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Samira Martins Marana

Samira Martins Marana São Paulo/SP

É menina!

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Eu descobri aos oito anos de idade que eu era uma menina. Até então eu era apenas eu: uma criança como as outras. Mas uma menina, com todo aquele conjunto de coisas que se esperam de uma menina, foi aos oito anos. Ainda que tenha sido aos cinco anos que pedi para minha mãe me levar para furar as orelhas porque queria colocar brincos - obrigada, mãe, por não furar as minhas orelhas de bebê, violando meu corpinho de bebê recém nascido, sem o meu consentimento - foi aos oito anos de idade que descobri, na escola, que eu era uma menina, e portanto, não podia fazer todas as coisas, porque afinal meninas não podem fazer todas as coisas, como por exemplo, sentar de costas para conversar com minha amiga Talita, que sentava na carteira de trás. O grande delito que eu cometi por ser uma menina foi o de afastar os joelhos com o encosto da cadeira entre as minhas pernas, apoiando meus braços como se fosse o parapeito de uma janela, para conversar com minha vizinha. Infração gravíssima. A professora Catarina, uma senhora de família japonesa, cabelos curtos e avermelhados, personalidade discreta e afetuosidade comedida, quase invisível, precisou acionar meus pais, com urgência. “Senhores pais ou responsáveis, Favor comparecer a escola no dia tal, na hora tal, para conversarmos sobre sua filha. Atenciosamente Professora Catarina “ Conforme solicitado, lá estava meu pai no dia e horário marcados. Imagino ele se questionando, qual seria a grande questão na escola de uma menina de oito anos na escola para que ele fosse chamado para uma conversa particular com a professora da escola. Afinal, não se espera das meninas questões problemáticas na escola. —Sabe o que é? Disse ela sorrindo, com a doçura apropriada para uma professora da segunda série: —A sua filha se senta de pernas abertas... Meu pai, aos quarenta e oito anos de idade foi solicitado na escola porque a sua filha de oito ano de idade se sentava de costas para a lousa, com as pernas abertas, de-fren-te-pa-rao-en-cos-to-da-ca-dei-ra para conversar com a amiga da carteira de trás. … … … E eu não sei mais o que fazer.

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Acho que meu pai também nunca soube o que fazer. Acho que minha mãe preferiu ignorar o ocorrido. Eu também não sei o que fazer. Estou travada na gravidade do comportamento e postura da criança de oito anos. E por isso não consigo dar continuidade na história. Talvez eu passe a tarde em um canto de castigo no meu quarto sem televisão e sem suco para refletir sobre o acontecimento. Quem sabe depois eu volte e consiga finalizar este texto, baseado em fatos surreais. Naquele dia, aos oito anos de idade, eu descobri que ainda não tinha nascido. Mas havia me tornado.

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