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Paulo Luís Ferreira

Paulo Luís Ferreira São Bernardo do Campo/SP

Pássaro sem Asas

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Imagem:Google imagem

Deusdete desvia a vista do espelho para a parede. Mais uma vez está perplexo. Sua fisionomia denota uma dura expressão de desarranjo emocional num misto de decepção, abandono e impotência diante tanta falta de vontade e perspectiva. Náufrago de uma vida absurda, sem vento, sem lucros, da qual nunca pode fugir. É como se estivesse num hospício ou numa clausura. Fala com o invisível.

Deusdete continua olhando sua opaca imagem refletida. Ensimesmado, relembra de uma frase que alguém lhe disse, ouvida ou simplesmente lida: “Após o advento do espelho cada um é responsável pela cara que tem”. De seu hipocondríaco espírito brotou um

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pensamento incauto, e disse para si que se parecia com qualquer homem do mundo menos com ele mesmo. Viera ao mundo como um tiro sem alvo. Um pássaro sem asas. “Teria eu sido feito de barro mais ordinário que todos os outros homens do mundo?” – interrogou-se. –ainda lembrou de que, certa vez, alguém o chamou de deus-do-dedo por não saber pronunciar seu nome corretamente. Haveria nesta incorreção fonética algum resquício de verdade ou seria uma infâmia contra sua mísera condição de incompetência humana? “O que é ser deus-do-dedo? Nada! Quem é deus de dedos não é nada, melhor seria ser o rei da cocada preta, como diz o dito.” Uma metade de seus pensamentos o acusa de falta de empenho, de homem pobre, rude, sem mínima vocação para achar uma saída por cima, quando se está no fundo do poço; a outra metade desculpa-o por ter sido um homem desprovido de preparo adequado para enfrentar esses tempos modernos repletos de concorrências e desigualdades.

Seu aprendizado não passa de pequenos conhecimentos rudimentares: o suficiente para fazê-lo um trivial funcionário público. Embora saiba que ninguém é glorioso por si mesmo, apenas subjugado pela vontade dos outros. E deslumbrou a viver no melhor de todos os mundos, os possíveis e improváveis. Serenou. Passou o olhar pela parede estampada de belas e famosas mulheres nuas. Todas emparedadas, perfiladas, como condenadas diante o pelotão à espera do fuzilamento. Uma delas, mascarada. Outra com um suave véu azul turquesa cobrindo os olhos, como a pedir clemência. E mais uma de chicote na mão, ameaçadora e impiedosa como se estivesse querendo tirar-lhe todos os seus fracassos à custa de sexo, dor e sangue. Cabisbaixo, visualizou seu pênis sob as calças. Tentou em vão inspirar-se para uma masturbação, mas perdera a libido para isso, precisaria de dedicação e paciência, o que já não tinha. Desvaneceu.

Sentou-se na privada. Pôs a mão na testa pensativo. Pensou em sua mãe falecida; e nas mulheres que por ventura tivera um fugaz amor. Pensou em Deus. Defecou, defecou e defecou. E chorou, chorou e chorou. Pensou mais um pouco em Deus e chorou. Chorou e defecou, e chorou mais um pouco. E pensou em Deus como um ser realmente divino. Um ser solícito. Supremo em seu poder absoluto, Onipotente e Onisciente. “Para tudo Ele diz sim!... Eu quero derrubar aquele prédio... Sim! Diz Ele, quero descarrilar aquele trem, sim!... Vamos causar mazelas ao mundo? Sim!... Vamos jogar bomba atômica? Sim!... Vamos flagelar os homens... E os navios negreiros?... Sim!... Matar criancinhas africanas de fome, secar o solo nordestino, guerras, holocausto... Corrupção, ditaduras... Um verdadeiro anjo... Para tudo Ele diz sim!... Sim, sim!...”

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Num lampejo, desanuviou os profanos pensares, desenrolou um pedaço de papel higiênico e secou as lágrimas. Desenrolou outro e limpou o ânus. Abriu a torneira do chuveiro. Jogou água sobre as mãos esfregandoas numa impaciente avidez. Lavou o rosto. Abriu o chuveirinho e lavou os pés por entre os dedos. Decidiu que não iria tomar banho, sentia-se enfadado. Secou-se, apagou a luz e voltou para a sala arrastando os chinelos pelos tacos desgastados e sem brilho, recoberto de fuligem, uma lástima de imundo pó e ácaros. – queixava-se Deusdete.

Sentou-se no velho e ensebado sofá. Olhou para a entre coxas, onde repousava sob as calças seu flácido membro a incriminar sua incompetência. Frustrado, restou-lhe o controle remoto. Com força apontou em riste para o centro da tela da TV, apertando a tecla Power. Simultaneamente explode o som e a luz como se assim viesse de um trovão, de um relâmpago, resplandecendo e ofuscando seus olhos quase cegos. O locutor fala em grave locução ao seu ouvido quase mouco: — “O Imperador da Dinastia Ming, Hong Wu, é considerado o tirano mais intransigente e irracional da história chinesa. Mandou executar tantas pessoas que, durante seu reinado, os funcionários do governo tinham o hábito de dar o último adeus à família cada vez que era convocado para uma audiência matinal e, ao fim do dia, trocarem congratulações entre si por terem sobrevivido até a noite. A dinastia Chin queimou vivos muitos estudiosos a fim de suprimir o conhecimento e o confucionismo. E no ocidente civilizado, neste último século que nos precedeu, – sem incluir Hitler, que matou nas câmaras de gás mais de seis milhões de judeus – e o nosso tão aclamado e idolatrado, século XXI, um ser humano tem sido morto, legal ou ilegalmente a cada vinte segundos. Este índice é três vezes maior que os primeiros cinquenta anos do século passado.” — Deusdete cansou-se do comentário. Desligou a TV.

Virou a cabeça para o teto, observou o velho lustre de falso baccarat. Olhou em volta. No centro da mesa uma fileira de formigas caminhava em direção a um torrão de açúcar; sobre a toalha plástica de um branco encardido, uma fruteira de vidro embaçado de gordura compunha um singelo e mísero retrato de uma natureza morta: meia dúzia de bananas nanicas maduradas, duas laranjas, dois caquis, uma manga e três limões. Repentinamente levantou-se, ligou a vitrola e escolheu um Long Play e escutou: “Jesus Alegria dos Homens”, em seguida as “Quatro Estações”, ouviu a “Primavera”. Cansou e quis ouvir Nelson Gonçalves, depois Ângela Maria, por fim, pois Luiz Gonzaga cantando “Luar do Sertão”. Enfastiado desligou o aparelho.

Foi até a janela. Recostou-se no parapeito e olhou para a rua. Em frente à portaria do prédio, o rabecão

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do IML estacionado. Um pequeno cortejo empunhava a caixa de lata em direção a um corpo estendido no chão, e dali à viatura. A sirene foi ligada. Lentamente o camburão foi abrindo espaço entre os curiosos. Tomou velocidade e, em ziguezague, saiu rasgando as ruas da cidade atropelando o trânsito, levando mais um corpo morto pela metrópole. A polícia tinha pressa: aproximava-se a hora da xepa, a sopa não pode esfriar. Enjoado de toda cena e meditabundo, Deusdete, numa última perscrutação, observa a natureza dos prédios à frente de sua janela e viu estarrecido, uma paisagem urbana, triste e morta. Alheio a tudo, puxa um cigarro do bolso, estica-o, e já na boca, somente consegue acendê-lo no quinto palito de fósforo. Continua a olhar para fora, olhar por olhar, impassivelmente alienado, sem procurar por nada. Mas ainda se imaginou como um pássaro, a sobrevoar a cidade, mas como se ele não tinha asas?

Retorna à surrada poltrona. Sentase olhando a TV desligada. Cochila. Num sobressalto desperta ao escutar um canto vindo do corredor externo: “Une, dune, tê... Salamê, minguê... Um sorvete colorê...

Une... dune... tê... O es-co-lhi-do foi vo-cê...”

Encaminha-se para sua cristaleira. Ligou o rádio e girou o dial aleatoriamente para cair em uma estação qualquer. Um noticiário dizia em voz aguda uma coisa qualquer sobre cultura inútil: — “Lorde Byron, moreno, bonito e romântico poeta inglês, tinha um pé defeituoso de nascença, do qual muito se tem escrito. Entretanto, era o esquerdo ou o direito? Os estudiosos não têm certeza. Há controvérsias sobre o assunto.” — Desligou, procurou cegamente com as mãos, na parte de baixo do armário uma garrafa de cachaça. Achou, puxou para si, fitoua decepcionado. Estava vazia. Naquele momento gostaria muito de um gole...

Vira a garrafa no copo, não cai nenhuma gota. Procura em todos os potes onde possa ter alguma moeda. Desespera-se. Acha um cofrinho de banco, desses de papelão. Não achando com que o abrir rasga-o com as mãos. As moedas caem, ele se agacha e conta. Em seu rosto uma expressão de contentamento. Percebe que dá para comprar a cachaça. Vai até a porta. Põe a mão na maçaneta e resoluto abre a porta.

No corredor, uma menina risca a giz o chão com muita força, reacendendo as linhas que desenha sua amarelinha, enquanto cantarola: “Meu limão meu limoeiro, meu pé de jacarandá... “Une... dune... tê... O es-co-lhi-do... Foi vo-cê...”

Fazendo com que Deusdete, enquanto espera o elevador pense em reminiscências de infância. Lembra-se de um promíscuo lápis de

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carvão que o ensinou obscenidades balcânicas antes que soubesse escrever a palavra bunda... “Por que não cultivara a virtude do bem e aculturara o espírito há mais tempo?, como insta Epicuro. –conjeturou – Fazendo-o descer pelas escadas num repente, como um coice de mula brava.

Após vinte minutos volta Deusdete. Ao caminhar para sua porta escuta um grito agudo, petrificando-o: — O senhor tá cego?!... Não vê onde pisa, não?...

Deusdete volta-se assustado olhando para o chão. Estava pisando nas linhas riscadas a giz. Sem ação, defronta-se com o olhar travesso, redondo e vivo da menina. Ela ameaça rir da falta de jeito e da irritação de Deusdete. Que o deixa ainda mais nervoso. Num alvoroço chega à sua porta tentando abri-la. A menina, com as pernas entreabertas sobre as asas de sua amarelinha fala amistosamente: — Meu nome é Mildred, com “D” mudo e o seu qual é? — Trump Bin Ladem! – responde Deusdete irritado, com um berro –“ahhh!”

Ao chegar à sua porta para, num impulso abre-a, entra e fecha rapidamente, recostando-se e abraçando a garrafa de cachaça contra o peito. Olha-a segurando-a pelo gargalo numa clara intenção de arremessá-la contra a parede. Desesperado, rasga o jornal que a embrulha. Sua memória confusa traz à lembrança vontades e desejos que gostaria ter sido diferentes para uma vida melhor.

“No século passado diziam que o século vinte e um seria a salvação da humanidade. Hei-me aqui, no começo deste mesmo esquizofrênico século e nada mudou. O avanço tecnológico, os computadores, a medicina, a AIDS, as cores, para quê?... Para quem?... Pessoalmente eu não dei certo... E os outros todos, deram? Descobriram o tal buraco negro? E a bomba atômica... Desativaram? E a miséria dos povos do terceiro mundo. E também do segundo e o egoísmo do primeiro?... Não, só grandes templos foram construídos para salvar almas; mas que almas se os animicidas já às assassinaram! Hoje só se é feliz quem é dono de padaria, publicitários, jogadores de futebol, fabricantes de luz néon, traficantes, políticos corruptos, e os apresentadores de televisão. Mediocremente acreditei que a humanidade só caminharia com a minha ajuda. Eu que tanto me dediquei aos livros contábeis para viver na prática... Mas que prática?... Sempre fui um livro caixa honesto. Na verdade a corrupção nunca beijou meus pés. Nunca fui tão importante para alterar alguma coisa. Alteraramme... Sempre fui hóspede de mim mesmo. E aqui estou eu pobre e enlouquecido. Felizes são todos os outros eu só tenho lembranças.”

Este lamuriante embate interno aprofundou ainda mais a psique de

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Deusdete. Desse modo foi adentrando numa convulsa crise de choro. Em seguida quedou-se. Mais calmo, levantase e vai até a garrafa de cachaça sobre a mesa, e num gesto brusco destampa-a no dente, pega um copo na cristaleira e enche-o até a cinta. Toma-o de um só gole. E fala para si e para as paredes: “No fundo no fundo a vida é uma porra mesmo! Parece que carrego todos os mortos e vivos do mundo sobre a minha cabeça.” Observa o nível da pinga através do vidro escuro, entorna mais meia dose no copo e bebe, agora a degustando devagar. Já embotado em sua embriaguês existencial deposita a garrafa sobre a mesa. Mira o vão da janela, toma impulso e se atira. Esquecera-se de que nasceu sem asas.

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