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Victor Alves Ciscar

Victor Alves Ciscar São Paulo/SP

A criatura mística do vagão

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Edgar, 14 anos. Um jovem taciturno, de um semblante sorumbático e moribundo. Olheiras profundas e densas, cabelo preto, dedos finos e esqueléticos, corpo franzino, e uma face apática, enfeitada por olhos ambíguos e vagos. Usa roupas escuras, capazes de esconderem todo o seu corpo. Em público, anda pelas sombras, com o intuito de ser despercebido pela multidão; e nunca olhava alguém nos olhos, para o garoto, era constrangedor. Edgar, melancólico, é um recluso social. Vive no mundo dos humanos, mas também no mundo das criaturas, simultaneamente, embora seja introvertido em ambos. Desde criança era vítima de rejeições e de infames olhares de desprezo por ser ‘diferente’ dos demais. Desde muito cedo cultivava uma mistura de ódio, mágoa e dor. Edgar, certo dia, estava atrasado para um compromisso. Saiu rapidamente de casa, percorreu seu percurso, evitando multidões, claro. Chegou à estação, aguardou seu trem, averiguou qual vagão estava mais vazio, e adentrou. E como de costume, locomoveu-se para um canto em que havia ausência de pessoas. O menino tinha um “dom”, podia visualizar o intangível, assim como se vê o tangível. No vagão, um monstro chamou-lhe a atenção: portava uma boina e um sobretudo cinza-plúmbeos, um paletó escuro e uma gravata escarlate; deveria ter cerca de 2 metros, suas mãos assemelhavam-se às patinhas de cachorro, seu nariz tinha uma fisionomia oblíqua, seus caninos da boca eram enormes, e seus olhos eram intimidadores, pois suas pupilas eram finas, como as de um felino. A criatura, carrancuda, percebeu que o menino a encarava, e aproximou-se do garoto, pois enxergava nele uma singela vaidade que possuía outrora. Edgar tentou desviar o olhar, para evitá-lo, mas foi irrelevante. A criatura, curiosa, perguntou-lhe: - Do que se esconde tanto, garoto?

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Sem resposta, perguntou novamente: - O que tanto te assusta? O menino, consciente de que a criatura iria insistir, e incomodado pela persistência, balbuciou: - Sinto-me distante de todas as outras pessoas, deslocado, à margem disto tudo. Olham-me como se eu fosse um ultraje, tratamme com asco, como se eu fosse uma falha. Sinto-me também descartável, insignificante e desprezível, tudo por conta “disto” que possuo... Sabe, às vezes sinto que meu nascimento foi um erro. A criatura, comovida pela sensibilidade do garoto, respondeu: - Olha, garoto, eu sei do que se trata. Sei exatamente como você está se sentindo; quando eu tinha sua idade, cerca de 50 anos atrás, compartilhava dessa mesma dor. Isolei-me em meu quarto, trancafiado por anos. Meu convívio social desaparecera, e minha vida social havia sido extinta. Era vitima de uma depressão imensurável, sentiame um miserável. O marasmo e a melancolia eram árduos companheiros meus, sempre presentes, todos os dias. Entretanto, certo dia, tive uma epifania, e pude rever meus conceitos e valores: talvez esse “fardo” que estamos carregando possa ser benéfico, e o que julgam com vileza, possa nos ser útil, se bem utilizada. Edgar, ouça-me, quero que compreenda que, apesar das opiniões de outros, essa particularidade o torna único, essa individualidade o torna especial, e essa diferença o torna absurdamente poderoso. Não se entristeça, não se magoe, veja perspectivas aonde os outros veem falhas, e Edgar... Seja feliz! O silêncio veio à tona, acompanhado de solidariedade e ternura. O trem entrou em um túnel, e em instantes, uma escuridão latente devorou a locomotiva, tornando tudo um breu; após alguns segundos, a clareza ressurgiu, através de míseros feixes de luz, todavia a criatura já havia desaparecido. Minutos depois, Edgar desembarcou do trem. Ainda reflexivo, as palavras francas e fraternas da criatura tornaram o seu semblante mais alegre e confiante, exacerbado de esperança, e percebeu que estava tudo bem ser um recluso social, contanto que estivesse bem consigo mesmo. Seguiu rumo à clínica psiquiátrica, depressa, pois estava atrasado para sua consulta semanal. Edgar é esquizofrênico.

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