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Sabrina Siqueira

Sabrina Siqueira Santa Maria/RS

O brechó da Rio Branco

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O fato de a minha mãe ser filha temporona fez com que eu tivesse tios bem mais velhos. Com dois deles, convivi bastante e guardo boas memórias. Uma é a tia Lira, a primeira ghostwriter da família, já que escrevia os discursos do marido vereador e ficava no anonimato. Eu a acompanhei em alguns apontamentos de jogo do bicho e entendi depressa a importância de um almanaque de interpretação dos sonhos nesse métier, já que o apontador é antes de tudo um terapeuta dos mistérios do inconsciente. Outro, o tio Ivan, foi quem escolheu o meu nome, que eu adoro. Meus pais adolescentes não recorreram à ciência para saber o sexo do bebê, até porque acho que não existia exame para isso em 1979. O que não significa que não tenham usado de alguma astúcia para antecipar a surpresa da natureza. Morávamos em São Sepé e, em cidade muito pequena, naquela época, cartomante era como circo, vira e mexe chegava uma. O jovem casal visitou a vidente separadamente e ambos escutaram dela que teriam um filho homem, algum dia. Pronto! Nasci Fabrício e com muitas roupas azuis. Mas num instante as crianças que se tornaram pais de primeira viagem solucionaram o problema renomeando a recémnascida como a protagonista de seu gibi favorito: Mônica. O tio Ivan, na primeira visita à afilhada, ainda no hospital, teve um insight da baixinha enfezada que eu seria e me salvou de um destino caricato, sugerindo Sabrina. Esse nome ele tirou de alguma fotonovela da moda, mas eu gosto de contar a história com o verniz de que a inspiração teria sido o

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filme de Billy Wilder, produzido em 1954, em que estrelavam Humphrey Bogart e Audrey Hepburn, de quem meu tio nunca ouviu falar. Ele me salvou de uma existência caricaturesca com o nome Mônica que, apesar de legal, não é o mais adequado para quem, como eu, mede 1,50m, é dentuça e tem personalidade forte, por lembrar em demasia a criação de Maurício de Sousa. Mas não impediu a si próprio de repetir os erros de algumas personagens literárias. Para mim, o tio Ivan é como Leonardo, protagonista de Memórias de um sargento de milícias, de Manoel Antônio de Almeida. Apesar de não ter nascido de uma pisadela com um beliscão, teve uma infância de travessuras e uma juventude de peripécias, com amores repartidos para as muitas mulheres que cruzaram seu caminho. Diferentemente de Dorian Gray, no entanto, personagem de Oscar Wilde que não sofre as vicissitudes da boemia e nunca envelhece, a sucessão de noitadas e ternuras sem ter fim, com numerosas amantes, foram deteriorando a saúde do tio Ivan. Entre relacionamentos oficiais, casamentos, namoros e encontros casuais, o tio me deu primos que escapam à contagem da minha mãe e dos quais eu conheço uma minoria. A eles a presença paterna deixou muito a desejar, mas eu não posso me queixar do tio/padrinho. Nos Natais da minha infância, ele foi algumas vezes a batida na janela, simulando um Papai Noel apressado, que coincidia com a chegada do tio Ivan para a ceia, e será que eles não tinham se esbarrado agorinha ali na entrada? Tinham sim, mas o Noel não podia esperar, pediu que entrasse com os presentes, passados a ele providencialmente por minha mãe, um pouco antes. Demonstrações da capacidade de atuação do galã Ivan Siqueira. No final da década de 1990, mudei para Santa Maria para fazer os famigerados cursinhos prévestibulares. Em uma tarde, tio Ivan me salvou da chatice de horas debruçada sobre apostilas, vindo me visitar com um dos carros que estava consertando, como chapeador. Aqueles carros que ficam um pedaço de cada cor, meio lixados, meio massa aparecendo, estourando e rodando por milagre. Acontece que uma das paixões do tio trabalhou um tempo como sacoleira, vendendo roupas em casa, foi embora e deixou sacos cheios de roupas, esquecidos há muito na garagem. Foi aí que ocorreu ao tio que, em Santa Maria, centro urbano com amplas possibilidades de comércio, poderia fazer um bom dinheiro vendendo aqueles modelitos em algum brechó. Ao que respondi “deixa pra mim!”, pois já tinha avistado vários dos tais empreendimentos na Avenida Rio Branco! E fomos, o tio Ivan e eu, levando o calhambeque cheio de sacos plásticos com a moda popular de alguns anos atrás, ficar ricos em uma tarde de semana. Na Rio Branco, avistei do outro lado da avenida alguns brechós, e o tio

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pediu que eu atravessasse e fosse explicando o excelente negócio que se afigurava ao responsável, enquanto ele faria a volta e procuraria lugar para estacionar a banheira tatuada de massa automotiva e procedimentos para desamasse. De alguma forma o meu discurso foi muito bom, porque a proprietária do brechó saiu na calçada para ajudar o tio a localizar uma vaga. Nisso, ele tinha feito o retorno na Rua Vale Machado e vinha subindo lentamente, à procura de parar próximo de onde a senhora e eu estávamos. O carro, em frangalhos, estourava a valer e fez menção de estacionar no espaço que, por sorte, vagara bem em frente à loja. Então a proprietária começa a movimentar os braços veementemente para que o veículo decrépito se afaste da vaga, dizendo “aqui, não!”. Virando para mim, lamentou, “bem agora que teu tio está por chegar, aparece essa lata velha e quer pegar a vaga!”, e volta-se de novo para o carro, gesticulando enfaticamente e esboçando alguma raiva. Ao que o tio, de dentro do carro, responde com um sorrisão e acenos, acreditando tratar-se da efusividade das boas-vindas do povo da cidade grande. Desfeito o mal-entendido e estabelecida a saia justa entre a lojista e eu, não pensem que as coisas não poderiam piorar. Na ocasião, tio Ivan já havia vencido um câncer na laringe que o deixou sem as cordas vocais e, em função disso, falava com a ajuda de um aparelho que produzia uma voz mecânica, um segundo sobressalto que a comerciante de roupas usadas não fez questão de disfarçar. O que estaria por vir, no entanto, seria um susto desagradável para nós três. As roupas por muito tempo esquecidas em sacos plásticos na garagem, assim que começaram a ser manuseadas pelo tio para serem mostradas à mulher, deixaram o ambiente tomado por um cheiro forte de xixi, e a maioria das peças estava bolorenta, grudada e mijada de ratos, ou gatos, ou os dois; e eu juro para vocês que quando pensa em administrar um brechó, uma pessoa não supõe que vai viver tantas indignações em uma tarde só! Livres da leptospirose e com um troco que a lojista aceitou pagar pela possibilidade de encontrar algo aproveitável na pilha de tecido colado em urina animal, fomos lanchar às gargalhadas. Não foi daquela vez que ficamos ricos, mas a família se diverte com essa história desde então.

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