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Sérgio Soares
Sérgio Soares Simão Pereira/MG
João Flôres Ribeiro: a lenda do cadáver insepulto
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Ainda cumprindo meu isolamento social por conta da Covid-19, aproveitei para visitar minha tia-avó Minervina, irmã do meio de meu falecido avô, Sebastião. Visitar Tia Vina, é sempre um convite ao saboreio dos melhores quitutes e quitandas da culinária mineira, bem como de uma boa conversa, cheia de causos sempre muito interessantes. Mesa posta, entre um pão de queijo e um bolinho de chuva, entremeados por um café coado no coador de pano, Tia Vina, do alto dos seus 84 anos (mas com memória e disposição de dar inveja em muita cinquentona), veio me atualizando sobre as histórias da família, casamentos desfeitos, heranças perdidas em uma mesa de carteado, e o assunto que ela mais gostava – a política do interior. Nesse dia ela resolveu me contar a história do Coronel João Flôres Ribeiro, antigo Prefeito de Prosperidade, mas que alcançou notoriedade na cidade não pelos seus feitos, mas por sua morte, tendo dado origem assim a “Lenda do Cadáver Insepulto”. Segundo ela, a história começara há muito tempo atrás, pouco depois de Prosperidade ter alcançado sua emancipação, sendo promovida de Arraial à Cidade. A família Flôres Ribeiro já era conhecida àquela época como a “dona” da região, e foi assim que o fazendeiro João Flôres, filho de Joaquim Ozanan Flôres Ribeiro (maior latifundiário daquelas terras), se auto-entitulou Coronel Flôres Ribeiro e foi eleito o primeiro prefeito da recém nascida cidade de Nossa Senhora da Prosperidade, que se tornaria depois, a cidade que conheço. Coronel Flôres reinou por duas décadas à frente do Paço Municipal, tendo sido (segundo o próprio) seu maior feito a construção da Praça de Nossa Senhora do Rosário, notadamente a maior e mais suntuosa da região, com um grande
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coreto ao centro, construído em estilo inglês, orgulho do Prefeito, de onde sempre discursava aos domingos, logo que se findava a missa na Matriz. Como todo bom Coronel, o Prefeito não abria mão dos rapapés costumeiros, nem tampouco aceitava desfeita de espécie alguma, mas ainda assim foi um bom mandatário, trazendo algum desenvolvimento para a cidadela, graças ao seu prestígio político na capital, onde ia pelo menos uma vez ao mês, ter com o Senhor Governador. E foi numa dessas viagens que tudo mudou para João Flôres, e para a pequena cidade. Ao retornar do compromisso mensal na capital, todos notaram que algo de errado acontecera com o Coronel Flôres, ele que antes era cordato com todos (apesar de cerimonioso), começou a agir com rispidez, mesmo com os mais próximos e abastados da cidade, como o Presidente da Câmara. O tom de seus discursos também mudou, e ele passou a falar que existia um complô para tirálo do poder, mas que nem debaixo de bala ele abandonaria sua cadeira de Prefeito. Para complicar as coisas, nesse mesmo período chegou um Juiz novo para a Comarca, rapaz jovem, de extrema cultura, e notada educação e respeito com todos – do serviçal da Comarca ao Senhor Padre e ao Prefeito. E foi justamente por isso que começou a cisma, pois, por conta de grande simpatia o Juiz logo conquistou a cidade, e por isso o Coronel elegeu aquele “juizinho de merda” como seu inimigo público número um, passando a atacá-lo publicamente, dizendo que ele havia sido enviado para tomar o seu lugar, mas que isso só aconteceria passando por cima de seu cadáver. Ocorre que, como as cismas do Prefeito começaram a ficar recorrentes demais, e as eleições municipais se aproximavam, os vereadores da cidade, preocupados com o futuro de Prosperidade (já que o Prefeito demonstrava não andar bem das ideias), convenceram ainda que há muito custo e esforço, o Juiz a concorrer no pleito contra a família Flôres. Não demorou muito para que a novidade se espalhasse pelas ruas e vielas, e antes que o Coronel pudesse dar conta da situação, o Juiz já havia sido eleito o novo Prefeito daquela localidade.
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Depois de duas décadas de poder, a família Flôres Ribeiro finalmente perdia sua força política, e o baque da perda de sua cadeira fora demais para o Coronel que, sucumbindo a um delírio paranoico, tomou posse do Coreto da Praça, transformando-o em seu gabinete, com direito a mesa e cadeira (de espaldar alto), exatamente igual à que ocupava no Paço do município. Dali diariamente cumpria seu expediente despachando com os loucos e bebuns que frequentavam a Praça, isso quando não se punha a discursar em alto e bom som. Até que um dia, quando a cidade acordou, encontrou o Coronel João Flôres Ribeiro sentado em sua cadeira já sem vida. Suas exéquias foram similares às de um Chefe de Estado, tendo comparecido as mais ilustres personalidades da região, de fazendeiros a políticos, até o Governador fez questão de se despedir do ilustre amigo da lide política. Passado o funeral, o que parecia resolvido, de nada estava. Na manhã seguinte ao sepultamento, quando o encarregado da limpeza chegou ao Cemitério Municipal se surpreendeu com uma novidade assustadora – a porta do jazigo da família Flôres Ribeiro estava aberta e lá dentro encontrava-se apenas a urna funerária exposta, sem o corpo do falecido Coronel. A história correu feito rastilho de pólvora na cidade, e para lá acorreram o Prefeito, o Delegado e todos os Vereadores da Câmara. Apesar de todos os esforços, o corpo nunca mais fora encontrado e as autoridades registraram o caso como subtração de féritro, dando a ocorrência por encerrada. O que não se encerrou foi o assombro que passou a acometer a cidade, pois contavam que sempre no dia 27 de cada mês (dia da morte do Prefeito), às duas horas da manhã, era possível ouvir a voz do Coronel a discursar do Coreto, bradando com a empáfia que lhe era comum em vida, que ninguém ia lhe derrotar, nem tampouco tirá-lo da sua cadeira no Paço Municipal. A história ficou conhecida na região como a “Lenda do Cadáver Insepulto”. Ainda de boca aberta, enquanto engolia um pedaço de bolo de laranja, perguntei a Tia Vina se alguém sabia o que teria levado o Prefeito Coronel a perder a sanidade daquela forma. Me disse então a
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sabichona Tia que, segundo contavam, em sua última viagem à Capital o Coronel Flôres havia sido picado por um inseto, e que ficara até internado por conta disso. O inseto em questão era uma Môsca, uma tal Môsca Azul, cuja picada devastadora tinha como efeito a perda do senso de realidade, de princípios e de valores, com a exacerbação da ganância, da ambição e do apego ao poder, podendo levar a delírios, alucinações e, nos casos mais graves, até mesmo à morte. Depois de ouvir aquele relato fantástico (e já de barriga cheia), me despedi da doce e querida Tia Minervina e tomei o rumo de casa, não sem antes dar uma paradinha em frente ao Coreto da Praça para espiar, e ver se encontrava por ali o Coronel Flôres Ribeiro.
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