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Ilana Sodré

Ilana Sodré Salvador/BA

Dois conselhos

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— Ah, Isabel! De novo? Mamãe grita irritada da porta do banheiro. Não consigo responder, a náusea revira meu estômago e eu trato de enfiar o rosto no vaso sanitário mais uma vez. Estou concentrada em colocar toda a bebida dessa madrugada para fora, mas consigo me concentrar no falatório quase indecente de minha mãe. — Você vai morrer desse jeito, está certo beber que nem uma alcoólatra toda noite? - o riso escapa em soluços, junto com ele a última leva de vômito quente pousa na latrina. — A senhora já foi jovem, dona Matilde. Eu estou apenas vivendo. - é uma desculpa, eu sei disso, mamãe também sabe e ainda assim não deixa de ser a verdade. Desde que terminei com Paulo meu lema é viver o hoje. — Fui jovem sim, mas não estava interessada em orgias e festas regadas a álcool. — Tenho certeza que minhas histórias têm animado seus dias. - começo a escovar meus dentes e encontro seu olhar através do espelho em cima da pia. Não é só desgosto, ela tem fome naquele olhar. Se alguém lhe desse uma oportunidade de voltar no tempo e ser jovem de novo ela iria sem hesitação e viveria a vida como deve ser. No fundo seu olhar me transmite a inveja de ter tido Mateus e então se trancado em casa como uma boa dona de casa, mãe e esposa - até a morte de nosso pai, há três anos. — Você está cada dia mais ousada, Isabel. Veja só, eu ouço para saber exatamente em que enrascada você se meteu. Arqueio a sobrancelha direita e mamãe não segura meu olhar por cinco segundos, desvia rapidamente. Mesmo sendo negra, consigo ver seu rosto ficando vermelho. Deixo que ela finja que ao me ouvir não sente a mesma emoção que eu sinto em minhas aventuras diárias. — Hoje fui ao circo. - a afirmação inocente não a engana - Lembra de Denis? Amigo de Paulo? - ela assente enquanto guardo minha escova. Seguro em seu braço, o engancho no meu e nos guio até meu quarto, para termos privacidade. - Pois bem, o circo que está na Paralela agora é da família dele. Nem sabia que Denis era contorcionista. Fui para ver o espetáculo, fiquei encantada com o número dele. — Não explica a bebedeira. –mamãe, sentada em minha cama, mordendo o lábio inferior e segurando uma mão na outra com força, não é novidade para mim.

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— Ele é realmente um bom cara, mas bebi um pouquinho demais na volta, para tirar o gosto do irmão gêmeo dele da boca. — Você saiu com Denis, mas ficou com o irmão dele? — Eram gêmeos! Como eu ia saber disso? É como um pacote de pegue um, leve dois, então me diverti bastante. Quando o movimento diminuiu nós fomos para a Casa Dos Espelhos. acabo suspirando, o momento gravado na minha mente. - Denis é lindo de morrer, imagine então dois? O irmão de Diego é a cópia perfeita. Olhos castanhos, barba rala, o cabelo dele tem dreads e os dois só se diferenciam nisso e na tatuagem que Diego tem na coxa esquerda, quase perto da virilha. — Isabel! Como você sabe que esse garoto tem tatuagem em um lugar tão íntimo? — Pedi pra ver. - mamãe arregala os olhos, eu sorrio. - Por que a senhora acha que fomos para a Casa Dos Espelhos? Eu precisava ver tudo em muitos ângulos. - mamãe se engasgar com o ar. — Aí que vergonha, você dormiu com os dois Isabel? Nessa tal Casa de… - aceno e ela engole em seco. - Virou uma devassa? — Estou aproveitando. Qual o problema? Mateus uma vez trouxe duas meninas e passou com elas para o quarto na frente da família toda. — O quê você fez nessa casa dos espelhos? - sorrio. Estou em pé, na frente da porta fechada. Chego mais perto de mamãe, sento ao seu lado e mantenho minha voz baixa quando começo a falar. — Descobri que os dois têm um número especial assim que começaram as apresentações no circo. Um quadro lindo, os dois conseguem emparelhar uma garota entre eles. Juntos são como um sanduíche humano, não sei onde começa um e termina o outro. A garota sortuda, também contorcionista, faz parecer tão fácil que eu pedi a Denis para me ensinar. — E ele? - mamãe lembra claramente de Denis, o amigo do meu ex poderia ser um deus africano, ou melhor, um rei, de carne, osso e gostosura. Sua pele quase brilha, de tão escura. O queixo é forte e quadrado e os lábios… Ah que lábios! Grossos, deliciosos e macios em qualquer parte do corpo que tocam. — Meu amigo queria que eu aprendesse. A senhora sabe, eu sou uma aluna aplicada. - baixo mais ainda a voz. - Ele foi tão bom quando me co… Interrompo a narrativa e suspiro propositalmente. — Ele foi bom fazendo o quê, Isabel? Você quer dizer te comen… - ela nem completa, mas o sussurro é urgente, aceno com a mão para que chegue perto. — Conduzindo, mamãe! Que mente poluída! - com os lábios comprimidos, ela levanta furiosa. — Não vai contar? Tudo bem! Mas estava perguntando para seu próprio

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bem. Onde já se viu… Nem sei o que você anda fazendo. — Estou vivendo. — Ter aula de acrobacia é viver? - o desafio em sua voz é petulante e seus olhos pegam fogo. — Não, mas o sexo durante aquelas quatro horas abençoadas é um bom começo. - minha mãe senta, curiosa. — Com dois? E o respeito? - seus olhos desmentem sua pose moralista, posso ver as engrenagens de sua mente mexendo de forma atabalhoada. — Isso é liberdade de verão. — Sem vergonhice! - suas mãos, no entanto, abanam com força e eu alcanço meu celular na cômoda ao lado da cama e abro o Instagram de Denis para que ela veja as fotos. — No verão ninguém é de ninguém, né, minha mãe? — Eu sou de mim mesma! - afirma categoricamente, mas seus olhos estão comendo Denis e quando eu clico no perfil de Diego a velha quase enfarta. — Hoje vou ao cinema. Mas ganhei um ingresso dos garotos. Já disse que não posso ir hoje. - tiro o ingresso da capa do celular e coloco na mão dela e levanto devagar para não despertar suspeitas. - Para o circo? - mamãe estuda o ingresso de forma minuciosa e eu alcanço a porta. — Sim. Eles estavam animados quando eu disse que daria a senhora. Foram muito gentis, mamãe. — Oh! — Vou te dar um conselho, mãe. Não de filha pra mãe, é de mulher pra mulher mesmo. — Qual o conselho, Isabel? - quando ela levanta a cabeça, meu sorriso se espalha em meus lábios. — São dois na verdade. - faço uma pausa dramática - Encontre com os gêmeos hoje, na Casa dos Espelhos… Ah, leve camisinhas extragrandes. mamãe está tremendo, o ingresso chega a cair de suas mãos e eu corro pela minha vida depois de gritar a plenos pulmões o segundo conselho: — E divirta-se!! Hoje ninguém é de ninguém, dona Matilde!

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