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Renato Bruno
Renato Bruno São Gonçalo/RJ
Acerto de contas
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Quando Ricardo recebeu a notícia, ele tinha acabado de sair do banho e estava deitado pelado na cama. Até então, tudo tinha saído conforme ele queria e o cheiro de casa limpa lhe dava um certo orgulho, naquele momento. Estava, finalmente, morando sozinho, estava empregado e, naquele mês, não estava devendo ao banco, no cheque especial. Não era pouca coisa para ele. Tinha até comprado um aparelho de arcondicionado – de segunda mão, é verdade, mas ele estava ali, funcionando naquele quarto e isso era o bastante.
Por isso, quando o telefone tocou, sua alma estava leve. Não havia nada que ele temesse frente ao mundo. Tanto foi assim que Ricardo se deixou ficar deitado na cama, enquanto o telefone tocava, tocava, tocava... Mas, depois de um certo tempo, percebendo uma certa insistência naquela ligação, ele levantou e pegou o aparelho, que estava no chão, carregando a bateria. Era a irmã e o silêncio que seguiu, naquele quarto e sala, em Duque de Caxias, logo após ele dizer “pronto”, mostrou a gravidade da situação. – O médico já passou aí? – Já. Falta agora o psiquiatra... – Eu vou arrumar umas coisas por aqui, colocar algo de comer na mochila e vou passar aí. – ...
– Beijo. Fica com Deus. Isso vai passar. Pode ter certeza. Isso vai passar... – Desculpa. Eu não devia ter ligado... – Deixa de ser besta... Você é minha irmã. Ela é minha sobrinha. À tarde, eu devo estar chegando por aí...
A irmã de Ricardo sempre dera trabalho. A cidade onde moravam era pequena e ela, desde nova, andava no meio da molecada, rindo e tirando sarro com os meninos mais inocentes da turma do irmão. Com os malandros maiores que moravam na mesma rua, ela evitava contato, sem, no entanto, deixar de provocá-los também, fazendo insinuações e poses “distraídas”. O problema é que, mesmo ela rindo, aquelas palavras sujas, ditas por aqueles marmanjões à distância, no fundo, a feriam e a magoavam, pois faziam com que ela, depois, se desse conta do moto continuo que era a sua vida. À noite, todas aquelas obscenidades retornavam através dos seus sonhos e a oprimiam, fazendo com que ela se sentisse suja e lembrasse o que queria e precisava esquecer, para, enfim, na manhã seguinte, poder acordar e viver mais um dia.
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Ricardo, bem mais novo do que a irmã, reproduzia naquela época a raiva e o ciúme que ele mesmo testemunhava nas palavras do pai e, por isso, bancava o pirralho chato atrás de Suzana. Se os colegas, na rua, falavam alguma coisa, Ricardo logo respondia com um xingamento e não havia quem o segurasse, se a rima fosse feita: “Hey! Suzana, eu quero a sua xana! Hey! Suzana, eu quero a sua xana!” Não foi uma, nem duas vezes, que ele havia voltado para casa machucado, depois de uma briga por causa da “honra”. Aliás, para ele, tudo parecia valer a pena, se esse tudo, no final, fosse recompensado com a aprovação do pai.
A questão é que, com o passar dos anos, ele enfim entendeu o desajuste da sua própria família e, depois de ter passado tanto tempo enxergando o pai como um herói, conseguiu se perdoar, aprendeu a ter compaixão – mas, para isso, teve que sofrer, e muito. E qual filho não teria sofrido no seu lugar? Seu calvário começou aos 12 anos, logo depois do sumiço da irmã. Naquela época, ainda moravam todos em Ressaquinha, uma cidade minúscula de Minas Gerais, entre Conselheiro Lafaiete e Barbacena. A casa onde a família morava não era grande, mas, como todas as casas da região, tinha um quintal, um cachorro para brincar e um pasto, nos fundos, onde ele e a molecada atiravam pedras em passarinhos e caçavam ovos de galinha, para cozinharem no mato, depois das brincadeiras.
Certo dia, depois de ter matado aula, Ricardo acabou caindo numa poça de lama e as costas da camisa branca do uniforme ficou toda manchada. Um verdadeiro vexame! Foi assim que, imaginando que pudesse lavar a roupa escondido, Ricardo voltou para casa mais cedo, vindo, inclusive, pelo pasto que ficava separado do quintal apenas por uma cerca de arame farpado. No entanto, chegando na varanda, onde ficava o tanque, ele viu através da janela da cozinha, aquele mesmo pai, em pé, fazendo sexo com uma menina que ele, pai de Suzana e de Ricardo, esposo de Ana, colocara dentro de casa, “para ajudar a mãe na arrumação”. Nesse dia, Ricardo, andando em direção à frente da casa, pelo lado de fora, ficou tão atordoado com aquilo que só tomou pé do que tinha visto, depois que encontrou a mãe sentada na porta da frente, chorando, com uma sacola de compras ao lado. Daí tudo lhe veio como um raio: o sumiço da irmã, a agressividade do pai, os silêncios da mãe e a tal garota, vinda não se sabe de onde. E o que mais o chocava era não ter explodido em fúria, era não ter reagido, não ter sentido nada daquilo que já tivesse sentido antes.
Vendo-o, assim, como um cachorro atropelado rodando em círculos no meio da estrada, a mãe de Ricardo o puxou e o comprimiu com toda a sua força, num abraço. Foi quando Ricardo, enfim, chorou. Um choro de vergonha: por tudo aquilo
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que já havia pensado, alguma vez, a respeito da mãe e da irmã; por tudo aquilo que já havia feito, imitando o pai; por tudo aquilo que ele, tão esperto, não havia visto.
Contudo, quando aquela mãe, enxugando as lágrimas, porque entendera que aquilo precisava ter um fim, mandou que Ricardo fosse chamar Dona Mila, ela, sem saber, havia selado o destino dos dois irmãos.
Ricardo e Dona Mila, quando voltaram, tomaram ciência de que havia acontecido uma desgraça. Dona Mila criou Ricardo e Ricardo criou uma forma de conviver com a tristeza daquela história. A culpa, por muito tempo, foi uma pedra no sapato, dentro da vida dele. Ora o deixava explosivo; ora inseguro e triste, mas Dona Mila o amou e a família dela também. Isso, por sua vez, cicatrizou as feridas do menino e fez dele um homem.
Como o mundo dá voltas, Ricardo e a irmã se encontraram novamente, bem mais tarde. Os dois estavam mudados e isso ajudou na aproximação. Ambos choraram muito, lembrando o que viveram; e ambos se perdoaram por tudo o que fizeram e também por tudo o que deixaram de fazer. Ela, já com 32 anos, tinha dois filhos: uma menina, de catorze, do primeiro “casamento”; e um menino, de dois, do atual esposo, que, por sinal, era muito bom para ela. Fernando era mais velho, frequentava a igreja e trabalhava. Ricardo, então, com vinte e cinco, não tinha mulher nem filhos e viu, na família da irmã, uma forma não só de recompor uma origem, mas de se redimir com o próprio passado. Além disso, Fernando e ele se davam muito bem. O problema era a menina e o antigo marido.
A sobrinha era o pavor da irmã de Ricardo, pois o comportamento começava a lembrar o dela, quando Suzana era jovem; e o “ex” era um completo vagabundo desocupado, metido com drogas, que volta e meia aparecia na vida da irmã, não só desacatando Fernando, mas também estimulando a rebeldia da filha. Ricardo, então, fazia o que dava, mas, hoje, quando a irmã ligou contando que a filha tentara se matar, tomando duas cartelas de comprimidos, chegou à conclusão de que aquilo precisava ter um fim e não seria a polícia que iria resolver. Por isso, depois de olhar os cômodos limpos daquela casa simples que tanto trabalho lhe dera para alugar, enfiou um revólver na cintura e partiu para a rodoviária, sem intenção de voltar, senão para casa da mãe, de onde não deveria ter saído naquele dia desgraçado.