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Helena Schiavoni Sylvestre

Helena Schiavoni Sylvestre Americana/SP

O pedido de aniversário

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Havia acordado com a cabeça explodindo. Mal conseguia abrir os olhos devido à claridade do dia entrando pela fresta da janela do quarto. Sequer despertara por completo e já estava arrependido pelas quinze doses de tequila tomadas na noite anterior. Fizera aniversário e quis comemorar com tudo o que tinha direito. Mas não imaginou que fosse acordar no dia seguinte sentindo o corpo todo rígido e pesando uma tonelada. Tentou mexer-se na cama. Percebeu-a pequena para seu tamanho. Estranhou. Passados alguns minutos, com os olhos já adaptados à luz do Sol, reparou na sua aparência recém-adquirida: meia dúzia de longuíssimas pernas e uma rígida carapaça. Horrorizado, levantou-se de supetão e percebeu que não apenas sua cama ficara pequena, mas todo o seu quarto. Com alguma dificuldade, olhouse no espelho do armário e encontrou outros sinais da sua monstruosidade. Num impulso, jogou o objeto na parede, com a esperança de que os vidros estilhaçados o fizessem voltar à sua forma anterior. Passado o ímpeto de raiva, parou para pensar sobre o que poderia tê-lo levado a acordar sob aqueles moldes. Lembrou-se do bolo. Perguntou a si mesmo o que acontecera com o pedido que havia feito na noite anterior ao cortar seu bolo de aniversário. Tinha certeza de ter fechado bem os olhos e invocado com muita fé. Queria se transformar em borboleta. Uma bela borboleta de asas azuis, para pousar de flor em flor e poder tocar suas pétalas sensíveis com as minúsculas perninhas. Agora estava ali, metamorfoseado na forma de um inseto asqueroso. Tinha certeza que o problema estava na espátula de bolo. No ano passado, também foi o caos. Pediu para ganhar a habilidade de ficar invisível, e acabou sumindo do mapa. Foi parar em Fiji, um país completamente desconhecido localizado no meio do Pacífico Sul. Com seu novo corpo, de tamanho descomunal, arrastou-se até a cozinha. A primeira pessoa que o encontrou metamorfoseado foi sua mãe. Olhou-o de cima a baixo antes de soltar um rápido sermão. — Felipe, Felipe... De novo essa história? Da próxima vez eu mesma vou cortar esse bendito bolo. E agora, o que te dou pra comer no café? Pão com manteiga ou meia dúzia de

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folhas verdes? – Embora sua face expressasse desaprovação, por dentro ela ria com o próprio sarcasmo. A verdade é que o rapaz estava sem a menor vontade de tocar numa refeição. Embora seu estômago roncasse, sentia que, se ousasse colocar qualquer tipo de alimento na boca, regurgitaria de imediato. Seu mal-estar já não se dava por conta das bebidas da noite anterior, mas pelo fato de ter se transmutado em uma aberração. Era início do fim de semana, e como borboleta, havia feito infinitos planos. Visitar o jardim de sua avó estava na lista. Nas redondezas, ele não conhecia outro lugar com uma variedade de flores tão grande. Ali, iria se perder no tempo procurando encontrar os pólens mais vistosos e vigorosos para transportar às outras plantas do terreno tão bem cultivado pelas mãos daquela senhora. Mas naquela roupagem assustadora, seu único objetivo era permanecer enfurnado em casa, sem ousar colocar sequer uma de suas pernas horrendas porta afora. Trancou-se no quarto e ali permaneceu. No dia seguinte, preocupado com a condição do filho, o pai de Felipe resolveu bater à sua porta. — Filho, sou eu. Pode abrir, por gentileza? — Não quero, pai. Me desculpe. — Você está trancado desde ontem. Sabe que amanhã é dia de trabalhar, não é? — Sei. Mas não vou. — Qual é seu problema, cara? Fala comigo. Felipe hesitou, mas resolveu abrir. — Este é meu problema. – apontou o próprio corpo com as longas pernas para o pai. — É, sua mãe me contou. Foi o bolo, não é? Eu disse pra ela se livrar daquela droga de espátula. — Agora não vou por os pés pra fora de casa nunca mais. — Felipe, não pode permanecer trancado em casa com medo do que os outros vão achar de sua aparência. — Posso, sim! — Filho, escuta só. Sei que não é tão simples assim, mas deixar de fazer o que você deseja por conta do que os outros vão achar, é uma espécie de suicídio em vida, entende? — Não é tão fácil, pai. Agora eu sou nojento, asqueroso. Olha só pra isso! Quem vai querer ficar perto de um monstro? — Ué, eu ainda estou aqui, não estou? Felipe esboçou um sorriso, apesar das lágrimas que vertiam até as bochechas. O pai do rapaz deu-lhe, então, um abraço desajeitado. No dia seguinte, Felipe acordou e, sem mesmo abrir os olhos pela manhã, pensou mil vezes antes de tomar a decisão de levantar-se da cama. E o fez com muito custo. Seguiu o conselho do pai e partiu

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com seus produtos pelas ruas da cidade. Felipe fazia vendas de porta em porta. Como de expectativa do rapaz, era impossível contar nas duas mãos o número de pessoas que o olhavam com desgosto. Outros ainda, com uma curiosidade bastante peculiar. O fato é que ninguém olhava Felipe com naturalidade. Estava absolutamente certo que, na condição de borboleta, arrancaria olhares de admiração e respeito nas ruas. Afinal, Felipe tinha consciência de que além de carregar uma beleza incomparável nas asas, esse inseto traz consigo a representação popular de felicidade e boas energias. Sabia que ele, por outro lado, na condição em que se encontrava, carregava o fardo de ser abominado pela humanidade. Entretanto, por mera coincidência, ou não, desde o dia em que saiu às ruas metamorfoseado, o vendedor passou a fechar muito mais vendas do que antes. Questionou-se se as pessoas compravam dele por medo do que sua condição como inseto asqueroso poderia lhes causar, ou ainda se estavam querendo se livrar daquele ser abominável o quanto antes. O fato é que, afinal, estava vendo vantagem em se encontrar naquele estado. Com as vendas em ascensão, viu uma oportunidade de finalmente ajudar os pais, que mal conseguiam manter a casa com seus salários miseráveis. Felipe já nem se importava mais com os olhares curiosos ou mesmo desgostosos. Estava conseguindo contribuir com as despesas e até mesmo dar uma vida mais digna aos pais. — Pai, preciso lhe dizer que sou muito grato ao senhor. — Grato pelo que, filho? — Se o senhor não tivesse me incentivado a sair da toca aquele dia, nós não estaríamos tão bem hoje. — Ah, sim... – disse o pai de Felipe meio cabisbaixo. — Ué, o que foi? Aconteceu algo? O pai suspirou fundo. — Preciso te contar uma coisa. Eu já devia ter te contado isso, mas nunca tive coragem. — O que foi, pai? O senhor está me assuntando! — Sabe aquele seu bolo de aniversário? — Sei. — Você não foi a única pessoa que fez pedido aquele dia. — Eu me lembro. Outras pessoas se juntaram a mim na hora de cortar o bolo. Inclusive você foi uma delas. — Pois é, filho. — E o que tem isso? — Então... Não foi exatamente seu pedido que deu errado. Foi o meu que deu certo. Felipe olhou para o pai com aquele par de olhinhos arregalados. Finalmente compreendera a razão de sua monstruosidade.

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