6 minute read

Valeria Vanda Xavier Nunes

Valeria Vanda Xavier Nunes Campina Grande/PB

O último adeus

Advertisement

Domingo de páscoa. A família tinha saboreado um belo almoço. Alguns já tinha se recolhido em seus quartos e faziam a sesta. Outros permaneciam na sala a conversar, a dar risadas e a contar histórias engraçadas que aconteciam com a família. Em pé, em frente à porta do quarto, Joana espreitava a filhinha que se debruçava sobre o avô adormecido. Dali a poucos minutos, ela, o marido e as filhas retornariam para casa. —Tchau vô! Tchau vô! — Joana ouvia a voz sussurrada de sua filhinha mais nova. A menina falava baixinho enquanto roçava a sua face lisinha como um pêssego maduro nas bochechas, envelhecidas pelo tempo, de seu avô querido. Beijava-lhe também o rosto e continuava falando baixinho para não o acordar. Parecia não querer deixá-lo. Le dormia o sono dos justos Aquela cena, jamais seria esquecida por Joana. Elas saíram do quarto devagarinho sem fazerem o mínimo barulho. A viagem de volta para casa era sempre triste para Joana que sentia muita falta dos pais e dos irmãos. Casara-se muito jovem e por esse motivo não perdia nunca as oportunidades de estar com eles. Sempre se reuniam nos feriados e nas datas comemorativas. Joana não conseguia explicar por que se sentia mais triste do que nunca naquela volta para casa. Não era uma tristeza normal de quando voltava de alguma comemoração na casa dos pais. Não. Aquela angústia e tristeza eram diferentes.

Um sentimento enorme de perda apertava o seu coração de uma maneira nunca sentida. Nada a fez ficar alegre naquela viagem de volta; nem as músicas que se ouviam no carro, nem as brincadeiras das filhas. O seu coração continuou apertado por muito tempo ainda. Chegou ao ponto de seu marido e suas filhas perceberem e perguntarem: — Por que você está tão calada e triste hoje, mamãe? — E Joana, tentando disfarçar uma lágrima que teimava em cair por trás dos óculos escuros, respondeu: — Não é nada, não se preocupem, são apenas saudades. — Mas a tristeza de Joana era tão grande que acabou por contaminar a todo. O resto da viagem transcorreu no mais completo silêncio.

Deitada no sofá da sala, Joana se recordava de tudo isso e o seu coração se aperta novamente. Como

212

esquecer aquela memorável tarde! Ela estava deitava nesse mesmo sofá, exatamente como agora. Decidira que não sairia àquela tarde, pois algo em seu peito angustiado lhe pedia para não sair. Só sairia para pegar as crianças na escola às cinco horas. Durante toda a manhã e até bem mais tarde Joana não conseguiu se livrar daquela sensação estranha que sentia no peito. Continuou inquieta.

Quatro horas da tarde. O telefone tocou. O coração deu um salto no peito. Sua intuição lhe dizia que não seriam boas notícias. Era sua irmã: — Oi, Joana, tudo bem? — Joana estranhou. Aquela sua irmã quase nunca ligava. — Não sabes o que aconteceu. — Disse ela tentando esconder algo. Mas Joana percebeu no seu tom de vez que algo havia acontecido. — Papai saiu de casa desde cedo e ainda não voltou. Já procuramos por todo lugar e não o encontramos. Disse para mamãe que ia ao supermercado e que logo voltaria e até agora nada. Imagina aí a agonia dela e de todos nós. — Beatriz falou essas frases de maneira totalmente atropelada, o que deixou Joana mais nervosa e apreensiva. Logo retrucou: — Como não o encontraram? Então não procuraram direito. Já procuraram nos hospitais? Joana continuava fazendo mil perguntas para a irmã que, de repente, disse uma frase que a deixou paralisada e a fez compreender tudo.

— Olha Joana, cai na real. Arruma tudo por aí e vem pra cá imediatamente.

Foi esta a frase que deixou Joana por uns momentos petrificada. Em estado de choque. Cai na real. Pensava ela nessas três palavrinhas. Nem percebeu que a irmã já havia desligado o telefone há alguns minutos

Joana estava aniquilada, como se uma faca afiada estivesse entrando em seu peito. Não precisava dizer mais nada. Nada de eufemismos. Estava tudo ali, claramente, naquelas três palavrinhas: cai na real.

Joana permaneceu gelada dos pés à cabeça. Colocou o telefone no gancho e se viu completamente arrasada e sem ação por vários minutos. Completamente atordoada, não queria acreditar, não estava preparada para aquilo. Não podia ser. Min utos após o choque, pôs-se em ação. Era preciso reagir. Não chorar. Lágrimas significam tragédia. E nada havia acontecido, ainda. Pensava Joana, enquanto tentava com mãos trêmulas ligar para o marido e relatar o que sabia dos fatos. Em poucos minutos ele chegou. Acalmou-a e ajudou-a nos preparativos para a viagem.

Completamente desnorteada, Joana agia sem vontade própria e, como um robô, procurava fazer as malas de todos. Não sabia o que colocava ali dentro. Tudo era feito aleatoriamente. Passaram na escola e

213

pegaram as crianças que não entendiam nada. Por que vamos viajar assim, às pressas? O que aconteceu? Pra casa de vovó? Aconteceu alguma coisa com eles? Foi com vovó ou foi com vovô? As perguntas das crianças se sucediam, mas Joana permanecia calada. Não sabia o que dizer para elas, se nem ela mesma tinha certeza de nada. Não queria acreditar no pior. Em seu coração apertado pela dor, ainda restava a esperança de estar enganada, de sua irmã também ter se enganado. É claro que tudo isto é um engano, é um pesadelo! Com certeza, quando chegarmos, papai estará nos esperando na calçada do prédio. Claro! Ele sempre fez isso! Como sempre, iria abraçá-la e ia beijar as netas. Ele ia estar lá, sim. Joana precisava ter certeza disso.

Durante todo o trajeto, mil cenas se desenrolavam em sua mente. Passava um filme em preto e branco de tudo que viveu com seu pai. Ele tem que estar lá. Ele não pode nos deixar ainda. Todos precisamos dele.

Enfim, a viagem acabou. Joana olha para todos os lados. Nada de seu pai nos jardins do prédio. As crianças estão assustadas. Também procuram o avô. — Cadê vovô? Por que ele não nos esperou aqui, como sempre? —Joana não lhes responde nada.

Não espera para tirar as malas do carro. Não espera por suas filhas nem por seu marido. Desce do carro com o coração sangrando e querendo saltar do peito. Entra no elevador que demora mil anos até chegar ao quinto andar. Silêncio nos corredores.

Porta aberta no apartamento.

Vê, sentada no sofá da sala, sua mãe que chora e é consolada pelas amigas.

Não se dirige a ela.

Nenhum irmão. Nenhuma irmã. A verdade se mostra aterradora.

Joana entende tudo. A esperança que trazia dentro de si, acha uma brecha e escapa, levanta voo, escapa para o infinito como deve ter escapado a alma de seu velho pai naquele dia. Quem sabe não se encontraram as duas, esperança e alma, entrelaçadas no além.

Joana vai direto para o quarto dele. Agarra um de seus gorrinhos, aperta-o de encontro ao peito que parece que vai explodir de tanta dor, e, finalmente, chora.

Chora um pranto que estava contido, preso, guardado e ávido para se soltar do peito. Soluça desesperadamente. Esvazia toda a dor que vinha guardando e derrama também todas as lágrimas que vinha reprimindo até aquele momento.

Joana passou horas ali. Desconsolada, triste, sozinha.

Ninguém está preparado para essa dor, e a dor que ela sentia parecia que não ia ter mais fim. Seu pai a havia deixado. Tinha ido embora.

Era como um tesouro que lhe havia sido roubado. E ela tinha que encontrar forças para o encontro que

214

não podia ser adiado. A despedida era inevitável.

Ele estava lá. Bonito. Bem vestido. Perfumado.

Quanta saudade.! Quanta dor! Quantas palavras ainda não ditas! Quantos conselhos ainda faltavam ser ouvidos! Quanto carinho ficou por fazer. Na boca um ar de riso. Era como se finalmente ele tivesse encontrado o que procurava. Era seu pai que estava ali. Parecia feliz. O seu semblante era sim, de felicidade.

Era a última vez que via seu pai. Aquela cena jamais sairia de sua mente. Ele dormia sim. Mas ai de nós. Não era mais o sono dos justos.

Era o sono dos mortos.

@valeriaxavier_autora Face –Valéria Xavier- Léia

This article is from: