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Cleidirene Rosa Machado

Cleidirene Rosa Machado Catalão/GO

Somos Todos Selvagens!

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Eu era uma criança ainda. Frequentava a escola todos os dias. Minha professora de ensino fundamental era bastante rígida com os assuntos docentes, porém, tirando isso, ela era uma pessoa doce e que sempre ia em defesa daqueles que necessitassem. E eu sempre tive meus momentos de necessidade.

Quando eu chegava em casa, minha avó vinha abrir o portão e eu ia passando para dentro, sempre com muito medo.

Cães enormes e ferozes estavam ali, eles rosnavam alto, salivavam com raiva quando me viam e parece que sentiam o meu medo vindo de longe. Eu sempre imaginava que eles iriam arrebentar as correntes e me atacar com força e sem nenhum remorso.

Todos os dias eram assim. Aqueles animais pareciam nunca se acostumar com meu cheiro. Com meu olhar e com minha carne magra. Eles nunca me aceitariam como amiga. Eu só queria passar a mão na cabeça deles, afagar as orelhas, deitar eles no chão de barriga para cima para mostrar que eu poderia acalentar e até abraçar aqueles cães furiosos como se fossem bons cachorros.

Eu nunca desanimei de meus dias e minha avó sempre pareceu me incentivar a correr o risco, porque era um risco seguro. Era eu, os cachorros e suas fortes correntes.

Havia dias na escola que nós alunos, todos nós, entravamos no ônibus da prefeitura, esses eram dias de fazer visitas a lugares diferentes e as vezes, a povos diferentes. Diferentes de mim? Será mesmo que isso era verdade?

Eu subia os degraus daqueles ônibus e me sentava em um dos bancos junto ao meio de tudo, nem na frente, nem atrás, mas, ao meio. Eu praticamente não saia de casa, sempre ali olhando para os cães ou para os outros animais que estavam junto a mim. Cavalos, coelhos, porcos, pássaros, etc... Me lembro até mesmo de um filhote de onça com os olhos lacrimejando friamente e olhando pra mim. Era a minha casa, meu lar. Então quando a escola dizia que iriamos fazer um passeio eu ficava eufórica.

Naquela tarde, nós iriamos conhecer um lugar especial, pessoas especiais. O ônibus começou a andar. Na hora, eu imaginei que fosse um lugar longe dali, mas, hoje, depois de muitos anos, descobri que era um lugar bem perto do Colégio Estadual

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Anice Cecílio , do bairro Santa Terezinha.

Chegamos a uma colônia indígena. Na época eu não sabia onde eu estava. Hoje descobri que era próximo a Mitsubishi de Catalão. Concessionaria de veículos?

Um lugar com currais, pequenas casinhas, muitas árvores, miquinhos e frutas.

Em minha memória, a grande maioria daqueles que estavam ali, eram rapazes e crianças do sexo masculino. Todos sem camisa, usando um short e um par de chinelas.

Eles falavam a nossa língua portuguesa e foram muito educados ao nos receberem. Eu não me lembro sobre o que conversamos, mas, deu para notar que aquela colônia indígena... aquele povo que todos diziam ser selvagens... na verdade... eles e o lugar, pareciam bem menos perigosos que a minha própria casa. Ficamos ali, na colônia, com todas as novidades do lugar. O tempo passou rápido. Ao voltarmos p a escola, a conversa entre alunos e a professora, mostrou que algo havia mudado, pelo menos em mim, talvez a minha maneira de ver o mundo.

No outro dia, uma surpresa. Uma das coordenadoras adentrou a sala para um comunicado. Ela trouxe consigo 5 pessoas, quatro deles eram crianças maiores que todos da nossa turma. Eles eram diferentes, não apenas em idade, algo na aparência, na maneira de falar, de olhar... então a quinta pessoa também se mostrou. Ele era um índio, um garoto que também era bem maior que todos nós, mas, tinha modos educados. Ele estava vestido com roupas normais, usava uma calça jeans, camiseta e tênis. O cabelo cortado mais ou menos como os índios nativos... de um liso um pouco arrepiado em cima. Falava muito bem o português, sua pele era mesmo de cor vermelha, olhos um pouco puxados para o lado e uma interrogação que iria continuar por alguns dias.

A minha reação foi dizer “oi”, eu faria amizade com os novos colegas, eles eram diferentes, e por isso, iguais a mim. Eu já era amiga de um japonês, também de duas crianças homossexuais, de uma gordinha, e percebia que eu própria era a garota que vivia em um mundo selvagem totalmente distinto de tudo ao meu redor.

Aos olhos de outros, talvez as coisas não fossem tão normais assim, mas, no meu futuro, depois de longos anos, fui perceber que a vida é assim mesmo, que podemos optar por ser feliz, por aceitar o outro e acima de tudo, aceitar a si mesmo

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