pela possibilidade de encontrar algo aproveitável na pilha de tecido colado em urina animal, fomos lanchar às gargalhadas. Não foi daquela vez que ficamos ricos, mas a família se diverte com essa história desde então.

https://www.facebook.com/sabrina.siqueira.58 https://www.youtube.com/channel/UCgT49CFXv6iwFxDQFbVmsVA/featured

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Samira Martins Marana São Paulo/SP

É menina! Eu descobri aos oito anos de idade que eu era uma menina. Até então eu era apenas eu: uma criança como as outras. Mas uma menina, com todo aquele conjunto de coisas que se esperam de uma menina, foi aos oito anos. Ainda que tenha sido aos cinco anos que pedi para minha mãe me levar para furar as orelhas porque queria colocar brincos obrigada, mãe, por não furar as minhas orelhas de bebê, violando meu corpinho de bebê recém nascido, sem o meu consentimento - foi aos oito anos de idade que descobri, na escola, que eu era uma menina, e portanto, não podia fazer todas as coisas, porque afinal meninas não podem fazer todas as coisas, como por exemplo, sentar de costas para conversar com minha amiga Talita, que sentava na carteira de trás. O grande delito que eu cometi por ser uma menina foi o de afastar os joelhos com o encosto da cadeira entre as minhas pernas, apoiando meus braços como se fosse o parapeito de uma janela, para conversar com minha vizinha. Infração gravíssima. A professora Catarina, uma senhora de família japonesa, cabelos curtos e avermelhados, personalidade discreta e afetuosidade comedida, quase invisível, precisou acionar meus pais, com urgência. “Senhores pais ou responsáveis, Favor comparecer a escola no dia tal, na hora tal, para conversarmos sobre sua filha.

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Atenciosamente Professora Catarina “ Conforme solicitado, lá estava meu pai no dia e horário marcados. Imagino ele se questionando, qual seria a grande questão na escola de uma menina de oito anos na escola para que ele fosse chamado para uma conversa particular com a professora da escola. Afinal, não se espera das meninas questões problemáticas na escola. —Sabe o que é? Disse ela sorrindo, com a doçura apropriada para uma professora da segunda série: —A sua filha se senta de pernas abertas... Meu pai, aos quarenta e oito anos de idade foi solicitado na escola porque a sua filha de oito ano de idade se sentava de costas para a lousa, com as pernas abertas, de-fren-te-pa-rao-en-cos-to-da-ca-dei-ra para conversar com a amiga da carteira de trás. … … … E eu não sei mais o que fazer.


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Acho que meu pai também nunca soube o que fazer. Acho que minha mãe preferiu ignorar o ocorrido. Eu também não sei o que fazer. Estou travada na gravidade do comportamento e postura da criança de oito anos. E por isso não consigo dar continuidade na história. Talvez eu passe a tarde em um canto de castigo no meu quarto sem televisão e

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sem suco para refletir sobre o acontecimento. Quem sabe depois eu volte e consiga finalizar este texto, baseado em fatos surreais. Naquele dia, aos oito anos de idade, eu descobri que ainda não tinha nascido. Mas havia me tornado.


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Sandra Lee Ribeiro Rio Grande/RS

Dança do fogo Ontem. Ele despertou com seu hálito de 50 tempos guardados. Cumbre Vieja abriu-se em labaredas expelindo fumaça, regorgitando a terra cozida e fumegante. Espreguiçou-se e estendeu seus limites até o mar, sem pedir licença, porque esse direito Nyame já lhe delegou desde sempre. O seu território ninguém toma, ninguém instala torres elétricas, ninguém invade suas entranhas, ninguém extrai o seu sangue, ninguém se atreveria a provocá-lo nas profundezas do seu descanso quinquagenário. Todos gostariam que nunca mais acordasse e que nenhuma princesa encantada o beijasse para libertá-lo da dormência que, infelizmente, não é eterna! Hoje. Ele adentrou ao recinto com sua cabeça coroada pelos cabelos brancos como se fosse um cume entre nuvens e, apoiando-se pesadamente em suas muletas, tentava vencer, milimetricamente, a distância entre o portão da velha casa e o local da festa. Festa? Sim, hoje é o dia consagrado ao Senhor do Fogo, do Trovão, das amálgamas das rochas que se unem ao calor das labaredas sob o olhar atento das estrelas no Òrun. Hoje é Dia de Liberdade!!! Sentou-se pesadamente sobre uma cadeira como uma rocha encimesmada em sua pesada estrutura. Não! Não desafiaria a gravidade porque suas pernas não responderiam ao comando que já não existe mais, aqui nesta Àiyé. Como sempre. Ele escutou o chamado e intimamente gritou “Oh velho Deus dos homens deixa-me ser tambor corpo e alma só tambor só tambor gritando na noite quente dos trópicos”!1 E quando SṢàngó lhe amparou nos braços derramou-se como as labaredas do Cumbre Vieja para além de sua matéria carcomida pelo tempo e pela doença. Ele foi só tambor num entre-lugar, num tempo sem tempo na sala do xirê “só tambor até à consumação da grande festa do batuque! Oh velho Deus dos homens deixa-me ser tambor só tambor”!2 Rugiu em labaredas... cumprimentou aos irmãos de luta, reverenciou o altar iluminado, e assim como Cumbre Vieja foi ao encontro do abraço salgado do mar, ele escorreu para uma estrada de luz e felicidade que apenas os ÒrìsṢà conhecem. Então, dançou... dançou... dançou... dançou sem as muletas!!! Kawòó Kábíyèsi!!! https://sandra-lee.webnode.com/euscritos/ 1 2

Quero ser tambor, autor poeta moçambicano José Craveirinha. ibidem

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Schleiden Nunes Pimenta Bernardino de Campos/SP

Valeu, Tati! Prometi

à

minha

“sem

apenas a ele, porque o nosso coletivo

eu

ajudou, mas quase nenhum benefício

quebrando a minha palavra. Mas como

do governo teria sido conseguido aqui

não ir ao velório do Tati? É irônico

sem o intermédio do seu celular. Eu

porque, após meses, pela primeira vez

via, por exemplo, a dona Beja, ali

me reunia com outras pessoas e logo no

bem próxima ao caixão; 85 anos e

lugar que tentamos evitar com esse

sem família e que, a princípio, nem

confinamento: a capela municipal. Mas é

ousava

do

que,

smartphone por achar ser de satanás.

justamente por ser dele, que tantas

É claro, todos se ajudam nesses

regras nos tempos de pandemia perdem

lugares em que a fome vem cedo

sentido.

mais

tomar café, mas a questão é que Tati

comprometido e disciplinado. Foi Tati o

era entrega. Sinônimo de devoção.

primeiro do morro, talvez da cidade, a

Em dado momento, passou a andar

utilizar

na

com uma camiseta onde se lia toda

faculdade, conseguiu dezenas de itens

as regras de segurança, como lavar

de

as mãos e ficar em casa, em letras

aglomerações”,

Tati!

e

Como

Não

proteção

ali

não

conheci

máscaras. para

família

Em

estava

ir?

Acho

ninguém

campanha

quem

não

podia

tocar

na

tela

garrafais.

bom coração, proativo. Em técnico de

braço. Em sua testa, reluzia “Eu saio

enfermagem se formaria este ano.

por você”. E saiu mesmo, o Tati. Para sempre.

regras? Tati se foi e nenhuma verdade é

Um

a

um,

os

tatuado

um

comprar. Era um menino exemplar, de

Mas daí que falo: de que valeram as

Deve tê-las

de

moradores

no

do

maior do que esta. As campanhas de

morro o visitavam naquela salinha;

alimentos que organizou, de produtos de

viam-no,

higiene, de tudo. E não dou crédito

máscaras incapazes de esconder o

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agradeciam,

àquelas


LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

choro de gratidão. Diziam um “Valeu,

de novo pensava: por quê? Logo o

Tati” que também era “De que vale

Tati? O que mais do que todos se

agora, Tati?”; porque, é bem possível,

cuidou? Eu chorava copiosamente, de

que a maioria daquelas pessoas nem

modo

temesse a pandemia tanto assim. A

aproximar de mim. O cara parou,

devoção de Tati é que os impulsionava,

respirou fundo: pelos sapatos devia

que os alimentava a algo no desalento e

ser o carteiro. E, como quem só

na escuridão, e que agora, unidos ao

passa, viu meu sofrimento, a foto de

aroma exasperado de rosas, foram me

Tati, ali,

sufocando aos poucos até me expulsar

“Corona?”.

dali.

que

nem

vi

e enfim

alguém

se

me perguntou:

Ah, quase, quase, escapou-me

De fora da capela, no papel que

um “antes fosse”! Mas me segurei.

anunciava a morte de Tati eu via seu

Disse-lhe:

sorriso de dentes separadinhos (como se

Estourou

seus

pulmões.

também não quisessem se aglomerar), e

Essas palavras sempre custarão a

me lembrava dele indo e voltando com

sair, mas as obriguei. Tem que ser

duas cestas básicas na garupa da sua

dito sim: – Três tiros nas costas.

cinquentinha. À minha mente vinha seu

Confundido

andado solto, jogando os braços ao ar, e

região.

com

https://www.instagram.com/sch.leiden/

188

outro

preto

da


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Sérgio Soares Simão Pereira/MG

João Flôres Ribeiro: a lenda do cadáver insepulto Ainda cumprindo meu isolamento social

tendo dado origem assim a “Lenda do

por conta da Covid-19, aproveitei para

Cadáver Insepulto”.

visitar minha tia-avó Minervina, irmã do

Segundo ela, a história começara há

meio de meu falecido avô, Sebastião.

muito tempo atrás, pouco depois de

Visitar Tia Vina, é sempre um convite ao

Prosperidade

saboreio

dos

e

emancipação, sendo promovida de

quitandas

da culinária mineira,

bem

Arraial à Cidade. A família Flôres

como de uma boa conversa, cheia de

Ribeiro já era conhecida àquela época

causos sempre muito interessantes.

como a “dona” da região, e foi assim

Mesa posta, entre um pão de queijo e

que o fazendeiro João Flôres, filho de

um bolinho de chuva, entremeados por

Joaquim Ozanan Flôres Ribeiro (maior

um café coado no coador de pano, Tia

latifundiário

Vina, do alto dos seus 84 anos (mas

auto-entitulou Coronel Flôres Ribeiro

com memória e disposição de dar inveja

e foi eleito o primeiro prefeito da

em

recém

muita

melhores

cinquentona),

quitutes

veio

me

ter

alcançado

daquelas

nascida

sua

terras),

cidade

de

se

Nossa

atualizando sobre as histórias da família,

Senhora

da Prosperidade,

casamentos desfeitos, heranças perdidas

tornaria

depois,

em uma mesa de carteado, e o assunto

conheço.

que ela mais gostava – a política do

Coronel

interior.

décadas à frente do Paço Municipal,

Nesse dia ela resolveu me contar a

tendo sido (segundo o próprio) seu

história do Coronel João Flôres Ribeiro,

maior feito a construção da Praça de

antigo Prefeito de Prosperidade, mas

Nossa

que alcançou notoriedade na cidade não

notadamente

pelos seus feitos, mas por sua morte,

suntuosa da região, com um grande

189

Flôres

a

cidade

reinou

Senhora a

que

do maior

por

se que

duas

Rosário, e

mais


LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

coreto ao centro, construído em estilo

cultura, e notada educação e respeito

inglês, orgulho do Prefeito, de onde

com todos – do serviçal da Comarca

sempre discursava aos domingos, logo

ao Senhor Padre e ao Prefeito. E foi

que se findava a missa na Matriz.

justamente por isso que começou a

Como todo bom Coronel, o Prefeito não

cisma, pois, por conta de grande

abria mão dos rapapés costumeiros,

simpatia o Juiz logo conquistou a

nem

de

cidade, e por isso o Coronel elegeu

espécie alguma, mas ainda assim foi um

aquele “juizinho de merda” como seu

bom

algum

inimigo público número um, passando

desenvolvimento para a cidadela, graças

a atacá-lo publicamente, dizendo que

ao seu prestígio político na capital, onde

ele havia sido enviado para tomar o

ia pelo menos uma vez ao mês, ter com

seu

o Senhor Governador. E foi numa dessas

aconteceria passando por cima de seu

viagens que tudo mudou para João

cadáver.

Flôres, e para a pequena cidade.

Ocorre

Ao retornar do compromisso mensal na

Prefeito

capital, todos notaram que algo de

recorrentes demais, e as eleições

errado acontecera com o Coronel Flôres,

municipais

ele que antes era cordato com todos

vereadores da cidade, preocupados

(apesar de cerimonioso), começou a agir

com o futuro de Prosperidade (já que

com

mais

o Prefeito demonstrava não andar

próximos e abastados da cidade, como o

bem das ideias), convenceram ainda

Presidente da Câmara. O tom de seus

que há muito custo e esforço, o Juiz a

discursos também mudou, e ele passou

concorrer no pleito contra a família

a falar que existia um complô para tirá-

Flôres. Não demorou muito para que

lo do poder, mas que nem debaixo de

a novidade se espalhasse pelas ruas e

bala ele abandonaria sua cadeira de

vielas, e antes que o Coronel pudesse

Prefeito.

dar conta da situação, o Juiz já havia

Para complicar as coisas, nesse mesmo

sido eleito o novo Prefeito daquela

período chegou um Juiz novo para a

localidade.

tampouco

aceitava

mandatário,

rispidez,

Comarca,

trazendo

mesmo

rapaz

desfeita

com

jovem,

de

os

extrema

190

lugar,

mas

que,

como

que

as

começaram se

isso

cismas a

aproximavam,

do ficar os


LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Depois de duas décadas de poder, a

dentro encontrava-se apenas a urna

família Flôres Ribeiro finalmente perdia

funerária exposta, sem o corpo do

sua força política, e o baque da perda de

falecido Coronel.

sua cadeira fora demais para o Coronel

A história correu feito rastilho de

que, sucumbindo a um delírio paranoico,

pólvora

tomou

acorreram o Prefeito, o Delegado e

posse

do

Coreto

da

Praça,

na

e

direito a mesa e cadeira (de espaldar

Apesar de todos os esforços, o corpo

alto), exatamente igual à que ocupava

nunca mais fora encontrado e as

no Paço do município. Dali diariamente

autoridades registraram o caso como

cumpria seu expediente despachando

subtração

com

ocorrência por encerrada. O que não

e

bebuns

que

de

passou a acometer a cidade, pois

som. Até que um dia, quando a cidade

contavam que sempre no dia 27 de

acordou,

João

cada mês (dia da morte do Prefeito),

Flôres Ribeiro sentado em sua cadeira já

às duas horas da manhã, era possível

sem vida.

ouvir a voz do Coronel a discursar do

Suas exéquias foram similares às de um

Coreto, bradando com a empáfia que

Chefe de Estado, tendo comparecido as

lhe era comum em vida, que ninguém

mais ilustres personalidades da região,

ia lhe derrotar, nem tampouco tirá-lo

de

o

da sua cadeira no Paço Municipal. A

Governador fez questão de se despedir

história ficou conhecida na região

do ilustre amigo da lide política. Passado

como

o funeral, o que parecia resolvido, de

Insepulto”.

nada estava. Na manhã seguinte ao

Ainda

sepultamento, quando o encarregado da

engolia

limpeza chegou ao Cemitério Municipal

laranja,

se

novidade

alguém sabia o que teria levado o

assustadora – a porta do jazigo da

Prefeito Coronel a perder a sanidade

família Flôres Ribeiro estava aberta e lá

daquela forma. Me disse então a

fazendeiros

surpreendeu

a

políticos,

com

uma

até

191

a de

“Lenda boca

um

assombro

a

se punha a discursar em alto e bom Coronel

o

dando

se

o

foi

féritro,

Câmara.

frequentavam a Praça, isso quando não

encontrou

encerrou

da

todos

loucos

Vereadores

para

transformando-o em seu gabinete, com

os

os

cidade,

que

do

Cadáver

aberta,

enquanto

pedaço

de

bolo

de

perguntei a Tia Vina se


LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

sabichona Tia que, segundo contavam,

delírios,

em sua última viagem à Capital o

mais graves, até mesmo à morte.

Coronel Flôres havia sido picado por um

Depois

inseto, e que ficara até internado por

fantástico (e já de barriga cheia), me

conta disso. O inseto em questão era

despedi

uma Môsca, uma tal Môsca Azul, cuja

Minervina e tomei o rumo de casa,

picada devastadora tinha como efeito a

não sem antes dar uma paradinha em

perda

de

frente ao Coreto da Praça para espiar,

a

e ver se encontrava por ali o Coronel

do

princípios

senso e

de

de

realidade,

valores,

com

exacerbação da ganância, da ambição e

alucinações de da

e,

ouvir doce

aquele e

Flôres Ribeiro.

do apego ao poder, podendo levar a

https://articulanciablog.wordpress.com/ https://sergiosoares517.wixsite.com/sergiosoares

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nos

casos relato

querida

Tia


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Shanaia Ketlen Santana Planaltina/GO

Sufcientemente Eu me entreguei mesmo sabendo que não seria correspondida. Queria que fosse eterno cada momento. Eu te amei da maneira mais tênue possível. Ensinei-te toda arte linear do meu corpo. Contei-te minhas inseguranças. Criei o nosso paraíso particular. Mas… Nada disso foi suficiente, o suficiente para você ficar!

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Shirlei Pinheiro Teresópolis/RJ

Alma Antiga Desde que eu era criança sempre ouvia os outros dizerem que eu tinha uma "alma de velho", por mais esquisito que isso soasse lá no fundo eu concordava, pois era assim que me sentia. Programas de jovens nunca me interessaram, até hoje não me ligo em modismos, sejam eles de vestimenta ou tendência, nunca fui muito vaidosa na verdade acho cansativo, por mais roqueira que eu seja não me imagino indo em shows com barulho e aglomeração. Sempre tive amigas da mesma faixa etária, mas bom mesmo é conversar com pessoas mais velhas até mesmo idosas, com assuntos e experiências que me interessam mais. Histórias de Teresópolis de cinquenta ou sessenta anos atrás me fascinam principalmente quando quem conta viveu essa época, amo épocas que nem sequer vivi. O quê dizer das músicas? Anos 80 pra mim são as melhores e tempo algum vai superar, músicas clássicas, óperas... Como não se arrepiar ouvindo Carmina Burana O Fortuna de Carl Orff? Obrigada Deus por isso! Troco fácil uma festa da turma por um sábado em casa assistindo um bom filme policial ou documentário histórico, lendo um livro ou indo a alguma exposição de arte, ou piano bar (ta bom, agora extrapolei). Claro que também gosto de algumas coisas de jovem como Fast Food, parque de diversão, shopping, mas qualquer coisa que fuja disso, já me tira da zona de conforto, e isso não tem nada a ver com temperamento, as velhas almas podem ser extrovertidas, introvertidas, tímidos, etc. Ser uma “velha alma” nem sempre é fácil. As velhas almas costumam ser rotuladas de chatas ou esquisitas e passam pela vida com a sensação constante de que ninguém as entende de verdade. Costumam ser solitárias, mas talvez sejam mais seletivas no convívio não por arrogância, mas por conexão. Nunca tive medo da solidão, pelo contrário, às vezes me encontro melhor na minha própria companhia. Por alguma razão não me adequo ao mundo atual e não me envergonho por isso. Tenho certeza que nasci na época errada, nasci com uma alma de no mínimo 60 anos, uma alma, mente e coração antigos e não acho que seja ruim, só sou assim. https://jornalescritoresdaserra.blogspot.com/

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Sigridi Borges São Paulo/SP

Satisfação Ao Marcos com carinho Há algum tempo não derramo lágrimas

Hoje brilhou perante minha face

talvez seja por encarar a vida

orientou os meus

de outra forma

orientou os seus

diferente de anos atrás.

orientou os nossos com grande maestria

Hoje não me contive

com grande intensidade

ao ver do mestre, o discípulo

de quem vive na certeza

orientado sem perceber

de estar fazendo a coisa certa.

mas firme e decidido a seguir caminho de doutor.

Brilhe, lute e desfrute desse dom.

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Sinval Farias Fortaleza/CE

Poema do amor que nunca tive o amor que nunca tive

aviamos costumes

me encontrou sem tramelas

polinizados quase em inocência

feito presságio

éramos

aninhou-se em estado de ventre

mas a gaiola à margem do não dito

minguado de palavra

abriu-se ao mar

o recolhimento corria pelas preces

como nunca houvéssemos — lição tardia

sem avexar as horas

entrançada de espelhos

entre maldizer e gozo

@profsinvalfarias

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Sonia Re Rocha Rodrigues Santos/SP

Cena de família Kátia passara a manhã arrumando os livros. Como acontecia sempre que resolvia mexer na estante, descobria poemas de amor escritos para Abraham,revelando um sentimento profundo e intenso. Desde a época de estudante fora apaixonada pelo professor, embora só começassem a namorar quando ela começou a residência médica, no mesmo hospital, em outra especialidade. A conquista havia sido difícil. Ele era um solteirão calado, quinze anos mais velho que ela. Kátia suspirou. O calendário marcava 29 de dezembro e ela não vira o namorado depois do Natal. — Como vai ser o Natal ? - havia perguntado a mãe, uma semana antes da festa. — Como sempre - respondera Kátia. — Antes não tínhamos o Abraham. Ele vai passar conosco? — Ele é judeu, não comemora o Natal. — Ele não vem jantar, por ser Natal? - a mãe levantou a voz, irritada com o tom da filha, e à noite, dirigira - se ao pretenso genro: — Escute, Abraham, esta segunda é véspera de Natal, tu sabes, nós todos os anos fazemos uma pequena ceia, só nós três, nosso familiares moram muito longe, mas nós comemoramos e neste

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dia ao invés de jantar, fazemos uma ceia bem mais tarde, lá pelas onze, com peru, castanhas, essas coisas da época, eu sei que tu não comemoras, mas querendo vir fazer companhia a nós, já sabes, nessa noite ceamos tarde. Vens? Abraham compareceu. Kátia fizera seu pudim Getúlio Vargas de todos os natais e comprara a tradicional torta de nozes. À meia noite, Kátia havia arrastado o namorado para a árvore e lhe dera seu presente de Natal, discos de Brahms e Mozart. — Gostas ? perguntou ansiosamente. Abraham havia lhe dado um beijo e colocado os discos junto a sua carteira. Os pais de Kátia haviam permanecido discretamente afastados. Um toque de campainha despertou Kátia de suas lembranças. — É o teu Abraham - anunciou Alzira secamente. Kátia escondeu no bolso a poesia, a caminho da porta. — Oi, benzinho, que saudades! -e após o beijo costumeiro : Você perdeu meu endereço ? Não deu mais sinal de vida, não esteve doente, por acaso ?


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— Não - o outro sacudiu a cabeça. — Entra. — Não. Estou com pressa. Só vim avisar... — Entra, Abraham, boa tarde! - a mãe surgiu, excessivamente amável Como tens passado ? Bem ? Entre, fique à vontade - e sem esperar resposta dirigiu-se à filha - Kátia, estou arrumando teus vestidos, quer que eu desmanche a barra do rosa ? — Não, mãe, o rosa é para tirar os bolsos, o azul é que é para encurtar. — É isso mesmo, agora me lembro. com licença, Abraham. O médico havia entrado e deixara se ficar parado no meio da sala, mãos às costas. Foi a moça quem rompeu o silêncio:: — Ouviu os discos que eu te dei? — Não tive tempo. — Você não está de férias? — Sim, mas estive estudando. — Ah ... - Kátia tentava convencer - se de que não estava decepcionada. Sabe, a Solange nos convidou para passarmos o Réveillon no Guarujá. Vamos ? Eu nunca passei o Réveillon fora de casa, deve ser tão divertido ! Ele demorou a responder. — Vou viajar hoje à tarde. Só volto dia 3. — Viajar ? Para onde ? —Ubatuba. — Ah, vais passar os feriados com teus pais na praia? — Meus pais não estarão lá. — Mas então... — Olhe, Kátia, tenho de pagar os impostos atrasados antes do fim do ano.

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Kátia lembrou - se do que diziam a mãe e a avó: “um homem não gosta de ser pressionado”, “uma mulher não deve implorar”, “mantenha a classe”, “uma mulher não deve imiscuir - se na vida particular de um homem”, “seja meiga e submissa”. — Terei saudades - disse, simplesmente. Abraham tentou sorrir e disse uma de suas raras piadas: — É só até o ano que vem. Até. Alzira voltou ao ouvir a filha bater a porta, e encontrou a moça pálida, e com os olhos brilhantes. — Ele já se foi ? Brigaram ? — Não, mãe. - respondeu a filha, a olhar pela janela. — Bem, ele disse porque não apareceu todos esses dias ? — Não, mãe - a voz macia de Kátia, seu olhar perdido na paisagem. — O que ele achou dos discos ? — Ele nem os ouviu. — O que ? Não ouviu? Mas como ? Escute, Kátia, que pouco caso, tu não achas ? Se ele tivesse ao menos piedade de ti, teria mentido... A moça retirava da estante outra pilha de livros e os espanava com excessivo zelo. — Preciso pensar, - continuou Alzira, que nunca desistia antes de arrancar toda a verdade da filha - no que farei para o teu “dileto amado” no Réveillon. Que achas, Kátia, de um pernil com abacaxi e ameixas ? E uma torta de ...


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— Podes fazer o xexelento cardápio de todos os anos. — Kátia, o Abraham não vem ? — Não. — Mas por que ? — Porque ele tem de ir a Ubatuba pagar uns impostos. - a moça sentia as faces queimarem, lutando para fingir um ar inocente e crédulo. Inútil. — Pagar impostos ? - e o timbre agudo da voz de Alzira tornou - se estridente e desagradável Francamente, Kátia! Como tu aceitas isto ? Tu finges - te de inocente! Tu não tens vergonha, permitir que um homem te trate com este descaso, com essa desconsideração ! O que ele te disse, Kátia, não foi uma simples mentira, foi um desacato! No Réveillon! Francamente! — Enfim, o que há ? - ouviu - se a voz do pai. — Oh, Kátia tentou driblar a conversa - Abraham não vem jantar no Ano Novo e mamãe está fazendo drama. — Conta direito, menina! Sabes, marido, o “amado” veio dizer que vai para Ubatuba pagar não sei que impostos e só volta dia 3. Nem ouviu os discos dela. E nem explicou porque não apareceu nem telefonou depois do Natal. Aliás, nem ao menos quis sentar, ficou em pé, estava louco para ir embora. — Ele não veio porque estava estudando - Kátia ainda tentou defender o namorado. A mãe, indignada, mal respirava. O pai, com um riso escarninho nos lábios, pôs -se a pensar em voz alta:

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— Daqui a Ubatuba são três horas de viagem, vai - se e volta - se no mesmo dia. Aquilo, os pais dele, que ele não quer que tu conheças... — Os pais dele não estarão lá... - tarde demais, ela deu - se conta de ter falado o que não devia. — Ah, sim, é claro.... - Rolando ria francamente _ Sabes que dia é hoje, minha filhinha? Sábado. Prefeitura nenhuma recebe impostos hoje, todos os balanços do ano foram fechados ontem. Mesmo que assim não fosse, o teu Abraham chegaria em Ubatuba somente à noite, e domingo e dia 31 e dia 1° todos os órgãos públicos estarão fechados. Sem contar que, se ele pagasse mesmo alguma dívida, nada o impediria de voltar amanhã. Se os pais dele não vão estar lá, com quem tu achas que ele … — Ele não precisaria mentir, se fosse passar o Réveillon com os pais, nós todos compreenderíamos - e a mãe acrescentou, sarcasticamente Porém, como ele se enjoou de lambiscar o sorvetinho, vai é saborear os manjares de alguma amante muito bem sortida! — Chega - disse Kátia. — Tu és uma boba! E concordas, e aceitas, aí toda cheia de nhe - nhe nhem... - continuou a mãe - Tu não tens vergonha! Eu não te criei para isso! — Chega - repetiu Kátia. — Tu não precisas passar por essa humilhação, minha filha. Este homem te desconsidera e tu


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desconversas, ora, não te faças de boba, pois ele mente e tu sabes que ele mente. A única explicação possível é que ele vai passar o Réveillon na companhia de outra mulher. — Cala a boca, pai. — Ele prefere passar o Ano Novo com outra e tu, idiota, te fazes de sonsa. Eu tenho pena de ti, minha filha, que te sujeitas, sem necessidade, a uma tal humilhação. — Pára. — Não, minha filha, eu não paro, tu és uma tola e o teu namorado é um grosso, um mentiroso e um mau mentiroso. O que ele quer é se aproveitar de nós, que vem encher o bucho em nossa mesa, comer e beber às nossas custas, mas que não tem a menor intenção de casar contigo, senão

ele não faria esta injúria de passar o Réveillon com a amante. — Pare. — Entenda de uma vez: o teu Abraham tem uma amante! Os estilhaços de compoteira, que Kátia agarrou e atirou no pai, dispersaram-se com estrépito em todas as direções. A mãe gritou, assustada, e o pai esquivou - se do golpe com presteza. Kátia tremia, percebendo tardiamente a gravidade de seu ato, ela, filha sempre tão obediente. Olhou assustada para o pai, que riu triunfantemente antes de sair. Somente então a mãe recuperou a voz : — Tu quebrastes o meu cristal de quatro mil reais!

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Taís Curi Santos/SP

Narcisismo auricular Todas as vezes que fico diante de um ‘interlocutor’ que se extasia com a própria voz, ignorando completamente todas as outras que o cercam, lembro-me de um grande amigo. Ele possui um diagnóstico perfeito para esse tipo de ‘anomalia’: narcisismo auricular. Brincadeira à parte, o fato é que não raras vezes tenho encontrado pessoas que preferem mesmo ouvir e se deleitar somente com o que dizem, sem dar qualquer chance para um comentário complementar e, muito menos, que ofereça oposição ao que expressam. Dia desses pude constatar - mais uma vez - o quanto meu amigo foi assertivo na classificação. Entrei ansiosa em uma live, na qual seria tratado um assunto que me interessava muito. Outros participantes foram ingressando rapidamente e, em pouco tempo, já formávamos um grande grupo. O coordenador então se apresentou e a sala foi aberta. Passados os primeiros quinze minutos, só ele falava, não dando a menor bola para os sinais de mãozinha levantada, que apareciam na tela para indicar que mais pessoas desejavam participar da conversa. Eu fiz três tentativas, pelo menos, e não obtive sucesso em nenhuma delas. E a criatura, prosseguia... Próximo dos quarenta minutos e sem que houvesse qualquer concessão por parte do ‘Narciso’, a sala já estava praticamente vazia, restando somente eu e mais dois inscritos. De minha parte, já havia perdido o interesse pelo tema tratado, mas queria ver até onde aquela situação iria. Penso que o mesmo deveria estar ocorrendo com os outros que ficaram. E não é que aos 60 minutos – cravados –, a live é encerrada, com o seguinte comentário: “Foi muito importante a participação de todos vocês para jogar luz

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em um assunto tão relevante”. Gente ... fui acometida de um acesso de riso – e de raiva -, que deve ter durado uns dez minutos. Recuperada, pus-me a pensar sobre esse tipo de comportamento, que venho observando entre pessoas próximas e também entre as que os meios de comunicação projetam. É o entrevistador que leva vários minutos querendo demonstrar conhecimento, antes de fazer uma pergunta, e depois dá míseros segundos para a resposta do entrevistado. É o ‘engraçado’ das reuniões de amigos ou até de trabalho, que não deixa ninguém falar enquanto não contar as últimas piadas que ouviu. É o político que faz discurso a qualquer tempo e lugar, relacionando projetos que sequer saíram do papel, sem admitir qualquer interrupção. Enfim, a interlocução – verdadeira – parece estar com os dias contados. E sendo assim, creio que chegará o momento em que precisaremos escolher entre a convivência com o ‘narcisismo auricular’ ou com um outro concorrente seu:

o ‘monólogo coletivo’. Neste – bastante comum também –, cada

participante do grupo fala o que lhe interessa, pouco se importando com o que dizem os demais.

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Tauã Lima Verdan Rangel Mimoso do Sul/ES

Errante Eternal Espio estimulado, excitado em esplendor Entre estórias, elucidadas e enunciadas Entre esfinges elegantes e eras ébrias Embebedadas em encorpado estupor Espio encurvado em esquálida expiação Errante estrela, eternal estímulo elogiável Em espaços esplendorosos e embriagados Entre estelas em enamorados estratagemas Espio em enunciativa efemeridade eviterna Eis Equidna encolerizada em execração Espelho ecoante em estancado eflúvio Estige em evocação eternizada enlaçada Espio entregado entre epigeias e efidríades Entre enlouquecidas Erínias extasiadas Entre Evoés! Entre Epimeteu envolvido Entre ecos explicitados e estrelas errantes!

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Teresa Azevedo Campinas/SP

O reencontro Naquela tarde eu saíra apressada para comprar algumas coisas no mercado mais próximo, pois em menos de uma hora receberia alguns amigos em casa. Eram dois casais, mas na verdade das quatro pessoas eu conhecia apenas três. Douglas e Anita foram meus padrinhos de casamento e Carla era minha amiga de infância, ela havia perdido o marido há dois anos quando moravam na Inglaterra, voltou para o Brasil recentemente e havia conhecido alguém que iria nos apresentar hoje. Voltei para casa e guardava as compras quando o telefone tocou, era Michel, meu marido avisando que se atrasaria um pouco porque o trânsito estava parado.

Ele,

sempre

tão

atencioso

com

todos,

estava

aborrecido,

pois

provavelmente não estaria em casa quando nossos convidados chegassem. Retoquei a maquiagem, recompus-me para recebê-los e me sentei na sala, enquanto os aguardava comecei a ler um novo livro. Eu mal havia terminado a primeira página quando a campainha tocou. Olhei na câmera e era Carla, quando abri a porta ela entrou apressada dizendo que precisaria usar o banheiro. Carla sempre passou apuros com sua bexiga hiperativa. Eu sorri e perguntei onde estava seu pretendente e ela, falando alto pelo caminho, disse que ele estava estacionando o carro, mal acabou de falar e quando eu me virei para aguardá-lo ele vinha caminhando cabisbaixo, com passos diminutos. Quando chegou mais perto, dei uma boa olhada nele como nós mulheres fazemos quando, curiosas, queremos avaliar se o pretendente de uma amiga está a sua altura. Apesar de ser noite, a forte luz do jardim me permitiu perceber que usava uma roupa sóbria, tinha os cabelos brancos, o rosto enrugado,

os

olhos

pequenos,

suas

mãos

eram

trêmulas,

enrugadas

e

manchadas e ele se apoiava com uma bengala. Carla havia dito que ele tinha passado por uma cirurgia no joelho recentemente, a postura encurvada rumo à

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terra, provavelmente por sentir dores ao caminhar. Era um homem idoso sem dúvida, muito mais velho que minha amiga e todos de nosso grupo, mas para mim tudo bem se ele a fizesse feliz. Quando ele levantou a cabeça para me cumprimentar tomou um susto, eu, a princípio não entendi, na verdade não o reconheci, pois aquele senhor em nada se parecia com o velho homem por quem eu fora tão apaixonada anos atrás, quando eu nem sonhava em conhecer Michel... Rodrigo, era seu nome, nos apaixonamos loucamente, porém a empresa onde ele trabalhava o transferiu para a Alemanha e, apesar dele querer se casar comigo e me levar para lá e eu saber que sofreríamos muito por estarmos separados, optei por seguir com meus sonhos aqui no Brasil. Como imaginado, nossa separação me causou uma dor tão grande que pensei que jamais passaria, meu peito ardia por tamanha dor, na época eu tinha vinte anos e ele quarenta e dois, nos correspondemos por um tempo, ele até voltou para o Brasil nas suas férias do ano seguinte e insistiu para que eu fosse com ele. Eu estava tentada em deixar tudo e ir, mas então perguntei se ele tinha estado com alguém durante o tempo em que estivemos separados e ele, com toda sinceridade que lhe era peculiar, disse que sim, mas que já não estavam mais juntos e que ela jamais havia tomado meu lugar. Entretanto, para mim aquilo era uma traição imperdoável, afinal ainda nos falávamos, fazíamos juras de amor, que hoje até acho que da parte dele também eram sinceras, mas não foi assim que pensei naquela época. Então fui taxativa, pedi que ele não voltasse nunca mais e que parasse de me escrever. Ele ainda escreveu mais algumas vezes e me telefonou reafirmando seu amor, dizendo que a mulher que ele amava era eu, porém de nada adiantou, ainda que eu o amasse com a mesma loucura... Fiquei sozinha por mais três anos e só quando conheci Michel e ele pacientemente foi se achegando, consegui me entregar novamente ao amor de modo pleno e absoluto. Desde então eu guardei Rodrigo com todas as boas lembranças em uma caixinha trancada lá no fundo da minha memória, em um local que, quando estamos felizes e completos em nossas vidas sequer nos lembramos que existe... Ali eu congelei sua imagem do nosso último encontro, quando seus cabelos eram negros, nem um pouco grisalhos, seu rosto sem rugas ou manchas senis, ele era

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um homem alto, forte e esguio, possuía um timbre de voz rouca e sensual, cuja melodia me causava arrepios, quando, enquanto suas mãos fortes me abraçavam ou afagavam meus cabelos, sua boca me beijava com tanto amor e paixão... Estranhei aquele homem estar impactado ao me ver, fixei meus olhos aos dele para tentar entender, até que ele com seu modo racional me falou com a mesma voz de outrora: — Assustou-se ao me ver assim tão velho e incapaz? Não se lembra mais de mim? Fiquei sem graça e ele prosseguiu. — Se conseguir ultrapassar minha catarata, meus cabelos brancos e todo o peso da idade – sorriu – encontrará o homem que conheceu e amou. Gelei, foi como se um filme passasse em minha mente de trás para frente e finalmente o reencontrei. Foram décadas de distância, dos dias e dias sonhando com o reencontro, desejando poder abraçá-lo novamente, sentir seu toque, ouvir sua voz. Fiquei tão impactada quanto ele e por um momento meu coração disparou, ele então pegou minha mão, olhou bem dentro dos meus olhos como sempre fazia, mas agora o reencontro parecia sem sentido, já não éramos NÓS há tanto tempo...Tínhamos outras vidas, com outras pessoas, tudo o que fora TUDO para mim, quiçá também para ele, já não era NADA além de boas lembranças... Michel estacionou o carro no mesmo momento que Douglas e Anita chegaram, Carla então veio ao nosso encontro e disse: — Então todos já conheceram Rodrigo? Rô, não lhe disse que ia amar meus amigos? Ele olhou mais uma vez profundamente em meus olhos e disse: — Sim, e como eu AMEI...

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Vadô Cabrera Jacareí/SP

O poeta é realmente um fngidor? Este título foi inspirado após a leitura do poema de Fernando Pessoa: “Autopsicografia”, aonde, já no primeiro parágrafo da primeira estrofe, o autor escreve os instigantes versos: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, Que chega a fingir que é dor, A dor que deveras sente. ” A poesia veste-se de mil nuances e cada poeta cria suas obras inspiradas pelos momentos vividos. E os motivos podem ser: sentimental, na sua grande maioria; testemunhal, quando presencia emoções ou instantâneos, quando captados pelos olhos. Os poemas mais incisivos brotam inspirados pela dor silenciosa - às vezes secreta – que o poeta traz consigo. Aquela dor que não é revelada nem no divã e que ao passá-la para o papel, Fernando Pessoa induz o leitor ao sentimento de uma dor que, tanto pode ser real, como imaginária. Daí ele descrever a dor que deveras sente, com a dor que finge sentir. Assim, o poeta sintetiza as duas formas da dor numa só. Ou seja: O poeta é um autor com a personalidade de um ator.

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Vagner Santos Pereira Barra Mansa/RJ

Uma Fatia De Oásis Fui coagida perversamente a deixar

caças carbonizadas, de seres mais

meu lar. Com tristeza, não olhei para

fortes do que eu, e que sucumbiram

trás, tive de salvar minha pele. Era uma

ao calor. Até as criaturas aladas, cu-

questão de vida ou de morte.

jas chances de sucesso eram maiores

O demônio caminhante de duas pa-

que as minhas, fracassaram. Também

tas chamado homem, levou o inferno ao

ouço gritos desesperados pedindo so-

meu paraíso. Aproveitando-se que o céu

corro. Tento identificar de onde par-

não chorou como nos últimos anos para

tem, infelizmente, não consigo ver

destruir minha casa. Ultrajou a vida cor-

nada além das paredes de fogo. Olho

tejando a morte alheia. Cismou de pin-

para o céu e clamo por um dilúvio

tar o céu azul, lindo, em um cinzento

que não vem para nos salvar. Isso

macabro. Maculou a pureza do ar com

causa-me muito sofrimento.

as tóxicas e grossas cortinas de fumaça.

Estou quase sem forças. Sei se

Suplantou o verde esperança em labare-

parar, o fogo vai me alcançar. Lem-

das caóticas, reduzindo tudo a carvão.

bro-me

de

histórias

maravilhosas

Durante minha fuga, a esmo, deses-

contadas pelos antigos, de uma épo-

perada, parei algumas vezes para tentar

ca em que a água abundante nunca

puxar um fôlego revitalizador. Mas quase

teria fim. De um tempo em que o de-

morri sufocada pela fumaça venenosa.

mônio era bem menos ganancioso, o

Fiquei mais desorientada, não sei há

céu derramava suas bençãos sobre a

quanto tempo estava fugindo. Ou quan-

terra, renovando o ciclo de vida pan-

tas léguas rastejei. O chão começava a

taneiro.

ficar mais quente, parecendo que o calor

vida era capaz de brotar pungente

brotava das entranhas da terra. Vez e

até de pedras e todos ficavam gratos.

outra, esbarro em famílias inteiras. Car-

Nesse ano, veio bem menos chuva

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Então,

milagrosamente,

a


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que os anos anteriores para a tristeza de

meio.

quem gosta daquele pedaço de chão. E

Venci e estacionei sob a luz fria.

o demônio cresceu os olhos, com a in-

Fico orgulhosa de mim, bem que vovó

tenção de se tornar o novo rei do gado,

dizia: “A necessidade ensina a lebre a

tacou fogo com a finalidade de criar pas-

correr”. De lá de cima, observo o con-

tagens. Todavia, o fogo é insubordinado,

traste de dois mundos. Mas para

gosta

expectativas,

mim, são partes opostas da mesma

aproveitando a ausência da água, rebe-

moeda. Tive vontade de chorar. As

lou-se ao se aliar com o vento. Golpeou,

lágrimas não saíram, estava quase

alastrou e desgraçou.

desidratada. O meu passado ardia

de

contrariar

as

De repente, vejo em minha frente

como um pesadelo febril em chamas

uma muralha, que não deveria estar ali.

abomináveis. Meu futuro, uma fatia

Xinguei aquela edificação feita pelo de-

de oásis criado pelas mãos destruido-

mônio que visava roubar o espaço natu-

ras do demônio, que tanto repudio.

ral do meu hábitat. Para mim, blasfemar

Vislumbrei um enorme quadrado

ou ficar parada perante o perigo, de

mágico cheio de água azul, iluminado

nada adianta. Ergo a cabeça e consigo

por luzes artificiais que viam das pro-

focalizar, pouco acima da muralha, um

fundezas. Bastaria descer e mergu-

ponto luminoso que sei que não é a lua.

lhar. A muralha barraria aquele infer-

Junto o resto de forças, pedindo que

no atrás de mim. E, a minha frente,

Deus me valha, e, se possível, se me

estava tudo tão calmo, não havia de-

der mais um pouco para subir, aceitarei.

mônios presentes. A casa estava fe-

Não sei o que há do outro lado, o que

chada e com as luzes apagadas. Não

me espera. “Será outro incêndio crimi-

sei a quanto tempo estava sem tomar

noso?”. “Seja o que Deus quiser!’’; pen-

banho. A temperatura do meu corpo

so eu.

estava alta demais; pronto para en-

Concentro todas minhas forças al-

trar em colapso.

mejando estar perto da luz, caso consi-

Não banquei a orgulhosa diante

ga tenho chances de me salvar. Não en-

da tentação. Mergulhei. Foi refrescan-

contro dificuldades na subida, rastejan-

te sentir aquela água parada tirar a

do meu corpo de quase dois metros e

fuligem e farpas de minhas escamas.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022

Mas tinha por mim que as águas turvas

ouvir os estalos dos seus ossos se

e movimentadas do Pantanal eram me-

quebrando, bem devagar. Talvez latis-

lhores que aquela. Não sei quanto tem-

se, pedindo arrego, mas seria tarde

po fiquei brincando, serpenteando de

demais para ele. Depois, o engoliria e

um lado para o outro, esquecendo dos

ia dormir satisfeita.

problemas da vida. Saí e fui caçar algu-

Nunca estive tão próximo desses

ma coisa para comer. Tudo o que encon-

demônio, eles cheiram mal e causam

trei no quintal foi um camundongo.

incômodos. Senti-me ameaçada, ape-

Aquele petisco mal fez cócegas em meu

sar de inspirar pânico neles. O perigo

estômago. Paciência, era o que tinha de

aqui era maior que voltar para aquele

melhor para hoje, aquilo foi melhor do

inferno; demônios são sorrateiros,

que nada. Fui ajeitar um cantinho atrás

imprevisíveis e cruéis.

de um arbusto ornamental para dormir

Mal pensei em fugir e logo vieram

sossegada, estava precisando recompor

os demônios fardados com suas ar-

minhas forças, amanhã será um novo

mas especiais. Fiquei acuada. Se fos-

dia. Quem sabe amanhã, encontre um

se capturada não sabia o que seria de

banquete digno de minhas proporções?

mim. Será que seria assassinada bru-

Apaguei.

ta e covardemente, sem direito a de-

Na manhã seguinte, acordei com os

fesa? Ou teria um destino pior? Onde

gritos dos demônios. Eram cinco; uma

seria capturada e devolvida para o in-

família completa. Quem me encontrou

ferno fora da muralha.

foi um dos três pequenos ao resgatar

Armei minha posição de ataque.

uma bola chutada sem direção. Ele alar-

Eles tremeram — senti isso — pois

deou todos, até o quatro patas deles la-

esperavam ansiosos um bote meu.

tiu raivoso para mim, mostrando os den-

Desde Gêneses, sempre esperam o

tes afiados. Com certeza, ele queria

pior da minha espécie; por isso tão

bancar o herói impressionando os seus

sou amaldiçoada. Não se conformam

demônios e mostrar sua eficiência servil.

pelo fato de um antepassado meu tê-

Se chegasse mais perto, dar-lhe-ia um

los induzidos a comer uma fruta proi-

bote

corpo

bida. Vovó nos contava que eles fo-

aprisionando-o num abraço infalível até

ram expulsos de sua primeira casa,

certeiro.

Enroscaria

meu

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sob espadadas de fogo dos guardiões

tava tão quente e nem sinal de chu-

alados do Éden perdido. Desde então ju-

va. Também o ápice da situação aju-

raram vingança eterna.

dava a esquentar nossos ânimos.

Já nós, perdemos tudo. Nossos qua-

Distrai-me. Desejei mergulhar de

tro membros como os demônios ainda

novo para sufocar todo o calorão. Es-

possuem. Dois pares de asas. A capaci-

quecer da vida. Esquecer que nada

dade de falar com fluência todas as lín-

mais importante existe fora daquelas

guas do reino animal, inclusive as dos

águas. Mesmo que pela última vez

demônios. E, nossa saliva que era cura-

nessa vida, supliquei a Deus: “Ah,

tiva, em alguns casos foi convertida em

como eu queria me refestelar naquele

peçonha venenosa. Hoje, somos obriga-

oásis tão convidativo!”.

dos a rastejar sobre nossos ventres e ter fama de traidora dentro da Criação.

Então, eles se aproveitaram desse instante de fraqueza para triunfa-

Percebi que estava cercada. Um de-

rem sobre mim. Facilmente, fui domi-

les, com certeza, iria me distrair para os

nada. Puseram-me em cativeiro pro-

outros atuarem mais tranquilos. Olhei de

visório. Triste vi, aquela água gostosa

canto de olho, sem mover a cabeça,

ficar mais distante. Fui conduzida

mantendo-a imponente,

erguida com

para uma penitenciaria de animais,

toda dignidade de minha linhagem. Vi

que eles tanto insistem em chamar

dois deles, um de cada lado, calculando

de santuário. Reservaram-me um lu-

suas ações sórdidas, provocariam o mo-

gar de destaque para as fotos. Talvez

vimento inicial para que eu cometesse

amanhã divida espaço nas manchetes

um erro em seguida.

com mais notícias queimadas do Pan-

Por um instante, meu olho viu aquele quadrado mágico; tão magnífico. Es-

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tanal?


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Valeria Vanda Xavier Nunes Campina Grande/PB

O último adeus Domingo de páscoa. A família tinha saboreado um belo almoço. Alguns já tinha se recolhido em seus quartos e faziam a sesta. Outros permaneciam na sala a conversar, a dar risadas e a contar histórias engraçadas que aconteciam com a família. Em pé, em frente à porta do quarto, Joana espreitava a filhinha que se debruçava sobre o avô adormecido. Dali a poucos minutos, ela, o marido e as filhas retornariam para casa. —Tchau vô! Tchau vô! — Joana ouvia a voz sussurrada de sua filhinha mais nova. A menina falava baixinho enquanto roçava a sua face lisinha como um pêssego maduro nas bochechas, envelhecidas pelo tempo, de seu avô querido. Beijava-lhe também o rosto e continuava falando baixinho para não o acordar. Parecia não querer deixá-lo. Le dormia o sono dos justos Aquela cena, jamais seria esquecida por Joana. Elas saíram do quarto devagarinho sem fazerem o mínimo barulho. A viagem de volta para casa era sempre triste para Joana que sentia muita falta dos pais e dos irmãos. Casara-se muito jovem e por esse motivo não perdia nunca as oportunidades de estar com eles. Sempre se reuniam nos feriados e nas datas comemorativas. Joana não

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conseguia explicar por que se sentia mais triste do que nunca naquela volta para casa. Não era uma tristeza normal de quando voltava de alguma comemoração na casa dos pais. Não. Aquela angústia e tristeza eram diferentes. Um sentimento enorme de perda apertava o seu coração de uma maneira nunca sentida. Nada a fez ficar alegre naquela viagem de volta; nem as músicas que se ouviam no carro, nem as brincadeiras das filhas. O seu coração continuou apertado por muito tempo ainda. Chegou ao ponto de seu marido e suas filhas perceberem e perguntarem: — Por que você está tão calada e triste hoje, mamãe? — E Joana, tentando disfarçar uma lágrima que teimava em cair por trás dos óculos escuros, respondeu: — Não é nada, não se preocupem, são apenas saudades. — Mas a tristeza de Joana era tão grande que acabou por contaminar a todo. O resto da viagem transcorreu no mais completo silêncio. Deitada no sofá da sala, Joana se recordava de tudo isso e o seu coração se aperta novamente. Como


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esquecer aquela memorável tarde! Ela estava deitava nesse mesmo sofá, exatamente como agora. Decidira que não sairia àquela tarde, pois algo em seu peito angustiado lhe pedia para não sair. Só sairia para pegar as crianças na escola às cinco horas. Durante toda a manhã e até bem mais tarde Joana não conseguiu se livrar daquela sensação estranha que sentia no peito. Continuou inquieta. Quatro horas da tarde. O telefone tocou. O coração deu um salto no peito. Sua intuição lhe dizia que não seriam boas notícias. Era sua irmã: — Oi, Joana, tudo bem? — Joana estranhou. Aquela sua irmã quase nunca ligava. — Não sabes o que aconteceu. — Disse ela tentando esconder algo. Mas Joana percebeu no seu tom de vez que algo havia acontecido. — Papai saiu de casa desde cedo e ainda não voltou. Já procuramos por todo lugar e não o encontramos. Disse para mamãe que ia ao supermercado e que logo voltaria e até agora nada. Imagina aí a agonia dela e de todos nós. — Beatriz falou essas frases de maneira totalmente atropelada, o que deixou Joana mais nervosa e apreensiva. Logo retrucou: — Como não o encontraram? Então não procuraram direito. Já procuraram nos hospitais? Joana continuava fazendo mil perguntas para a irmã que, de repente, disse uma frase que a deixou paralisada e a fez compreender tudo.

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— Olha Joana, cai na real. Arruma tudo por aí e vem pra cá imediatamente. Foi esta a frase que deixou Joana por uns momentos petrificada. Em estado de choque. Cai na real. Pensava ela nessas três palavrinhas. Nem percebeu que a irmã já havia desligado o telefone há alguns minutos Joana estava aniquilada, como se uma faca afiada estivesse entrando em seu peito. Não precisava dizer mais nada. Nada de eufemismos. Estava tudo ali, claramente, naquelas três palavrinhas: cai na real. Joana permaneceu gelada dos pés à cabeça. Colocou o telefone no gancho e se viu completamente arrasada e sem ação por vários minutos. Completamente atordoada, não queria acreditar, não estava preparada para aquilo. Não podia ser. Min utos após o choque, pôs-se em ação. Era preciso reagir. Não chorar. Lágrimas significam tragédia. E nada havia acontecido, ainda. Pensava Joana, enquanto tentava com mãos trêmulas ligar para o marido e relatar o que sabia dos fatos. Em poucos minutos ele chegou. Acalmou-a e ajudou-a nos preparativos para a viagem. Completamente desnorteada, Joana agia sem vontade própria e, como um robô, procurava fazer as malas de todos. Não sabia o que colocava ali dentro. Tudo era feito aleatoriamente. Passaram na escola e


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pegaram as crianças que não entendiam nada. Por que vamos viajar assim, às pressas? O que aconteceu? Pra casa de vovó? Aconteceu alguma coisa com eles? Foi com vovó ou foi com vovô? As perguntas das crianças se sucediam, mas Joana permanecia calada. Não sabia o que dizer para elas, se nem ela mesma tinha certeza de nada. Não queria acreditar no pior. Em seu coração apertado pela dor, ainda restava a esperança de estar enganada, de sua irmã também ter se enganado. É claro que tudo isto é um engano, é um pesadelo! Com certeza, quando chegarmos, papai estará nos esperando na calçada do prédio. Claro! Ele sempre fez isso! Como sempre, iria abraçá-la e ia beijar as netas. Ele ia estar lá, sim. Joana precisava ter certeza disso. Durante todo o trajeto, mil cenas se desenrolavam em sua mente. Passava um filme em preto e branco de tudo que viveu com seu pai. Ele tem que estar lá. Ele não pode nos deixar ainda. Todos precisamos dele. Enfim, a viagem acabou. Joana olha para todos os lados. Nada de seu pai nos jardins do prédio. As crianças estão assustadas. Também procuram o avô. — Cadê vovô? Por que ele não nos esperou aqui, como sempre? —Joana não lhes responde nada. Não espera para tirar as malas do carro. Não espera por suas filhas nem por seu marido. Desce do carro com o coração sangrando e querendo saltar do peito. Entra no elevador que demora mil anos até chegar ao quinto andar.

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Silêncio nos corredores. Porta aberta no apartamento. Vê, sentada no sofá da sala, sua mãe que chora e é consolada pelas amigas. Não se dirige a ela. Nenhum irmão. Nenhuma irmã. A verdade se mostra aterradora. Joana entende tudo. A esperança que trazia dentro de si, acha uma brecha e escapa, levanta voo, escapa para o infinito como deve ter escapado a alma de seu velho pai naquele dia. Quem sabe não se encontraram as duas, esperança e alma, entrelaçadas no além. Joana vai direto para o quarto dele. Agarra um de seus gorrinhos, aperta-o de encontro ao peito que parece que vai explodir de tanta dor, e, finalmente, chora. Chora um pranto que estava contido, preso, guardado e ávido para se soltar do peito. Soluça desesperadamente. Esvazia toda a dor que vinha guardando e derrama também todas as lágrimas que vinha reprimindo até aquele momento. Joana passou horas Desconsolada, triste, sozinha.

ali.

Ninguém está preparado para essa dor, e a dor que ela sentia parecia que não ia ter mais fim. Seu pai a havia deixado. Tinha ido embora. Era como um tesouro que lhe havia sido roubado. E ela tinha que encontrar forças para o encontro que


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não podia ser adiado. A despedida era inevitável. Ele estava lá. Bonito. Bem vestido. Perfumado. Quanta saudade.! Quanta dor! Quantas palavras ainda não ditas! Quantos conselhos ainda faltavam ser ouvidos! Quanto carinho ficou por fazer. Na boca um ar de riso. Era como se

finalmente ele tivesse encontrado o que procurava. Era seu pai que estava ali. Parecia feliz. O seu semblante era sim, de felicidade. Era a última vez que via seu pai. Aquela cena jamais sairia de sua mente. Ele dormia sim. Mas ai de nós. Não era mais o sono dos justos. Era o sono dos mortos.

@valeriaxavier_autora Face –Valéria Xavier- Léia

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Vanderlei Kroin Cascavel/PR

Poesia completa começo do começo do começo meio do começo do começo fim do começo do começo

começo do fim do meio meio do fim do meio fim do fim do meio.

começo do meio do começo meio do meio do começo

começo do começo do fim

fim do meio do começo

meio do começo do fim fim do começo do fim

começo do fim do começo meio do fim do começo

começo do meio do fim

fim do fim do começo.

meio do meio do fim fim do meio do fim

começo do começo do meio meio do começo do meio

começo do fim do fim

fim do começo do meio

meio do fim do fim fim do fim do fim.

começo do meio do meio meio do meio do meio

Não entendeu o fim?

fim do meio do meio

Esqueça o meio... Volte ao começo...

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Victor Alves Ciscar São Paulo/SP

A criatura mística do vagão Edgar, 14 anos. Um jovem taciturno, de um semblante sorumbático e moribundo. Olheiras profundas e densas, cabelo preto, dedos finos e esqueléticos, corpo franzino, e uma face apática, enfeitada por olhos ambíguos e vagos. Usa roupas escuras, capazes de esconderem todo o seu corpo. Em público, anda pelas sombras, com o intuito de ser despercebido pela multidão; e nunca olhava alguém nos olhos, para o garoto, era constrangedor. Edgar, melancólico, é um recluso social. Vive no mundo dos humanos, mas também no mundo das criaturas, simultaneamente, embora seja introvertido em ambos. Desde criança era vítima de rejeições e de infames olhares de desprezo por ser ‘diferente’ dos demais. Desde muito cedo cultivava uma mistura de ódio, mágoa e dor. Edgar, certo dia, estava atrasado para um compromisso. Saiu rapidamente de casa, percorreu seu percurso, evitando multidões, claro. Chegou à estação, aguardou seu trem, averiguou qual vagão estava mais vazio, e adentrou. E como de costume, locomoveu-se para um canto em que havia ausência de pessoas. O menino tinha um “dom”, podia visualizar o intangível, assim como se vê o tangível. No vagão, um monstro chamou-lhe a atenção: portava uma boina e um sobretudo cinza-plúmbeos, um paletó escuro e uma gravata escarlate; deveria ter cerca de 2 metros, suas mãos assemelhavam-se às patinhas de cachorro, seu nariz tinha uma fisionomia oblíqua, seus caninos da boca eram enormes, e seus olhos eram intimidadores, pois suas pupilas eram finas, como as de um felino. A criatura, carrancuda, percebeu que o menino a encarava, e aproximou-se do garoto, pois enxergava nele uma singela vaidade que possuía outrora. Edgar tentou desviar o olhar, para evitá-lo, mas foi irrelevante. A criatura, curiosa, perguntou-lhe: - Do que se esconde tanto, garoto?

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Sem resposta, perguntou novamente: - O que tanto te assusta? O menino, consciente de que a criatura iria insistir, e incomodado pela persistência, balbuciou: - Sinto-me distante de todas as outras pessoas, deslocado, à margem disto tudo. Olham-me como se eu fosse um ultraje, tratamme com asco, como se eu fosse uma falha. Sinto-me também descartável, insignificante e desprezível, tudo por conta “disto” que possuo... Sabe, às vezes sinto que meu nascimento foi um erro. A criatura, comovida pela sensibilidade do garoto, respondeu: - Olha, garoto, eu sei do que se trata. Sei exatamente como você está se sentindo; quando eu tinha sua idade, cerca de 50 anos atrás, compartilhava dessa mesma dor. Isolei-me em meu quarto, trancafiado por anos. Meu convívio social desaparecera, e minha vida social havia sido extinta. Era vitima de uma depressão imensurável, sentiame um miserável. O marasmo e a melancolia eram árduos companheiros meus, sempre presentes, todos os dias. Entretanto, certo dia, tive uma epifania, e pude rever meus conceitos e valores: talvez esse “fardo” que estamos carregando possa ser benéfico, e o que julgam com vileza, possa nos ser útil, se bem utilizada. Edgar, ouça-me, quero que compreenda que, apesar das opiniões de outros, essa particularidade o torna único, essa individualidade o torna especial, e essa diferença o torna absurdamente poderoso. Não se entristeça, não se magoe, veja perspectivas aonde os outros veem falhas, e Edgar... Seja feliz! O silêncio veio à tona, acompanhado de solidariedade e ternura. O trem entrou em um túnel, e em instantes, uma escuridão latente devorou a locomotiva, tornando tudo um breu; após alguns segundos, a clareza ressurgiu, através de míseros feixes de luz, todavia a criatura já havia desaparecido. Minutos depois, Edgar desembarcou do trem. Ainda reflexivo, as palavras francas e fraternas da criatura tornaram o seu semblante mais alegre e confiante, exacerbado de esperança, e percebeu que estava tudo bem ser um recluso social, contanto que estivesse bem consigo mesmo. Seguiu rumo à clínica psiquiátrica, depressa, pois estava atrasado para sua consulta semanal. Edgar é esquizofrênico.

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Vitor Geovane Arapiraca/AL

Fotos

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Vitor Sergio de Almeida Uberlândia/MG

Tempos (sombrios ou) sóbrios Hoje - a ser maquiado... Na Idade (Das Trevas) Atual há (falsos) discursos (in)decorosos, por exemplo: é (a)(i)moral que o (pseudo) conservador, um (des)honrado (a)objecto, propague um (falso) moralismo (apenas) para os outros, para a família do próximo, (não) englobando a si e a sua família. Isso é (não) ter autocrítica, uma conduta (in)digna, (ao menos) perante o (míope) olhar externo. Tempos (sombrios ou) sóbrios. Hoje - com a maquiagem... Na Idade Atual há discursos decorosos, por exemplo: é moral que o conservador, um honrado objecto, propague um moralismo para os outros, para a família do próximo, englobando a si e a sua família. Isso é ter autocrítica, uma conduta digna, perante o olhar externo. Tempos sóbrios. Hoje - sem a maquiagem... Na Idade Das Trevas, é amoral e imoral que o pseudo conservador, um desonrado abjeto, propague um falso moralismo apenas para os outros, para a família do próximo, não englobando a si e a sua família. Isso é não ter autocrítica, uma conduta indigna, ao menos perante o míope olhar externo. Tempos sombrios.

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Wagner Azevedo Pereira Nova Iguaçu/RJ

Confssão Pela poesia pode-se ir ao mundo ou em mais todos outros lugares e principalmente penetrar o fundo dos mistérios de alguns olhares Na poesia, com pouca palavra Percorre-se do passado ao futuro quando com o sentido não se lavra nem se fica em cima do muro. A entrega de uma sugestão sujeita não sofre desgaste em percorrer as linhas do pensamento e viver É na ambiência suposta e perfeita quem embarca sem o auxílio da voz como desejo confessional de uma foz

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Willian Fontana Rio de Janeiro/RJ

Inversos do Subversor O neurocientista Dr.Osak Inácio estava prestes a publicar sua última pesquisa sobre a relação da violência e cérebro. Utilizando-se de várias pessoas negras examinou padrões de conexões cognitivas entre neurônios que personalidades antissociais. Chegando a surpreendente conclusão de que o aumento da miscigenação com negros aumentava a taxa percentual da tendência a psicopatia. Bastardos pardos e negros assim tiveram uma relação do aumento de probabilidade de ser um sociopata em proporção a quantidade de melanina na pela, pois para Dr.Osak a formação genética dos neurônios agrupava-se a influir na quantidade de melanina da pele dos destes. A pesquisa causou furor na comunidade científica antes mesmo da publicação, sendo questionada pelos pares tanto em relação a amostragem de indivíduos testados quanto aos métodos aplicados. Todavia Dr.Osak era taxativo: a questão dos negros era determinante social para o aumento da criminalidade e insanidade de uma sociedade. E por isso ele desafiou alguém provar que existisse algum bastardo pardo ou negro que fosse um superdotado e polímata sem qualquer histórico de assaltos, agressões por motivo torpe, ou estupro.

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Fora então que soubemos de Joe Pillgrim, pseudônimo de William Fontes. O sujeito que tinha várias pós-graduações, registro de dezenas de teorias e livros filosóficos e de ficção científica, já havia sofrido inúmeros crimes por motivo torpe, mas nem ao menos os devolvido na condição de autista e negro. Tinha dupla excepcionalidade, era entre outras coisas ótimo fotógrafo e desenhista. Obviamente que aquilo transtornou profundamente Dr.Osak. Vendo em risco sua medíocre pesquisa racista e discriminatória, a mando dele passaram a perseguir o homem que após anos de crimes, fraudes e isolamento amargava problemas psicológicos. Aquele caucasiano acreditava ter descoberto a cura para a questão dos negros e bastardos e os motivos por de trás de sua inferioridade, de que conexões neurológicas propícias a violência eram alimentadas a proporção da quantidade de melanina na pele e "espíritos sombrios" que nisso influenciava. Haveria alguns casos atípicos que como exceção essa degeneração social e neurológica não manifesta na concentração de melanina, mas em antecedentes


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ancestrais que atestam sua impureza genética. Porém, William Fontes era uma farpa da teoria como o negro que venceu as corridas das olimpíadas da Alemanha nazista contra a tese da supremacia branca de "mentes e corpos são", afinal a loucura e degradação física em sua frenologia eram traços de raças inferiores. Osak então enviou um de seus homens afim de ter uma "conversa" com Fontes pois sua vida e obra atrapalhava a reputação “justa” dele. – Te chamam de Fontes, não? Vamos conversar, sente aqui a sós comigo e desligue o celular. Fontes, tentando manter a cordialidade, ainda que suspeitando, assim o fez quando o homem respirou fundo e disse. – Sabemos dessa coisa de estudos e formação acadêmica. Mas deixe-me te falar, William. Essas coisas de intelectual que é filósofo e escritor não é pra você. O que pessoas como você devem ser é o que todos do seu tipo são, estupradores, homicidas e assaltantes. Assim que a sociedade funciona, desde o nazismo ficou provado que negro serve além disso é pra correr ou morrer. Pessoas como você nem deveriam ser livres ou terem direito a liberdade de expressão, pois é uma loucura subversiva aos costumes da pureza reacionária. Sempre foi isso como a cultura da corrupção e mudar isso é doentio.

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– Absurdo dizer essas coisas criminosamente discriminatórias! Vou chamar a policia! – Conclamou Fontes, visivelmente pasmo com as alegações. – A policia? Dr.Osak me enviou e disse que controla a policia de sua região. Todos estão suspeitando de você, cara! Todos estão vendo que ai tem! Um bastardo pardo e autista sendo capaz de criar tantas coisas e nunca estuprou e matou? Você acha que isso é real? Todos estão achando que você plagia ou faz coisas escondidas. Se cada um soubesse seu lugar na sociedade o mundo seria melhor, por isso o ódio é justificado contra você! Ninguém quer saber de pardos autistas filósofos e escritores, e ainda tendo carro e casa quando seu lugar era na favela com um fuzil na boca de fumo. Lamento se essa verdade incomoda, mas sempre foi assim, tão certo quanto brincar de polícia e ladrão! Fontes levantou-se e deixou o psicopata preconceituoso vomitando suas discriminações sozinho. Assim Fontes vendo-se isolado como minoria procurou na internet por socorro em grupos de esquerda socialista, todavia poucos pareciam lhe dar atenção até que tomando a dianteira surgiu um chamado Sr.Kosa se apresentando como ativista da causa de minorias vulneráveis. Ao ligar para ele, Kosa falou de modo veemente que ele não era vulnerável, mas elite.


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– Você quer muito, Fontes. É um absurdo uma pessoa como você falar de ter direitos quando é tão pequeno e fraco. Sua posição de influência pelo que alega que passa prova seu elitismo! Você é dono das ideias dominantes e tinha que fazer caridade como para aquele dono de padaria com família que você nem é capaz de ter! Fontes desligou o telefone decepcionado, vendo aquilo não fazer menor sentido uma vez que mesmo mendigou e morou na favela onde se graduou as duras penas, nunca reconhecido pelos demais. Fora assim que alguns falaram que os liberais eram melhores e isso se confirmaria no termo. Por isso Fontes procurou na internet e achou um dono de restaurante chamado Okas. Uma vez contactado o abastado o homem louvou o capitalismo e todos seus méritos, todavia para Fontes tudo era caro, por mais que fazia sempre devia, tinha que pagar mesmo que tudo dele fosse de graça para Okas, nunca conseguia se pagar e muito menos lucro, mas apenas danos e prejuízos. Assim decepcionado, Fontes rendeuse a Deus e de joelhos chorou amargamente e fora procurar uma igreja. Na igreja do Fogo Universal do Amor um pastor se apresentou, pastor Akos. Diante do púlpito Akos falava a palavra de Deus e dizia ter uma visão de que havia ali um homem com pecados horríveis. Pecados tão horríveis que sua alma deveria ser negra como a de um demônio.

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– Eis que o fogo do céu irá devorar esse homem que escreve coisas seculares e toca seu próprio corpo se inflamando por ser um nicolaíta e não querer se casar! Uma doutrina de prostituição ele promove mesmo sendo virgem! Estes cães nasceram para a condenação! Fontes que estava aflito e angustiado quando entrou na igreja ficou ainda pior. Pranteou deprimido e retirou-se da igreja para saber dias após de inúmeros casos de adultério e mesmo orgias na igreja onde ele seria “o pior de todos pecadores”. Ele queria paz e por isso agora procurou o budismo, quando apareceu o monge Soka. Tal teria subido o próprio Everest do Tibete a pé, apenas para receber a iluminação de Buda. E assim disse pra ele. – Sua alma para ser regenerada tem que desencarnar, Fontes. Não tem jeito, isso é um problema de karma e está fadado apenas a sofrer e morrer nessa vida por isso. Se liberte desse corpo! Ao ouvir aquilo, Fontes notou algo estranho no bigode de Soka, algo estranhamente familiar, e era a mesma voz de outros que ele procurou, Kosa, Okas e Akos que era um anagrama para o mesmo nome, Osak! – Você é o infame dr.Osak! O que te fiz? Por qual motivo tanto me odeia e me persegue de todos os modos?


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Ante os problemas gerados por ele mesmo como profecia autorrealizável Osak então teve a astúcia soberba de propor uma única solução para Fontes, se unir num pacto de juramento para compensar Osak por ter sido "atrapalhado" por Fontes. Ou aceitaria isso ou Osak sumiria com ele para sempre. – Você deverá atrair novas presas para meu ardil e seus textos serem meus. Você vai trabalhar num posto de gasolina e lá orientar pessoas iludidas ao meu recanto, ou ter que aceitar cometer muitos crimes para subir na vida! Pra você acabou direitos constitucionais! Ao ouvir aquele déspota tirano Fontes chorou amargamente mas sob

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tortura daquele monstro sádico não viu saída senão aceitar e o primeiro serviço de Fontes seria eliminar um jornalista intrometido que estava quase descobrindo a verdade, assim como distribuir pacotes de uma droga chamada metafonoína. Fontes agora era um escravo daquele monstro que sempre se apresentavam as sombras! Racismo ou misoginia não são ciências, legalismos democráticos ou teológicos, não passam de nanismo intelectual que pode até ser curado com ministrações de sensatez conscientizadora, mas eventualmente no caráter não tem cura.


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Yuki Eiri Maringá/PA

Refexão Ontem, eu me afastei de tudo, Fiquei ouvindo música. Memórias me passaram à cabeça Boas, médias, e ruins, assim como as pessoas que a elas associadas. Mas teve umas que não passaram Insistiram em permanecer ali como se fossem reais ... Assim como são reais as pessoas que me remetem a essas memórias. Pessoas “fofas, lindas” que as vezes nos esbarramos por aí Mas, que após um breve olá vem a pergunta: Quem é você? Me parece tão familiar Mas eu não consigo me lembrar. Espere Não fale Me deixe puxar na memória... Ah, claro, é você. Como eu pude te esquecer Justamente de você O personagem principal do meu livro favorito? Mas esqueci não é mesmo Você fez parte de minha história eu sei Um conto de fadas que só eu acreditei Por você travei batalhas, enfrentei dragões Lutei ferido Venci legiões

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Construí castelos de sonhos Refúgio de decepções Um mundo imaginário que só eu imaginei Retrato na parede O príncipe encantado que pintei Mas a vida não imita a arte Agora eu sei Agora estou ciente Águas passadas não rodam moinho Figurinha repetida não completa álbum Afinal não se vive de passado. Se passado fosse bom se chamaria presente Cansei de ler os históricos Decidi renovar minhas leituras Ser protagonista da minha história E viver a vida alegremente. Não, eu não rasguei a página em que você fazia parte É que o livro ficou meio sem sentido E então segui adiante Quando descobri que o personagem que eu julgava ser o principal Era apenas figurante.

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Artista do Mês Desenho: Márcio Apoca Campo Mourão/PR

Frank Sinatra Cantor, Ator e produtor Estadunidense

https://www.ebiografia.com/frank_sinatra/

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Fantasia Visual

Roberto Schima Itanhaém/SP

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Caricaturas Jamison Paixão Las Palmas de Gran Canária/ Espanha Caricatura – O Tempo

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Caricatura – Desafio Samurai

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Caricatura – Embalos do Reggae

https://www.facebook.com/paixaodeoliveira https://www.facebook.com/jpartes.desenho.3

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Lançamento da Revista Ikebana A Revista Ikebana é um projeto literário originado em Cuiabá-MT, pela artista trans non-binary Ariel Von Ocker. O objetivo de nosso trabalho é trazer representatividade e diversidade para o meio da literatura através da divulgação do trabalho de autorxs pertencentes a grupos minoritários.

Leia aqui: https://drive.google.com/file/d/1Z785AMXOlnIchlpyZDHW3a8hDjj-W6M9/view

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Revista SerEsta Revista literária gratuita com publicação on-line. Para ler e participar das seleções, acesse aqui: https://revistaseresta.blogspot.com/p/apresentacao.html

Em breve, Revista SerEsta, número 9. Homenageado: Mauricio de Sousa Entrevistado: André Kondo

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E-book “Da Favela para o Mundo 2” No dia 4 de abril, o Sarau na Favela (on-line) completou 2 anos. E o presente para o público é a segunda coletânea, "Da Favela para o Mundo", com obras dos participantes do evento. Baixe gratuitamente aqui: Da Favela para o Mundo - 2 https://drive.google.com/file/d/1nVYtCX3nRUODrhF_O_8ULIZ-cak4s_IX/view Da Favela para o Mundo -1: https://drive.google.com/file/d/1q6Pmfztj_fKszmdL8b0o_fyWHX8c0l7P/view Vídeo de aniversário de 2 anos do Sarau na Favela; https://youtu.be/RWpWpHuSu8s

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LiteraAmigos Espaço dedicado a todas as entidades e projetos amigos que de alguma forma nos ajudam ou possuem proposta de trabalho semelhante a nossa: Corvo Literário O Corvo literário é um espaço para propagação da arte, em especial da literatura. Mas também para discussões e debates, por isso sempre traremos opiniões,

entrevistas, notícias, e contamos com a participação de todos. Acessem o site e enviem seus textos com tema livre:

https://corvoliterario.com/ https://corvoliterario.com/contact/

“Blog Concursos Literários” Blog criado em 2011, com o objetivo de divulgar editais e resultados de concursos literários e prêmios literários. É considerado por muitos autores como uma fonte completa e acessível de editais e resultados de premiações realizadas no Brasil e em todo o mundo. O projeto também é elogiado por não incluir

em suas postagens os concursos que cobram quaisquer taxas de inscrição ou publicação dos autores. Além disso, muitos organizadores de concursos literários reconhecem este espaço como uma referência no apoio à divulgação. Acessem o site e conheçam os Concursos do mês, do ano e as seleções permanentes:

Blog: https://concursos-literarios.blogspot.com.br/ Facebook: https://www.facebook.com/concursosliterarios/

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Editora Pé de Jambo -Fundada em fevereiro de 2019, em meio a pandemia do Covid19 pelo escritor Mikael Mansur-Martinelli, a Editora Pé de Jambo é uma empresa prestadora de serviços editoriais, revisão gramatical, copidesque e orientações textuais para autores independentes. O principal objetivo da Editora é contribuir para a disseminação da Literatura, principalmente de novos autores e transformar em uma forma acessível a todos. Veja os editais no site: https://editorapedejambo.wixsite.com/editorapdejambo/antologias

Blog Alan Rubens No blog do autor Alan Rubens, o leitor terá a oportunidade de ler textos incríveis escritos pelo próprio Alan e também de autores convidados de todos os lugares, numa reunião de talentos eclética e divertida. https://alanrubens.wordpress.com/

Mulheres Audiovisual” - uma plataforma criada para unir as mulheres e a arte em geral, cadastre seu portfólio e participe:

http://mulheresaudiovisual.com.br/

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Literatura já - No canal e podcast “Literatura já”, criado pela escritora Joyce Nascimento, você encontrará muita leitura e narração de textos: poesias, contos e crônicas autorais e de outros escritores. Entrevistas, bate-papo com convidados, dicas e informações sobre o que está acontecendo no mundo literário. Tudo em formato de áudio publicado toda sexta-feira, a partir das 19h. Se inscrevam e não percam nenhum conteúdo! https://open.spotify.com/show/7iQe21M7qH75CcERx5Qsf8

Maldohorror - Coletivo de escritores fantásticos e malditos Aventurem-se lendo o que há de melhor na literatura de Terror/Horror. Visite o site do Coletivo Maldohorror, que reúne os melhores contos de terror, poesias malditas, crônicas ácidas e histórias imorais, escritos

por autores consagrados e também por iniciantes, numa grande mistura de estilos.

Site oficial: www.maldohorror.com.br Página do facebook: https://www.facebook.com/maldohorror/

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Portal Domínio Público Tenha acesso gratuito e legalizado à milhares de textos, sons, vídeos e imagens do Brasil e do mundo em domínio público.

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp Sci-fi Tropical Semanalmente, o site Sci-fi Tropical traz um artigo, resenha de livro ou análise sobre o cenário do fantástico nacional, permitindo que os fãs do gênero, tão acostumados a ler obras estrangeiras, conheçam também autores nacionais que ajudaram a consolidar a ficção-científica por aqui. O site traz ainda O PROJETO MINIBOOKS FANTÁSTICOS, com obras de autores de FC em língua portuguesa para download. Com um design

exclusivo, o leitor terá uma experiência imersiva nas histórias. Rubens Angelo, criador do site Sci-fi Tropical, é formado em design, mestrando em mídias criativas e, principalmente, fã incondicional da ficção científica. Venha conferir:

https://scifitropical.wordpress.com/

Canal “Conto um Conto” - Canal do Youtube criado pelo locutor Marcelo Fávaro, onde podemos “ouvir” clássicos da literatura mundial. O canal proporciona entretenimento

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inclusivo e de qualidade para todos os amantes da boa literatura; tem Guimarães Rosa, Monteiro Lobato, Stephen King, Edgar Allan Poe, Machado de Assis e muito mais. Conheçam, se inscrevam e aproveitem. Ouvir histórias é relaxante e instrutivo!! https://www.youtube.com/channel/UCsqheVzvPGoI6S3pP3MBlhg

Site “Seleções Literárias”

https://selecoesliterarias.com.br/

Podcast Toma aí um poema O Podcast Toma Aí um Poema tem com objetivo declamar o máximo de poemas brasileiros possíveis e disponibilizá-los em áudio para torna-los mais acessíveis, nos diferentes canais e formatos. Acesse o site e envie seu poema!! https://www.jessicaiancoski.com/toma-ai-um-poema

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Modelo de envio de textos para publicação na revista No meio do caminho (título) Carlos Drummond de Andrade (nome para publicação – este nome não será trocado) Rio de Janeiro/RJ (cidade e estado onde vive – país somente se for do exterior) (no máximo 3 textos com até 3 páginas)

(texto – utilize fonte arial ou times new roman) No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho, tinha uma pedra, no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento, na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho, tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra.

https://www.pensador.com/melhores_poemas_de_carlos_drummond_de_andrade/

(site, página ou blog – pessoal ou de divulgação de obras)



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pages 250-251

LiteraAmigos

3min
pages 245-249

E-book “Da Favela para o Mundo 2”

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Willian Fontana

7min
pages 231-234

Lançamento da Revista Ikebana

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page 242

Yuki Eiri

1min
pages 235-236

Wagner Azevedo Pereira

0
page 230

Victor Alves Ciscar

3min
pages 225-226

Vitor Sergio de Almeida

0
page 229

Valeria Vanda Xavier Nunes

6min
pages 220-223

Vagner Santos Pereira

6min
pages 216-219

Vadô Cabrera

0
page 215

Tauã Lima Verdan Rangel

0
page 211

Taís Curi

2min
pages 209-210

Teresa Azevedo

5min
pages 212-214

Sonia Re Rocha Rodrigues

7min
pages 205-208

Sigridi Borges

0
page 203

Shirlei Pinheiro

1min
page 202

Sandra Lee Ribeiro

1min
page 194

Shanaia Ketlen Santana

0
page 201

Samira Martins Marana

2min
pages 192-193

Sérgio Soares

5min
pages 197-200

Schleiden Nunes Pimenta

2min
pages 195-196

Sabrina Siqueira

5min
pages 189-191

Ruan Vieira

0
page 188

Rosangela Mariano

0
pages 186-187

Rosangela Maluf

3min
pages 184-185

Rommel Werneck

0
page 178

Rosa Maria Soares Bugarin

1min
pages 181-183

Roque Aloisio Weschenfelder

2min
pages 179-180

Roberto Schima

16min
pages 169-176

Rogerio Luz

0
page 177

Ricardo Garcia

7min
pages 165-168

Renato Bruno

6min
pages 162-164

Regina Alonso

2min
pages 158-159

Reinaldo Fernandes

2min
pages 160-161

Poesia Maria

0
page 157

Pedro R. R. Guimarães

4min
pages 154-156

Paulo Cezar Tórtora

0
page 147

Paulo Luís Ferreira

10min
pages 148-153

Otávio Patuço

0
page 145

Nilza Amaral

1min
page 144

Mestre Tinga das Gerais

6min
pages 136-138

Mônica Monnerat

2min
pages 139-140

Mayara Lopes da Costa

2min
pages 134-135

May Cass

2min
pages 132-133

Mario Loff

0
page 130

Maria Pia Monda

3min
pages 128-129

Maria Luiza Vieira Silva

2min
pages 126-127

Maria Inácia

1min
page 125

Maria Eduarda dos Santos

1min
page 124

Maria Carolina Fernandes Oliveira

0
page 123

Marcel Luiz

0
page 121

Letícia Érica Ribeiro

1min
pages 113-114

Madô Martins

3min
pages 119-120

Lira Vargas

1min
page 115

Luís Amorim

1min
pages 117-118

Leandro Emanuel Pereira

0
page 112

José M. da Silva

5min
pages 105-108

Jorge Gonçalves de Abrantes

0
page 102

Josy Souza

0
page 110

Junior Valderano

0
page 111

José Manuel Neves

0
page 109

José D’Assunção Barros

0
pages 103-104

Joedyr Bellas

3min
pages 100-101

Joaquim Cesário de Mello

0
page 99

Jeferson Ilha

0
page 96

Joaquim Bispo

3min
pages 97-98

Ivo Aparecido Franco

0
page 92

Iraci Marin

2min
pages 89-90

Iram Leal

0
page 91

JAX

4min
pages 93-95

Iracema de Alencar

0
pages 87-88

Ilana Sodré

6min
pages 84-86

Hélio Guedes

0
page 79

Ícaro Marques Estevam

0
page 81

Giulianno Liberalli

5min
pages 69-73

Gislene da Silva Oliveira

1min
pages 67-68

Helena Schiavoni Sylvestre

6min
pages 76-78

Gabriel Oliveira Monteiro

0
page 63

Gardel Dias da Assunção

0
page 65

Francisco Cleiton Limeira de Sousa

2min
pages 61-62

Fernando Manuel Bunga

0
page 60

Elza Melo

0
page 57

Eva Irene Corrêa Martins

0
page 59

Eni Ilis

1min
page 58

Edih Longo

3min
pages 52-53

Daniel Cardoso Alves

0
pages 48-49

Daiane Barros

3min
pages 46-47

Edna das Dores de Oliveira Coimbra

0
page 54

Conceição Maciel

0
page 45

Clarice de Assis Rosa

1min
page 41

Cleidirene Rosa Machado

3min
pages 43-44

Charles Luciano

0
page 40

Sem retorno

0
page 42

Carmem Aparecida Gomes

0
page 38

Carlos Jorge Azevedo

0
page 37

Benjamim Franco

2min
pages 35-36

Ariel Von Ocker (Gabriel F. Montes Lima

3min
pages 32-33

Alberto Arecchi

7min
pages 22-25

Agnes Fernandes & Fernando Fernandes

0
page 20

Alan Rubens

1min
page 21

Amélia Luz

1min
pages 27-28

Ariane de Medeiros Pereira

0
pages 30-31

Adam Mattos

0
page 19

Ana Maria Fázio de Freitas

0
page 29

Aline Bischoff

0
page 26
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