Volume 6, nº 34 – Jul./Ago. de 2022. ISSN 2595-363X SNIIC: AG-67335 Jacareí – SP - Brasil Expediente: Publicação: Bimestral Idioma: Português Distribuição: Gratuita online em pdf Conselho Editorial: Ana Rosenrot, Julio Cesar Martins e Alefy Santana Editora-chefe: Ana Rosenrot Diagramação: Ana Rosenrot – Alefy Santana Suporte Corporativo: Julio Cesar Martins – Alefy Santana
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Olá, amigos(as) autores(as) e leitores(as), é com muita alegria, que trago para vocês a 34ª edição da Revista LiteraLivre. Novamente, reunimos textos e artes de autores(as) e artistas de todos os lugares do mundo, neste espaço tão nosso. Por aqui, temos o melhor do entretenimento e cultura numa deliciosa reunião de contistas, poetas, cronistas, desenhistas, pintores e fotógrafos. Temos também, mais uma edição da Revista Ikebana, o novo Concurso promovido pela Revista SerEsta e uma dica imperdível para os autores. Quero agradecer aos autores participantes e aos nossos queridos leitores, que acreditam na importância das palavras em suas vidas! Vamos mudar o mundo através das palavras!!
Esta edição é dedicada aos queridos(as) escritores(as)! Parabéns pelo dia Nacional do Escritor!
Dicas Um grande desafio para os autores é evitar a repetição de palavras, pensando nisso, trazemos a dica de uma poderosa ferramenta: o “Dicionário de Sinônimos Online”. O site é gratuito e possui mais de 30 mil sinônimos em português. Diversifique seus textos e melhore seu vocabulário!
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Nossos parabéns aos amigos(as) que carregam consigo o dom da escrita!!
Neste Número: Fantasia Visual............................................................................................6
Roberto Schima...............................................................................................................6
Haikai Engraçadinho....................................................................................7
Jorginho da Hora.............................................................................................................7
Artista do Mês.............................................................................................8
Amy Winehouse...............................................................................................................8
Moça tocando harpa(pintura).......................................................................9
Cristiane Ventre Porcini...............................................................................................9
Grisalhos (HQ)...........................................................................................10
Keli Vasconcelos...........................................................................................................10
Alan Rubens..............................................................................................11 Alberto Arecchi.........................................................................................13 Aline Bischoff............................................................................................16 Aline Lampert............................................................................................17 Amélia Luz................................................................................................18 Ariel Von Ocker.........................................................................................22 Benedita Azevedo......................................................................................24 Benjamim Franco.......................................................................................25 Bere Ramos...............................................................................................28 Beto Filho..................................................................................................29 Carlos Jorge Azevedo................................................................................31 Charles André...........................................................................................32 Charles Burck............................................................................................35 Charles Luciano.........................................................................................36 Clarice de Assis Rosa.................................................................................37 Cleidirene Rosa Machado..........................................................................39 Daniel Cardoso Alves................................................................................40 David Leite................................................................................................42 Dorilda Almeida........................................................................................46 Edgar Borges.............................................................................................47 Edna das Dores de Oliveira Coimbra..........................................................49 Edweine Loureiro.......................................................................................50 Elcio Antonio Pizani...................................................................................51 Elidiomar Ribeiro.......................................................................................54 Eva Irene Corrêa Martins...........................................................................55
Fernando Manuel Bunga............................................................................56 Gabriel Alencar..........................................................................................57 Gabriel Oliveira Monteiro...........................................................................59 Gabriela Garcia de Carvalho Laguna..........................................................60 Gedeane Costa..........................................................................................61 Gislene da Silva Oliveira............................................................................62 Guilherme Hernandez Filho.......................................................................63 Hélio Guedes.............................................................................................64 Ilana Sodré................................................................................................65 Ilmar Ribeiro da Silva.................................................................................67 Iraci Marin.................................................................................................68 Iremar Leal da Silva...................................................................................70 Ivo Aparecido Franco.................................................................................71 Ivy Gobeti..................................................................................................72 Fotos.........................................................................................................73
Jamison Paixão..............................................................................................................73
JAX............................................................................................................75 Jeferson Ilha..............................................................................................78 João Vitor Tóffoli.......................................................................................79 Joaquim Cesário de Mello..........................................................................81 Joedyr Bellas..............................................................................................82 José M. da Silva.........................................................................................84 José Manuel Neves....................................................................................89 Júlia da Silva Colombo...............................................................................90 Jussara Nunes...........................................................................................91 Keli Vasconcelos........................................................................................92 L. S. Danielly Bass......................................................................................94 Leandro Emanuel Pereira...........................................................................96 Lira Vargas................................................................................................97 Lizédar Baptista.........................................................................................99
Lucca Lopes Dias Santos..........................................................................101 Luís Amorim............................................................................................102 Luís Fernando Gurgel..............................................................................106
Marcel Luiz..............................................................................................110 Marcelo Foohs.........................................................................................111 Marcos Rocha..........................................................................................112 Maria Inácia.............................................................................................113 Maria Luiza Vieira Silva............................................................................114 Maria Pia Monda......................................................................................116 Mario Gayer do Amaral............................................................................118 Mario Loff...............................................................................................121 Massilon Silva..........................................................................................122 May Cass.................................................................................................124 Olhar ensolarado e plúmbeo(Foto)...........................................................127
May Cass........................................................................................................................127
Mestre Tinga das Gerais..........................................................................128 Micéia Lima.............................................................................................131 Nanna Fazzio..........................................................................................133 Nazareth Ferrari......................................................................................134 Nercy Grabellos.......................................................................................135 Nilde Serejo.............................................................................................136 Nilza Amaral...........................................................................................137 Ornélia Goecking Otoni...........................................................................139 Ovidiu-Marius Bocsa...............................................................................140 Paulo Bunga............................................................................................141 Paulo Cezar Tórtora................................................................................143 Paulo Luís Ferreira...................................................................................144 Paulo Roberto de Oliveira Caruso............................................................148 Plinio Giannasi........................................................................................149 Rafena Lima............................................................................................152 Regiane Silva...........................................................................................153 Florescer(aquarela)..................................................................................154
Regina Alonso.............................................................................................................154
Renata Lopes de Oliveira.........................................................................155 Ricardo Ryo Goto.....................................................................................157 Roberto Schima.......................................................................................159 RodrigoSBA.............................................................................................165
Rommel Werneck....................................................................................166 Roque Aloisio Weschenfelder...................................................................167 Rosangela Maluf......................................................................................169 Roselena de Fátima Nunes Fagundes.......................................................171 Ruan Vieira..............................................................................................172 Samira Martins Marana............................................................................173 Sandra Modesto......................................................................................175 Schleiden Nunes Pimenta........................................................................177 Sérgio Soares..........................................................................................179 Shirlei Pinheiro........................................................................................182 Sigridi Borges..........................................................................................183 Sinval Farias............................................................................................184 Sonia Re Rocha Rodrigues.......................................................................185 Tauã Lima Verdan Rangel........................................................................189 Tauby Coutinho.......................................................................................190 Vagner Santos Pereira.............................................................................193 Valéria Vanda Xavier Nunes.....................................................................200 Vanderlei Kroin.......................................................................................202 Vera Raposo............................................................................................203 Vinicius Silva Orlando..............................................................................204 Fotos.......................................................................................................205
Vitor Geovane..............................................................................................................205
Vitor Sergio de Almeida...........................................................................207 Wagner Azevedo Pereira..........................................................................208 Willian Fontana........................................................................................209 Yuki Eiri..................................................................................................214 Fotos.......................................................................................................215
Roberto Schima..........................................................................................................215
Caricaturas..............................................................................................217
Jamison Paixão...........................................................................................................217
Fotos.......................................................................................................220
Wagner Dias Caldeira...............................................................................................220
Concurso Artístico e Literário “A vida e a obra de Mauricio de Sousa”......224 Revista Ikebana 2ª edição........................................................................225
Projeto Cartas para a Vida.......................................................................226 LiteraAmigos...........................................................................................227 Modelo de envio de textos para publicação na revista.............................232
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Fantasia Visual
Roberto Schima Itanhaém/SP
6
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Haikai Engraçadinho
Jorginho da Hora Simões Filho/BA
7
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Artista do Mês Desenho: Márcio Apoca Campo Mourão/PR
Amy Winehouse Cantora e compositora britânica
14/09/1983 – 23/07/2011 (27 anos) https://www.ebiografia.com/amy_winehouse/ https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/angustia-epressoes--no-auge-conturbada-vida-intima-de-amy-winehouse.phtml
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Moça tocando harpa(pintura) Cristiane Ventre Porcini São Paulo/SP
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Grisalhos (HQ) Keli Vasconcelos São Paulo/SP
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Alan Rubens São Luís/MA
Saudosa Quitanda Nos tempos de hoje a quitanda faria muito sucesso ( em alguns lugares ainda existe: alguns municípios , bairros mais humildes,…).A quitanda é um comércio onde tudo ou quase tudo é vendido no varejo e, onde o caderninho do fiado não falta pra anotar as compras pra serem pagas nos fins de semana ou fim do mês. Na quitanda tinha de tudo no varejo, pra ser vendido. Manteiga Real , nas latas grandes onde comprava – se cinquenta centavos do Cruzeiro e era colocada num plástico( ou parecido). Para comprar o óleo de cozinha , levava – se um copo e o comerciante tinha um medidor pra colocar a quantia desejada que era de acordo com o valor da compra. O querosene também tinha o medidor pra colocar na garrafinha, que levávamos, pra usar como combustível das lamparinas( energia nas casas era raro ter). Tinha também cabrestro de japonesa ou sandália (Cariri, Havaiana, ….).Vinagre também tinha, toucinho pra colocar no feijão ou fazer com arroz dentre outras utilidades, camarão seco e com casca ( não tinha ainda ele sem a casca ou, pelo menos, não lembro de ter), pomada com e sem perfume. Enfim eram tantas as opções que passaria muito tempo pra descrever tudo que for lembrando. O que vale ressaltar é a importância da quitanda numa época linda do nosso povo mais humilde e, onde este tipo de comércio foi fundamental na vida de milhões de pessoas. Inclusive, a primeira vez que fui no interior (nasci na capital – São Luís), ainda presenciei meu saudoso avô por parte de pai com sua quitanda, onde quando o freguês não tinha o dinheiro, trocava a mercadoria por coco babaçu, frango, pato e por aí vai… Para
mim,
essas
lembranças
são
valiosas
e
que
contribuíram
para
o
enriquecimento da minha formação como ser humano e que muito me orgulha.
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Supermercado eram poucos e, frequentar era um privilégio que acontecia raramente, onde as pessoas melhores financeiramente, que compravam mais neles ou nos comércios mais abastados e que não vendiam dessa forma mais varejista. Na quitanda, geralmente ao anoitecer, e vindo de seus afazeres, alguns bebiam sua cachaça ou seu conhaque até altas horas numa agradável roda de conversa, com piadas, histórias, risadas…E assim a vida era levada numa felicidade que nas lembranças faz um bem gostoso para a alma.
https://alanrubens.wordpress.com/author/alanrubens/
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Alberto Arecchi Pavia, Itália
O Anjo Da Morte Rosana e Estevão chegaram à aldeia
ressoavam
sinos,
quase
abandonada, na encosta rochosa árida.
distantes.
Ao longo dos séculos, os terremotos
movimento de um pássaro, ou a brisa
arruinaram
da
os
edifícios.
O
último
Talvez
ecos
noite,
tivesse
produzindo
os
o
poucos
habitante havia emigrado em busca de
pedágios
fortuna. As pessoas evitavam a aldeia
tempos antigos. O prédio em frente à
fantasma e faziam o sinal da cruz
igreja parecia intacto. A fachada era
apenas para citá-la.
de pedra, com manchas de gesso.
Subiram em rochas friáveis, entre
Uma
lúgubres,
sido
sacada
lembranças
abaulada
acima
de
da
vassouras e peras espinhosas, sob o sol
entrada. As portas desdobradas das
velado por raras nuvens de calma. No
janelas, sem vidro, revelavam uma
pôr
negligência secular. A porta cedeu
do
sol
flamejante,
sacudiu
os
ombros
um de
arrepio Rosana.
facilmente
quando
empurrá-la.
lugar, a partir do nome misterioso, uma
empoeirado parecia ser a antecâmara
lembrança da época em que os piratas
do
sarracenos se enfureciam ao longo das
curiosidade os impelia a ousar.
costas. Estudiosos argumentaram que significava
"A
alma
dos
do
corredor
tentou
Fantasmas pareciam espreitar naquele
covil
O
Estevão
mistério,
escuro mas
e a
No andar térreo, descobriram um
mortos",
quarto mobiliado, com a cama em
enquanto outros interpretavam o nome:
ordem, que parecia ter acabado de
"O anjo da morte".
ser preparada. Nem uma partícula de
A noite chegou. Os dois jovens
poeira, mas um aroma quente de
tinham mochilas, comida e lanternas
cera e flores. Escolheram passar a
com eles. Do campanário ainda em pé
noite
13
no
quarto,
mas
não
se
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
atreveram a entrar na cama que ficava
levantou de um pulo, agarrou uma
orgulhosamente no meio da sala. Como
cadeira, a primeira coisa que veio à
precaução, trancaram a maçaneta da
mão, e se jogou contra a janela
porta
entreaberta.
com
uma
cadeira.
Logo
a
Em
vão:
não
havia
escuridão da noite foi iluminada pelo
ameaça, nem presença estrangeira. O
disco luminoso da lua cheia. Frondes
eco
agitadas pela brisa. Os ratos rangiam,
repetidamente sobre as rochas ao
chamamentos noturnos de pássaros. Ao
redor. Então a noite ficou silenciosa,
menor sussurro, Rosana saltava. Não
quente e pacífica, como se esperasse
conseguia
com
por um evento. A lua brilhava contra
piratas
o mar iluminado, atraindo olhares
dormir.
desembarques
e
Ela
sonhava
ataques
de
do
grito
da
menina
mouros, armados com cimitarras, contra
prateados,
os pescadores e camponeses pobres.
profundas, nas quais mil fantasmas
Cabeças e mãos cortadas, pingando
podiam aninhar-se. Aos dois jovens
sangue... mulheres, velhos e crianças
pareceu ver uma sombra furtiva, que
massacrados. Fugitivos seguidos, até os
corria para se esconder no abrigo da
montes. Escondidos nos desfiladeiros,
torre do sino, na escuridão mais
eles se defenderam com foices e anzóis,
espessa.
montados em longos mastros, como
Eles
alabardas.
No
conseguiam
mais
dormir, mas continuaram contando os
guerreiro loiro apareceu, com a cabeça
vôos dos morcegos, até as primeiras
descoberta,
luzes clarearem as sombras da noite.
espada
um
não
sombras
jovem
a
sonho,
delineando
ecoou
reta
erguida
contra o céu azul. Um reflexo de dardo e
Um
a lâmina girou, para colher membros,
tingido de rosa. Os raios do sol se
cabeças, vidas de infiéis. Era um jovem
esforçaram para encontrar o caminho
ousado com o rosto de Estevão. Eles o
para iluminar a praça. Os dois saíram
pegaram. Dois tiros de cimitarra. As
na varanda e descobriram que a porta
mãos caíram, enquanto correntes de
da igreja estava aberta... No entanto,
sangue jorravam dos tocos.
lembravam-se
O silêncio
grito e
de
Rosana
acordou
perfurou
Estevão,
que
amanhecer
frio,
que
ligeiramente
estava
bem
o
fechada na noite anterior. Desceram
se
para a praça. Os edifícios que se
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
acendiam, no calor do sol, davam a
estavam
sensação
escuridão.
de
que
o
país
estivesse
se
acostumando Eles
com
a
conseguiram
prestes a se recuperar de um longo
distinguir sete nichos, cobertos por
sono. No chão, gotas de sangue fresco e
estranhos símbolos: uma coruja, uma
pegadas pesadas levavam à igreja.
sereia bicaudada, uma figura barbada
As altas abóbadas de pedra haviam
com duas faces, nem homem nem
caído há muito tempo, derrubadas por
mulher,
um terremoto. O chão estava coberto de
instrumentos
montes de ruínas. Escombros e arbustos
múmias em pé, nos nichos. Deviam
secos desarrumavam o passo. Bem no
ter sido personalidades importantes,
meio da nave, traços de sangue e
talvez os sete reis míticos ou os
pegadas
sábios das origens, mencionados em
iam
perder-se
em
um
afundamento. Percebiam a boca de um túnel.
melhor
Sete
antigas lendas.
aventura? Os dois jovens não tiveram
rato, talvez um morcego? Tinha que
incerteza
a
ser algo - ou alguém - de tamanho
no
muito maior, porque no túnel da
buraco, seguido por Rosana. Uma fileira
entrada se ouviu um barulho de
de degraus íngremes, desgastada pelo
pedras,
tempo, descia escorregadia e estreita na
sombrios. O túnel ficou desmoronado.
densa
Toda possibilidade de retorno estava
elétrica,
Estevão
desceu
escuridão.
e
A
para
misteriosos.
Um farfalhar atrás deles. Um
nenhuma.
convite
personagens,
a
tocha
Qual
outros
ligou
entrou
passagem
subterrânea levou-os a um mosteiro nas proximidades,
agora
acompanhado
de
ruídos
barrada.
quase
Foi só nessa altura que os dois
completamente desmoronado. Os dois
notaram a existência de um oitavo
venceram a vontade de se virar e
nicho, ligeiramente maior do que os
desistir da exploração. Chegaram a uma
outros, ainda vazio, que trazia no alto
grande sala subterrânea, parcialmente
as figuras esculpidas de dois jovens
sobrecarregada com terra. No final do
amantes abraçados, em baixo-relevo.
corredor, o cofre desmoronara. Os olhos
https://www.liutprand.it
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Aline Bischoff Osasco/SP
A Estação da Alma Nas páginas amarelecidas das folhas da vida, Vestidas pelas transições entre as estações, Registra-se a melancolia da breve despedida, Com o viçoso encontro das renovadas emoções. Movidos por despretensioso e sutil abandono, De altivos galhos desprendem-se meus versos, Que tão somente pelo Outono assim os entono, Reverenciando os seus sábios cursos adversos. Diminutas gotas de orvalho cingem as mudanças, Em refrescante troca das suas diáfanas vestes, Permitindo a renovação completa das esperanças, Através da libertação que ao coração trouxestes. Os ventos solícitos sussurram preciosas lições, Carregando consigo tudo o que já não serve mais, Em meio a vigorosa dança das numerosas sucessões E seus frágeis, reconhecíveis e majestosos sinais.
https://www.facebook.com/AlineBischoffArtes
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Aline Lampert Porto Alegre/RS
Provisão
Tinha prestígio e posses, vira seu patrimônio crescer com seus negócios. Tinha a esposa ideal e um filho exemplar, além de ter acolhido os pais em seu lar luxuoso. Tinha amigos em abundância e todos o consideravam a imagem do sucesso. Tinha, também, uma espingarda com cinco munições: reservaria a última para ele.
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Amélia Luz Santo Antônio de Pádua/RJ
Carro de Bois O carro de bois chega alegrando com
a
estridente,
sua
bela
vazando
cantoria. as
Som
—
Vem
Queimado,
Rochedo, vai
Fumaça,
endireita afasta
manhãs
Pintado, vai Tenente, vem Capitão! O
ensolaradas. O candeeiro vai à frente
facão no bornal de brim e a coragem
com a sua vara dialogando com a boiada
para vencer desafios. Em baixo, na
mansa; de calças arregaçadas, chapéu
mesa, a moringa de barro com água
de palha, pés descalços, autoritário e
da mina, o boião de comida, almoço
pequeno, quase menino. Do alto, o
do dia e a rapadura de sobremesa.
carreiro imponente comanda, com a
Um cachorro acompanha fiel ao seu
vara de ferrão e o chocalho de guizo. O
dono.
canivete na cinta, o chicote amarrado no fueiro.
A canga prende o cabeçalho, o boi aceita humilde na sua missão de
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
obedecer. O canzil atravessando a canga
para matar a sede dos visitantes
com
o
inesperados. Olhos negros, tímidos e
pescoço do animal com segurança. O
fugidios. Pouca conversa e muitas
cabeçalho é ligado ao corpo do carro
trocas
cargueiro. Atrelados os bois que puxam,
morena, cabelos trançados, vestida
o carro movimenta-se. A mesa do carro
de
é de madeira maciça para durar sob sol
vermelho,
e chuva e segurar com firmeza a carga
barato.
escolhida.
Tirando o chapéu o carreiro agradece
a
brocha,
vem
para
firmar
Junta de cabeçalho, o tambueiro, junta do meio, junta de guia. Vai boiada!
misteriosas.
chita
floral, Vem
na
descida
a
leve
de
perfume descanso.
“Vem donzela, Donzela bonita
preciso
pintada
é
e segue viagem, cantando:
prende a esteira que leva a carga. é
boca
um
Olha pra mim
freio
donzela
cheirando
A esteira é trançada de bambu o fueiro O
A
Vem pra janela
perigosa, o candeeiro é habilidoso, o
Com laço de fita
carreiro firme a comandar autoritário do
Cheirando a jasmim,”
alto. Pesado de cana-de-açúcar, café em
O carro de bois segue de novo o
grãos,
espigas
douradas
de
milho,
caminho do Encantado na direção da
cachos de arroz, sacas de feijão ou
Boa Esperança, rangendo vagaroso
lenha seca para alimentar o fogão,
pelos vales floridos. O toldo de tecido
cargas diversas segue pela estrada da
rude,
matinha. Quanta utilidade!
resistente
Desce cauteloso morro abaixo, vem de longe, chorando, sob sol escaldante. O carreiro assobia, comandando com a
embora e
remendado,
é
caprichosamente
amarrado, protegendo a carga de algum imprevisto temporal. Esse mesmo carro de bois que
garganta seca. A casa da moça bonita
transporta
na beira da estrada é logo reconhecida.
costume levar as famílias às igrejas
O arvoredo, o pequeno jardim, o pomar,
do arraial para missas, batizados e
a
outras
tulha
e
o
galinheiro.
Imagens
carga
cerimônias
também
religiosas.
moças
para
de
Com
familiares. A boiada para, a moça vem
cuidado
correndo e traz a água fresca na cuia
amarrotarem os vestidos de tafetá ou
19
as
era
não
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
seda viajavam em pé no sacolejo do
tempos
de
carro
Serviam
para
que
também
levava
jovens
guerras
e
conduzir
conflitos. enfermos,
vestidas de noiva com véu e grinalda
como se fosse ambulância, em longas
para
distâncias,
o
altar
casamento.
em
dia
Quantas
festivo
de
sinhazinhas
já
viajaram de carros de bois em dia de Quando
recursos médicos. na minha lembrança. O carro que
capela das fazendas ou nos cruzeiros o
veio de longe, que atravessou o
carro trazia o vigário para o ofício santo
oceano em naus portuguesas e até
e para a benção, após farto almoço na
hoje é respeitado pelo serviço que
sala grande na companhia dos donos da
nos prestou. No interior do Brasil esse
casa e vizinhos mais importantes. Era
tipo de transporte ainda é muito
comum
utilizado nos sertões, indispensável
mulher
em
missa
Lá vem de novo o carro chorando
na
a
tinha
curandeiros,
benzedeiras, farmacêuticos ou raros
casório com pais, damas, testemunhas e convidados.
buscando
locais
mais
atrasados, a dona da casa não se sentar
nas fazendas.
à mesa do marido que chamava de
O treino dos animais arredios é
senhor, ao lado dos convidados. Em
trabalho
penoso
que
exige
muita
muitos casos comia na cozinha como
paciência e muito conhecimento dos
sinal de respeito.
peões para que os bois adestrados
O carro-de-bois conduzia também
fiquem mansos e adequados para o
nos cortejos fúnebres o corpo do finado
uso. Levam muito tempo treinando, a
para Cemitério e Capela de são Vicente
fim
para
colocar
missa
povoado
em
de
corpo
dias
de
presente
no
de
que, as
sem juntas
risco, em
possam parelhas,
sepultamento.
entrando nas estradas e trilhas do
Nesse dia os carreiros besuntavam os
meio rural ou entrando garbosos nas
cocões com bastante graxa para não
pequenas
haver a cantoria do carro em dia de
crianças gostavam de apinhar aos
tristeza.
gritos
Como foi importante o carro-de-bois na
nossa
soldados,
história.
víveres
e
Transportava munições
em
20
cidades. num
No
cadião
as
divertimento
característico, ouvindo a cantadeira em contato com o chumaço a entoar
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
suave e tristonho lamento. E canta
moringa de barro com água fresca, o
alegre o carreiro:
bornal de brim com o boião de
“Para Rochedo, para Queimado,
almoço Por onde passo ainda vejo os
Ajeita Fumaça, endireita Pintado.
restos de muitos carros-de-bois a
Tô com vontade de vê a comadre
apodrecerem
Mas tô com medo, o patrão é
esperando o carreiro, o candeeiro e a
zangado.” Raros amor
à
debaixo
do
arvoredo
boiada em parelhas. As lembranças artesãos, arte,
construí-los, ajudando-nos
carpinteiros,
ainda
sobretudo a
contar
por
ficam, sou menina na janela do sítio,
a
no alto da colina, a esperar a chegada
nordeste,
do carro-de-bois na brisa da tarde
continuam no
essa
história
sob o arvoredo florido. No fundo do
verdadeira do homem do campo, do
chapéu de lebre cajus maduros, no
carro-de-bois e da sua boiada. E o
bornal quitandas da padaria Marino
carreiro amigo além de trazer a pesada
para nosso café da noite. Levado pelo
carga sempre traz consigo um leve
tempo o Sítio do Encantado não
sorriso solto, um assobio alvissareiro, a
existe mais, nem o carreiro, nem o
cantoria de modinhas sertanejas e numa
candeeiro, nem a boiada. Existe a
boa prosa, “causos” de gente pura da
história viva no cheiro da terra que
roça que não acabam mais. Um pito
teima em me trazer uma lágrima de
aceso, uma cachaça no fundo do copo, a
saudade.
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Ariel Von Ocker
A Porta Para Além Da Porta -No mundo- dizia o professor orgulhoso de parafrasear a Hamlet- há mais coisas do que pode conceber o vislumbre da razão humana.Arthur voou longe ao soar dessa ideia. Cogitou infinitudes que tão só a mente de uma criança é capaz de conceber. -Todavia- seguiu o mestre- a razão teima em tentar compreender o caótico mundo que a rodeia.Novos voos. Novos destinos ignotos. E o tombo tão real e concreto de um mundo que era pitoresco e duro, como o asfalto e o cimento aquecidos pelo sol das onze horas. Arthur olhou a rua além da janela da sala de aula. O jardim brilhava verde e florido, como é nas escolas primárias. Além da mureta, a calçada e o asfalto. Carros passavam e o menino não poderia supor para onde iam tantas pessoas em um mundo esmagadoramente grande. -Nesse intento-prosseguia o homemnossa filosofia busca encadear logicamente os fatos de um mundo em desordem...A tudo isso ouvindo...qual
Arthur ia ouvindo, e num sonho onde as
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palavras perdem gradualmente seu som e seu sentido. Em algum lugar, um pintor esfumou as cores de sua tela, apagando, assim, os limites do que era uma coisa e o que era outra. Foi então que o menino viu: oblíqua, desnuda, absurda, indelével, impossível...a porta que se abria não para fora da saleta fria repleta de carteiras, mas ela: uma porta para o infinito. Parecia-lhe loucura, malgrado fosse real. Via ali mesmo o abismo do Universo além da porta branca da escola. Arthur coçou os olhos em descrédito. Voltou a olhar. Além da madeira retangular, haviam hostes inefáveis de estrelas profusamente vagueantes num espaço negro, abissal e infindável. Astros globulares voavam de um canto a outro e ângulos indescritíveis circundavam esferas cuja consistência era imprevisível. A mera visão daquilo era terrivelmente estarrecedora, não porque provocasse propriamente o terror, mas porque ali corria livre e destemido tudo aquilo que nos faz pequenos e insignificantes perante Ele: o Eterno, o Cosmos, o Ilimitado.
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-(...)Um Aleph seria? Uma porta muito mais do que si própria: o Ser que fugia a si mesmo e extravasava para além de tudo o que Ele próprio poderia supor que era. Era o Infinito em todo sua magistral incompreensibilidade. Era tudo o que nunca nem mesmo sonhou o mais louco dos homens em sentir, viver e falar. Não...Arthur soube quando percebeu o que vivia que não era possível expressar a natureza da Coisa. Havia apenas a experiência de vê-la e sentir sua presença abissal. Descrever o que havia além da porta, contudo, era inexoravelmente impossível. Na verdade, se houvesse uma palavra capaz de tocar em algum ponto daquilo que via Arthur sem entender era justamente "impossível". E, não obstante, permanecia ali: o portal aberto para o Além bem diante de seus olhos tão natural e tão evidente quanto o próprio sol do lado de fora e as palavras do professor ao longe... Uma porta para além da porta... Arthur mirou a porta e sentiu ali o terror da vida e de ser humano num Universo inumano. Viu a solidão vagueante de astros tão longínquos quanto o próprio pensar e, de longe, de um ponto ignoto num outro Cosmos, numa outra
dimensão, onde a vida e a morte não são de todo dissociadas, ele percebeu que o olhava. Sim. Olhava ele próprio não de um "onde", mas propriamente de um "quando" ... Os cabelos ruivos, olhos verdes, pele manchada de criança sardenta.... E uma certeza: a infinitude indelével de tudo o que é finito e perecível a refazer-se mais e mais vezes até o enjoo completo da vida e da existência. Ele o viu e o que viu foi a devastação: a intempérie da tempestade... Ora...Arthur, então, com treze anos, sentiu o que só sentem os adultos e não pode definir a nada: um órfão completo da vida e de Deus. Uma enorme solidão do tempo indelével que fazia tudo parecer vão... -até as palavras..Nesse momento, um estalo madeira e a voz do professor: -Acorda, Arthur! A aula já acabou.Levanta a cabeça de cima da carteira e olha a sala de onde saíam os jovens animados para o retorno às suas casas. Ele se arrumou. Guardou os livros na mochila, amarrou o sapato e cruzou a porta que outrora fora um portal para além de algo. Lá fora, o mundo tediosamente o mesmo.
@ariel_von_ocker
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na
ainda
era
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Benedita Azevedo
Haibun
Caminhada matinal Retomo as caminhadas matinais. A manhã está fria, ando a passos firmes, conforme a orientação médica. Sigo a mesma trilha de cinco anos atrás, numa encosta da Serra do Mar. Uma fileira de formigas atravessa a estrada, carregando folhas maiores que elas. Uma bicicleta passa no meio da trilha das trabalhadoras. Paro para observar se alguma foi atingida. Uma tanajura bem gorda segue pelas marcas do pneu com a sua carga. Mudança de hábitos – Refaço o mesmo caminho Agora sozinha.
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Benjamim Franco Taubaté/SP
Estranho retorno Mais uma vez, o assoalho estava molhado.
deixando uma poça d’água em seu lugar. O que eu poderia fazer?
“Quase me afoguei. Se eu não estivesse ali, ela iria...” Seu Silvério, meu vizinho mais próximo, batia seus óculos contra a palma da mão. “Logo, logo, chegaria nas pedras!” Mais encharcada que Silvério, só mesmo Ciara, minha esposa. Além da água salgada, que lhe enchia os sapatos e pesava a colcha cinzenta — seu tesouro de família — Ciara não parava de chorar.
Na água quente da banheira, Ciara brincava. Seu sorriso era como o da juventude, e seu olhar, estranhamente lúcido. Ela brincava com a água, fazendo ondas, batendo palminhas, rindo das próprias estripulias. E eu quase não estava triste.
“Me desculpe”, ela repetia em seu sotaque irlandês carregado, suas mãozinhas enrugadas espremendo a colcha contra o peito. Eu tentava, mais que secar alguma parte de seu corpo, confortá-la. “Querida, está tudo bem”, menti. “Seu André, você me desculpe”, dizia Silvério, tremendo sob uma toalha. “Tu tens que fazer alguma coisa. Se não consegue tomar conta da Dona Ciara, deveria…” “Silvério, já basta”. Abracei Ciara com firmeza, e tapei as suas orelhas, geladas. “Deixa que eu cuido dela”. Silvério afastou-se. “Melhor mesmo… Faça-se o favor. Faça isso por sua esposa”. Agradeci a ele, que se retirou,
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“Por que você fez isso?” Ciara não respondeu: ocupava-se com a água. Ignorava o patinho de borracha, a bolinha multicolorida, e a loucura que tentara cometer. Ela olhava apenas para o ondulado na superfície da banheira. Não sabia mais o que fazer. A doença veio rápido demais, e só o convívio, o amor, e o exercício da santa virtude da paciência, não me deixaram perceber seu avanço. Suas brincadeiras tornaram-se idiotas, seus esquecimentos passaram a ser perigosos — quantos sustos tomamos com o fogão! — e seus banhos de mar, de saudáveis exercícios no raso e no calor, tornaram-se longos, tensos, descabidos: o inverno nunca foi tempo de nadar.
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“André”, disse minha colcha”.
Ciara.
“Eu
quero
“Está secando, querida”. “Quero voltar pro mar”, ela disse. Saí do banheiro: não quis chorar na frente dela. Levantei cedo no dia seguinte. Fazia frio. Ciara dormia, apesar do despertador. Precisaria falar com Silvério antes que ele fosse para a cidade trabalhar. Além de lhe agradecer pelo socorro, precisava conversar com alguém. Como tudo chegou a este ponto? Silvério alternava entre assoar o nariz com um lenço, e aparar seu bigode com uma tesoura. “O senhor terá que fazer uma escolha difícil”, disse ele, como se não fosse óbvio. “Taí a importância de ter filhos. Por exemplo, quando minha tia...” Suspirei. “Agora é tarde”. “E a família dela?” Repeti a ladainha. “Lá na Europa. De onde ela veio. Não se falam. Só sei isso. Há coisas que não me contou enquanto podia.” Olhei nos olhos de Silvério; ele se encolheu, e soprou seco no lenço. “Pense com carinho numa casa de repouso… mandei minha mãe para uma. Não ouço reclamações.” “Não tenho coragem. E não quero que ela fique sozinha.” Silvério tomou o guidão de sua velha bicicleta. “Pois então, vá junto! Ou… mude-se pra longe da água.”
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Quis mandar Silvério às favas — por acaso pensa que é jovem? — mas o cretino tinha alguma razão. “Vou pensar em algo.” “Pense sim.” Silvério guardou o lenço imundo no bolso, e montou na bicicleta. “Cuidarei de sua casa por você, meu chapa”, disse ele, pedalando em direção a cidade. “A praia ficará triste sem vocês”. A praia, minha casa, nossa vida: teria que me decidir logo. Como eu queria, que por um instante apenas, Ciara e eu pudéssemos conversar! Qualquer escolha seria dolorosa: mas faria o que ela quisesse. Se apenas pudesse me entender... Chegando em casa, chequei as janelas — fechadas — e lutei contra o cadeado do portão, a chave seca da porta. Será que me acostumarei a trancar tudo? Numa vizinhança tão parada… E, ao abrir a porta, lá estava ela: Ciara, segurando sua colcha cinzenta, me encarando. “Me desculpe”. Ciara me derrubou. De onde tirou tanta força? Não pude sentir dor, não deu tempo — apesar do barulho que meus ossos fizeram ao bater no assoalho. Levantei-me depressa. “Ciara!” eu gritei. Eu deveria ter trancado o portão ao entrar. Ciara corria, é claro, em direção a praia. Eu não podia perder tempo: não havia Silvério e nem ninguém. Frio demais pra
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turistas, e foi-se o tempo dos pescadores… Só eu poderia impedi-la. A calçada, o mato alto, as pedras, e a areia: nada lhe atrasava o passo. Contava com uma queda, um infarto, qualquer coisa que lhe parasse: mas era o meu peito que doía, por dentro e por fora, e os meus pés que tropeçavam. “Ciara!” E ela não desistia, seguindo em corrida torta, mais rápida do que eu poderia imaginar. Quando pus meus pés na areia, os dela já tocavam a lama fria das ondas. Mais uma vez, gritei seu nome. “Ciara!” E ela se virou para mim. Seu sorriso era como o da juventude, e seu olhar, estranhamente lúcido. “André, adeus”. Ciara envolveu-se na colcha cinzenta — seu tesouro de família — e
correu em direção ao oceano. O cinza da colcha se misturava ao grisalho de seus cabelos, e à espuma das ondas. Passo após passo, saltando sobre as ondas, Ciara adentrava o mar, com rapidez além da idade. Não pude segui-la: Meu joelho cedeu. Caí de bruços na areia. Todas as minhas dores se manifestaram: nas costelas, pulmões, no meu coração. Ergui minha cabeça e olhei para o mar, em busca de Ciara. O mormaço prateado do céu me ardia os olhos: a maresia e a areia ofuscava meus óculos. “Ciara”, gritei. De longe, nas pedras, havia uma foca cinzenta. Estendi minha mão, como se pudesse alcançá-la.
twitter.com/benjamimfranco
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Bere Ramos Igatu - Andaraí - Chapada Diamantina/BA
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Beto Filho Belo Horizonte/MG
Para Sempre Os raios do sol cintilam na água do mar formando uma chuva de estrelas e o dia se aquece, à espera de alguma aventura. Ainda assim, dormem todos. Um absoluto silêncio domina a “kitnet” de verão da Marinalva. Ela é o que se pode chamar de excelente senhoria. Entrega as chaves e some. A paz do sono só é rompida quando a campainha toca. Toca, insistentemente, com a urgência de uma tragédia que se anuncia. Otávio, sempre atento e solícito, levanta-se da cama para abrir a porta. A preguiça lhe faz arrastar o corpo. A noite anterior, como sempre, foi longa, com muita cerveja e cachaça baratas e pouca mulher, ou nenhuma. Ao ouvir o frenético tilintar, Sílvio abre os olhos mas segue deitado. Na cama do meio, Gegê dorme feito um grande neném, e assim continua. Em breve, ele despertará como um urso polar na primavera. Quem esmurra a campainha é Arthur. Porta aberta, ele segue para o quarto. A excitação parece saltar de seus olhos. Arthur é assim, eufórico, sempre precisando fazer algo para dispersar a sua energia juvenil. Sobre a velha cômoda do quarto, alguns maços de cigarro se espalham. É tudo bem rápido. Arthur olha para os maços, seleciona uma caixa de Malboro fechada, bem rija, com as quinas afiadas, e mira a testa de Gegê. A caixinha explode em cheio na cabeça do grandalhão. Gegê acorda num misto de ódio e desespero. Ergue o corpanzil e parte, atordoado, na direção de Arthur, que ainda gargalha. Um potente soco de esquerda sai enviesado e atinge a parede, gerando um forte estrondo. Assustado, em meio à confusão, Arthur ainda acha tempo para protestar contra a atitude violenta do amigo e vai embora. Gegê precisa de algum tempo para recobrar o equilíbrio. Ele bufa; tem o rosto vermelho. A sua expressão é de quem foi sufocado pela própria alma. Pouco depois, os ânimos serenados, Otávio, Gegê e Sílvio tomam um modesto café da manhã e seguem para a praia, onde Arthur se refugia. De fato, lá está ele, na barraca do Inácio, o sujeito que faz o melhor peixe da região.
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Arthur olha para os três amigos com os olhos medrosos de uma criança que sabe ter feito algo errado. A praia está perfeita nessa temporada. As nuvens parecem dormir. Gegê espia rapidamente Arthur e não diz nada. Ninguém diz muita coisa. Tudo está bem. Um assunto qualquer se joga ao vento e é impossível, trinta anos depois, lembrar-me do que se trata. Só me lembro que ficamos ali, sentados na areia, perfilados, mirando o mar. E me lembro de tudo isso como se fosse hoje: as ondas se quebram e criam uma espuma branca que contrasta com o azul vibrante da água gelada; as pessoas chegam com suas toalhas, sacolas e crianças; um ambulante grita: “Olha o camarão!” – e a gente pensa noutro tipo de camarão. Nalgum trecho de areia, deve haver, agora, quatro amigos conversando. Ou cinco, talvez seis… Pode ser que um deles seja uma espécie de Otávio, centrado, com futuro promissor. E pode ser que outro deles, artero ou dorminhão, não venha a ser grande coisa na vida. Mas pode ser o contrário. Também haverá casamentos ou filhos para uns e solidão para outros; e talvez a solidão não depende de nada disso para acontecer. Meio que em vão, tento voltar-me para o presente. Mas o passado continua aqui e isso é bom. Nem o forte calor de 40º ameaça o prazer que sinto; o mesmo prazer que várias vezes sentimos. Uma brisa suave acalma o sol. A essa altura, a estrela do dia já voa bem alto e luminosa, e tudo parece se encaixar. De alguma maneira, tudo parece se encaixar e se repetir, como o próprio sol, que nasce e morre todos os dias. Para sempre.
@sorbilliroberto
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Carlos Jorge Azevedo Santa Marinha do Zêzere- Baião- Portugal
A nódoa
Cai a nódoa na mais branca toalha E alastra, do escândalo sedenta, Aquele a quem o vexame calha Não se livra do que a língua inventa. Quem atinge, descarada, aponta Que o detentor é mole e sem tento, Sobre os ombros porta cabeça tonta Como um barco que flutua ao vento! E assim, impudente, onde cai Põe um rótulo e abre a fenda Na muito sólida reputação… Renitente, onde cai não sai, Mesmo que o atingido ganhe emenda Jamais conseguirá a redenção!
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Charles André
Lágrimas pelo partido Era uma espécie de ala jovem de um partido radical, que se achava parecida com o grupo idealista montado por São Francisco com a permissão de algum papa moderno; um coletivo que recebia suporte financeiro do partido para poder delirar e experimentar novas ideias de ação política. Viviam juntos, dormindo embolados em camas grandes, nos quartos apertados de um prédio de apartamentos com divisões anárquicas. Cozinhavam em grupo, alguns suas próprias comidas cheias de idiossincrasias – vegetarianos, neandertais, jejuadores sistemáticos, adeptos da dieta líquida etc. E se reuniam diariamente para longas reuniões com pautas políticas e comportamentais, em que decisões eram tomadas e manifestos eram produzidos apenas se alcançassem consenso, o que quase nunca acontecia, pelo pouco que vi. Eu entrei naquilo por um curto período, sem que a maioria das pessoas se interessasse ou questionasse minhas razões. Eu me aproximara de duas garotas, atraído de início por uma delas, que se insinuou numa festa meio punk, cheia de modelos vestindo roupas feitas de plástico e metal. Elise me disse para ir vê-la na “sede”. Me fez conversar na
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cozinha e depois deitado em sua cama, sempre com o barulho dos rapazes e moças que entravam e saiam a todo instante. Em um momento mais aquietado lá fora, abriu os botões da minha calça e me fez gozar, me lambendo a boca, mordendo e chupando meu pescoço. Foi só dias depois que ela me apresentou a outra, ainda mais novinha, animada também, mas que por algum motivo me pareceu mais elegante – talvez só falasse com menos gíria e mais recursos linguísticos, ou um pouco mais baixo. Margareta tinha os cabelos e os olhos castanhos. Também usava miniminissaias todo o tempo, geralmente pretas, enquanto sua amiga loura, claríssima na pele, cabelos e pelos, experimentava várias cores nas roupas sempre curtíssimas. Ambas ficavam arrepiadas quando fazíamos amor, mas amor mesmo. Era sexo forte e frequente, com uma, com outra, com as duas me agarrando em sucessão, eu suando e com fome infinita. E seja antes, durante ou depois daquelas apoteoses, surgiu rápido em mim uma sensação de que eu só era verdadeiro ali, eu não
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existia fora dali. Eu precisava delas, e como uma coisa só. As reuniões também eram relevantes para mim. Mas não como para elas, que ajudavam a construir as pautas e discutiam suas posições em sucessivos encontros preparatórios com pequenos grupos de pensamento político mais ou menos parecido. De início muito tímido, eu simplesmente ia e ouvia, interessado principalmente em estar ali com elas, mas também achando beleza naquele tipo de discussão de ideias quase anarquicamente diferentes. Fiquei mais animado depois que tive coragem de fazer minha primeira intervenção, que talvez tenha soado interessante e levou a várias falas criticando ou expandindo as ideias tremendamente radicais que expus. Não me cobravam coerência, e nas semanas seguintes eu me vi integrado àquela turma, falando com alma, propondo coisas como passeatas pelas ruas de Berlim com todo mundo pelado, usando só sandálias, invasões panfletárias do metrô, ou um mês vivido apenas queimando papéis e lixo para o aquecimento do prédio. Um dia tudo mudou. Depois de uns oito meses. Era prevista uma festa de fim de verão durando dois dias, organizada pelo partido para um debate mais amplo. Haveria discursos sobre o que os vários grupos e núcleos partidários tinham realizado no semestre, e a atração de comida farta e bebida boa. Eu viajei para ver meus pais no interior uma semana antes, e tinha
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pouca ideia do que pudesse estar acontecendo quando cheguei ao evento já no domingo, com a melhor roupa que tinha, bem pobre comparada aos modelos que encontrei. Ali eu vi como a engrenagem toda era careta, com senhoras distintas e de nariz empinado, exibindo seus chapéus, fumando em piteiras de marfim. Vários salões com mesas redondas sem lugar marcado, em geral meio vazias, e eu ia procurando por minhas garotas. Circulei em vários ambientes, sorrindo e andando devagar para chamar pouca atenção daquele grupo um tanto intimidador. Não encontrei ninguém dos meus conhecidos, e depois de alguns minutos dois homens barbudos me chamaram para conversar numa saleta. Representavam a hierarquia do partido, trabalhador e socialista no nome, na verdade fascista em sua inclinação. Haviam desalojado todo o grupo jovem do prédio de nosso coletivo, que decidiram demolir para criar uma nova sede, depois de cortar o suprimento de gás aquecedor e de luz. Não quiseram me dizer nada sobre meus conhecidos, e pediram que eu saísse dali, já que nem eu nem ninguém daquele grupinho de cinquenta adolescentes era oficialmente membro do partido. Sorte que eu já tinha comido uns cinco sanduíches. Azar que mesmo ficando depois mais de uma hora
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junto à entrada do casarão não passou ninguém conhecido por ali, seja para protestar ou para tentar entrar, desavisado como eu. Minha escola ainda estava fechada para as férias de verão, porém me abrigou como a uns poucos gatos pingados, garotos menores que por algum motivo os pais deixaram ali no fim de semana. Mas não havia colegas conhecidos, e nos dias seguintes, eu me vi sem dinheiro, obrigado a passar o tempo caminhando por horas na cidade ou vagando no metrô, sempre com fome e tirando cochilos nos bancos do Tempelhofer ou do Volkspark. Foi assim que desisti e voltei para casa, no sul, pertinho de Nuremberg, e foi assim que perdi meus amores. * Voltei a encontrar Elise já adulto, depois da guerra. Num domingo de manhã, no vernissage de uma mostra especial de arte visual, com colagens de filmes passando em salas escuras da Neue. Havia uma pequena recepção com champanhe para convidados. A loura continuava linda, livre e agora muito mais chic. Casada, morava em Dusseldorf e tinha uma filha de quatro aninhos. Falou comigo como a um velho conhecido. Tivemos um breve momento a sós em uma das salas da exposição. Por cima da calça, ela segurou meu pau, que ficou dolorosamente duro, e propôs
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nos encontrarmos num hotel naquele mesmo dia. Eu achei aquilo estranho e recusei, apesar dos arrepios que senti percorrerem suas lindas coxas brancas. Tentando ser simpático, perguntei por nossa amiga. Com a cara fechada ela respondeu que perdera totalmente o contacto, e em seguida saiu da sala de exposição sem se despedir de mim. Encontrei minha morena uma única vez, há sete anos, em uma feira de negócios agrícolas em Dresden, com exposição e venda de máquinas. Nossas vidas tinham trilhado caminhos muito divergentes, separadas por ideias políticas e por países totalmente diferentes. Margareta tinha se mudado, vivia na Rússia, participava de comitês de fábrica, estava integrada na hierarquia do partido comunista. Conversamos do modo gentil que eu esperaria. Ela conservava a pureza e o idealismo, motivada e iludida pelo regime stalinista horroroso. Não quis me mostrar onde estava hospedada com amigos da universidade, perto da casa de Ibsen. Fizemos amor em dois encontros no meu hotel, e nas duas vezes, sem saber explicar porque, eu me vi escorrendo lágrimas sobre seu corpo dourado como um campo de trigo. Hoje sonhei com as duas. Acordei gozado e chorando.
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Charles Burck Rio de Janeiro/RJ
Almas Os mortos não se enterram sozinhos Mas a colher de pedreiro e a pá perfizeram o caminho contrário ao erguer do pó os mortos de uma cidade inteira Cabendo das glórias outras partes, elegeram um fiel escudeiro para cuidar das suas perdidas almas havendo nos diversos encargos, cuidar dos vivos que choram e das crianças que rirem Muitas sombras dos que morreram ocuparam-se apenas das mediocridades dos dias pobres, E a roda dos rios nasce e se põe sem que saibamos beber das águas doces apenas as lambemos as lembranças e pedimos às saudades que façam poemas e as terras rasam não falam dos nomes e nem lembram dos amores que passaram Vão-se longas as filas de heróis e vulgares mercadores a falar de corações, mas os rios só correm dentro de nós se não formos almas secas Os amantes vindouros chegarão felizes e cantarão canções de graça e se acariciarão sem lástimas, assim que a vida despertar e apagarão as noites para viverem e morrem sem medos.
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Charles Luciano Catende/PE
Para Joaquim Osório “Ó pátria amada,” idolatrada? Por quem será? Por que será? “...És mãe gentil,” de quem Brasil? Teus filhos nascem, mas, quantos crescem? “...raio... de amor e de esperança...” falas também para a criança? Quanta ousadia da vossa parte, para quem jamais teve sorte. “Teus...campos têm mais flores;” quanto horrores! Não pudeste prever quão depressa iriam morrer. “Paz no futuro...” Como é tão duro ver o inverso insistir, não ter berço, muito menos poder dormir. Quanto sofre um escritor! Ou talvez não sinta dor, caso o que esteja a dizer nunca venha envelhecer. https://clubedeautores.com.br/books/search?where=books&what=charles+luciano
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Clarice de Assis Rosa
Nostalgia Lembro-me perfeitamente daquela noite fria em que você, trêmulo, entregou-me a sua jaqueta, fingindo sentir calor. Lembro-me de ver seus olhos cheios de lágrimas, quando me acalentava em seus braços, dizendo que tudo ficaria bem. Lembro-me de lhe ouvir dizer que estava sem fome e me entregar um pão, quando isso era tudo o que tínhamos para comer. Lembro-me de quando você chegava exausto do trabalho e lia histórias até que eu adormecesse. Lembro-me de ouvir as suas repreensões, mais preocupada com a sua tristeza em repreender-me do que com as suas palavras. Lembro-me de quando jogávamos baralho e dominó e você me encorajava a vencer, fazendo alegorias com a vida. Lembro-me de quando você me defendia de qualquer pessoa que ousasse fazerme mal. Lembro-me de lhe ver abster-se dos seus próprios sonhos e objetivos materiais, para que eu pudesse conquistar os meus. Lembro-me de vê-lo trabalhar arduamente, para garantir-me uma vida diferente da que você tinha. Lembro-me, a cada instante, das suas risadas inebriando a casa, como se contivesse as próprias angústias para que eu não percebesse as suas lutas. Cresci pensando em dar-lhe orgulho, que fosse uma vez somente, como forma de gratidão a tudo que você fizera por mim.
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Quis muito retribuir, embora soubesse que nunca conseguiria, o cuidado e amor que você teve comigo. Adiei, pensando que teríamos uma vida longa pela frente e que nunca seria tarde para mostrar-lhe como eu era grata e reconhecia todos os seus esforços. Quando pensei em, finalmente, mostrar-lhe que seus sacrifícios não tinham sido em vão, você se foi. Eu, nada pude fazer, a não ser me lamentar de não tido feito tudo o que prometi. Você deu a vida por mim muitas vezes, e eu não pude fazer o mesmo nem uma única vez. Você quis viver unicamente por não suportar imaginar a dor de seus filhos. Até o fim, você se doou para o bem-estar dos outros. E se foi sem poder evitar a dor que deixou.
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Cleidirene Rosa Machado Catalão/GO
Ele Pode Estar Logo Alí E quem disse que vampiros não existem? Eles existem sim. Algumas pessoas são precoces desde muito cedo, conseguem viver mil anos em pouquíssimo tempo. Sua pele parece ser muito jovem, bela, mas, todas as suas experiências de vida o tornaram bem mais velho do que alguém possa imaginar. Esses vampiros não gostam de hálito com cheiro de cebola ou alho, e eles também não apreciam os fanáticos religiosos. Não sabemos se eles podem ser matados com bala de prata ou alguma estaca qualquer, e pra que os matar não é mesmo? O sangue que eles procuram pode não ser bem o líquido vital humano, mas, tudo aquilo que ele nota algum valor, seja material, intelectual, ou outra espécie. Seja noite ou seja dia, use filtro solar, ele pode estar ao seu lado, dê a ele uma taça de vinho.
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Daniel Cardoso Alves Belo Horizonte/MG
Gentes do Sertão
Foto: Daniel Cardoso Alves, 2022.
Sou das gentes do Sertão Gente que luta de dia e de noite dança baião Que habita as terras daquele sagrado Ribeirão Filha dos cantos e encantos do Velho Chicão Cantos de resistência, de fé e de oração Gente que desconhece solidão Há quem água nunca falta para pingar no feijão Daquele que esteja a penar com o prato na mão Inimigo ou irmão Gente que vive em estado de comunhão Que é de bando e multidão Gente da boa mão
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Que não descansa do facão Que desperta cedo e prepara o chão Para que ao outro não falte o pão Gente avessa a cabresto de patrão Que não se submete a domesticação Para quem não é não Não tolera enganação Gente sem lamentação De terna alma e dócil coração De reza e perdão Gente que se orgulha de estar nas letras de Gonzagão De pertencer às terras de Paulo Freire, expoente da Educação De ter nascido em chãos que cultivam cultura e emanam inspiração Gente de singeleza e digna de admiração De pertença, identidade e firmação Valente ao defender o seu sagrado chão Arrebatadora quando conta das sutilezas do seu lindo, verde e cativante Sertão
@danielcalves_
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David Leite
Jorge, da contabilidade — Qual o seu nome?
— Sim. Creio que sim.
— Jorge. – O homem, absorto, respondia a pergunta serenamente.
Ambos se despedem no ponto de ônibus. Jorge, ansioso, aguarda pela condução olhando para o fim da rua. Ela não tarda a chegar e logo ele está de volta a sua residência.
— E o que você faz, Jorge? – O entrevistador continua. — Eu sou contador. – A mesma voz inócua. — E quanto às terríveis visões que lhe perseguem? — São frutos de meu distúrbio. Devo ignorá-las. — Bem, Jorge. Muito bem. Devo dizer que houve um grande avanço aqui. Com as medicações e com a terapia, acredito que você retornar para o convívio social. — Obrigado, doutor. O senhor foi muito bom para mim. — Imagine. Minha missão é essa. Vou trazer a papelada. Acredito que você próprio possa assiná-las e estará de volta ainda hoje para sua casa. Após a burocracia terminada, o doutor acompanha seu paciente para a porta do asilo, carregando seus poucos pertences numa bolsa puída. Uma pequena reserva de medicação e a receita estavam numa sacola plástica. — Bem, Jorge. Pronto para sua nova vida? – O doutor, com um sorriso simpático, o indaga.
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Seu modesto apartamento se encontrava na exata condição em que deixou, um mês atrás. Por não haver poeira, acreditava que sua diarista tivesse mantido as visitas, ainda que não a tenha pedido. Jorge joga a bolsa em cima da poltrona, deixa os remédios na escrivaninha e se joga na cama, pesadamente. O relógio apitou com o mesmo horário de costume no dia seguinte. Sua mão se move pesadamente para reivindicar mais cinco minutos de descanso. Passados os cinco minutos, levanta-se sofregamente. Passa do pequeno quarto para o ainda menor lavatório. Olhando-se no espelho, impressiona-se com as cavas embaixo dos olhos. Boceja, e coloca a pasta na escova de dente. Após o gargarejo, cospe na pia. Enquanto levanta o olhar, se espanta ao perceber um fluido vermelho escorrendo em filetes pelo espelho. O líquido sanguíneo começa a desenhar no espelho terríveis dizeres:
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“O ônibus passa às 8:20.” Aterrorizado, Jorge se lembra que já estava quase atrasado. Calça, camisa, gravata e paletó vestidos com pressa. Não havia tempo para o café da manhã, e sua despensa estaria vazia, de qualquer forma. Pega sua pasta e celular e corre para o elevador.
O elevador pára em seu andar. No entanto, estava como nunca antes. Seu interior era uma estrutura de ferro e arame oxidados. Jorge fecha os olhos e tenta se acalmar enquanto entra. Aperta o botão, não um botão eletrônico e sim um rudimentar botão enferrujado que ameaçou cair depois de pressionado. O elevador range e treme conforme desce pelo poço, e o barulho fica cada vez mais grave conforme desce, como se mergulhasse num abismo que o fizesse ecoar.
afiados, saído dos mais edipianos complexos, se abre convidativamente. Tentando ao máximo ignorar a aterradora visão, Jorge salta para dentro e o comboio maldito pode prosseguir viagem. Dentro do ônibus, os passageiros observam o homem patentemente alarmado e ofegante, que se dirige para um banco afastado de todos e desaba. Chegando a empresa, tenta evitar o olhar de todos até se dirigir para sua mesa. Ignora o elevador, temendo ainda pior experiência se tentasse pega-lo e vai direto para as escadas, subindo os quatro lances até seu andar. Na sua sala, joga a pasta sobre a mesa e põe o paletó no espaldar da cadeira, sentando-se cansado logo em seguida, afrouxando a gravata.
A porta se abre para a entrada do prédio. Desesperado, Jorge corre para o ponto de ônibus o mais rápido que pode.
— Quanto tempo, hein Jorge? Estava de férias? – Um dos colegas de sala o saúda.
Vê o ônibus atravessando a rua transversal à sua rua. Porém, um veículo completamente transfigurado surge quando atravessa a esquina. O tétrico transporte carnado que reaparece ao fim da rua era coberto de estruturas fibrosas, como músculos, que se retesavam e relaxavam conforme seguia. Ao lugar de janelas, vitrines onde um espesso e amarelado líquido escorria. O assombro sobre rodas pára à sua frente, onde uma fenda vertical como uma mucosa, ladeada por dentes
— Não. Estava... de licença. – Jorge retribui, hesitante.
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Jorge se pergunta que desculpa daria para sua chefia. Não se recorda em que condições teria sido internado. Um medo começa a se avolumar em seu interior, quando é interrompido. As luzes da sala começam a baixar quase ao breu. Da porta surge uma mulher, vestida em couro negro, com ameaçadores arrebites prateados, um olhar altivo e aterrorizantes lábios encarnados como sangue e
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carregando numa bandeja de prata o que parecia ser uma cabeça degolada. Com passos firmes se dirige a ele e, para seu terror, retira a cabeça da bandeja, sustentando-a no ar. Era a sua cabeça! — Seus relatórios. A mulher estava a sua frente segurando alguns papéis. Agora com a maquiagem mais sutil, com uma camisa de linho e saia cinza. Ela coloca o material em sua caixa de entrada e se retira da sala agora iluminada. Jorge coça as vistas, tentando entender o que aconteceu e pega os relatórios deixados ali. Ele começa a organizar os papéis quando seu ramal toca. A sala da diretoria o convocava para uma reunião. Apreensivo, Jorge pega seus relatórios e se dirige para ter com os chefes. Entrando através de uma porta dupla, que se bate logo após atravessá-la, Jorge está numa espécie de câmara sacrifical. Archotes fumegavam nos quatro cantos da sala iluminando-a com sua luz avermelhada. Num pelourinho, reconhece o corpo lacerado de um de seus colegas, que agonizava. E ao redor de uma tábua de pedra, quatro homens com as mais assombrosas feições se reuniam. — Sente-se, Jorge. – Diz o primeiro deles, numa voz que retumbou por toda a câmara. Abalado, Jorge não cogita desobedecer. Senta-se à mesa numa quinta cadeira, segurando os papéis sobre o peito, temerariamente.
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— Jorge. – O homem de feições cadavéricas e pálida se dirige a ele. – Estamos esperando por você por todo esse tempo. Onde esteve? — Eu? Eu estive em licença médica. — E por que sua saúde importaria? Não podemos atrasar nosso projeto por essas frivolidades. — Que projeto? — Ora, o fim do mundo. – Outro deles responde. Um homem de pele vermelha e semblante colérico. — O quê? – Jorge se espanta. Ao mesmo tempo, começa a ler as plaquetas de identificação sobre a mesa. Peste, morte, guerra e fome. — Quem são vocês? — Ora. Não nos reconhece mais? Somos os cavaleiros do apocalipse. Como você. — Como eu? Isso é loucura. Eu sou apenas eu... Sequer tenho uma alcunha, como vocês. — Alcunha? Esse é o nosso nome. – O homem com feridas no rosto diz, enquanto estende um documento onde a assinatura sugeria seu nome, Peste. — Seu nome poderia ser tédio. Cavaleiro do tédio é um bom nome para você. – O homem com a face coberta diz. — Mas o que eu faria? Por que me escolheram para isso? – Jorge continua perplexamente.
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— Você ignorou os sinais? Você ignorou os sinais que temos te mandado por todos esses tempos? — Sinais? Tudo isso é um delírio... Onde estão meus remédios... — Não são delírios. Esse é o seu mundo. Esse é o mundo que você deve ajudar a criar. Jorge se sobressalta. Levanta-se da mesa e começa a confrontar aquelas figuras medonhas por alguns momentos. Com um grito preso na garganta, ciente de que estava preso novamente em seus desvarios, começa a bater na porta de entrada da sala desesperadamente. Do outro lado, a secretária de antes abre a porta, para um terrificado homem saltar para fora, gritando e correndo em direção as escadas. O diretor da empresa, ajeitando a gravata, sai logo atrás.
— É realmente lamentável. Acreditava que ele pudesse superar sua condição. – O médico que o atendia anteriormente lamenta. — Sim. Acreditava nisso também, mas vimos que não. Jorge, sedado, olha para as salas ao seu redor. Numa delas, um familiar homem pálido e de feições cadavéricas retorna o olhar para ele e, alheio a tudo, salivando pelo canto da boca, acena para ele com um leve sorriso. — Ele... balbucia.
Ele
está
ali...
–
Jorge
— Sim, meu caro. É outro paciente nosso. Jorge é gentilmente conduzido a uma cela. Senta-se na cama, contemplativo.
— O que será que deu nele? – O homem pergunta a secretária, que dá de ombros.
— Veja pelo lado positivo. De um jeito ou de outro realizamos a nossa missão. – Um dos médicos se dirige ao outro.
Constrangido em uma camisa de força, Jorge é carregado pelos corredores do asilo em que havia se internado.
— Sim, sim. Evitamos mais uma vez o fim do mundo... – O médico responde. Fim
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Dorilda Almeida Salvador/BA
Educação de qualidade: Direito de todos A educação verdadeira Não é a que temos aí É investir nos alunos Para serem donos de si Desenvolver suas capacidades E potencialidades Respeitando a singularidade De cada um Educar não é controlar Não é proteger É ser auto suficiente Para tornar-se independente Escolherem o que quiserem ser Encontrar o seu caminho Lugar de liberdade Profissionais preparados Para o convívio social Pais e estado De mãos dadas Para formarem cidadãos Respeitados por si mesmo E pela sociedade em qualquer situação. Escola pública e privada Não só preparar o alunado Para passar no Enem e no vestibular A educação vai mais além Crescer, aprender e estudar Sentir-se pertencente aquele lugar Aprender a ter esperança E cuidar-se. De si mesmo e do outro E da comunidade zelar Para o mundo ser o nosso melhor lugar.
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Edgar Borges Boa Vista/RR
Madrugadas e café Acordo 4h30, 5h30 ou 6h30 num bom
regras madrugadoras de segunda a
dia de sono. Meus horários para levantar
domingo, incluindo todos os feriados.
nunca foram jogados para tão cedo.
Mesmo assim, gosto. É um momento
Saudades de quando acordava às 7h,
de solidão na casa, sem gentes, sem
ficava
perguntas, apenas a sonolência e a
um
pouco
lamentando
não
conseguir dormir mais e conseguia fazê-
Mikasa,
lo em seguida.
acompanhando-me para o cômodo
Hoje não tem disso, nem sequer aos
que eu for. A primeira coisa é abrir as
domingos. Tudo começou quando o meu
janelas, ver o céu e sentir fome. Já
filho estava na escola no turno matutino.
acordo
Todo
então não há espaço para momentos
mundo
acordando
no
mesmo
minha
sempre
cachorrinha,
querendo
horário era sinônimo de estresse. Decidi
contemplativos
abandonar a cama 15 minutos antes
roncando,
dele e da mãe; depois 20, depois 25...
esquentar e alterno: um dia chá,
Por fim, percebendo que necessitava de
noutro café. Durante o mestrado era
mais tempo para acionar as baterias do
muito
corpo
meu
engraçado é que eu nunca havia
alarme para tocar uma hora antes. Meia
coado café na vida até os meus 40
hora comendo e, depois de acordar o
anos. Sempre tive quem fizesse isso
bebê e a mãe, meia hora para o banho e
entre os colegas de trabalho e em
chegada na escola.
casa
Só não contava com a reprogramação
consumir esta bebida. Preferia fazer
perene
cappuccino caseiro, misturando leite,
e
da
de
mente,
meu
programei
relógio
biológico
matutino, que passou a dispensar o uso do alarme e decidiu fazer suas próprias
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boto
mais
não
longos.
comer,
a
café
era
chaleira
que
minha
café e achocolatado.
Estomago para
chá.
O
prioridade
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Madrugar na época em que fazia o
Vanessa falou, e eu lembrei de há
mestrado, precisando ficar bem ligado
muitos anos ter lido sobre isso, que
durante
horário
não era bom deixar a água ferver
acadêmica,
muito, pois isso mata o gosto do café.
gerou a mudança de costumes. Faço
Incorporei a dica aos meus hábitos.
café à moda antiga, esquentando água
Mesmo que os cafés que compro não
na chaleira, passando no coador de
sejam
pano,
mantêm o gosto, seja bom ou ruim.
as
preferencial
manhãs, de
deixando
meu
produção
repousar
o
coador
os
melhores,
pelo
menos
mergulhado no café coado (eu não sei
Talvez um dia chegue, mas não sei se
se isso é moda antiga, mas na minha
quero, ao fascínio que o Timóteo tem
cabeça traz maior aproveitamento).
por esta bebida. Em viagens que
Dia sim, dia não, lembro de minha
fizemos juntos, era sua praxe parar
primeira coada, feita após puxar da
nas
memória todas as vezes em que vi
cafés feitos com grãos vindos de
alguém fazendo isso. Foi no Rio de
vários lugares do mundo. Em sua
Janeiro, na casa do Rodrigo, que me
casa,
hospedava e disse “aí, se tu acordar
especiais que compra e faz uma
mais cedo que eu amanhã, podes fazer
xícara
o cafezinho. Valeu?”. Valeu, respondi,
profundamente o gosto. Acho bonito,
silenciando que nunca havia coado um
mas ainda prefiro minha praticidade:
(como se justifica isso na vida sem
nada como fazer uma garrafa cheia
parecer um preguiçoso?). No outro dia,
de café, deixá-la sobre a mesa e ir
fui na lembrança e no instinto e deu
pegando conforme as horas forem
certo, acho. Não parei mais.
passando.
Café e mestrado se misturaram também
sacrilégio de botar açúcar, mesmo
numa
que seja pouco.
conversa
na
universidade.
A
cafeterias
ele
https://linktr.ee/borgesedgar
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para
mesmo por
Ah,
experimentar
mói vez,
e
os
grãos
sentindo
cometendo
o
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Edna das Dores de Oliveira Coimbra Rio de Janeiro/RJ
Maria da Penha Moça, não te iludas nem acredites mais nele não. Se
uma vez ele te bateu,
outras vezes virão. Se ele te humilhou na frente de um amigo, na frente de muitos outros, te fará passar vergonha e talvez até perigo. Fiques esperta nesse quesito e não aceites ser bagunçada não, pois viver desse jeito, não dá certo não. De tanto ser saco de pancada, tu vais terminar num caixão! Vais à luta numa boa e não aceites pressão. Se ele te amasse mesmo, não te amassaria no chão. Olho roxo, dentes quebrados, rosto e corpo em degradação. Se tu chamas isso de amor, caramba, estás mesmo em negação! Moça, não percas o teu tempo, muito menos o teu valor. Esse homem não te respeita e não tem nenhum pudor. Corras atrás dos teus direitos e busques o benefício da Lei. Se queres te libertar desse mal, joga Maria da Penha nele!
https://www.facebook.com/edna.coimbra.921
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Edweine Loureiro Saitama – Japão
A Fé Em Trovas O Círio de Nazaré leva o povo em romaria: são passos firmes na fé rumo aos braços de Maria. * Vem de Deus este recado à alma que se angustia: o milagre desejado é o raiar de mais um dia.
https://www.facebook.com/edweine.loureiro
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Elcio Antonio Pizani Palmeira/PR
Me Passa O Dropes! Sábado, 19h, sai apressado para
conquista. Só que a moça era outra
chegar na casa da Anabela, combinamos
que
estava
em ir ao Cine Teatro assistir a um filme.
atorzinho.
apaixonada
pelo
Tentei convencê-la já faz algum tempo,
Rafael e Murilo queriam entrar no
ela resistiu bravamente e só consegui a
cinema somente para tumultuar. Eles
conquista devido ao fato dela estar
não sabiam que as gêmeas estavam
ansiosa para assistir ao filme e seu pai
afim deles e arquitetavam um ataque
devido
aos dois. Bruna e Bianca não tinham
a
restrições
financeiras
não
liberava o dinheiro para o ingresso.
nenhum pretendente, mas amavam
Quando cheguei ela veio sorrindo,
histórias românticas. Nelsinho era o
parecia um anjo desfilando em minha
bad boy, mal visto por toda a cidade,
direção, cabelos longos, mas presos
foi preso ao tentar vender um rádio
formando
roubado
um
rabo
de
cavalo,
um
para
vestido rendado branco e um batom
desconfiava
vermelho que eu queria tirar o mais
dele.
um
que
policial.
Anabela
Eu
gostava
rápido possível. Ela estava eufórica, iria
Faltavam meia hora e as meninas
ver o amor da sua vida, um desses
já queriam entrar. Fomos todos juntos
atorezinhos de Hollywood. Pelo jeito a
para
intenção dela era me deixar de vela.
disse que logo entraria, ele sempre
Conversamos
Nelsinho
dava um jeito de entrar sem pagar.
chegar na Praça da Matriz, lá fomos
Ingresso pago fui ao Bomboniere,
recepcionados
tinha
resto
filmes
próximos.
até
pelo
sobre
ficarmos
da
turma.
comido
semente
compramos
de
Alfredo, meu grande amigo e confidente
girassol
também estava ansioso, Rebeca estava
banquinha da Praça e precisava de
ali e seria a oportunidade perfeita da
um dropes para suavizar o hálito.
51
que
muita
na
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Pedi para dona Maria um dropes de
dali, ele fez sinal de arminha e vi que
hortelã, ela disse que o fornecedor não
o rapaz era mais um besta da vida
apareceu e vendeu o último para o
que se achava o bom. Sentei na outra
Tronco, ele era o cara mais bronco que
fileira perto da saída de emergência.
já vi, me bateu diversas vezes sem eu
Não sabia se ficava ou saia daquele
saber o porquê. Sem chances de pedir
antro. Fiquei olhando para o teto e
para ele me dar um. Alfredo foi comigo
não para a tela. Estava tão furioso e
ao banheiro, onde pedi para ele testar
decepcionado que a única coisa que
meu bafo. Ele ficou ressabiado, mas me
queria era voltar para a casa e me
ajudou. Falou que eu estava podre.
trancar no quarto.
Fiquei desesperado. Depois soube que ele me enganou. Tive
que
Não levou muito tempo e percebi alguém sentando ao meu lado. Abri
monstro,
os olhos sem muito ânimo. Levei um
depois de pedir um dropes para quase
susto, Anabela sorrindo, sentou ao
todos
e
meu lado, pegou na minha mão,
ninguém tinha uma mísera balinha, fui
encostou sua cabeça no meu ombro e
até o Tronco e amigavelmente pedi um
ficou suspirando assistindo ao filme.
dropes. Ele riu da minha cara e depois
Confesso que não fiquei com ciúmes
disse que tudo bem, iria me dar um.
do atorzinho. Só estava aborrecido de
Abriu a boca horrenda, retirou a bala da
que não poderia beijar minha amada,
sua
o bafo me impedia de tentar qualquer
que
boca,
enfrentar
estavam
me
o
no
pegou
cinema
pela
nuca
e
empurrou a coisa gosmenta e cheia de
coisa.
babo na minha, tentei resistir, mas foi
Vi que Anabela estava emotiva,
em vão. Ele enfiou aquela coisa na boca
seria o melhor momento para uma
que
Fui
investida. Olhei para o lado e uma
correndo ao banheiro e quase vomitei.
das gêmeas colocou um dropes na
Lavei bem a boca e fui sentar ao lado da
boca, pensei em pedir um, só que a
minha pretendente.
posição
pretendia
Quando
beijar
cheguei
o
Anabela.
filme
que
Anabela
estava
estava
acomodada não me permitiu sair dali.
começando, Nelsinho estava sentado do
Na cena mais esperada do filme onde
lado da minha amada, pedi para ele sair
há o beijo dos atores. Vi que ela se
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
ajeitou na cadeira, senti um calafrio, se
holofotes, mas era do Lanterninha
recusasse o beijo ela iria falar para todo
pedindo para pararmos com aquela
mundo, se beijasse com mau hálito ela
sem-vergonhice.
também
falaria
e
minha
hipotética
oportunidade com ela acabaria aqui. Torci
que
ela
só
estivesse
Nelsinho chegou perto de mim e falou
que
eu
merecia
ficar
com
se
Anabela, ele era do mundo. Vi ele
ajeitando. Nisso ela me olha, respira
saindo com as gêmeas, uma em cada
fundo, abre sua bolsa, pega dois dropes
lado.
e me oferece um. Nem sei o que pensei,
suspirando. Rafael e Murilo foram
só senti que ela veio na minha direção e
expulsos do cinema na metade do
me beijou com gostinho de hortelã. O
filme
filme romântico na película e nós dois
cenas em voz alta. Alfredo e Rebeca
nos beijando sem perceber que o mundo
estavam de mãos dadas, ele chegou
gira. Até vi uma luz sobre nós, pareciam
perto e me pediu: Me passa o dropes!
Bruna
por
ficarem
https://elcioapizani.blogspot.com/
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e
Bianca
saíram
zombando
das
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Elidiomar Ribeiro Rio de Janeiro/RJ
Fotografia
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Eva Irene Corrêa Martins São Paulo/SP
Que país é este? Esta terra é o meu país. Tem tudo pra dar certo porque será que tudo dá errado? O que será que acontece? Está mal governado? Esta gigante terra tão rica, cheia de encanto. Ouro, pedras preciosas. Tantas belezas espalhadas. Águas, rios, minerais, até as estrelas brilham mais. Brasil, país abençoado. Devemos ao Criador agradecer. Queria eu ser poeta soberano e muito fazer por você. Como nada sou, mal escrevo o que penso. Sou feliz por ser brasileiro. Vale em mim o que tenho dentro.
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Fernando Manuel Bunga Uíge, Angola
Tanka Ah, rola uma lágrima no rosto de minha mãe – Hora da partida Sob as águas transparentes as pedrinhas de um rio raso
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Gabriel Alencar Boa Vista/RR
Anfêmero Há um deserto no fundo do mar. Lá os crustáceos andam sem ver o fim do mundo, apenas contemplando os pássaros-peixes que os sobrevoam com ar ameaçador. O crustáceo precisa ser esperto, as coisas não são mais como antigamente. Antes, ainda se podia passear, levar a família para ver um pequeno gêiser, essas coisas que só quem vive no fundo do mar sabe apreciar. Mas hoje não tem mais condições. Cada esquina é uma moreia, um molusco bêbado perdido, um detrito que caiu do espaço. O fundo do mar é um deserto, mas não significa que a gente não posso gostar do deserto. Existe um lugar, porém, que a gente gosta de evitar. São as fossas oceânicas. Reza a lenda que lá embaixo existem seres horripilantes e é para lá que vão todos os peixes que boiam. Sim, é um paradoxo. Eles boiam, mas no final vão parar no mais profundo do mar. O fundo do mar é cheio de histórias. Se olhar para baixo, tem as fossas; mas, se olhar para cima, tem o Grande Espaço. Não falo ali onde voam peixes, falo de onde caem os detritos. Há histórias até de gente que foi abduzida.
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Nunca conheci um desses, só ouvi falar. Há histórias. Certo dia eu andava com minha esposa à procura de plânctons. Nossas patas vasculhavam a areia. Procurávamos e montávamos guarda ao mesmo tempo. Um peixe sobrevoou nossa cabeça e tentamos nos enterrar na areia, mas ele falou conosco: – Esperem! Estou perdido. – Como é? – Vocês sabem o caminho para as fossas? Eu e minha esposa nos entreolhamos. Era um robalo qualquer, não havia nada de especial nele, parecia inocente o suficiente. – E o que diabos o senhor vai fazer lá? – minha esposa interpelou. – Vou buscar meu pai. Silêncio. Um vento de ondas levantou a poeira no fundo do mar e eu tossi. – O senhor está falando sério? – dessa vez eu que falei. – Já disse que sim. Vocês sabem o caminho ou não?
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Novamente ficamos em silêncio, mas viramos a cabeça para o leste. O robalo entendeu tudo e pegou o rumo à toda velocidade.
de pensar naquele peixe. Mas eu não conseguia evitar. No fundo eu sei que minha esposa também não e foi por isso que preferiu ficar em casa.
– Moço, faça isso não – minha esposa disse, mas ele já não conseguia escutar.
Eu andei pelo deserto infinito, mas estava distraído demais para conseguir o que precisava. Olhava para cima e ficava imaginando como seria ir além do Grande Espaço, lá onde só alguns peixes-pássaro conseguem ir. O meu devaneio me fez caminhar a esmo. Quando menos esperei, eu estava lá.
O fundo do mar é um deserto e no deserto a gente vê miragens, coisas estranhas. Será que aquele peixe estava lá mesmo? E como o doido conseguiria resgatar alguém das fossas? Olhei para minha esposa e ela não disse nada, começou a cavucar a areia de novo. Imitei-a. Mais tarde, já em casa, nenhum dos dois teve coragem de comentar o causo. Se falássemos aos vizinhos, seríamos motivo de chacota, como aqueles que dizem ter sido abduzidos. O deserto é um lugar com poucas novidades e, nós aprendemos naquele dia, era assim que preferíamos. No dia seguinte, apenas eu saí para procurar comida. – Estou indisposta, você se importa? – Tranquilo, problemas.
querida,
sem
Eu saí de casa um pouco aliviado. Não queria sentir de novo o desconforto
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Eu olhei para a escuridão do profundo do mar e, como eu tanto temia, ela olhou de volta para mim. Fiquei procurando sinais do robalo, mas eu sabia que era impossível ver qualquer coisa ali. O chamado do abismo era cada vez mais forte. Precisei de muita força para olhar para trás e ver o que estava ali desde sempre. Há um deserto no fundo do mar. Lá os crustáceos andam ignorando o fim do mundo, apenas contemplando os pássaros-peixes que os sobrevoam com ar sonhador. O crustáceo precisa ser esperto, as coisas ainda são como antigamente.
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Gabriel Oliveira Monteiro Paragominas/PA
Pequena Flor Amanhecer iluminado Com você ao meu lado Imagina que coisa boa Nós de boa deitados à toa Com você ao meu lado, eu me sinto mais amado Você me ajuda com sua doçura Minha apatia desaparece quando seu belo sorriso cresce Obrigado por alegrar meu dia, Pequena flor rosa do caminho de casa.
https://www.facebook.com/gabriel.monteiro.56481 @gabriel monteiro @kyoto_g.o.m
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Gabriela Garcia de Carvalho Laguna
Beija-flor Lado a lado garotinhas, a gente se escolheu. Carteira de destra, carteira de canhota banco da escola, voo de beija-flor, somos árvores.
longe e além. Ainda tem cachorro, ainda tem coelho, não há telas sobre mim. Eu posso sentir que estou de fato, apenas sou e sou com você, quero te ver onde chegar.
você e sua mão de dinossauro desenham o que sonhamos, eu como todas as amoras, musicas repelem desagrados, deixe o mundo cair.
A estrada é longa meu lado, sempre seu. As vezes encontramos beija-flores, quem chegar primeiro prepara o terreno, hora de ser semente.
Nossa vez de aprender a cair. Coleciono suas frases desconexas, porque o mundo sabe ser frio, quando dói a outra segura e faz risada.
Nós construímos o sentimento, na incerteza do caminho. Ter você em minha vida permite que eu renasça em qualquer lugar.
Agora dois pontinhos brancos. Responsabilidade e oportunidade, veja os cometas, vida tão perto, nossas mãos. Você pode me entender
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melhor
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Gedeane Costa Recife/PE
Segundas Impressões Quero ser soldado... Você disse: ser soldado? Soldado em seu coração. Soldado, não armado, mas amado... Passar pelas trincheiras do seu coração. Um coração minado ou mimado de paixão. Um amor bombástico sem barulho, sem alarde declarando guerra à solidão.
http://paginasinfinitas.blogspot.com/
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Gislene da Silva Oliveira Paragominas/PA
Sentimento Da Alma Para sentir a alma é preciso muita poesia A luta com as palavras é de noite e de dia, Não começa nem termina involuntariamente, Acontece quando o sentimento toca a gente. Caneta, lápis, papel, teclado e coração na mão, Tudo serve para que o sentimento não seja em vão. Literatura y Arte melhor combinação não há, Campo mais que profícuo para nos inspirar. Palavra por palavra, vai florescendo a ideia, Que em os versos ou prova transforma numa odisseia. E o sentimento d’alma, não é mais seu, nem meu, Pela escrita a fora, pertence a quem o leu.
https://www.facebook.com/gislene.oliveira.56 https://intagran.com/@portuguescomgis .
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Guilherme Hernandez Filho Santos/SP
A espera “...Chega impressentida Nunca inesperada Ela que é na vida A grande esperada!...” (A MORTE – Vinicius de Moraes) Não há pressa, mas também não se pode demorar. Quando se fala disso todos tremem. Não há quem não a tema e não deveria ser assim. É natural. É o caminho. É o fim. Para alguns, talvez muitos, há o “segundo capítulo” e até mais. Não sou desses. Aqui estamos e aqui encerramos. Façamos o que queremos e devemos agora. Não vejo outras oportunidades. As vibrações são nossas. Somos a interferência no Universo. Nosso plano é aqui. A interação é a geradora da energia positiva que nos move. Entes puros, básicos, múltiplos ou simples, nulos, etéreos, concretos, axiais, fantasiosos e, por que não, reais. Firmada e confirmada existência: “cogito ergo sum”. Então se deixe levar, enquanto espera, sem receio. Aqui e ali, sempre há o que fazer. A atividade corpórea e cerebral é necessária. Sem ela só o vegetativo obscuro do qual nada se sabe. Ou pouco. Que pavor assolará a hora do enfrentamento. Aguardar o momento que é uma certeza na vida. Dizem que se consegue rever tudo num átimo. O bem e o mal realizado. Os momentos felizes e as dores que se suportou com coragem. E agora? Esperança que vem do pensamento positivo: tomara demore a chegar. Mas demorará? Os que pretensamente se dizem capazes de antecipar o futuro também estão sujeitos a esta regra única. Eu ouso ir mais longe. Eu ouso dizer que são duas as certezas universais, e não uma: a morte, e se pagar impostos. A segunda assusta e nos faz preocupados, mas a primeira é o temor de todos os seres pensantes. A passagem deve ser doce, inebriante e efêmera. Para o nada, o atemporal, o imaterial. Então, por que temê-la? O sofrimento só existe na jornada; no chegar até lá. Aguardemos, pois.
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Hélio Guedes Petrópolis/RJ
O Rato Que Tocava Trombone Dentro de cada mão eu tinha uma noz. Dentro de uma tinha um gato. Na outra, um furado e velho sapato. As duas colhi em um pé de avelós. O sapato, apesar de velho, era bem veloz. Já o gato, muito gordo, parecia um carrapato. Depois olhei direitinho e do gato saiu um rato E no velho sapato, entrou um belo albatroz. O albatroz com harmonia começou a cantar Já o rato, esperto, com maestria tocava trombone. Era dupla afinada e hermosa, linda ao luar! Depois foram juntos tomar um bom espumone. Enquanto isso, o gato e o velho sapato dormiam abraçados. Em profundos sonhos, amando-se como dois esparadrapos. Muito felizes com juras de amor escritas em guardanapos. Nada mais lindo! Bem esfarrapados e constipados. Guardei todos esses desvairados em cada mão E, entre os dedos, cuido com todo amor e vontade, Com apreço desdobrado, cuidado e educação Afinal, são todos filhos de minha louca sanidade.
https://www.facebook.com/helio.oliveira.771282
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Ilana Sodré Salvador/BA
O rato Boa tarde. Você não sabe o que acaba de acontecer!!! Estou tremendo até agora. Ainda sinto o odor de rato morto. Aconteceu assim... Há meia hora resolvi investigar o odor para recolher o corpo, jogar fora e melhorar a qualidade do ar. Qual não é minha surpresa quando arrasto o sofá e vejo um rato imprensado contra ele? O problema, no entanto, era que o bendito rato estava vivo. Estava entre a parede o sofá, as patas tentando erguer seu corpo minúsculo e fragilizado. O rabo mexendo descontroladamente como se em busca de uma salvação. Eu, medrosa como a porra e nervosa como só alguém sem noção alguma de horário e lugar pode ser, gritei tão alto que o papa lá em Roma deve ter escutado o pavor em minha voz. Ah, minha senhora, nem te conto. O bicho estava nervoso de um lado, eu histérica do outro. Meu primeiro pensamento foi na manhã de hoje, quando você encontrou o ninho dos ratinhos. Lembra que um deles correu até a tábua que encostamos no corredor da área de serviço para que a tartaruga não entre em casa? Fiquei abismada. Foi a primeira vez que vi um bicho como aquele ratinho semi desnutrido e que mal conseguia pular uma tábua com menos de vinte centímetros de altura. O mesmo animal estava ali, atrás do sofá, esperneando contra a parede, fazendo minhas pernas tremerem, meu coração pular acelerado e minhas mãos, envolvidas pelo momento, ganharem vida própria e uma característica que eu não tenho em uma gota de meu corpo roliço: coragem.
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O baque do sofá contra a parede deve ter feito eu, o rato e a vizinhança nos assustarmos. Só a possibilidade de ter que enfrentar aquele roedor já me fez querer sair de casa e pedir abrigo ao vizinho mais próximo. Porém, meu sangue fervendo foi mais coerente que minha mente, a esta altura tão frita quanto o bife que comemos no almoço. Afastei devagar o sofá, ainda estava em dúvida se o bicho estava vivo (desde o princípio achei que ele havia morrido com o veneno e estava só agarrado estofado). Consegui a proeza de não deixar o bicho sair do lugar. Ele ainda se debatia, mas estava preso. Empurrei mais uma vez, com força, medo e histeria. Fui, corajosamente, diga-se de passagem, até o outro lado do sofá, onde o bicho se encontrava. Parei na frente e empurrei com força, com medo de que ele estivesse já solto e pudesse correr por entre meus pés me fazendo gritar e acordar Jang Ki Yong, que está prestando serviços ao exército na Coreia do Sul, na Ásia. Voltei ao meu posto e mais uma vez afastei o sofá. Pude ver então um rabo que não se mexia. Seria truque? Cansaço? Minha miopia podia, de alguma forma, ter se agravado nos poucos minutos de embate bicho versus humana? Ah, minha querida mãe, foi com pesar que fui até o outro lado, para ver se havia ganhado o embate. Mal olhei parede quando outro grito voou de minha garganta seca. O bicho, esmagado, parecia um personagem de desenho animado atropelado. Quase imitei minha prima, aquela sua sobrinha que deixa a urina escorrer pelas pernas sempre que sente medo intenso. Mas fiz algo ainda mais estranho, contrariei meus hábitos, esqueci-me do ateísmo e comecei a pedir perdão a Deus por matar uma criatura. Foi o choque, creio eu, afinal, sou a matadora oficial de baratas da família. E nem lembrava mais como se fazia o sinal da cruz. Tive que afastar o sofá para pegar o rato. Ainda me arrepio só de pensar. Coloquei-o no apanhador e, depois de colocar no lixo, joguei fora as luvas que vesti quando comecei a arquitetar este maligno plano de morte. Devo dizer que a ficha de minha maldade passional só caiu quando encontrei um pedaço vermelho dos miolos do rato na parede. Limpei-o com repugnância e joguei no lixo. Estou traumatizada. Pior, não consegui achar o rato morto que, por princípio, me fez iniciar a busca. Por isso envio-lhe esta mensagem urgente, peço que volte imediatamente para casa. Esqueça o trabalho, o dinheiro, as responsabilidades e volte, estou com medo do posso fazer se eu for tão cruelmente atacada outra vez. https://medium.com/@ilanasodre
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Ilmar Ribeiro da Silva Rio de Janeiro/RJ
Sonho Sonhei que estava perdida Numa gigantesca floresta Corria para um lado, não via nada Olhava para o outro, só via a mata. Sentei-me embaixo de uma árvore E foram surgindo os animais Os miquinhos com suas macaquices O leão rugindo tranquilamente. O elefante jogou-me água, com a tromba A onça carregando o filhote na boca A pantera com seu olhar penetrante Eu me encolhi ofegante. O tigre olhou-me, charmosão O rinoceronte arrastou as patas no chão Todos me rodearam Eu acho que gostaram de mim. Acordei...
ilmarribeiro@yahoo.com.br
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Iraci Marin Caxias Do Sul/RS
Velório Baixou uma tristeza geral na cidadezinha quando se espalhou a notícia do falecimento de Dona Isolda. O velório se deu no salão paroquial, que ficou o tempo todo cheio de pessoas que queriam se despedir, com muitas lágrimas espontâneas, daquela alma bondosa, além dos familiares. Estendida no caixão ornado de rendas, com muitas velas e flores ao seu redor, Dona Isolda era envolvida por alguma luz invisível. Os sinos tocavam a cada hora e seus sons soavam como um lamento. As rezas e os cânticos eram contínuos. Rezadores e cantores se revezavam e a contrição só não era maior porque sempre tinha uns que falavam de futebol, da colheita do fumo ou do milho, ou faziam comentários concupiscíveis a respeito de alguma mulher. Elas faziam também seus intermináveis comentários sobre comidas, falavam dos filhos ou do marido. Uma delas deixou escapar que descobrira um segredo escabroso do seu. Não revelou o segredo, mas cada mulher que a ouviu acabou criando um. No início da tarde, o cheiro de vela e de jasmim dominou o ar abafado do salão. Ouviam-se pessoas tossindo com mais frequência. Uma senhora botou a mão no peito e respirou fundo. Alguém percebeu que ela não se sentia bem e fez vento com a mão sobre seu rosto. A dor daquele momento ficava maior com a dor que sentia no peito, provocada pelo ar infestado dos cheiros de velório. Dona Isolda, alheia a tudo, enxugava. O transe em que todos se encontravam não permitiu que alguém percebesse qualquer mudança dentro do caixão aberto. A alteração na falecida era constante, embora lenta, assim como ficou lenta a cantoria no meio da tarde. Alguém entoou uma canção de esperança e logo se formou um grande coro de vozes roucas: “Com minha mãe estarei / na
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santa glória um dia / Ao lado de Maria / no céu triunfarei.// No céu, no céu / com minha mãe estarei / No céu, no céu / com minha mãe estarei...“ O corpo de Dona Isolda esmorecia, tornando-se cada vez menos Dona Isolda e cada vez mais um ser irreal, transportado por uma força invisível, e transformado numa luz etérea, sem que os lacrimosos olhos humanos pudessem ver. A reza e a cantoria não paravam. Em certo momento, a devota que iniciava as orações falou: “Agora vamos rezar pelo primeiro de nós que vai morrer”. Alguns fecharam os olhos, em piedosa atitude; outros se olharam, surpresos com a invocação. No fundo do salão, um falou baixinho para o amigo: “Vou rezar pra você!” O amigo respondeu: “E eu pra você!” No horário combinado, o padre chegou e, com voz esmorecida de aflição, fez as orações de costume. Concluiu as exéquias com o indispensável “Requiescat in pace!“
A resposta do povo produziu eco no salão e ganhou a rua: “Amém!
Amém! Amém!” Depois, homens fortes levantaram o caixão, logo percebendo que ele tinha apenas o peso da madeira. Olharam-se com ar de susto. Um chamou o padre e cochichou-lhe ao ouvido: “O caixão está levinho. Parece até que Dona Isolda não está dentro dele!” O padre olhou para ele com ar de São Tomé e pegou na alça do caixão. Sentiu a sua leveza. Então pediu para que o baixassem. Baixado, foi aberto e lá estava a figura de Dona Isolda, serena e bela como nunca. A curiosidade do povo quase virou tumulto. Os fiéis queriam saber o que estava acontecendo. O padre levantou os braços, pedindo atenção, e falou em alta voz:“O caixão tem só o peso da madeira. Dona Isolda é vista, mas parece não estar dentro dele.Então, só se pode concluir que ela foi elevada aos céus!É um milagre! Dona Isolda é uma Santa!”A multidão explodiu em desencontradas exclamações e rezas. Alguns se ajoelharam, outros ergueram as mãos em louvação, ou choraram de alegria, outros cantaram esquecidas canções e os sinos soaram sons de aleluia.
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Iremar Leal da Silva
Sorrisos... Gosto de sorrisos... sinceros, sensatos, carregados de amor. Gosto de sorrisos... Que acolhem, que abraçam, que dão segurança. Gosto de sorrisos... que iluminam a alma, que dão esperança, que transmitem certezas quase inquestionáveis. Gosto de sorrisos... que são mais que sorrisos, que são sinais de amor vindos do coração, que transmitem o quanto nossa presença é importante.
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Ivo Aparecido Franco São Bernardo do Campo/SP
A cruz Jesus voltou, ao Flamengo. Quem diria!
Não é verde ou amarelo
Isso mesmo! Jesus voltou!
O que vemos por sinal
“Em dezembro de 81, os ingleses na roda”
No vermelho sangue Tudo para Foi um tiro “acidental”
A camisa do Flamengo no corpo Na cruz de asfalto, “jogai por nós”
O rubro negro ataca qual templário
Jesus voltou! O povo canta alegre
Insaciável, insofismável
Vida que segue, a vida segue
Templário louco motorizado Canta seu hino, Jesus voltou!
Na cruz de asfalto o flamenguista Vende balas, ninguém para
Enfrenta seus moinhos de vento
De brinde entrega seu futuro
Está feliz, Jesus voltou!
Está feliz, Jesus voltou! Calam a torcida rubro negra Jesus em tudo, em todos
Demônios plásticos
Cada ser vivo, cada habitat
Demônios drásticos
E poderia ser salvo Mas ninguém quer
Outro garoto não tem mais
Mais ajudar
Os sonhos, neoliberais Decidiu tomá-los à força
Melhor fabricar pregos
Por isso foi à forca
Porque devemos Nos sustentar
Sem educá-lo, vão castigá-lo Um estampido, o mal foi feito
Camisa voa e vende balas
Um rubro diferente na camisa
Felicidade, Jesus voltou!
Cruz de asfalto agora está no peito!
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Ivy Gobeti Santo André/SP
Os Soldados Um a um, os soldados, em seus círculos, Do uniforme um símbolo seus corações. Um a um na continuidade da marcha, Os soldados no fogo e explosão estendem em Uniformes o símbolo de seus corações. Os soldados, um a um, em seus corações são uniformes Na descontinuidade de sua marcha, A explosão, símbolo, de um a um, Do soldado, o fogo. Um a um, os soldados sonham com a guerra, Fazem seus sonhos na terra, Amam as sombras distendidas da carne, Um a um, amam os soldados o altar da guerra. Os soldados no altar de suas carnes, Sonham com a terra distendida de sombras E amam a guerra de seus corações. Um a um, os soldados em seu cansaço Consertam dramas e brincam de armas. E um a um, os soldados desarmam seus corpos E em suas guerras chegam à chama sedenta, Um a um, caem juntos os soldados No drama de seu cansaço, As armas sedentas na chama dos corações Brincam em seus corpos. Um a um, os soldados sem uniforme perdem o símbolo, Um a um, a marcha sedenta chegada ao altar do coração, Na carne desarmada, um a um, Os soldados brincam com o fogo distendido da terra, Um a um os soldados amam a explosão dos corações, Cai sobre o altar a carne, a guerra.
https://ivygobeti.wixsite.com/my-site-1
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Fotos Jamison Paixão Las Palmas de Gran Canária/Espanha
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https://www.facebook.com/paixaodeoliveira https://www.facebook.com/jpartes.desenho.3
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JAX
Caminhos Floridos* O quadro aí está na parede, com sua paisagem em que sobressai o caminho ladeado por moitas de hortênsias. Quem vê uma paisagem assim, por mais reles venha a parecer a pintura, tende a escutar o convite da Natureza e a enveredar pelo caminho florido, em busca de sensações. Pode ser a sensação da paz renovada, do amor reencontrado ou puramente sonhado, da simples quietude, vegetal ou mesmo vegetativa, proporcionada por árvores, plantas e, especialmente, pelas flores. Claro que se oferecem alternativas de caminhada tão numerosas quantas as paisagens que distintos pintores desejaram retratar. Há rotas mais ensolaradas, outras cheias de sombras pela pujança florestal. Descortinam-se itinerários longos, cujo destino final está fora do alcance da vista (mas não da imaginação), ou curtos, que já apontam seu ponto de chegada, seja a pequena choupana, de ares românticos, seja o imponente castelo, a sugerir mil histórias a quem ali vai. Existem múltiplas opções para a peregrinação mental. Caminhos foram feitos para serem percorridos. É de sua essência. Por mais sedentário se mostre alguém, dificilmente deixará de sentir, pelo menos, a vontade de tomar a trilha convidativa. Excetuados os casos de total e absoluta mediocridade, em cada ser jaz, latente, a expectativa da aventura, de descobrir a inspiração que lhe falta e da qual carece para dar o grande passo no mundo real. Basta ir a qualquer galeria, olhar os quadros e escolher seu trajeto. Só ou, melhor ainda, ao lado de quem se ama. Boa sorte, caminhantes! Quem sabe a sorte não lhes sorria a ponto de encontrar Cecília Meireles pelo caminho, com seu olhar poético e sábio, a ensinar que a vida pode (e deve) valer a pena?
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Trilhas acolhedoras e inspiradoras constituem o objetivo ideal, sem descuidar-se, no entanto, de diferentes possibilidades. Caminhos podem revelarse tortuosos e difíceis de andar, pois mesmo as intenções mais românticas e otimistas não estão imunes a obstáculos. Quem quer aventurar-se tem de estar preparado para o que der e vier. Questão de não permitir que o sonho se transforme em pesadelo, nem na trajetória projetada, nem na vida de verdade. Coragem, peregrinos! Não há o que temer. Basta ter atenção para evitar tropeçar na estrada. Divagações e devaneios exigem um mínimo de disciplina no rumo certo, sem se perderem em desmesuradas ilusões. Não se pretende negar que vagar à toa pelo caminho florido diante de si possa permitir a passagem da inconsciente ilusão à consciência do próprio eu ou da realidade circundante. Tudo é possível, como se costuma afirmar. Não custa, porém, prevenir os incautos quanto aos riscos de caminhar demasiado ao léu, no único intuito de mirar as flores em cada margem da estrada. Cabe mostrar-se mais positivo, munir-se de propósito para alcançar bom resultado. Afinal de contas, passar da ilusão à desilusão constitui passo diminuto em qualquer caminhada. Ninguém que se aventure dentro do cenário onírico merece desfecho similar. Já chega o eventual penar do seu cotidiano! Quem atende ao convite do caminho florido na tela requer a devida compensação, no mínimo aprender que sonhar é arte que permeia e transcende as demais. Nada para principiantes. As flores apresentam-se como prenúncio de marcha agradável, em meio a cores e perfumes. Se algumas têm espinhos, não se vá pensar que elas tencionam agredir os transeuntes. São meros instrumentos de defesa de algumas espécies – e não raro inúteis como tais contra insetos destrutivos e burocráticos. De todo modo, compreende-se que a beleza procure proteger-se. Em lugar de apreciá-la e valorizá-la, ocorre haver quem lhe queira fazer mal, por despeito ou simples mau gosto. Que mais se pode evocar ante essas paisagens e suas vias à disposição dos seres andantes? Talvez enaltecer seus autores, pouco importam as diferenças na
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qualidade do respectivo trabalho, no domínio na arte de retratar ou no talento para inspirar a viagem de quem vê as obras. Se não estiverem impregnadas de evidente
finalidade
maléfica
ou
tristemente
comercial,
bem-vindas
as
demonstrações de criatividade, das mais modestas às muito requintadas! Agradecem todos aqueles que as contemplem e vierem a acrescentar à sua existência um momento de distensão, de elevação do espírito ou de apreço pela Natureza. A jornada de cada ser necessita de tais momentos. Para caminhar cada dia mais. Para reconstruir, de eventuais ruínas, sólidas edificações pessoais. Para continuar a usufruir dos caminhos floridos...
* Tributo a Cecília Meireles, tijucana como o narrador. Abril 2022.
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Jeferson Ilha Santa Maria/RS
Redespertar A imbecilidade precisava despertar. Redespertar, Ser ouvida, sem ouvidos, gritar, espernear, convulsionar, Infectar, Matar. Ódio e apenas ódio. Discurso sem ouvidos, Ataque. Nomear inimigos. Bombardear, Fakenews. Mostre-me sua imbecilidade. Despertamos. Vencemos, destruímos, continuamos. O direito de gritar: Sou imbecil E me orgulho de ser menos que um verme.
https://www.facebook.com/jeferson.ilha @jeferson_ilha
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João Vitor Tóffoli Vacaria/RS
Será Que Jaz De Um Garoto Inseguro? Posso ser aquele garoto? Será inseguro e cheio de medo, tal absolvição do próprio brinquedo, jamais irá retornar com desejo, as palavras paradoxais de ensejo. E se eu for? Alienado conforme a existência, são os inúmeros padrões de aparência, espelho refletirá a miragem, desconstruindo tamanha linguagem.
Se for... Herdarei,
As letras escorrerão pelo chão, submissa a lágrima de percepção, irá destronar estes meus segredos, destas desilusões dos arremedos. Se não for... Temerei. Apreciaria tantos momentos, construindo vários dos meus fragmentos, almejando sonhos de tais instantes, delirando por memórias constantes.
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Não sou, não fui,não poderei, amaldiçoarei... Perderei. Condenado pelas minhas escolhas, póstumos passados eram as folhas, hei de contemplar o meu vasto abismo, perambulo céu e inferno do ascetismo.
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Joaquim Cesário de Mello Recife/PE
Cemitério das Nuvens Nunca consegui acompanhar o findar das nuvens e o ocultar dos seus desvanecimentos Desde garoto contemplo o suave esbranquiçado dos seus movimentos a pincelar desenhos formas e rostos como algodões a desinfetar o céu pigmentando minha alma de azuis Não é a vida que passa ou muda são as nuvens que se transmutam em nuvens no bailar infindável e irrepetível de suas liquefações Para onde vão as nuvens e este menino onde meus olhos fatigados não alcançam além dos horizontes negados às mãos? O que há no mar a seguir deste em que navegam sem peso ou gravidade que as segurem no arrastar-se sobre o ventre da terra em que habitam diminutos demais insetos? Quando chegar a hora do meu desaparecimento quero ir para onde estão minhas perdidas nuvens este secreto paraíso de inocências e ingenuidades e me deixar chover por todo o resto da eternidade
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Joedyr Bellas São Gonçalo/RJ
Um Dia A Mais, Um Dia A Menos O homem pediu uma cerveja e um conhaque. O bar está cheio. Não diria lotado, mas cheio. Uma mulher, sentada em um banquinho, canta macio acompanhada de um pianista. A voz é tranquila e rola num tom suave. As notas fluem mansamente. O bar segue sua rotina de ser bar. Um falatório dos diabos, vozes se confundindo, e cada pessoa vai vendendo seu peixe, minha mãe, quando o falatório era grande dentro de casa, e ela queria um pouco de sossego para um cochilo depois do almoço, berrava pedindo silêncio e emendava logo com um isso aqui tá parecendo um mercado de peixe e cada pessoa vai vendendo o seu peixe. As palavras vão se misturando. O homem que pediu uma cerveja e um conhaque esboça um sorriso. Ele está só. A modernidade, os tempos modernos, não permite que uma pessoa ande sozinho um segundo sequer, e eu estranho o homem solitário bebendo sua cerveja e seu conhaque. Não acho estranho por estar bebendo cerveja e conhaque. Ele termina de beber um copo de cerveja e tranquilamente dá uma bicada no conhaque para em seguida encher o copo de cerveja e repetir o ritual. Um copo de cerveja e uma bicada no conhaque. Isso não me causa estranheza, o que me chama a atenção é o fato de ele estar sozinho em um século que exige que as pessoas andem acompanhadas. Andem acompanhadas e falem ao mesmo tampo. As pessoas vão falando. Em uma mesa, mais adiante da minha, um casal, entre uma mensagem e outra no celular, falam qualquer coisa e riem sem tirar os olhos do celular. As pessoas não param de rir. Nem de falar. Eu olho pra minha mulher e falo pra ela que preciso ir ao banheiro e que, talvez, na volta, eu peça ao pianista e à cantora para tocarem a nossa música. Ela não
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desgruda o olho do celular dela, faz um gesto qualquer com a cabeça e dá de ombros. Eu penso, qual é mesma a nossa música? O homem vai no seu ritual de beber cerveja e conhaque, lentamente, e nessa lentidão, ele já vai para a segunda cerveja. O conhaque ainda é o mesmo. O garçom traz a garrafa de cerveja para o homem, faz menção de servi-lo, o homem recusa, o garçom deixa a cerveja em cima da mesa e sai resmungando qualquer coisa. As palavras vão se misturando. Só o homem que não fala nada. Ele está só. Será que ele foi abandonado no altar pela noiva e adquiriu o hábito de beber sozinho cerveja e conhaque para esquecer as mágoas? Será que ele marcou um encontro e levou um bolo? A minha mãe fazia um bolo gostoso de chocolate com calda também de chocolate derramada por cima do bolo. Comíamos de lamber os beiços. Será que o homem tem alguma decepção remoendo no peito? Penso em me chegar perto dele, perguntar qual o conhaque que ele está bebendo, só pra puxar conversa e servir de companhia pra ele, nem que seja por um segundo. Desisto da ideia. Lá fora está chovendo. Não forte. Uma chuvinha de não encher ruas nem de derrubar encostas nem barracos, graças a Deus. Será que o homem sabe que lá fora está chovendo?
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José M. da Silva Rio de Janeiro/RJ
Retratos Um conto pandêmico.
Não conseguia explicar a origem do tal
mortas. Teria sido alguma "herança"
"poder", mas certamente surgiu durante
do vírus? Não sabia. E jamais saberia.
a pandemia. Aos setenta anos, professor
A notícia se espalhara, e sua
de
literatura,
foi
diagnosticado
com
habilidade já fora atestada por quem
covid, internado e intubado. Dois meses
conhecia de perto os fotografados.
depois
Para
voltou
para
casa,
ele,
passavam-se
poucos
milagrosamente curado e sem grandes
minutos de seu tempo durante a
sequelas perceptíveis, a despeito de
"viagem", mas vivia longos períodos
todas as disposições em contrário do
na vida daqueles indivíduos. Como
desgoverno
então.
apareceria no local e na época, era
Exceto por um detalhe: olhava para
sempre uma surpresa: foi menino,
qualquer
menina, homem, mulher, gay, lésbica,
negacionista retrato
fotografia,
na
encarava.
Não
personalidade
e
vida é da
de
"entrava"
na
pessoa
que
da que
assumisse
pessoa;
não,
a
não
teve
diversos
outros
gêneros
e
orientações sexuais, foi branco, preto, indígena,
amou,
roubou,
matou,
"encarnava" na pessoa. Simplesmente
esteve em guerras, foi feliz, infeliz, e,
aparecia no local, sempre próximo à
o mais interessante, morreu diversas
pessoa
vezes,
retratada,
e
interagia
por
diversas
causas.
normalmente com todos. Desenhos não
Curiosamente, lembrava-se de tudo
funcionavam; era preciso ser fotografia.
vividamente quando voltava.
Nada
acontecia
locais,
A pandemia já terminara fazia
pessoas:
cinco anos, e ainda recebia visitas do
homens, mulheres e crianças, vivas ou
mundo inteiro. Virou notícia, dava
construções
e
se
enfocasse
objetos;
só
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entrevistas para curiosos e especialistas,
perto.
Algo
e era conhecido como "o velho dos
Entrou
no
retratos".
sua
pessoa mais agradável, interessante,
"habilidade", que aparecera de repente e
inteligente, bonita, elegante e sensual
sem sua participação direta; não seria
que já encontrara. Descobriu que, no
ético. Quando estava no lugar, conhecia
momento da visita "retratista", ela
pessoas
morria; retornou e contou tudo à
Jamais
e
obrigado
a
cobrou
lugares, refletir
por
divertia-se, sobre
os
era mais
inexplicável retrato
e
o
movia.
conheceu
a
família. Bem, quase tudo.
diversos assuntos; quando retornava,
O
problema
é
que
se
ajudava a elucidar dúvidas sobre amigos
apaixonara. Pediu a foto de presente,
e familiares desaparecidos. Aproveitava
alegando
uma
razão
qualquer.
a experiência, tão somente; por isso,
Sempre
que
ficava
sozinho,
não
encontrava-se com ela. Devido a sua
se
sentiria
bem,
caso
tivesse
benefícios financeiros. Sim,
experimentara
que
desenvolvera
ao
a
longo do tempo, começou a encontrá-
curiosidade de olhar para suas próprias
la bem antes de quando ela já estava
fotografias.
e
no final da vida. Fizeram amizade do
decepção, nada acontecia. Concluiu que
outro lado, viam-se frequentemente,
o tal poder adquirido não poderia ser
apaixonaram-se e passaram a viver
utilizado em benefício próprio, talvez
juntos. Nada disso foi compartilhado
para que não conhecesse seu próprio
com os solicitantes da época atual.
futuro. Fazia sentido, mas nunca pôde
Com reprovação dos moradores do
provar sua teoria.
lugar
Certo
já
habilidade,
Para
dia,
sua
surpresa
mostraram-lhe
um
onde
ela
vivia
–
tudo
se
passava no século XIX –, ela decidira
porta-retratos com talvez a mulher mais
viver
bela que vira em todas as suas vidas.
aparecera
Foi informado de que fora uma escritora
supostamente, como lhe dissera, um
aparentemente celibatária que morreu
comerciante
com noventa anos de idade, a causa da
retirara da "cidade grande" com suas
morte
lhe
economias
de
tranquilidade
exatamente
perguntavam
então.
o Urgia
que vê-la
85
com
aquele do
homem
nada
na
bem-sucedido para em
viver uma
que
cidade, que
com
se
mais
cidade
do
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
interior. A história foi aceita. Como era
queria,
nem
muito benquista e tinha seu sustento
hipótese, arranhar a reputação de
devido ao que publicava, deixaram os
sua
dois em paz. Ao menos, aparentemente.
História como uma grande escritora.
Foram felizes.
A bem da verdade, era ela quem
amada,
na que
mais
remota
passou
para
a
Ela escrevia romances, histórias
arcava com todas as despesas, visto
de amor, algo bem requisitado na época.
que as tais "economias" acabaram
Celibatária, para todos os efeitos –
logo; para não o magoar em sua
embora a história real não fosse bem
masculinidade, por acordo entre eles,
essa –, era admirada pelas mulheres,
ele recebia uma parte do que ela
por definir os padrões do "amor" a ser
ganhava com a venda de suas obras,
perseguido pelas "mulheres de bem",
por sua "contribuição literária". Tal
ainda que, supostamente, ainda não
arranjo satisfazia os dois.
fosse iniciada nos mistérios práticos da
Tiveram uma vida em comum
conjunção carnal – o que a tornava algo
plena
próximo
uma
com tudo de bom e confortável que o
pitonisa, uma enviada de Deus; os
dinheiro pode comprar. Amavam-se.
homens não a perturbavam, por não
De corpo e mente. De alma, não
lerem suas obras e as colocarem como
sabiam, por serem ambos ateus. E
"coisa de mulheres", ou seja, nada
aqui está algo que o deixava bastante
ameaçador aos bons costumes e a sua
intrigado:
posição de poder. Ele, de sua parte,
relacionara-se
contribuía
mulheres, mas sua relação com esta
oriundas
de
uma
com de
visionária,
algumas
sua
sugestões
experiência
como
e
mulher
tranquila,
em
do
seu
complementada
"tempo
com "além"
atual", diversas
era
algo
professor – e leitor voraz – de literatura.
indescritível; era como se fosse algo
A rigor, em muitas situações, era uma
distinto do que sempre considerara
parceria
amor, sexo, interesse, admiração, em
literária,
mas
ele
jamais
desejou ou exigiu ter seu nome nas
suma,
publicações dela, até porque não sabia
explicar
exatamente
abdicaria do sentimento por aquela
como
funcionavam
as
regras dessas "viagens no tempo"; não
86
apaixonamento. a
razão.
Mas
Não
sabia
por
nada
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
mulher
que
tão
plenamente
o
completava em todos os sentidos.
amante sobre o ex. Talvez o romance tivesse desfecho diferente, caso ela
Existia uma coisa que nem ele
fosse mais atenta e compartilhasse
sabia, e aqui há um fato crucial a
seu passado com o homem que vivia
respeito
com ela agora.
de
suas
"viagens
astrais":
jamais descobriu o que lhe aconteceria no
"final
da
história",
Tudo isso explica o fato de ela
caso
não ter sido tão celibatária quanto
permanecesse no lugar e na época;
rezam as lendas a seu redor, o que
sabia unicamente o que ocorria com
não constitui de modo algum mancha
quem
caso
em sua biografia. O problema é que
específico, ao encontrar sua amada, no
nosso ex-agraciado pelo carinho dela
"tempo de lá", ele tinha vinte e cinco
não
anos, e ela, trinta. Ele morreria aos
especialmente por alguém de fora da
trinta e dois, e ela, aos trinta e sete,
região, algo que acontece até hoje,
ambos
séculos
"visitava".
Naquele
assassinados
por
um
ex-
aceitou
e
ser
séculos
preterido,
amém
depois.
pretendente da mulher, insatisfeito com
Surpreendeu os dois em seu leito no
a
meio da noite e os matou a facadas.
escolha
que
ela
fizera:
um
desconhecido de quem ninguém sabia a
Durante o tempo que passou
origem, em vez dele. Ela e o ex tiveram
com sua amada, às vezes retornava
um
ao
romance
secreto,
que
encerrado época,
tórrido, durou
por
ela,
conturbado
quase que,
um
já
diferentemente
e
ano,
tempo
estavam
perseguiu
Evidentemente, o
término
discretamente.
Ficava
pouco
sozinho e não ter familiares, ninguém Quando
aceitou
como
suas
de
vontades
jamais
coisas.
ver
tempo e logo retornava. Por morar estranhou
ele
as
para
naquela
contemporâneas, não se submetia a masculinas.
atual
e
Com
muito
suas
retornava,
a
envelhecia
a
conseguia
ausências.
percebia
que
acentuadamente;
mal
se
locomover,
e
o
chegada
do
visitante,
parecia
ter
apartamento cheirava mal, pois fazia
desistido
de
qualquer
espécie
de
suas necessidades na própria cama,
vingança, e ela relaxou a atenção; com
visto quase nunca estar presente
isso,
para usar o banheiro, tomar banho e
nem
sequer
contou
ao
novo
87
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
limpar o local. Entretanto, sua vida do
Encontraram em sua mesinha
outro lado era sua prioridade máxima;
de
foi lá que encontrou sua realização ao
presumivelmente escrito não muito
lado de sua amada, era mais jovem,
tempo atrás: "Estou amando como
tinha um futuro promissor ao lado dela e
nunca amei. O amor me trouxe vida
já não ligava para sua vida do lado de
nova. Sou um velho-jovem realizado.
cá. Mal sabia que tudo seria abreviado
Nem sempre o amor acontece em
do lado de lá por culpa de um homem
nossa época."
violento e enciumado, mas, mesmo na
cabeceira
um
bilhete,
Compreensivelmente,
hora da morte, não se arrependeu de ter
consideraram
vivido seu grande amor.
alucinação de um idoso sem o pleno
O corpo do velho foi encontrado tempos depois; até onde se constatou, morrera
enquanto
alguma
gozo de suas faculdades mentais. Uma pena. Foi enterrado aqui e lá como
cama, naquele apartamento fétido e
indigente: aqui por não tem quem
sujo. Devido a sua expressão facial de
arcasse com as despesas, lá por ser
profunda
ninguém.
deduziram
em
texto
sua
dor,
dormia,
o
que
fora
Lá,
sua
amada
foi
acometido por algo que lhe causou
enterrada com pompas, com o caixão
sofrimento extremo em seus minutos
fechado,
finais. Sua morte do lado de cá não
fugiu e jamais foi encontrado, como
refletiu toda a beleza do amor que
sempre aconteceu, sempre acontece
vivera do lado de lá. Uma pena.
e
obviamente.
sempre
acontecerá.
@microstoriesjms https://operamea.weebly.com/
88
–
O
assassino
infelizmente
–
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
José Manuel Neves Almada/Portugal
Os fósforos esquecidos Na sala o silêncio era pesado No palco, o drama envolvia. A actriz lia a carta do pecado E a sua mão, de prazer tremia. Ouvem-se passos. Alguém a chegar. A carta tem de desaparecer já. Procura fósforos para a queimar, Mas alguém esqueceu de os pôr lá. Toma uma decisão apressada, Rasga a carta em muitos pedaços E atira os pedaços da carta rasgada Para o cinzeiro e cruza os braços. Abre-se a porta na esquerda baixa Entra o marido a fungar desconfiado Olha o cinzeiro e altera a deixa: “Cheira-me aqui a papel rasgado”. Ela olha-o sem saber o que dizer. A representação está condenada. No palco o drama acabou de morrer Na sala, a assistência ri à gargalhada.
https://joseneves.tambemescrevo.com/
89
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Júlia da Silva Colombo
Da caixa de vidro
Eu te amo Maria Carolina. Te amo com todo o amor do meu coração. Eu já não sei mais olhar o mundo sem pensar no jeito como te vejo, com tantas cores, tamanhos e fatores. Entenda: não choro de alegria, não. Choro de tristeza, porque todo esse meu amor por ti não vai me salvar. Nem toda a vontade que eu tenho de ti vai ser capaz de me tirar desse quartinho. Estás do outro lado do vidro, Mari Carol, e eu só penso, noite e dia, que não vou mais poder sentir teu perfume. Não podes entrar aqui, em circunstância nenhuma. E eu não posso me desligar das máquinas, muito menos tentar lutar contra o vírus sem a ajuda dos médicos. Tudo isso só me mostra que estou certo quando digo que nem todo o meu amor por ti vai me salvar. Mas, nem por isso eu paro de te dizer que te amo. Maria Carolina, tu foste a canção mais melodiosa que eu já ouvi, e eu nunca vou deixar de te amar, mesmo que eu nunca mais saia dessa caixa de vidro.
juliacolombo2003@gmail.com
90
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Jussara Nunes
Rapina (Ilustração)
91
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Keli Vasconcelos São Paulo/SP
Da periferia ao centro Passo rápido na ladeira íngreme O sol nem acordou e vamos lá rumo ao nada Pouco assento, muita gente Todos pulam dentro da carcaça metálica a cada lombada Gente ri, gente chora Olha o mendigo perambulando do lado de fora Será que ele comeu? Será que você tomou o café? E nós contamos os trocados para sanar o ronco dos estômagos Passo, compasso, régua, computador Há um currículo sendo aberto pelo diretor Terno amassado, termo aprumado Eu no escritório lotado Um ‘talvez’ é pior que um ‘não’! De novo, na estaca zero! Nessa ginga a vida prossegue Mais um dia adormece E eu, porta-bandeira sem mestre-sala Tiro o sapato para descansar meu pé de desempregada! Sou o fio da navalha! Pronta para cortar toda a maldade
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Descendente de nordestinos fugidos da seca no pau-de-arara Me ensinaram a não desistir da batalha Enganar o leão com uma espada: a palavra! Da periferia ao centro, eu represento! Durmo logo porque a amanhã a rotina continua Espero que ‘muda’! Como aquela muda que mãe água agora Cresce árvore, cresce esperança E assim segue a dança...
Blog: keliv1.tumblr.com
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
L. S. Danielly Bass Marília/SP
Condição Humana
Homem, tão importante Sente-se como um gigante Morre como um infame Vive ignorante Da condição insignificante De uma existência irrelevante Frágil como qualquer ser Ele jura ser relevante Acha-se demasiado importante Até a morte bate Até mesmo um verme Pode destruir seu ser Então ele vê, seu corpo gigante Não tem nada de grande Seu significado descartado em um instante
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Sua mente, que ele acha tão interessante Mas usa em breves instantes Sem seu corpo não é relevante Em um único instante Percebe que não é nada Nesse mundo gigante O homem, tão frágil, Busca por significados Morre insignificante
@l.s.daniellybass https://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=222558
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LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Leandro Emanuel Pereira Matosinhos, Portugal
Dinâmica Entronizada Eu fiz o sarcasmo; Parecer uma diva; Perdida no marasmo; Sem peso nem medida… Coube em mim; Ser filantropo; Ou perdurar sem fim; No caos do topo… Satisfaço-me a dosear; Os sentidos que me ensamblam; E que fazem aflorar; Os propósitos que me cantam… Meias medidas; Premeiam metas falhadas; Prefiro curar as feridas; E vencer as batalhas…
96
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Lira Vargas Niterói/RJ
Contra o Tempo Percebi na última festa de aniversário
tempo, fiz a primeira plástica, um ano
um zero depois do numeral. Aplausos e
depois outra plástica, e depois uma
brilho nos olhos de meus convidados.
outra reparadora porque a primeira
Uma alegria, que entendi depois que
deu
todos
tinha
envelhecia por dentro, e lá dentro
vencido. Vencido o que? E ganhei o que?
não havia especialista para plastificar.
Naquela noite fui cansada para a cama,
Percebi
olhei meus cabelos como a fiscalizar e
academia para a cirurgia plástica,
percebi que a pintura estava perfeita. Os
para
dias passaram e as linhas em minha
esfoliastes e hidratantes. E a maldita
pele
formas,
frase em cada encontro “nem parece
quadradinhas, retinhas, mas não queria
ter essa idade”. Percebi que a luta
isso pra mim. Corri para a academia de
contra o tempo era desigual e quando
ginástica e falei para o personal trainer ,
estava sozinha, sentia medo, medo
que um exercício urgente para meus
de perder a beleza ou medo de
braços era necessário para tranquilizar-
perder a juventude? Medo de perder
me. Percebi que as pessoas elogiavam
os amigos e minha família. Eu estava
minha beleza como se fosse recente,
errada.
mas finalizavam “nem parece ter essa
comigo
idade” essa frase vinha como agulhas e
continuavam ali, a espera de um novo
espetavam
minha
encontro para um chá. Minha família
alma. Sentia medo de envelhecer e
se dispersando e eu me tornando um
perder meu status, meu emprego, e o
fardo pesado, meus valores estavam
pior, meus amigos. E perdia a cada ano
em
um amigo para a morte! Corria contra o
Minha beleza estava no que desfrutei
foram
dos
embora,
braços
minha
que
eu
tomavam
alma,
sim
97
errado,
que os
não
a
percebia
corrida
revigorantes,
Meus e
quanto
amigos eu
da
colágenos
envelheciam
nem
deixaria
era
que
de
percebia,
herança.
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
na juventude e no que realizei no
se mostrou lento e aconchegante.
presente, lembranças e paz! Corri tanto,
Percebi que não podia mais correr,
e um dia parei. O espelho revelou as
que cheguei e fui sim, vitoriosa! Que
rugas e as raízes de meus cabelos
meus amigos envelheceram comigo,
brancos. A pele enrugou e li em cada
e minha família? Também na corrida
ruga um episódio de uma história. Minha
contra o tempo. Sorri de tudo isso. O
audição diminuiu, mas no silêncio ouvia
tempo tem uma medida tão exata,
as músicas que falavam de amor. Minha
tão cronometrada que chamo a isso:
memória enfraqueceu para o presente,
TEMPO DE DEUS.
mas o passado vinha alegrar meus cochilos na cadeira de balanço. O tempo
98
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Lizédar Baptista Anápolis/GO
Insônia Chuvosa A chuva semeia suas gotas no telhado Faz barulho com sua enxada de vento E não para o arado Os olhos ardem Ardem pois não descansam Estão fatigados de verem o mundo pelos anteolhos1 vidralinos Os anteolhos hialinos O descanso não acontece A mente não para Borbulha Faz fumaça E cada vez mais
99
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Aquece A noite passa Mas não passa Para E empaca Pernoite horrendo Pernoite involuntário Outra vez Outra vez Que já passa-se das três Insônia chuvosa Insônia trevosa Nem com o chocalho dos grãos de chuva que caem no telhado Nem mesmo com as enxadas de vento que não param seu arado Ela dorme A insônia me corrói Me cansa Me destrói E o véu de Morfeu Ela rói
100
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Lucca Lopes Dias Santos Anápolis/GO
Caminhos Com incontáveis caminhos
Sobre qual trilha seguir
Possíveis para um futuro
Não fará com que se encolha
Como traçarmos sozinhos
O ímpeto de devir.
Nossa jornada no escuro? Claro, surgem incertezas, Cada possibilidade
Sempre há riscos, eu assumo,
Estendendo-se tão crua
Mas também vemos belezas
Quando surge, logo invade,
Quando vagamos sem rumo.
Nossa existência tão nua. Esta é a vida, afinal. Entretanto, cada escolha
É o que nos resta.
101
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Luís Amorim Oeiras, Portugal
Na terra da avó Na terra da avó, o rural é quem manda
Há quem vá prevenido no chicote em
e apesar dos incontáveis cães, o viver
forma de pau, apenas para caminhar
até segue pacato entre os que chegam e
em benefício da saúde, pelo menos à
os que partem. Em tempos vividos por
pardida de caminhada e quem vá à
realmente distantes, houve numerosos
alheia sorte, porventura divina. Na
campos, vistosos, cultivados e trabalha-
missa, o padre dá sermão a toda po-
dos, mas hoje em dia, o urbano distante
pulação, que são cegos e também
é responsável por demasiado abandono,
surdos, parecem bichos, têm compor-
avançando o matagal sem pedir licença.
tamentos distintos consoante estejam
Canídeos não a pedem e é vê-los arras-
na igreja ou fora da propriedade reli-
tando o seu portão até ao início e fim de
giosa, vão à missa apenas para se-
rua, como se a casa não lhes chegasse
rem vistos e assim serem boas pes-
ou, no talvez mais certo, terem a pre-
soas, são egoístas e não pensam nos
tensão de serem os donos da rua, sendo
outros. E assegura que mais acima
quase uma aventura de risco incerto, o
nunca se dorme, pelo que o castigo,
simples caminhar descontraído na pro-
um dia virá. Mas não serão todos as-
priedade alcatroada ou apenas por cami-
sim, ainda que o espírito da avó, mais
nho designada e que deveria ser de gen-
preocupada com os restantes do que
te toda, mas que afinal parece ter-se
consigo própria, seja uma raridade
transformado em rafeira, ainda que so-
que mete pena face a quem não a es-
mente na percepção destes. Felizmente
colhe por adopção e sai enfim um re-
que os cães dormem muito e atravessar
signado encolher de ombros em como
ruas circundantes aos campos, tem pos-
nada haverá a fazer. Uns desviam
sibilidade validada por mais outro vera-
águas dos outros, com torneiras e ca-
neio, pois que no próximo então se verá.
nos de legalidade duvidosa, adicional
102
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
gente tenta mas não consegue ou, de-
espaço. Este identifica-se ao perigo
pois de sucesso pontual, obrigada é na
como lugar vizinho, sendo mais acer-
reposição de situação anterior. Mas tam-
tado o regresso à terra da avó, tam-
bém existe gente boa, levando frutas e
bém ela com seu belo templo e sem
legumes por ter fartura sem qualquer
rafeiros demasiado próximos de sorri-
previsto fim, no gosto de oferecer, igual-
sos rabugentos, quase uns vultos feu-
mente de sua música ensaiada como fol-
dais por perto. Outros ilustres têm
clore e registada por gravada à posteri-
igualmente seu residir, talvez menos
dade. Os ensaios alegres e de contagi-
visitado, mas digno de registo em tri-
ante inspiração festiva são numa antiga
buto. Deste local de honra, deveras
escola primária, relativamente perto de
calmo e preenchido, avista-se a dita
santuário onde padre é o mesmo nos
propriedade da fartura, realmente de
sermões inflamados, sob olhar atento de
grandes dimensões, bem como a se-
seus cães, assíduos de missa sem ladra-
nhora que ensaia música e toca na
rem a ninguém. Só que em dias de se-
sua interminável diversão e alegria,
mana, a música é diferente. Quem for
vislumbrando-se infinitos legumes e
para um retiro espiritual ou de pensar e
frutas à sua proximidade, na verdade
divagar sem fim à vista, fora do templo,
por ela proferida em como haverá
porque este apresenta-se sempre fecha-
sempre para muitas amizades por
do, é de imediato ameaçado pelos rafei-
agradada oferta. Outro ponto bem vi-
ros do padre, uns três bem grandes e de
sível é o imponente acrescento indis-
nulos sorrisos, perseguindo e ladrando
farçável a casa amarela, recente, ain-
até suposto intruso sair do recinto ao
da que agora tenha esse muro posto
santuário, aparentemente propriedade
de cima para baixo até à rua, uma
deles. A casa do padre tem portão direc-
autêntica
to para as escadas, quais altares ascen-
imenso betão do seu terreno, haven-
sionais, sensivelmente a meio do impo-
do quem diga que a propriedade se
nente religioso templo, razão pela qual
assemelha a uma barragem. A rua
os cães saltam as barreiras ou vedações
sobe, no quase sempre e direcção
a fazerem envolvência, de modo a irem
essa serve para ir ao monte na terra
patrulhar com atenção canídea todo o
da avó, encontrando-se casualmente,
103
saia
em
dimensão
por
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
afáveis senhoras que muito gostam de
dono. Este, no dia anterior, até se
conversar e no seu natural cuidado até
deu agradavelmente cumprimentado
questionam um eventual sujeito perdido
desde sua propriedade, uma quinta,
caminhando na terra rural, pelo menos
assim mesmo apontada pelos resi-
até reconhecimento facial indicar o con-
dentes no lugar, sita ao início geo-
trário, apenas um merecido e saudável
gráfico da terra, onde dizia que esta-
passeio de ocasião. Conversa em dia,
va a fazer a poda e tinha eléctrica
desde pretérito ano e rumo ao monte,
máquina para tudo ficar em condi-
onde tudo se percepciona com nitidez,
ções. Do outro lado dessa rua, outra
desde que não seja hora de nevoeiro. É
quinta com mais área de cultivo, qua-
bastante quente, até para a fauna na
se a perder de vista e ao fundo, na
vontade de contracenar ao fotográfico
direcção de ribeiro, distinto terreno
registo, sendo o menos tímido, um feio
na proximidade adjacente, com aloja-
gafanhoto, assim mesmo foi ouvido. Lá
mento de veraneio, recebendo urba-
na aldeia, no centro e mais concreta-
nas pessoas com férias diferentes em
mente pela admirada e afamada horta,
saudável ar respirado. Por esse cami-
perante intermináveis mirones por tudo
nho e quase sempre caminhando no
crescer nela, feito inquestionável mila-
sentido frontal, ainda que com uma
gre apenas divino, passeia-se um pe-
viragem final à direita, histórica cape-
queno, todo verde e que nem ousa fugir,
la se visita, fechada desde tempos
parecendo gostar da hortícola área e de
distantes assim continua com dois
quem lhe dá a suculenta refeição, a
santos em pedra trabalhada sorrindo
exemplo de coelho e uns quantos gatos,
e cumprimentando do seu ponto alto,
demonstrando saber que comida de hor-
na actualidade como no passado lon-
ta é mais benéfica para a saúde. Mas lá
gínquo. E pelo futuro, tudo indica que
em cima, necessária limpeza de monte
continuarão acenando desse sossega-
pela fresca hora, quando o maior calor
do modo até visibilidade que alegre-
já passou e antes de escuro em aproxi-
mente disponham vinda de sua gran-
mação fazer cara feia, tudo fica impecá-
diosa altura. Capela secular pertence
vel até à vizinhança familiar de terreno,
supostamente à mansão em frente,
a ser limpo oportunamente pelo seu
mas os seus vastos campos, a exem-
104
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
plo de outros antes referidos, estão ao
alargar posses. Talvez o padre até te-
triste abandono. Pela aldeia fora, acima
nha alguma razão, descontando no
e dispersando, muito se perdeu de culti-
óbvio a sonora patrulha do santuário,
vo e relações sérias, onde a palavra era
mas pensando melhor, se alguém me-
mais do que suficiente, contrastando aos
rece elogio maior nesta terra, só po-
dias actuais, onde tudo quer papel e às
derá ser a senhora mais apreciada
vezes, para não somar mais em demasi-
pela aldeia, rumando sem hesitações
ada cortesia, apenas pretendendo e in-
uma outra vez até proximidade de
clusive
avó no seu digno templo.
tentando
inscrever
curiosas
adendas à sua obsessiva vontade de
facebook.com/luisamorimeditions
105
LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Luís Fernando Gurgel Itabirito/MG
Conto de Rita Bee, a abelha filósofa - A polaridade Entre diversos pontos de vida no Vasto Terreno, onde existem diversos Reinos, há o Reino de Colmeia, morada de abelhas e zangões. Lá moram Rita Bee e Lina Bee, duas abelhas muito especiais. Lina Bee, neta de Rita, é uma abelha jovem, muito curiosa e questionadora que possui um ardente espírito aventureiro. Vovó Rita Bee é acolhedora e amansa a vontade de fogo da neta com pílulas de sabedoria, afinal é uma abelha filósofa e das mais experientes do Reino. Acredita que tudo nesta vida está conectado e que há uma consciência superior que rege com maestria o universo. Lina Bee estava na varanda da casa da vovó Rita Bee passando uma agradável tarde de domingo regada a mel orgânico, favinhos crocantes, música dos “Bee Tall’s” e filosofia. Lina Bee adorava levar seus questionamentos de vida para a vovó. A velha sábia abelha sempre acolhia a neta com alguma história aprendida nos anos de experiência neste plano. — Vovó, por que existe tanta guerra no Reino? Eu ouvi que estamos novamente brigando com as nossas vizinhas Vespas. Por que elas não respeitam a nossa gente? — Porque, minha neta, a maioria de nós prefere estar certo do que ter paz. — Como assim? Para ter paz não precisamos fazer o certo? — O que é o certo? — Seguir as normas do Reino. — Quem faz as normas? Lina Bee olhou para a avó e encostou o seu lombinho na cadeira em silêncio. Vovó Rita Bee se ajeitou na sua cadeira de balanço feito de madeira nobre, levou a canequinha com o delicioso mel orgânico à boca, degustou e fechou os olhos por alguns segundos, sentindo a música que tocava na vitrola: “Ah, olhe todas essas pessoas solitárias”. — Sabe, minha querida neta — quebrou o breve silêncio vovó Rita —, estou neste Reino há muito tempo e fico com a sensação que estamos todos separados. Você não acha isso engraçado?
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— Estamos mesmo, existem as fronteiras do nosso Reino para nos proteger. — Eu estou dizendo a separação mais sutil, não neste plano físico. Vespas e abelhas não se entendem, procuram se separar, pois as ideias são imiscíveis. A contenda se arrasta há gerações e cada lado entende que está certo, pois as próprias motivações são vistas como justificáveis. Algo se quebrou há muito tempo entre nós e não se sabe o que exatamente, contudo isso foi se armazenando no inconsciente coletivo e direciona as nossas ações hostis. Não é esquisito? Quanto mais se combate mais se fortalecem as diferenças. A cabecinha de Lina Bee fervilhava com essas ideias da vovó Rita. Durante toda a sua vida de abelha ela ouvia que as vespas eram inimigas do Reino. Lina se serviu de mais uma canequinha de mel. — Vou te contar uma história, minha neta, que ouvi em uma viagem que fiz para além do nosso Reino. Fui para além daqueles montes — apontou para um conjunto de morros que podiam ser vistos da varanda —, lá conheci um dos meus melhores amigos, o velho Akame. Lina Bee endireitou o corpo para frente. Adorava escutar as histórias da vovó Rita Bee. — Akame é de uma espécie completamente diferente da nossa. Ele é um ser grande, tem uma carapaça dura nas costas e anda bem devagar. Eu até penso que Akame já vivia antes de existir o nosso Reino. — Puxa vida, vovó! Como é possível isso? — É possível, minha querida neta. Há muitos outros reinos, além do nosso, no mundo de Hymenoptera. — Uau! — Vamos à história que Akame me contou. Havia no Monte um mestre sábio muito famoso. Certa vez ele ensinava aos seus discípulos e, ao terminar o sermão, um deles se aproximou do mestre e expressou a sua compreensão do ensinamento. O mestre disse: “Sim, você está certo”. O discípulo ficou muito satisfeito e se retirou da presença de todos. Um outro discípulo, por sua vez, se aproximou do mestre e deu uma interpretação completamente oposta do ensinamento. Mais uma vez, o mestre disse: “Você está certo”. Este estudante se afastou, também satisfeito. Um terceiro discípulo estava sentado à distância, mas ouvindo tudo. Ele confrontou o seu mestre, dizendo: “Mestre, o senhor está ficando velho. Ambos não podem estar certos.” O mestre olhou para ele e disse: “Você também está certo”. Lina Bee nem piscava. Vovó fez uma pausa, como de costume, para que as informações fossem assimiladas.
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— Que história bonita, mas confusa, vovó! — Sim, é muito desafiante o entendimento. Porém, é possível. Há uma Lei no Universo que aprendi com o meu amigo Akame. Ela se chama Lei da Polaridade, vinda de um livro muito antigo escrito por mestres antepassados. Diz que “os opostos são idênticos em natureza, mas diferentes em grau. Todos os paradoxos podem ser reconciliados.” — Os opostos podem ser reconciliados… — Isso mesmo, pois para esses sábios tudo está conectado. No fim, todos desejamos a paz na unidade. De acordo com esta ideia os opostos podem existir simultaneamente e as coisas contraditórias podem existir ao mesmo tempo. — Ai vovó, deu um nó nas anteninhas! Como é possível realizar isso? No nosso caso, por exemplo. As vespas continuam nos fazendo mal. Como não reagir? — Mais um desafio. Claro que em determinados casos precisaremos nos defender ou proteger quem amamos de atos percebidos como prejudiciais praticados pelo outro. Contudo, minha querida neta, você consegue perceber que se elevarmos o grau dessa hostilidade ao extremo, podemos nos transformar na própria coisa que estamos combatendo? — Nossa vovó, não tinha pensado por este ângulo. A canção dos “Bee Tall’s” ainda tocava na vitrola com uma melodia suave ritmada por um violino e a letra sendo cantada em tom harmonioso que dizia “Todas essas pessoas solitárias (aah, olhe todas essas pessoas solitárias), de onde elas vêm?”. Lina Bee mordiscava um favinho crocante, estava pensativa. — Como não reagir, você me perguntou — retomou Rita Bee. — Em minha opinião e experiência, o remédio para isso é a consciência. Quanto maior o grau de consciência, menos reativos ficamos. Quanto mais inconscientes, mais inconsciência produzimos. E as atitudes hostis irão se perpetuar sem que percebamos o motivo original e irão se cristalizar na nossa cabeça, fortalecendo um ciclo vicioso de separação e, ainda, retroalimentando o inconsciente coletivo. — Como eu fico mais consciente, vovó? — Ah, que boa pergunta. A resposta, penso eu, é praticar a presença sustentada. — Presença sustentada?
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— Sim, estar presente no aqui e no agora. Ser testemunha dos próprios pensamentos. A voz do pensamento não somos nós, Lina. Se você conseguir perceber que há algo que observa o pensamento, você estará começando a jornada do herói: despertando a consciência. Uma boa dose de consciência pode dissolver pensamentos hostis e ver o outro além da sua inconsciência. Afinal, tudo caminha para a unidade. — Nossa, vovó, que bonito isso. Será que eu consigo? — Claro, requer esforço, mas é possível. Eu pratico todos os dias, meu amigo Akame já é mestre. Pense que você irá frequentar uma academia diariamente, porém esta academia não é para fortalecer os seus músculos e asinhas. Esta é uma academia da mente para fortalecer a sua consciência e para reduzir o poder que os pensamentos do inconsciente pessoal e coletivo têm sobre você. — Entendido. Vou fazer “flexões de mente”. Rita Bee gargalhou. — Flexões de mente. Gostei disso!
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Marcel Luiz Contagem/MG
Marco , do nada a pouco recebi um amor que correndo corpo adentro gritou pela casa do meu ser vento em redemoinho abraçando saudades aninhando-se em meus braços (culpa sua essa euforia esse estado de não sei que essa lucidez de sentimento) aconcheguei-o e o recolhi acalmei seu cansaço ele me olhou com ternura invadiu meu peito e deixou meus olhos como faróis acessos
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Marcelo Foohs Porto Alegre/RS
Poesia Marota O poeta que pensava que a poesia que escrevia era sua fiel amante Um dia ficou irritado ao vê-la acenando dos braços de um outro homem Porque fazes isso comigo miserável Não te lembras que eu te escrevi? E tu, homem bobo, não sabes que me cria em sua mente todo aquele que me lê? Com cores vibrantes com que tu nunca me adornaste E perfumes agradáveis com que tu nunca sonhaste Te rasgo então, disse o poeta furibundo Pois rasga-me se podes Faz-me em mil pedacinhos se te apraz E cada um dos pedaços que só te pertenceram por um momento fugaz Servirão de inspiração para mil outros que irão me amar
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Marcos Rocha Teixeirópolis/RO
Reflexão
Às vezes devemos pensar antes de tomar qualquer atitude. Uma atitude errada pode custar a nossa vida. Antes de fazer qualquer coisa pense para que nada venha dar errado.
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Maria Inácia Natal/RN
Como é perdoar? Perdão? Como seria perdoar? Talvez seja entrar em si mesmo e reconhecerse, entender-se. Quando nos percebemos, compreendemos que nós igualmente, andamos no erro. Erro que em nós parece pequeno, mas que se agrava quando nos outros o vemos. Perdoar é amar por dois, é deixar para depois, tentar apagar da memória, ainda que por breves horas o sentimento magoado. Perdoar é se colocar no derradeiro o que se é, e apontar o primeiro que é pior. Afinal sou arrogante e vaidoso, mas não sou invejoso. E é dos defeitos que vejo no outro que me faço melhor. É difícil pensar sobre o erro nos outros, pois se estou a julgar por meu gosto, só a mim não estou a condenar. Tento esquecer dos meus preconceitos, para tentar ser melhor, não pelos outros, mas por mim mesmo, pois todos sabemos o que é certo e errado, cabe a cada um tentar se emendar. Eu sou poeta e não aprendi a amar. A cada dia entre erros e acertos, tento fazer germinar essa semente, latente que tem o nome de perdoar.
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Maria Luiza Vieira Silva Arapiraca/AL
Minha História Eu sei, quando falei que havia mudado,
acolher, eu abracei meus demônios e
estava mentindo
fiz minha própria morada dentro de
Talvez
tenha
conseguido
convencer
mim.
E
agora,
sem
deixar
ser
algumas pessoas ao meu redor, mas
dominada por minhas emoções, abro
meu eu sabe que isso não é real
espaço
Minha
fraqueza
continuou
me
dominando durante um longo tempo, ainda não acreditava em mim, não
para
uma
reforma
extraordinária, onde minha casa, será a nossa casa, e seus demônios serão acolhidos pelos meus, como irmãos.
acreditava que eu podia ser alguém, que
Já houve vezes em que senti tanto,
eu podia ser melhor
que não fui capaz de colocar em
Não me amava verdadeiramente, com todo meu ser
palavras escritas, tudo aquilo que estava
guardado
Angústias,
no
meu
decepções,
peito.
saudades.
Mas você me dá forças para olhar para
Tivera vezes que pensei que fosse
dentro de mim, e ver o que precisa ser
morrer
visto
próprias emoções. Então descobri que
Eu vi,
e durante
um
tempo tentei
Não queria acreditar naquilo que estava
ninguém
ajudou, nunca
de
fez
um antes.
jeito Mas
que sei
também que é mérito meu, tantas vezes neguei
sua
ajuda,
mas
minhas
é pra isso que eu escrevo, é disso que não posso parar, mesmo que eu não consiga por em palavras, escrever
sendo exposto na minha frente me
em
eu vivo, eu sempre amei escrever e
ignorar, me neguei, eu chorei, sofri
Você
engasgada
quando
finalmente decidi ceder, aceitar e me
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algo, alguma coisa, sempre escrever. É o meu ser, ele pertence às letras, as palavras, as linhas curvas e retas, linhas tortas, linhas, somente linhas. Nelas estão contidas todas as minhas
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emoções, tudo aquilo que sinto, o meu
Quem
falou
mais íntimo e mais verdadeiro eu. As
autoaceitação, de autoconhecimento
vezes exagerado demais, mas sentindo
é
ao máximo cada segundo da vida. Hoje
extremamente
já não me condeno por amar demais,
impossível. Os resultados não são
por sentir demais. Eu posso escrever
imediatos, mas vale a pena desde o
sobre isso, e cada experiência se tornará
primeiro minuto, porque ao olhar
uma linda história sobre viver, sobre
para trás, você vai ver que sua vida é
amar, querer, sobre errar, mas nunca,
o livro mais lindo já escrito até agora.
fácil,
que
mentiu.
É
difícil,
nunca desistir de sí.
https://www.facebook.com/marialuiza.vieirasilva.927
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o
processo uma mas
de
tarefa não
é
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Maria Pia Monda Belo Horizonte/MG
À deriva É claro que ela não podia saber e eu sou muito boa em virar as costas e ignorála, como se o que essa estranha acabou de fazer comigo não me tocasse, não me machucasse. Aperto o suporte com firmeza, deixando um falso resíduo de bondade, misturado com o suor da palma da minha mão, escorregar de mim e colar, com minhas impressões digitais, neste pedaço de metal pintado de amarelo. O valor de uma pena, que não vale a pena sentir, mede-se na raiva que retenho e que, nem em soluços, consigo tirar de mim. Daqui a pouco, voltarei ao ar livre, mas agora é um esforço manter o equilíbrio em meio a essa maré humana, na qual me insiro como um saco de lixo jogado à deriva. Dramatizo demais ultimamente, eu sei. Minhas reações emotivas são imediatas e intensas e me pergunto se o mau-humor é o efeito ou a causa do meu desconforto. É suficiente uma banalidade- um gesto indevido, um olhar mais intenso ou uma palavra mal colocada- para que o sossego se torne aflição. Como há pouco. Eu supusera que não conseguiria me sentar. O ônibus está sempre lotado a essa hora. No entanto, havia um lugar livre. Não precisei- eu nem faria- dar cotoveladas para chegar até ele. Aquele assento estava livre para mim, apesar da multidão de estranhos nas proximidades. Sentei-me e pensei que eu merecia. A lógica irracional do meu universo, violando suas próprias regras, por uma vez atendera à necessidade de me dar um conforto, fazendo-me encontrar aquele banco vazio.
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Fiquei sentada por dez minutos, até que a mulher ao meu lado me pediu para deixá-la passar, pois estávamos chegando ao destino dela.
Gentilmente me
levantei, gentilmente recuei para que ela tivesse espaço suficiente para se mover, gentilmente até esperei que um rapaz tomasse o lugar dela. Pois, apareceu a estranha cruel e, do nada, assisti com surpresa à pressa com que ela, pouco gentilmente, afundou as nádegas naquele assento que, até pouco antes, era meu. Uma ação premeditada, direta e perfeita. Me senti e ainda me sinto tão estúpida! Ela se sentou e, covardemente, baixou o olhar. Para não sucumbir ao instinto de puxar seus cabelos, virei as costas e encarei a janela. A faixa de asfalto e as casas e as calçadas e os carros e as motocicletas e as lojas e todos os outros componentes urbanos, que caoticamente mobíliam a cidade, declaram que faltam pelo menos mais vinte minutos para chegar ao meu destino. Um tempo que vou ter que passar em pé. A lógica irracional do meu universo, aquelas graças à qual, ultimamente, tudo dá errado, deve ter estabelecido que meu lugar é à deriva.
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Mario Gayer do Amaral Pelotas/RS
Albert Já fazia algum tempo desde que saí do Oriente Médio em busca de um norte para minha vida e mesmo com minhas 1000 peças de ouro na bagagem não consegui arranjar ainda um ofício importante. Não tinha nenhuma vocação pra burocrata apesar do mestre Zaid Al-Rifai ter me encarregado de ser uma espécie de ministro do Tesouro. Sempre fui um guerreiro e o campo de batalha era minha razão de viver. Felizmente meu mestre entendeu isso e me incentivou a procurar um novo caminho sempre respeitando o valor da palavra dada. Vagando pela Europa de país a país passando por abismos e florestas, por estradas de terra e de pedra vinda de uma antiga civilização bastante avançada nesse tipo de coisa, a romana. Nas cidades que passei, conseguia algumas vezes um serviço razoável como escoltar um nobre do Sacro Império Romano-Germânico que levava um carregamento de moedas para a Igreja. Mesmo sendo eu um muçulmano, cumpri o trabalho a contento e ganhei um bom dinheiro. Fui ainda caçador de recompensas por um tempo antes de ser aceito na guilda de mercenários graças a minhas habilidades em combate e também em relatos de cada missão feita seja matando bandidos ou soldados. Ali conheci um grande homem. Um guerreiro tão hábil na espada como eu e um semblante bastante alegre no rosto. Seu nome era Albert Walker. Não sabia muito sobre seu passado e alguns diziam que vinha da Bretanha, outros que era oriundo da Escandinávia devido a sua barba e seu tamanho avantajado de viking.
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Apertamos as mãos e ele começou a contar histórias sobre seus feitos guerreiros na Europa bem como seus reveses em algumas de suas missões. Apresentou-me Katherine, sua espada preferida. Pode-se dizer que tinha uma relação de amor e ódio com ela usando-a para acabar com seus oponentes e por vezes, tendo o azar de não conseguir tirá-la da bainha no meio de uma parede de escudos. Mas lembro-me dele de uma noite em que celebrávamos o sucesso da nossa missão numa taberna de Sussex. Tínhamos voltado de uma missão bem-sucedida de repelir um ataque dos dinamarqueses na cidade. O rei nos pagou aos borbotões e meu bom amigo usou parte do dinheiro pra uma boa comida e cerveja a vontade. E é claro, dar sua costumeira cantada nas atraentes empregadas do estabelecimento. Durante a celebração, um daqueles mercenários me encarava de forma hostil e foi a minha mesa procurar encrenca. Pra minha surpresa, aquele mercenário era cristão e lutou contra mim numa das batalhas que travei no Oriente Médio. Ali a raiva era contundente. Soquei-o no rosto e ele me deu um pontapé na barriga. Então o caos começou na taberna. Fui cercado pelos seus amigos e levei uma surra daquelas. Socos de um, pontapés de outro e o terceiro me acertou com uma garrafa na nuca me deixando zonzo. Estava perto de morrer até Albert intervir na briga. Sacou sua amada Katherine e fez jus a sua fama de guerreiro sanguinário. Cortou a cabeça do primeiro, abriu a barriga do segundo e trespassou o peito do terceiro mercenário não sem antes cortar uma das mãos. Dava gosto de vê-lo lutar. Seus movimentos eram tão ágeis que parecia como se estivesse dançando com uma mulher atraente. E terminou atravessando a virilha daquele cristão que me provocou deixando-o estrebuchar até a morte.
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Assim que a luta acabou, ele ajudou-me a levantar e saímos da taberna antes que os guardas chegassem. No entanto, a briga custou caro. Albert e eu acabamos expulsos da guilda e peregrinamos por diversos lugares tendo a sorte de fazer alguns trabalhos como matar alguns bandidos em uma cidade ali ou proteger a princesa de um pequeno reino acolá das mãos de assassinos. Conseguíamos um bom dinheiro e como agradecimento por ter salvo minha vida, dei a Albert algumas tâmaras que trouxe do Oriente Médio. É um bom sujeito, mas adorava uma briga como ninguém e mais do que isso, era um sedutor incorrigível que não dispensava sua cantada com qualquer mulher que cruzava nosso caminho e isso nos causava muitos problemas. Numa dessas, uma ladra havia roubado todos os nossos pertences e não nos deixou alternativa a não ser ir atrás dela. Depois de muito vagar, a encontramos em um vilarejo quase sendo linchada pela multidão devido a suas peripécias anteriores. Lá fomos Albert e eu salvá-la da turba enfurecida e ela como agradecimento, entregou nossos pertences. Se identificou como Cassandra e vi um clima pintando entre os dois. Meu amigo não tinha jeito mesmo. Foi interrompido esse clima com a chegada de outras duas mulheres que se identificaram como a maga meia-elfa Myrymia e a sacerdotisa Corinna. E naquele momento, nosso grupo se formou como uma autêntica família. Mal sabíamos nós que nossa primeira missão seria uma das mais difíceis de todas, que era derrotar um monstro que aterrorizava o vilarejo. O horror encarnado. E a partir daí, nossos nomes seriam contados e cantados pelo povo humilde a cada feito que faríamos. Tudo isso graças aquela noite na taberna onde fui salvo pelo meu melhor amigo. Albert Walker.
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Mario Loff Tarrafal, Cabo Verde
Poema Se tem um motivo se tem crivo de deus um lábio ativo, uma máscara vivo há um vento que deixa adeus, um vírus invisível e irresistível menina, tira a sua máscara antes da caída do sol menina o teu riso se esconde como um vírus invisível em mim fica esse ar de estar a enfrentar um perigo solto seus lábios, seus olhos, queda de chuvas salgadas nos teus olhos, tu eras flor quando se revela, um suster de vela na quarentena da lua, quando te esconde, tira máscara por uns minutos que antes de tudo quero ser convicto, odeio contra covid. provavelmente o teu riso, perde o juízo como se não houvesse o amanhã, o certo é esse vírus, também as suas invisibilidades, homens aceitam. Eles perdem o juízo, se o seu riso se torna o sorriso.
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Massilon Silva Aracaju/SE
Não Gosto de Mar Examinei o conjunto,
Naquela situação
Fiquei meio apalermado,
Ficou de cara amarrada,
Pus a vergonha de lado
E deixá-la encabulada
Precisava chegar junto.
Não era minha intenção.
Querendo puxar assunto
Mudei a dissertação:
Perguntei sem calcular,
— Então podemos pescar?
Se queria navegar
Perguntei por perguntar,
Numa canoa furada,
Sabendo que ela não gosta,
Respondeu toda entojada:
E veio a mesma resposta:
— Não, eu não gosto de mar.
— Não, eu não gosto de mar.
Modifiquei a proposta,
Fiz nova meditação,
Fui um pouco mais discreto,
Revisei meu pensamento,
Pensei no fato concreto,
Apostei no sentimento,
De canoa ela não gosta.
Redobrei a sedução.
Arrisquei em nova aposta:
Pra minha decepção
Então podemos nadar,
Ela não quis aceitar,
Sem risco de se afogar,
Meu convite pra jantar
Como faz qualquer atleta?
No restaurante da praia.
A resposta foi direta:
Declinou, rodando na saia:
— Não, eu não gosto de mar.
— Não, eu não gosto de mar.
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Cometi erro grosseiro
Para provar meu amor,
Na festa de fim de ano,
Quero levar essa musa,
Pular onda era meu plano
Pra ver um show de Cazuza
No mar do Rio de Janeiro.
Na Praia do Arpoador.
Desmoronou por inteiro
Sem perguntar o valor
Meu poder de argumentar,
Comer ostra e caviar,
Além de desaprovar
E quando a noite chegar
E taxar como loucura,
Num iate de cem pés,
Falou cheia de frescura:
Vê-la gritar do convés:
— Não, eu não gosto de mar.
— Sou doidinha pelo mar!
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May Cass Teresina/PI
A caminho do trabalho
Hoje, com o tempo nublado nos faz pensar nas coisas. Como era o passado. Uns anos atrás. A gente se perde pelo vão do asfalto, se perde em cada esquina, nos perdemos em cada cenário. A espera se vai como o tempo que corre. Os pingos que caem já não me afeta: caminho anestesiada dos sentidos. Nem o frio me assola. Ignoro meu corpo sendo tocado pelas gotinhas da chuva. É nessa hora que o olhar sobre a vida pede mais atenção: mais calma, mais paz. Preciso ressignificar meu caminho. Deixo a mente me soltar as memórias. As vejo com carinho e permito vir, sentir. Elas me dão um aconchego de que vivi
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o que eu tinha que viver e que sou feliz por ter experienciado o melhor mesmo com fases não muito boas. Mas me pergunto: como escrever sem esse fluxo de consciência que me acelera os pensamentos? Será mesmo que preciso de um roteiro, um script e pautas do que deve ser escrito? Por que dizem que escritores devem ter um objetivo de escrita, uma "fórmula" com começo, meio e fim? Sem essa! Eu só queria era falar das minhas andanças a caminho do trabalho. A nova van, com seu respectivo novo motorista e auxiliar, vai devagar. A cada sacolejo, uma parada. Uma parada antes de imperfeições no asfalto, uma baixa que separa o esgoto, um buraco mais a frente, uma curva curtinha à direita e assim íamos devagar custando o atraso da chegada ao trabalho. E foi desse trajeto mais lento, mais devagar que fui percebendo mais a vida. As conversas com o colega de trabalho já não tinham tanta empolgação de antes. Pareciamos muito mais conhecidos academicamente do que amigos de vida. Desacelerei para esse "arroto" de ser cheia de si. Desacelerei para querer saber mais sobre qualquer assunto. Me deixei vencer pelo que me ia acontecendo: trajeto que me lembrava uma caminhonete levando trabalhadores cansados da lida para a lavoura e, no meio do caminho, não havia tantas pedras visíveis, só e apenas nossas mentes em silêncio, fatigadas e mastigadas lentamente como a vaca faz ao moer lentamente o pasto verde sobre a boca. Continuamos a seguir, anestesiados de qualquer dor e sofrimento, pela busca da independência financeira. As paisagens viraram só paisagens. O poder de percepção morre a cada minuto de existência. A gente morre e nem contempla o Rio Parnaíba. Ninguém nem presta atenção nas ruas do Buenos Aires, Memorare, o Jardim Botânico e a Lagoa do Norte do Mocambinho. Nem na Lagoa do Norte do bairro São Joaquim, nem no pólo cerâmico do Poty Velho. Essa letargia é contagiante. Mortinho da Silva, de Sousa, da Maria, do João, nomes comuns para vidas comuns, assim como a existências dos lugares citados acima se tornaram tão comuns que só por existirem parece que ninguém os nota mais. A invisibilidade existe para quem não dá a mínima para o que já temos e mesmo assim, seguimos, como quem leva uma carga sobre as costas.
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Ontem, antes de ir ao trabalho, peguei o transporte público e me deparei com a visão de um motorista também trabalhador que não desgrudava os olhos do semáforo enquanto mordia, com todo o contorno dos lábios, a maçã verde. Impressionante como os lábios dele se aderiram à fruta como quem não quisesse sequer perder um pedacinho dela. Foi o que pensei e lembrei também do conto Amor de Clarice Lispector quando descreve a cena do cego e da personagem protagonista, Ana que se encoleriza com a felicidade do cego enquanto ele próprio masca chiclete e aparentemente rir de si mesmo. Mas diferente dessa cena, é que na vida real, eu também sou como esse trabalhador, de olhos vivos no semáforo, vermelhos e arregalados, com foco no propósito sem nem lembrar de sofrimento, de dor. Parece que a gente se acostuma a uma vida de trabalho e trabalho e trabalho. Um looping e sua mente não critica mais a realidade e nem reflete sobre. Me sinto com o dever de deixar registrado tudo que me vem a mente para não deixar de pensar, de poder criticar e refletir como vivo, pois a mente também não para e em dias de "inverno chuvoso" em Teresina, eu tenho que aproveitar esses instantes de paz e luta internas para mediar uma vivência única que ocorre todo dia, dentro de mim.
ig: @mayaracass https://www.instagram.com/mayaracass/?hl=pt-br
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Olhar ensolarado e plúmbeo(Foto) May Cass Teresina/PI
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Mestre Tinga das Gerais Corinto/MG
A Botina do Zé Texeira A pió coisa do mundo uma é pessoa tê um sonho e num pudê arrializá. Ais vêis pru farta do cascaio, ôtas vêis pru mode disimprêgo e pu aí vai. O amigo Zé Texêra era um desses que incaxava nesses sonho e o sonho dele era de tê um pá de butina, feitio pelo Jão Reise e cor amarelada feitio burro fugido. Uma coisa num pode ficá iscondida, que é o desejo de Zé Texêra é sê pião de rudeio, e ele inté tem um cinto cum uma fivela, num tamain que vira inté uma arma.Mais num tinha a tale butina toda cheia licutrixo, infeitiada inté no solado. O Jão Reise mora lá nu sule de Minas e a demanda é álita e o home fabrica muitios pare de butina e óia, incrusive inté pus isteriore. É... Bão, misturô o sonho do Zé Texêra e as incumenda do Jão Reise e óia que ele féis a butina, de acordo cum a incumenda, mais condo ínviô pu Zé Texêra, coloco na caxa um pé 36 e o ôto 37 e mais, dois pé isquerdo e o cabôco carça 40. Imagina a luita pu Zé arrializá o sonho. Ia tê um rastapé lá na casa do cumpade Zezé e o vendêro mão de rato cunvidô a redondeza pa mode adiverti um tiquim e ele muito isperto vendê argunha coisa. Minino, condo o Zé Texêra ficô sabeno qui a D.Sílivia Maria – ela gostia que chama ela é Maria Bunita - ia no rastapé, ele fico doidio. E que pensô...pensô...pensô e cumeçô a preguntá na currutela o qui era bão pa mode carçá a butina mais sereno. Um falava qui era bão passá o garfo na trazêra da bicha, Oto já falava quera bão inche ela de mio e butá um tiquim de água, mais sabe quem vêi cum solução? Quem? Quem? Quem? Pedrosinha! E foi logo falano:
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- ô Zé Texêra larga de sê bobo e passa gurdura de Tiú nos dedo e pru dento das butina e ocê vai vê qui risurtado vai dá. Moço, os dedo do home ísparrachado, aquêz unhão grande, cada calo do tamain duma pipoca e ele só oiano aquilo e pensano nas dôre. O Mandruvachá caçadô dos bão, tinha im casa a tale gurdura de Tiú e logo mandô uma lata da bicha. Ele lambrecô a butina, os dedão de rinãocerante feitio uma prancha e a mãe dele só deu a orde: -É agora Jusé! Infia o pé! Rapaiz! O home ingrossô as veia do prescoço e tcham! Num é qui a butina foi bem! E fico inté bunita.Mais dois pé isquerdo um apontano punorte e o ôto pu sule. O cabôco todo mitido, passô um dosorante Mistrale nos peitios e nas zorêia e muntô num pangaré veio e foi pu rastapé.Aquilo foi isquentano, isquentano, e uns gimidin cumecô a sair bem de leve. O pangaré oiava prele e virava o prescoço, tomem aquele home cum o dosodorante Mistral e o suore tava num catingão! Assunta, a Maria Bunita toda infeitiada, cum um vistido de Chita, uma Chita bunita, e o Zé Texêra num perdeu tempo e : - Oi Maria! Ocê me dá o prazêre dessa dança? Ora! Foi batata!: - Cumo diz aqui nas redondeza - Craro Zé! Nóis tá aqui priço memo! Minino...o hoome caiu na dança e aquilo foi aluino, isquentano, o fedô de gurdura de Tiú misturado cum o dosodorante e a dôre foi só armentando. E pa compretá a Maria ainda pisa no pé do cabôco. Oía! Mais foi um urrrrro! - Uuuuuuuuuuuuhhhhhhhhh!Ai meu pé Maria Lamparina! A Maria já num gostô e pisô no ôto pé e o cabôco foi inchano os pé, logo ele sentô no mêi do terrêro, e ele gimia...gimia... num guentô e falô: - Ô Jão Reise infiliz! Cumê qui faiz uma distratança dessa? Meus pé tá iguale fogo! Parece que inté passo pimenta! O Mandruvachá tava no cantin tomano uma cum um turrismim, foi sucorrê o home:
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- Nossa Zé! O sebo num diantô! Acho qui ocê vai tê qui cortá a butina, seu pé tá iguale o pé do tale Hurik! O pessoá montô ele no pangaré e açoitiô o bicho e só via a camisinha do cabôco sacudino. Diz qui a mãe dele teve qui fazê uns bain de fôia de Lobêra e ainda fico de cama trêis dia e numa febre qui nem navalgina curava.. Mandô uma cartinha xingano o Jão Reise, mais, o sonho dele, ele arrializô. Mais ele falô que vai ficá cum lagedão no chão memo. E qui butina nunca mais.Agora, a Maria Bunita foi lá pidi discurpa e diz quela mostrô ôta Chita prêle! Vistido de Chita! Inté pessuale! Inté!
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Micéia Lima
Um sentimento chamado gratidão Imagine-se chegando em casa, faminto e cansado após um dia estressante. Você entra no chuveiro, toma um relaxante banho quente e veste uma roupa limpa e cheirosa. Empolgado, você corre para a mesa, e já se prepara para comer uma deliciosa refeição com pessoas queridas ou mesmo só. Conseguiu visualizar toda esta cena? O que você sentiu? Um sentimento profundo de satisfação, bem-estar e felicidade? Se a sua resposta é sim, então, você acaba de experienciar o nobre e poderoso sentimento que chamamos de GRATIDÃO. Sim, a gratidão é um sentimento profundo, que nos traz plena satisfação, bem-estar e felicidade, que por sua vez, nos faz conduzir a vida com positividade, refletindo diretamente em nossas ações e decisões, pois, quanto mais positivos somos, mais otimistas nos sentimos, ao ponto de contagiar positivamente todos ao nosso redor, favorecendo as relações sociais, profissionais e pessoais. A gratidão é um sentimento tão poderoso, que a ciência já comprovou os seus incríveis benefícios à saúde, como o fortalecimento do sistema imunológico, redução da pressão arterial e do estresse, melhor qualidade do sono, maior disposição física dentre outros inúmeros benefícios. Quando fazemos da gratidão um hábito, encontramos nas pequenas coisas da vida motivos para agradecer. Mas, como exercitarmos a gratidão? Primeiro, ao passarmos por desafios ou situações frustrantes, devemos procurar motivos para agradecer. Muitas vezes, pode parecer impossível, mas, aos poucos você conseguirá ver que, apesar das coisas não acontecerem do modo como você desejou, você aprenderá com as situações e estas lições lhe ajudarão a tomar melhores decisões no futuro.
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A gratidão está além de dizermos OBRIGADO de forma mecânica. Ela nos impulsiona a olharmos para nós mesmos com o olhar de apreciação, pois, quando somos gratos, não só pelo que temos, mas, também pelo que somos, começamos a nos ver de forma positiva, enxergando em nós as várias qualidades que temos e não só os defeitos. Isso é o início do amor-próprio. Olhe para as coisas em sua vida e imagine-se sem elas. Como seria? Quando fazemos esse exercício, vemos que tudo ao nosso redor é motivo para agradecermos. Então, o que você acha de iniciar este hábito agora mesmo?
Informações Bibliográficas PIMENTA, Tatiana. Gratidão: um caminho comprovado para a felicidade e sucesso. Disponível em: https://www.vittude.com/blog/gratidao/ Acesso em: 22/04/2022
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Nanna Fazzio Assis/SP
Sol e Lua Lua pálida entristecida, Sol se pondo acabrunhado, Vagam no céu sem descanso O casal de namorados. Sem encontrar o caminho Seguem os dois desnorteados. A Lua de amor padecendo, O Sol de esperar, cansado. Sonhando viver unidos, Sempre juntos, abraçados, amargam com o destino De viverem separados. Surgem no céu vez ou outra Os dois astros encantados, Mas nem no eclipse solar Se beijam, pobres coitados. Sentimento inquestionável, Eterno e sacramentado, Que sente o sol sente a lua, Não pode ser consumado.
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Nazareth Ferrari Taubaté/SP
Solidão
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Nercy Grabellos Rio de Janeiro/RJ
Marionetes Vivemos as desilusões O controle da libido Pensar será proibido Haverá repreensões Se aos fetiches ceder Precisamos nos defender Evitando os atritos Nos afastando dos conflitos Somos resistentes ao amor Sucumbindo aos sentidos A sentimentos controvertidos Se aceitamos nos moldar Caímos na cilada por medo A nossa vida será arremedo Vivendo de mentiras vãs Perdendo nossos talismãs Ah! Vamos deixar aflorar Os mais nobres sentimentos Viver os preciosos momentos Sem sombras a nos atormentar Precisamos nos conhecer a fundo Evitando viver nesse mundo Como fantoches manipulados Por cordéis descontrolados
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Nilde Serejo São luís/MA
Quem sou eu sem você? Buscando acabar com a amargura De uma vida regada de travessuras Me deixei levar pela sua doçura Pelo seu olhar sobre mim
Desnudando minha alma fria Esquentando meu coração gélido Levou tempo para aceitar
Que outro alguém me tocasse Outra vez meu coração apaixonasse E eu perdesse todo controle
Para me jogar em teus braços. Quem sou eu sem você?
Quando vai embora sob a aurora Deixando a cama vazia de carinho Sem saber se volta
Aproveito cada instante contigo. Eu sou a mesma mulher
E esqueço de tudo por horas Sou dona de meus pensamentos Até que a noite caia silenciosa
E a lua chame seu nome nas altas horas.
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Nilza Amaral
Evelhescência Vejo-me no espelho Que exibe o rosto triste, a figura que exaspera. Tira-me a adolescência, encobre a puberdade, Ocultas no profundo. Seria esse espelho, o espelho mágico. Que ao invés da bela, mostra-me a fera, Seria a bruxa má da Cinderela? Ou seria Nietzsche que interfere: ¨Jovem caverna com flores. Velha: um dragão de horrores? ¨ Afasto o aforismo do filósofo, Já não me impressionam tais dizeres. Agora sou arguta e ponderada Não comerei a maçã predestinada. Volto-me ao espelho e dedo em riste Ordeno-lhe palavras plenas. Espelho, espelho meu tu não me enganas Se queres me mostrar tal face insana, Saibas rude bruxo, essa imagem de agora Nada tem a ver com a minha interna aurora. E alisando as madeixas em formoso arranjo
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Acerto em meu cabelo a dourada fivela. E encerro na manhã a bizarra novela. Pois envelhecer não deixa sequela. E sobre todas as mazelas predominam A sabedoria, a paciência e a calma Não são castigos e sim valores d´alma. E o tempo o que é? Já disse um sábio que ele, o Tempo, É um velho calvo e trapaceiro Que seja, porém eu sou matreira Sei domar esse embusteiro Se essa minha imagem por vezes me agride Se já não sou mais jovem e o tempo não regride, Eu brindo à vida, ao tempo, à outrora mocidade E louvo agradecida a minha nova fase, O novo rumo a nova retomada Para terminar Deusa não tem idade E por ser mulher é Deusa por afinidade E ser mais velha é mais ainda É sentir-se forte, segura mais que linda Ser mulher é especialidade.
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Ornélia Goecking Otoni Contagem/MG
Tropeço Hoje acordei com vontade de te dar um beijo, um abraço, Sentir o teu corpo, E em teu colo repousar meu cansaço. Deslizei na cama mas você não estava. Procurei pelo quarto vazio, quase sombrio, nesta ausência que quase matava. Hoje eu queria o mundo, seu amor profundo, que mais chora do que sorri, E caminha, trôpego, Lamentando a saudade de ti.
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Ovidiu-Marius Bocsa Romênia
Musa sorrateira Miss Winter, você sempre teve que escolher Entre nada e uma pequena maçã escamosa; Uma vez, você construiu este castelo transparente, Eu, oculto, essa musa sorridente. Nariz gelado em cativos de vidro: Alvorecer transparente com sol congelado Em todo lugar, o branco frio pode correr; Quanto tempo é o caminho para o Paraíso? Esse sonho quente de amantes inocentes Ainda vive na brasa da manhã: Depois de uma noite quente apenas se lembra, As estrelas brancas brilhantes par de números; Apenas um deles pode regredir felizmente Boa esperança e todos os sonhos coloridos, Doce melancolia de rimas voláteis, Enquanto a estação nobre se condensou na chuva. Caráteres da noite do telhado de vidro: Alvorecer transparente em que caminhamos, Vento e sincelos começaram a falar Sobre o amor dos bonecos de neve à primeira vista.
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Paulo Bunga Uíge, Angola
Carta para a tia Antes de mais, receba de bom grado, querida tia, a minha cordial saudação! Meu pai é quem escreve, mas eu é quem falo, quem sou eu?! prazer em conhecer, eu sou o Paulucho, o seu sobrinho. Sou um menino lindo e forte que não queria perder o brilho da lua dos poetas, cheguei recentemente ao mundo para contemplar a lua desta noite. Querida tia, as coisas aqui fora são muito lindas, gostei de ver o clarão da lua cheia da noite de 16 de abril, dia que também vi pela primeira vez o nascer do sol num dos bairros longínquos da cidade do Uíge, em Angola, cujo nome é bairro Bem-vindo, onde nasci na modesta casa da mama Suza como é carinhosamente chamada a parteira tradicional que assistiu a mamãe desde o terceiro mês de gestação até o serviço de parto na manhã do dia 16 de abril de 2022, quando o relógio no pulso do papai marcava 6h. Segundo o papai, tive de ser muito forte para sobreviver, pois que os três primeiros meses de gestação foram de muito risco, mamãe teve sérios problemas do colo do útero que os nossos profissionais de saúde não conseguiram solucionar até a mama Suza intervir e como se não bastasse, querida tia, mamãe recebeu a primeira dose de uma das vacinas contra a Covid de vetor viral que posteriormente cousou outras complicações, no entanto, estou muiiito bem felizmente, nasci forte e saudável. Querida tia, puxei o seu irmão, somos tão parecidos que nariz de dez recémnascidos estou a carregar sozinho, meu nariz é tão grande e achatado como o do seu irmão e presumo que o seu também seja hahaha, olha que as nossas semelhanças não se limitam apenas no nariz, na verdade vão da ponta do cabelo até as unhas do meu pezinho. Querida tia, estou tão empolgado para conhecer a senhora, papai disse que a senhora é bem legal e linda, e ele deve estar certo! pelo visto ele gosta muito da senhora, os seus olhos brilham sempre que fala de ti. A senhora não precisa se
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preocupar, o seu irmão está em boas mãos, eu não serei uma dor de cabeça para ele muito menos para a mamãe, dou a minha palavra a senhora que serei um menino bondoso e obediente. Querida tia, vou contar algo para a senhora: certo dia, enquanto ainda estava no ventre, ouvi sem querer da mamãe que o papai é escritor, especificamente um poeta, acho que também serei um, deve ser bem legal exprimir as emoções por meio das palavras. Razão pela qual, jamais fugarei a escola ou matar aulas, vou dedicar-me aos estudos para ser um grande homem no futuro, de modo que a minha assinatura venha a ser um autógrafo, um dia escreverei com muito carinho o seu nome na dedicatória do best-seller que publicarei, até lá, cuida-te e saúda a prima Judi, a sua filha, decerto que seremos cúmplices na vida. Contudo, até, querida tia, espero ver-te em breve para fazer cocô no seu colo. Beijinhos! Do seu sobrinho Paulo Bunga, com muito amor e carinho! Uíge, aos 17 de abril de 2022
www.bestiario.com.br
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Paulo Cezar Tórtora Rio de Janeiro/RJ
O Suicida
“Sem teu amor, não tem sentido a vida, eu não suporto tanto sofrimento e tu ignoras todo o meu lamento e o padecer da minha alma ferida. Tua afeição, estando, então, perdida, eis a razão do meu abatimento, e só me resta, assim, neste momento, a compulsão inglória do suicida.” E a ingrata nem deu bola pro meu choro... Pensei... recuperei chão e decoro, e hoje acho engraçada esta lembrança. Estou bem vivo e os dias são tranquilos, depois de um mês, mais gordo estou três quilos, é o que me diz o peso na balança.
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Paulo Luís Ferreira São Bernardo do Campo/SP
Notícias Radiofônicas
Link p/ Rádio Camanducaia: https://www.youtube.com/watch?v=0qd3P7wTbyM
Acampamento das almas Apaisagem é infernal: é Lethe, a grande planície árida do esquecimento, formada por um grande vale sem cheiro e sem cor sobre o rio subterrâneo Ameles. O calor é sufocante, as almas acampam em sua última etapa antes de serem enviadas à terra para uma nova encarnação. Em verdade é uma estação de repouso e reciclagem onde cada alma, de acordo com sua doutrina poderá renovar ou acrescentar novos poderes e rever conceitos; e até rejuvenescer algumas gerações. Quem quer que chegue ao alto das colinas observará com limpidez as almas maculadas. E por isso, grandes formações de fila, onde buscam nas fontes de águas frescas, a lavagem de suas impurezas e até poderes sobrenaturais, e outras, órfãs e sedentas de recordações, choram seus corpos mortos. Este quadro é o retrato fidedigno no qual, Platão se inspira ao encerrar seu ensaio “República”.
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A invasão No litoral norte de São Paulo, na praia de Trindade, um grupo de jovens, após um sarau musical e poético, ao luar, senta-se na areia da praia e confabulam conversas desencontradas, sob o frescor dos ventos, das gotas de sal serenado, do sabor e do cheiro da Cânabis sativa. Quando avistam na linha do horizonte grandes rebanhos de elefantes e rinocerontes, vindo a nado, rumo à costa. “É a África invadindo o Brasil!” Gritaram eufóricos. Isto pelo mar, no céu, fuscas luminosos serpenteavam labaredas de fogo. E festejaram dançando e cantando em uníssono. Eram os selenitas apoderando-se do planeta mágico.
Perdidos e achados Na seção de achados e perdidos do Metrô a lista impressiona pela quantidade e o inusitado dos objetos esquecidos em suas dependências. Que vai desde um simples chaveiro, um documento ou uma carta que chora um amor perdido, um coração dilacerado, até uma prótese de perna. Porém, uma peça chamou especial atenção. A faxineira do período noturno encontrou em um de seus vagões, uma orelha viva, aos pinotes, como que a procurar seu dono. A administração avisa ao proprietário da mesma, e para sua tranquilidade que a orelha se encontra sob os cuidados da escola de medicina da USP, mas que não poderá sobreviver por muito tempo. Para tanto, os médicos apelam para que o interessado se apresse se quiser encontrar sua concha ainda com vida.
Morte de cão abala Vila Guilherme Moradores do bairro da zona norte estão inconformados com a morte trágica do um vira-lata, perseguido e atacado sábado por um cão da raça Rottweiler. Todos lamentam a perda de Salomão. O clima é de inconformismo e tristeza. Pretendem para o próximo sábado organizar uma manifestação, em comemoração ao sétimo dia de sua morte, pelas ruas do bairro. A publicitária Nerina Francesca, de 37 anos, contou que não se conteve ao ser informada sobre a morte de Salomão. “Chorei o dia inteiro só parei ao adormecer. Penso na forma brutal como ele morreu, na dor, no medo e no pavor que ele sentiu.” Já o taxista Wagner Lira, de 34 anos, diz que nunca mais aparecerá cachorro igual ao Salomão. “Ele era especial. Às vezes comprávamos um prato de comida só para dar para ele. Depois de ser mordido, ele veio até o ponto de táxi se arrastando,
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como se estivesse pedindo socorro,” contou Lira. Para Adalberto Rocco, Zootecnista especializado em comportamento animal, segundo diagnóstico seu, acha que cadela no cio pode ter sido o pivô do crime.
A aparição da santa Aconteceu no Jardim Las Palmas em São Bernardo do Campo/SP: um reflexo numa janela. Disseram que era o rosto de uma santa. Logo começaram as peregrinações de carros e pessoas, uma romaria de devotos. Para uns, pura miragem; para outros, milagre. A Igreja não teve a divina coragem de confirmar se charlatanismo ou simples visagem, manteve o mistério. Até aparecer um Punk que, com uma pedrada, estilhaçou a vidraça, espalhando caco de santa para todos os lados. Pronto! A correria foi geral atrás do Punk. “Maldito!... Herege!...” Gritava a turba colérica. O Punk, coitado! Sem esperar por tempo pior, apavorado com a perseguição ensandecida da população, atirou-se na Represa Billings. Acudiu o corpo e a alma dos Bombeiros na tentativa de salvar ao menos o cabelo moicano do Punk. Quando, para surpresa dos beatos, surge do meio da represa, o Punk montado no lombo do monstro do Lago Ness. Porque, não só as coisas santificadas são incompreensíveis.
Bebê abandonado em igreja Foi encontrado ontem, Dia de Reis, na manjedoura do presépio de natal, representado no altar-mor da Igreja Sta. Ifigênia, centro de São Paulo, bebê recém-nascido. A assistência de devotos comentava emocionada que a criança parecia o próprio cristinho, com os bracinhos abertos, como se crucificado fosse. Não há suspeitos de quem lá o deixou. Desconfia-se de um indivíduo reconhecido como perueiro que faz ponto ao lado da igreja. O qual foi visto entrando com um embrulho e saído sem ele. A criança foi levada para a Santa Casa de Misericórdia para possível adoção. Deu no jornal.
Terrorismo Enigmática e emocionante, intrigante e trágica; a persuasão da jovem mulher bomba, quando numa voz de aflição e súplica disse, enquanto cruzavam o Canal da Mancha na cabine do Trem-Bala, a 330 km/h, após matarem o maquinista irlandês, no instante em que o outro, também terrorista, procurou forçá-la a favores sexuais. Ela o surpreendeu com a benevolente e incitadora, mas perigosa
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proposta: “oh, companheiro! Eu já ia lhe implorar isso; em nome de Alah, estupre-me!... Pois ainda sou virgem, mas seja rápido. A bomba explode em 30 segundos”
. Horóscopo A Lua e o Sol de hoje traz para você a oportunidade de se tornar mais rigoroso o padrão de qualidade de seus relacionamentos. É um período de sete dias propício a estreitar relações que se pautem pela responsabilidade afetiva e pelo compromisso. Na próxima lua cheia você verá os resultados. A PRK8 90 MHZ, a voz que fala para o mundo e cochicha para a cidade. Com o patrocínio dos martelos de cortiça para bater prego embaixo d'água, agradece a audiência e informa sobre as condições do tempo: “Não saia de casa hoje: pois, muita água ainda haverá de passar por cima da ponte".
https://www.facebook.com/pauloluis.ferreira.10 pluis.177@globomail.com
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Paulo Roberto de Oliveira Caruso Niterói/RJ
Enigma fétido e alado Uma substância ganha vida. Sai de sua caverna apertada, acanhada, entranhada no meio de dois montes gêmeos. Esmera-se sem pedir passagem. Ganha vida, mas não ganha forma. Não tem semblante nem membros. Não tem rosto nem alma. Não tem sequer espírito. Mas, talvez justamente por isso, possui uma vida efêmera. Voa enquanto pode, mas se dilui no vento. Logo após o seu amadurecimento fétido como o fétido chorume. Sim, ele morre humildemente, após ganhar os céus sozinho, sem máquinas e sem roupas especiais, o que nem o homem pode fazer. Ele ganha a eternidade, enquanto dele se lembram e enquanto o xingam após fazer queimarem e arderem narinas por todo o recinto. Para os poetas, ele é enxofre. Para os demais ele é simplesmente... o peido. Agora leia novamente o enigma, que você entenderá desde o início.
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Plinio Giannasi Regente Feijó/SP
Opostos Sinto-me bem aqui, sentado no banco da praça depois do almoço. Afinal, são apenas trinta minutos para relaxar, longe daquela balbúrdia toda, e fica pertinho do trabalho. A empresa é do meu pai, que na verdade NÃO é meu pai. A vida toda (todos os meus vinte e um anos) evitaram falar sobre minha adoção, e mamãe, que também NÃO é minha mãe, fica agressiva com este assunto. O banco fica debaixo de uma árvore, não muito alta, sem flores, vez ou outra um pássaro. Breve meditação, pensando sobre minha origem. Trago uma garrafa d’água, conselho médico devido a cálculos renais. Agora pela metade, a garrafinha fica aqui abandonada, equilibrando-se num canto do banco. Um Diretor Geral aos vinte e um anos de idade. Sem origem. ... Pedir trocados já não enternece corações endurecidos. Basta andar por aí aos farrapos, alguém sempre socorre com algumas moedas, comida, água. Em seu trajeto, o que tem de diferente é que naquele banco da praça tem uma garrafinha de água que alguém esqueceu. Ela senta pra descansar um pouco naquela sombra, verifica a água, ainda tem quase metade.
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Ao pegá-la, um despertar. Coração em disparada, pensamentos em órbita, não se reconhece. Bebe até esvaziar a garrafa, que fica ali, no mesmo lugar. Hora de voltar para... Ah, por aí. ... Calor infernal, três da tarde. O sistema informatizado caiu, estamos completamente reféns da internet. Vou sair e me sentar naquele mesmo banco, onde relaxei depois do almoço. Inclusive, creio que esqueci ali a garrafinha com alguma água dentro, politicamente incorreto. Banco vago, sempre, e a garrafinha lá, no mesmo cantinho. Vazia, mas tenho certeza de que ainda tinha água. Ao pegá-la, estranha sensação, coração na garganta, um magnetismo mágico naquele objeto. Mas, é só uma garrafinha d’água. Vazia, fica no mesmo lugar. ... Comércio fechado, por hoje chega. Para ir até a marquise que ela chama de lar, precisa passar pela pracinha, daquela árvore, daquele banco, daquela garrafinha. Aproxima a mão trêmula da garrafa vazia, ao toque, a mesma viagem, agora mais
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intensa. Desaparecem as dores que a acompanham desde a internação no manicômio, que dão lugar a apenas uma dor. Na cicatriz que ficou daquela cesariana feita às pressas, e nem pode ver o filho. Agora aquele objeto é dela, leva-o preso ao peito como a tentar amamentar, e acalmar a dor que a incomoda. Ninguém ali se espanta, afinal, ela é mais um dos despejados do Hospital Psiquiátrico. Não consegue dormir com medo de ser roubada. Não seus trapos e utensílios miseráveis. Apenas a garrafa. ... Noite tensa, durante o jantar toco no assunto proibido. De onde vim, sobre meus pais. Afinal, conheço diversas pessoas que foram adotadas e convivem harmonicamente com suas origens. Respostas nada esclarecedoras, termino o jantar a vou para a sacada do apartamento. Posso ouvir a discussão na sala, muita roupa suja lavada sem cerimônia, e a verdade me rasga a alma. Uma intrincada rede de traições, meu pai abandonou minha mãe, grávida. Ela enlouqueceu. Durma-se... ... Não dormiu... O medo de ser roubada superou o sono, ela volta à pracinha, ao banco. Espera. Apenas espera. ... Antes de entrar na empresa, corro os olhos pela pracinha, detenho-me no banco, onde deixei a garrafa d’água.
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Tem uma pessoa sentada lá, nunca tem, mas hoje tem. Vou me sentar também, cabem duas, ou até três pessoas. Atravesso a avenida, com a aproximação retorna aquela sensação. Alguns metros, vejo que é uma senhora aparentando sessenta anos, segurando uma garrafa plástica vazia. E dorme, meio sentada, meio deitada. Reconheço a garrafa pela marca. Uma paz imensa toma-me por inteiro, o cheiro dela denuncia alguns dias sem banho, mas não me incomodo. Sua respiração é suave como a brisa repentina. Não quero voltar ao trabalho. Ela acorda com o som do meu celular. Quando ela percebe que não está só, faz menção de ir embora. Entrega-me a garrafa plástica vazia. Peço: — Por favor, fique. — Não, eu preciso de um banho, você está tão bem arrumado. — Não importa. Eu não ligo, fique. — Qual a sua idade? — Vinte e um. — Tive um filho, mas ele não tem mais que quinze anos. Você tem outra água? Deixamos, enfim, aquela garrafinha toda amassada numa lixeira ali ao lado. Ela me olha sem piscar, responde com monossílabos ou gestos. Saímos juntos formando um contraste social que choca. A idade dela, trinta e cinco com aparência de sessenta, a vida na rua
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envelhece e embrutece. Conta, entremeio a soluços de um choro suave, sobre pessoas desprovidas de caráter, de histórias contadas ao contrário para a família, que determinaram sua internação num hospital psiquiátrico. Com o fechamento destes estabelecimentos, os internos são entregues às famílias. Que família? Passa-se assim o dia todo, pergunto onde ela mora. Debaixo de uma marquise de teatro abandonado, com outros. Pergunto se podemos nos ver amanhã. Sorriso radiante. SIM, sempre. Noite tranquila em minha casa. Bronca por ter faltado ao trabalho, digo que amanhã também não vou. Durmo o ontem e o hoje, exausto e fascinado. Sonhos indecifráveis. Amanhece e nem quero tomar café com eles, saio sem o tradicional terno e gravata, que dá lugar a uma bermuda e tênis velho. O noticiário da manhã
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informa que um grupo não identificado atira na direção de moradores de rua, num teatro abandonado. Quatro mortos, décima chacina do ano. Um aglomerado de viaturas e curiosos. Aproximo-me tateando com os pés uma nuvem imaginária, não tenho chão. Quatro mortos, eles eram mais de dez, o policial não me permite a aproximação. Um sussurro ao pé de meu ouvido: — Você veio mesmo... Não choro, minha alegria é tanta que apenas abraço aquela pequenina, mal vestida, descabelada, que me diz sobre a noite passada. Passaram atirando, ameaçaram voltar. Quem pagou pra ver, ficou. Ela preferiu buscar outro refúgio... Um banco de praça. Saímos assim, para o mundo. Mais um dia quente. Temos muito que conversar.
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Rafena Lima Teresina/PI
Trocar de pele Ecdise Fluir Caminhar Seguir em frente Avante Expressão verbal do abandono Das coisas Que são só coisas E que para trás ficaram ... Trocar de pele É mergulho No efusivo contato Com o mundo que somos...
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Regiane Silva
Hachiko Japão Amor Fidelidade Esperança Gratidão Retorno do amado Por anos, esperado Shibuya Coração apaixonado Amizade Sabia que não foi abandonado Mas desconhecia a Morte Essa maldita Que retira Dessa Terra Amores, companhias Amigos Por toda eternidade Seus ossos juntos deixados Mas nos Céus, Rindo, brincando Andando lado a lado Inseparáveis Hachiko, Sua lealdade, para sempre Lembrada.
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Florescer(aquarela) Regina Alonso Santos/SP
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Renata Lopes de Oliveira Fortaleza/CE
Eu estava com uma amiga
Nem sabia o que dizer
Sentada na calçada
Me socorra meu amigo!
Nós estávamos na porta
Não me deixe na mão!
Na porta de casa
Que estou encurralada
De repente chega os cara
Tô cercada de ladrão!
Com cara de bonzinho
Me levaram o telefone
Eles chegam de mansinho
Me deixaram sem ação
Querendo se informar
E eu só lembrava da tia
Mas não perguntam
Que dizia:- nunca reaja não.
Exclamam
Minha amiga reagiu
Passa pra cá!
Coitada da garota
Me passa o relógio!
Quis dá uma de esperta
Me passa o celular!
Deu uma de trouxa
Passa tudo de pressa!
Além de roubada
Se não vou te matar!
Foi esmurrada
Se estavam armados?
Eles foram
Não sei te informar
Nós ficamos
Na verdade, não quis arriscar
Numa tremenda depressão
Pois estava apavorada
Não pelo celular
Não sabia o que fazer
Mas pelos contatos
Se gritava, se corria
Registrados lá.
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Foi se o número do primo, do tio, do namorado
Roubo virou brincadeira de criança.
Do compadre, do vizinho e do amigo do lado.
Que vai ser de nós
Pobre de nós, quanta ingenuidade
Que já não podemos estar.
Ainda pedimos o chip
Na calçada de casa
Vê se eles iam dar?
Mexendo no celular
Que bobagem!
Me socorra meu amigo
Me socorra meu amigo!
Não me deixe na mão
Não me deixe na mão!
Que estou encurralada
Que estou encurralada
Tô cercada de ladrão
Estou cercada de ladrão! Que mundo é esse?
Assim não dá não
Quanta insegurança?
Meu irmão.
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Ricardo Ryo Goto São Paulo/SP
Ver(S)Ossimilhança “Mas estende a tua mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema de ti em tua face. E disse o Senhor a Satanás: eis que tudo quanto tem está na tua mão, somente contra ele não estendas a tua mão. E Satanás saiu da presença do Senhor ” - Jó (cap 1, vers.11 e 12) Conta uma tradição que o Diabo desafiou o Senhor a provar qual dos dois era o mais capacitado para um Mundo completo criar.
Inquiriu a Deus sobre a Criatura que parecia se assemelhar com a Essência de Sua estrutura. Chama-se Homem, é da Criação o mais interessante Projeto. Tem Consciência de si e da ação de seus pares junto a seu Trajeto.
Aceito o desafio, Deus falou: Fiat Lex! E desta afirmação o Cosmos inteiro desabrochou sem permitir qualquer Oposição.
Para Para Para para
Mestre da Astúcia o Diabo tentou o Todo Poderoso convencer que uma pequena Falha restou, já que nenhuma Alteração sequer
que o criaste afinal ? ser Coautor de minha Obra. que escolha entre Bem e Mal, que decida sua manobra.
Quer dizer então que lhe é possível Seguir por outra Estrada, diferente da que deixaste aberta e acessível, numa Outra parecida e rente ?
seria possível introduzir num mundo cheio de Leis Imutáveis, nenhum Retoque iria permitir, todos os atos seriam Prováveis.
Cochichando ao homem, o Diabo vislumbrou o artifício capaz de conseguir um novo Aliado no Mundo, de um jeito que lhe apraz.
Engano teu, meu prezado amigo, tanto mais Consistente é o trabalho quanto menos reparo embuti-lo num mundo Perfeito e acabado.
Que disseste a ele, Senhor das Trevas ?
O Demo aceitou sem concordar.
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Nada de mais, Senhor Onipotente. Que eu o Tentaria sem lhe dar trégua a fazer o Mal insistentemente.
detemo-nos em atingir o Alvo. O Paradoxo persiste inda hoje, criando em nós Culpa, ansiedade, medo, Arrependimento que pode sufocar de vez nossa Liberdade.
Mas que devesse Obedecer a Ti Cumprindo a Lei de modo pontual. Satanás cria a partir daí o Inferno, um mundo Virtual.
Nem Deus ou o Demo interferem mais Nas criaturas deste arraial. Deixaram ao Homem esses que tais, resolver a luta entre Bem e Mal.
Evitamos a lei obedecer por nos ter Ordenado o Diabo. Ao mesmo tempo hesitamos ser livres no Espaço que nos foi dado.
Em algum lugar da Eternidade esperam o vencedor da Contenda. Porém, para nossa tranquilidade isso tudo não passa duma Lenda.
Pois exercendo nosso livre-arbítrio sentimos Desobedecer ao Alto, e sem conseguir um outro Benefício
“Tudo o que não invento é falso”- Manoel de Barros
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Roberto Schima Itanhaém/SP
Gonjiro Gonjiro preparava-se para sair com sua mãe. Havia alívio em seu olhar. Livre do medo. Deles. Miyazuru Shimada, a mãe, pretendia comprar alguns peixes, algas desidratadas e arroz, não obstante o racionamento do pós-guerra. - Vamos? - indagara ao filho de sete anos. - Eba! - respondera a criança. A mãe franzira o cenho. Tal euforia não era uma atitude comum da parte dele. Habitualmente, seu semblante era melancólico, e não seria ela quem iria culpa-lo. Dada a sua natureza retraída, Gonjiro não tinha amigos de sua idade, fosse pela vizinhança ou na escola. Exceto quando ia à escola, evitava sair para além dos limites do quintal a fim de não se deparar com estranhos. Preferia o isolamento do seu pequeno mundo no quarto ou na sala, onde ficava lendo mangás, desenhando monstros num bloco de papel ou escutando histórias de fantasmas junto ao rádio. Outros garotos achavam-no esquisito, maluco a bem da verdade, quando dele se lembravam.
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Em verdade, Miyazuru até preferia que Gonjiro fosse assim. Ao menos, sabia exatamente onde o menino se encontrava, ao contrário de outras mães cujos filhos rebeldes perambulavam pelas ruas do vilarejo, a fim de roubar alguma coisa. A II Guerra Mundial arruinara o Japão e, conforme era de praxe, a população pagava um preço bastante alto pela prepotência e ambições de sua elite abastada, fosse ela civil ou militar. As atrocidades que seus soldados cometeram na China, Coréia, Filipinas e outros países não seriam esquecidas tão cedo, talvez nunca. Quem poderia culpá-los? Quanto ao próprio Gonjiro, sua ansiedade por sair, contrariando a sua natureza, tinha uma razão: Os monstros. Sim, ao menos por algumas horas, ficaria longe das criaturas apavorantes. Nutria uma relação e temor e afeição por eles que não sabia explicar. Temor por razões óbvias, afinal, eram monstros. Afeição porque, bem ou mal, nunca lhe feriram realmente, e representavam a única companhia além de sua mãe - com a qual
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possuía alguma familiaridade e, até, afinidade. Claro, esses monstros viviam mais na mente do menino. Eram as criaturas sobrenaturais ou do espaço sideral que lia nos mangás, ouvindo os relatos no rádio ou as histórias contadas por algum idoso sobre kamis. Também cuidava de criar seus próprios monstros através das ilustrações que fazia a lápis, cada um mais terrível do que o outro: olhos esbugalhados, chifres recurvados, quatro membros dianteiros, garras afiadas, caninos imensos, cauda de escorpião, crista de lagarto, tentáculos de polvo, ferrões de abelha, asas de morcego, músculos de aço, aspecto de réptil ou de inseto. Os tamanhos também variavam na sua imaginação: podiam ser tão pequenos a ponto de se ocultarem dentro de armários ou tão enormes quanto o Monte Fuji. E havia os monstros sem forma ou dimensão alguma, incapturáveis pelo grafite, como algo escuro num canto da casa só a espera do anoitecer a fim de sair e amedrontar aqueles que dormiam. Esses eram os piores. No momento, era justamente dos monstros invisíveis que Gonjiro estava com medo por causa de uma história em quadrinhos que acabara de ler. Sozinho no quarto, a medida em que a coisa no mangá surpreendera suas vítimas, o aposento dera Gonjiro a sensação de se tornar mais sombrio e gelado, cada canto espreitando, aguardando, ansioso por emergir das frestas do tatami. Fora com alívio, pois, que recebera o chamado da mãe para saírem.
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Talvez a própria Miyazuru sentisse necessidade de companhia. Os monstros possuíam formas distintas de se manifestarem. - Como é, Gonjiro, vai ou não vai? - Tô indo! Tô indo! Tô indo! - É pra hoje, menino. - Tô indoooo! O garoto ansiava por sair de casa um pouco, inspirar o ar livre e salgado vindo do mar, diante do vilarejo de Ashiken, em Amami Ōshima. Ah, sim, havia os monstros marinhos e os sussurrantes kamis em meio às florestas ou nos canaviais, porém, sob o Sol e céu claro era mais fácil encará-los. Dentro de casa, por mais seguro que fosse o seu refúgio, era sempre sombrio, silencioso e sem horizontes. Ademais, teria sua mãe ao lado para protegê-lo de todos os perigos. A mãe insistiu, impaciente: - Apresse-se! - Hai! Livre do pijama, trajando camisa, short e meias, correu diante do santuário da família. Parou, voltou e fez uma reverência. Havia o retrato do pai, morto em combate, uma pequena tigela de arroz branco, incensos e uma fruta. Como um espírito poderia se alimentar era um mistério para ele, um dos muitos, aliás, que o mundo reservava. Sentia falta do pai – homem bem apessoado e imponente -, apesar de ter sido sempre uma figura de poucas palavras e demonstrações de afeto.
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Mas transmitia força e segurança. Tudo parecia possível diante dele. E de todas as coisas ele aparentava ter conhecimento. Agora se reduzira, literalmente, cinzas, e o chão deixara de ser tão firme. O fato do pai ter se tornado um espírito tampouco transmitia tranquilidade. O dia estava radiante; o céu azul, coalhado de nuvens. Era gostoso sentir a brisa afagar os cabelos. E o cheio do mar era delicioso. Gonjiro e Miyazuru caminharam pelas ruas quase desertas. Algumas mulheres idosas cumprimentaram, fazendo mesura. Apesar dos sorrisos, havia pesar em seus olhos. O ronco dos aviões, o zunido das bombas e suas explosões em terra pincelavam de matizes cinzentos a colorida tela de suas memórias. Os lembretes da guerra estavam por toda parte, principalmente, no âmago de cada um. Após caminharem alguns quarteirões, Gonjiro avistou a feira. Bambus e lonas remendadas faziam-se de barracas. Algumas exibiam utensílios amassados, recuperados dos escombros; outras, tubérculos mirrados e verduras murchas. Miyazuru o guiou até o vendedor de arroz. Se as senhoras do caminho haviam sorriso, não havia sorriso algum no rosto vincado do feirante, por mais cortês que tivesse sido o cumprimento da mulher e do filho. O menino observou a fisionomia severa do vendedor. Sem pensar, deixou-se ficar atrás da mãe,
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intimidado. Ao menos o arroz - gohan - estava bonito. Devia ser o único sinal de beleza, saúde e vigor naquele lugar. Os arrozais eram a alma do povo japonês. Não importava a intensidade do tufão, as hastes douradas se curvavam rentes ao lamaçal, mas, passada a tormenta, reerguiam-se fortes e orgulhosas diante do alvorecer de um novo dia. Não por acaso, aquela era a Terra do Sol Nascente. O Japão vivia o final do pior tufão que jamais enfrentara. Cedo ou tarde, a sombra da calamidade iria embora, porém, não hoje, não agora. Miyazuru barganhou com o vendedor de arroz. Com dor no coração, mostrou-lhe a imagem de um pequeno buda de jade, única peça valiosa que possuía, uma relíquia do Período Edo herdada de sua bisavó pelo lado paterno. O vendedor fez ar de pouco caso e aceitou como se fizesse uma concessão, embora ciente de que a peça valeria ao menos dez vezes mais do que os grãos que a mulher levaria. Gonjiro acompanhou a transação sem prestar atenção àquilo que era discutido. Chamou-lhe a atenção o vendedor. O homem de meia idade não tinha a perna direita e movia-se com dificuldade, utilizando uma muleta improvisada de um pedaço de pau. Seu olhar fixo podia ser interpretado como falta de educação, grosseria, contudo, e vendedor não se ofendeu. Ante o olhar intrigado do garoto, falou:
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- Foi da guerra, kodomo. Miyazuru se adiantou, pedindo desculpa pela insolência do filho. - Não tem importância - falou o vendedor -, vê-se que é um bom menino. Como é seu nome, garoto? Gonjiro Shimada, senhor vendedor. - Oh, Gonjiro! Tive um amigo com esse nome... Pobre infeliz! Mas como eu disse, perdi a perna na guerra. Foi durante um bombardeio. A gente escutava um zumbido, ficava mais e mais alto. Depois, a explosão que parecia estourar os ouvidos. O chão tremia. Terra, tijolos e cacos de telha voando para todos os lados. Ah, e o medo, muito medo de que o mundo fosse acabar. Bem, de certo modo, o meu mundo acabou. Mas não foi por causa dos americanos, não diretamente. Fiquei assustado com as explosões, corri feito doido e entrei numa zona proibida. Pisei numa mina. Sabe o que é uma mina? - Não, senhor. O vendedor franziu a testa. - É um tipo de bomba, kodomo. Sabe o que é uma bomba, não sabe? - Uma coisa que faz barulho. O vendedor balançou a cabeça em aprovação, apesar de estranhar a ignorância do menino em relação ao conflito. - Como falei, pisei na mina. Baka, né? Daí, perdi a perna. Podia ter sido pior, como aconteceu com meu companheiro Gonjiro. Não sobrou nada dele...
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Miyazuru, concluída a transação, quis logo sair dali. Vamos, Gonjiro, vamos comprar tamago! Mas os pés do menino não se mexeram. - O que aconteceu com ele? A mãe se mostrou aflita: - Vamos embora! Ela sempre procurara poupar ao máximo o filho dos horrores da guerra. Ainda que a ilha não fosse um alvo militar em potencial por ser lar de pescadores e lavradores, tinha valor estratégico na conquista de ilha em ilha que os americanos vinham fazendo a partir do sul. Amami Ōshima ficava no meio do caminho e, durante a guerra, se não tivesse havido a rendição incondicional, o pior teria ocorrido: as batalhas suicidas, civis jogando-se dos penhascos, carnificina. Mas as bombas atômicas caíram sobre Hiroshima e Nagasaki. O Imperador fizera seu pronunciamento à nação no sentido de suportar o insuportável. A guerra no Pacífico terminara. Miyazuru jamais pronunciara em voz alta a ambiguidade de suas emoções: as bombas atômicas foram uma monstruosidade sem precedentes, uma ignomínia genocida, contudo, também forçaram a rendição e impuseram a paz. Sua ilha estava livre dos americanos. Seu filho fora salvo. - Vamos, Gonjiro! O menino resistiu.
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O vendedor, vendo o estado da mulher, falou: - Deixa pra lá, kodomo. Isso não é assunto de criança. Seu pai nunca lhe contou sobre a guerra? - Papai morreu em Okinawa. O semblante carrancudo do homem suavizou. Quando tornou a falar, sua voz soou supreendentemente gentil: - Compreendo. Ele foi um herói. Deu a vida para que você e sua mãe vivessem. Jamais se esqueça disso, kodomo. Foi até o fundo da banca, apanhou um pedaço de jornal, escreveu alguma coisa nele e, sem que mãe e filho vissem, embrulhou algo no papel e passou ao menino. - Tome, guarde com você. Miyazuru, desconfiada, quis recusar. O vendedor ergueu a mão. - Satisfaça a vontade de um aleijado. É apenas uma recordação para ele. Relutante, ela aceitou e viu o filho enfiar o pequeno embrulho no bolso do short. Gonjiro deixaria para ver o conteúdo em casa, pois, caso não gostasse, não faria a descortesia de demonstrar descontentamento diante de quem o presenteara. - Arigatô! – agradeceu. Então, os olhos da criança se estenderam para as plantações de arroz mais além. Balançavam em conjunto ao vento como se fossem ondas de um oceano dourado. Não obstante os efeitos da erosão e do plantio, delineou os
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rastros de crateras deixados por alguns projéteis. Além do terreno ferido, havia ruínas de casas destruídas. Imediatamente, lembraram-lhe pegadas dos monstros gigantes que ele tão bem conhecia. Sua mãe acompanhou o olhar do menino. Ficou em silencio, presa pela lembrança do marido, queimado vivo por um lança-chamas, da cerimônia do funeral, do desamparo, da dor. Guerra estúpida! Nem vencidos, nem vencedores, nem bravura, nem honra. Só sofrimento, tristeza e desespero. Todos estúpidos! Tanto o vendedor de arroz quanto Gonjiro se espantaram. Em geral, Miyazuru era uma mulher contida - conforme ditava a rígida etiqueta japonesa -, hábil em ocultar seus sentimentos, principalmente diante de estranhos. Aquela alteração tão repentina e aberta assustou o filho. - Tudo bem, mamãe? - Lamento se perturbei sua paz interior - disse o homem mutilado. A guerra permanece viva em nosso corpo e dentro de nós. - E não morrerá enquanto falarmos dela! - desabafou a mulher, lágrimas nos olhos, desculpando-se em seguida: - Gomen nasai! Gomen nasai! Gomen nasai! Sem entender o porquê da raiva e da tristeza da mãe, Gonjiro começou a chorar e pedir para retornar para casa. Ainda era novo demais para compreender que seus
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monstros imaginários eram infinitamente menos terríveis do que a monstruosa realidade da guerra ou do quanto certas pessoas podiam ser cruéis. Voltaram para casa. As sombras persistiram. A friagem era uma constante. O silêncio continuava a intimidar. Mas todos os monstros dentro da casa, na imaginação de Gonjiro, nos filmes, no rádio, nos mangás, não transmitiram o temor que ele sentira diante das ruínas, do pranto de sua mãe e sob as palavras do vendedor sem perna: "... Não sobrou nada dele..." Dentro do quarto, havia alívio em seu olhar. Encontrava-se livre do medo da guerra.
Estava junto de seus monstros. Eles o protegeriam. Ao recordar-se do homem da feira, enfiou a mão no bolso do short e tirou o embrulho tosco de jornal. Abriu. Arregalou os olhos e gritou: - Mamãe! Miyazuru se mostrou igualmente surpresa. Era o pequeno buda de jade. - É seu - disse o menino. Numa rápida garatuja, o vendedor escrevera no jornal: "A guerra destruiu muita coisa, inclusive minha perna, mas não me levou o senso de dignidade." Dessa vez, Miyazuru conseguiu evitar de chorar. O coração de Gonjiro se aqueceu diante do sorriso dela.
http://www.revistaconexaoliteratura.com.br/search?q=roberto+schima https://clubedeautores.com.br/books/search?where=books&what=roberto+schima https://www.wattpad.com/user/RobertoSchima rschima@bol.com.br
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RodrigoSBA Salvador/BA
Recebi um pacote e um aviso de meu irmão: "Vá com cautela! Essas três são bem mais fortes do que você está acostumado!". "Fique tranquilo! Me conhece não, é?" – Retruquei. Dias depois, cuidadosamente, escolhi uma para experimentar: a sensação foi boa, mas nada de outro mundo. Minhas vias respiratórias ficaram limpas na hora! E foi só. Na segunda oportunidade fui ao meio termo da "coisa": o cheiro era mais forte e logo tratei de usar. Bateu onda. Nariz limpo, língua latejante, lábios dormentes, leve calor… Na terceira vez não houve jeito: hora de pegar pesado. Eu queria aquilo. E na primeira gota fui transportado para outra dimensão de prazer, satisfação, dormência, calor, sabor e ardor dos 2 milhões SHUs da Carolina Reaper.
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Rommel Werneck Santo André/SP
Dueto De moldura de um círculo de borda Num castelo dançamos outra valsa Enquanto a palidez já te transborda... Voamos às estrelas numa balsa E, num toque de mãos neste dueto Tua voz já recai sutil e falsa... Desposamos o amor num leito preto, À música de um místico cristal, A carne se transforma em esqueleto... Além de um grande beijo, a Lua assiste No bosque teu escape surreal.... Não pode ser somente um sonho triste, Foi mais uma vez a vida real. 2018
www.rommelwerneck.com
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Roque Aloisio Weschenfelder Santa Rosa/RS
O Homem Alado Olho-me no espelho e perguntolhe: — como ainda estou aqui? A surpresa me ataca quando ele fala: — porque ainda não lhe pegaram, o vírus não lhe atingiu, os que o possuíam não espirraram ou tossiram muito próximo de você. Agora ele já se enfraqueceu e quem recebeu vacina, como você, corre pouco risco de contaminação e de ter sintomas. O que será que acontecerá no futuro, lá adiante, daqui a vinte anos, quando meus netos forem todos adultos e preocupados em sustentar sua vida e a de meus possíveis bisnetos? Fiz a pergunta a mim mesmo, pensando em cientistas que previram alguns dos itens do progresso a que chegamos hoje. Que resposta poderei me dar? Será que é necessário me preocupar com o que, possivelmente, não presenciarei? Vou ao espelho, ele ri. Nele vejo um rosto que é diferente de muitos anos atrás, quando tinha barba escura, e subindo, na cabeça, encontrava cabelos; agora, tão poucos restam porque são teimosos em não caírem também. Penso que a pandemia de covid estará com os dias contados, mas que o futuro poderá ter problemas mais sérios. Quais eu não consigo imaginar, devem ser tão surpreendentes como foi, em
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2020, o surgimento, entre nós, do coronavírus. O espelho fala: — antes de novo tipo de pandemia, o homem criará asas a vestir e voará sem precisar de combustíveis. Basta que sejam carregadas as baterias embutidas em cada uma delas, que serão do tamanho de um dedo mínimo de homem normal e durarão até vinte e quatro horas. Rio na cara do espelho, mas ele não se impressiona e continua: — o homem pode voar até fora da atmosfera próxima à terra firme ou ao mar, basta carregar um nariz capaz de se prover de oxigênio super comprimido a ponto de não ter peso. — Como se fará isso? — pergunto, sem entender como os cientistas poderão chegar a criar tais novidades. — Quem, há dois séculos, pensaria em aviões, em vacinas, em internet? Mesmo assim, temos tudo isso. Quantas pessoas entendem como essas coisa funcionam? Se a ciência criou o impensável no passado, por que não poderá criar asas alimentadas por baterias para as pessoas? Ela já não criou pássaros metálicos enormes? Quantas luas, digo, satélites, não estão no espaço,
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criados por humanos? Você mesmo os usa para aproveitar a internet no seu notebook, telefone celular e no receptor televisivo. Seu avô teve algo disso? Até seus pais mal tinham alguma noção daquilo que você usufrui hoje — falou o espelho, sem pestanejar. — É, até as vacinas contra covid foram feitas rapidamente — retruquei. — Contra que outras doenças se conseguiu isso antes? Parece até desconf... — não terminei, afinal, é até um risco pensar demais... Preciso pensar positivo, a ciência é capaz de muita coisa e, mais cedo ou mais tarde, encontrará a tão procurada vida no espaço. Quem sabe, seres voadores com pilhas nas asas! Quem sabe, capazes de entrar em condutos em que a velocidade possa ser maior que a da luz, para ir de um sistema estelar a outro, de passar, em instantes, de uma galáxia à outra! Vai ver que, no futuro, nem seja necessária a terra para a humanidade viver! Vai saber se as pessoas ainda precisarão de nossa estatura atual no futuro! Ter asas pilhadas para voar será plausível, não gastar combustível fóssil para se locomover, ainda mais. Agora, poder voar no espaço sideral com nariz de oxigênio comprimido, isso queria poder sentir! Claro que será para meus bisnetos ou tataranetos, se antes a “burra” humanidade não se extinguir por seus erros grosseiros na parte ambiental e por sua ganância por bens e privilégios em excesso.
Enquanto os vírus não me matarem, e meu sistema coronário me deixar vivo, quero imaginar que a ciência ficcional seja capaz de ser ciência verdadeira, mesmo com pessoas aladas voando por aí. Então, baterias já existem e são produzidas há muito tempo. Para que possam ser carregadas, é claro que se precisará de energia elétrica. O espelho não me diz, mas minha imaginação quer ficcionar que ela possa ser captada diretamente do sol por meio de agulhas metálicas direcionadas do chão na direção dele. Essas agulhas terão fios de linha ligados à central elétrica da casa de seu dono. Num dia de sol armazenarse-á o suficiente para um mês de consumo. Para impedir que outros vírus, criados ou não em laboratórios, venham a ameaçar meus sucessores familiares, uma pequena teia magnética invisível circundará os corpos das pessoas, obtida por uma vacina feita de beijos dados por jovens mulheres que não tenham parido ainda. Elas serão as pessoas mais ricas do mundo e, para transmitir tais vacinas, precisarão tomar um suave banho magnético, voando a mil metros de altitude em dia ensolarado. Pena, certamente, não estarei aqui para receber um beijo tão magnético.
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Rosangela Maluf Belo Horizonte/MG
Presentes que me dou ...(2) - O café O prédio inteiro está em silêncio. Aos domingos tudo é ainda mais calmo. A ausência de vozes, a quietude. Nenhum carro sai da garagem. Não há gritos de crianças indo pro clube, nem mães gritando “cuidado”. O domingo é de sol, mas estamos todos pagando o preço do isolamento social imposto pela pandemia. Quietos em casa, estamos todos. Cuidando de nós e cuidando do outro também, ainda que o preço a pagar seja alto demais. E vai piorando a cada dia que passa. Mais mortes, mais contaminados. As aglomerações continuam. Difícil entender o que se passa na cabeça desta gente! Um suspiro e lá vou eu. Ainda é cedo. Acendo a luz da cozinha. Na medida certa, coloco a água pra ferver. Enquanto espero, separo o coadorzinho de flanela. Nele coloco uma pequena colher do pó de café. Não gosto de café forte. A xícara de cerâmica, pintada à mão foi presente do meu filho. Sorrio pensando nele. Respiro profundamente e adoço a vida com duas colherinhas de mascavo. Separo as torradas, três. Retiro o caneco onde ferve a água e vou, lentamente, despejando-a no coador. Pequenino. Conta certa para uma boa dose matinal de café. Sem nenhuma pressa a xícara
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vai se enchendo, aos poucos. O cheiro é sempre bom, mas com a total atenção no aroma e nas lembranças que me despertam, o inusitado torna-se emocionante. Um simples cheiro me leva a tantas lembranças. Uma manhã de inverno. Uma tarde chuvosa. Encontro de amigas. Em casa, enquanto leio um bom livro. Sabores diversos em diversos países, cada um com suas características tão especiais e marcantes. Todo mundo toma café. O mundo inteiro (ou quase) bebe café. Inúmeras variações, mas o cheiro é quase sempre o mesmo. E hoje quero explorar, como nunca fiz antes, o prazer do café que tomo todos os dias, sem pensar em outra coisa. Como a atenção a um simples cheiro pode ser capaz de tanto! Agrada-me a sensação de reviver todas estas lembranças. Continuo empenhada em colocar-me no aqui/agora, em tudo que eu fizer. Quero colocar meu pensamento, minha energia e meu coração em cada etapa da rotina do meu dia a dia. Desafio-me a conseguir parar o pensamento. Impedir que outras coisas me preencham sem que eu lhes permita a intromissão. Totalmente dona dos
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meus sentimentos, dirigindo o meu pensar para aquilo que me faz bem. Tudo que me enche de alegria. A busca da felicidade nas pequenas coisas, nas pequeninas coisas, na mesmice do dia a dia. É possível sim. Três torradas: a primeira apenas com manteiga, muita! Na segunda espalho, vagarosamente, uma camada de requeijão cremoso e outra camada, ainda mais generosa da geleia de laranja (com casca) que eu mesma faço e adoro. A terceira com fatias fininhas de mussarela. Coloco 10 segundo no micro ondas, tempo suficiente pra derreter aquela maravilha. Aprecio a textura. A temperatura. O sabor da torrada e a “crocância” na mordida. (Sorrio pensando no outro filho que adora esta palavra). O sabor da manteiga derretendo na boca. Mastigação lenta, mistura caprichada. Bela combinação, a do salgadinho do requeijão com o doce-amargo da geleia.
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O calor do queijo derretido, pastoso, delicioso, escorregando com calma. Inspiro profundamente e expiro contando até seis. Sentimentos de afeto e ternura me invadem. Gratidão por tudo: pelo silêncio deste dia, por ter em mim, o que preciso. Sou terra, sou água, ar, fogo e luz. Tenho tudo que me é essencial, importante, necessário, o básico para minha sobrevivência. São tantas (e tão pequenas) as coisas que podem nos fazer felizes. Direcionemos então nossa atenção a elas. Concentremo-nos em cada tarefa diária. Atenção a cada atividade do nosso dia a dia. Entrega total ao que fazemos. Onde estamos. No que pensamos e o que sentimos. Não haverá nenhum milagre, mas se tivermos controle sobre nossa mente, acreditem, estaremos a salvo...pelo menos por enquanto! E assim termino o meu café da manhã.
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Roselena de Fátima Nunes Fagundes Camaçari/BA
Namorar Namorar é tão bom, sentir o coração apaixonado com tom de muita paixão! Namorar é se apaixonar, ver todos os belos dias coloridos num emocionar reavivando as alegrias! Namorar é se enamorar, querer estar ao lado de quem ao namorar se torna ser amado!
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Ruan Vieira Propriá/SE
No silêncio No silêncio Alguém mata No silêncio Alguém morre
No silêncio Alguém se perde No silêncio Alguém se descobre
No silêncio Alguém bate No silêncio Alguém apanha
No silêncio Alguém se esconde No silêncio Alguém chora
No silêncio Alguém rouba No silêncio Alguém mente
No silêncio Tudo fica tão quieto Omisso, discreto Só minha cabeça que não
No silêncio Alguém se envenena No silêncio Alguém sofre
No silêncio Alguém se cala Sufoca, entala Mas só minha cabeça que não.
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Samira Martins Marana São Paulo/SP
Preguiça Domingo passado saí para ver o céu. Depois de 160 dias em confinamento, saí “sem necessidade”, já que olhar o céu, não é exatamente importante para a vida tal qual erroneamente inventamos. Então saí para vê-lo sem a mediação da minha janela, enquanto a população carioca aglomerava nas praias. Corri para o isolamento da floresta da Tijuca me recordar que “apesar de você” a vida ainda pulsa. E aí eu olhei pro céu e avistei, agarradinho em um tronco, um bicho-preguiça, que deveria se chamar bicho-presença ou bicho-sem-pressa ou bicho-qualquercoisa que fosse mais honestamente de acordo com sua qualidade contemplativa de existir. Tive para mim que chamá-lo de preguiça pode ser um pouco injusto. Desafiar a gravidade, em qualquer circunstância, ainda que se possa contar com o apoio de um tronco de árvore, requer um engajamento muscular que não condiz com o estado de preguiça. Em qualquer corpo, seja ele humano ou não. Li que seu tempo, dilatado, resulta de seu metabolismo lento. Ele dorme cerca de catorze horas diárias. Mas ele se segura inteiramente em um tronco, numa altura arriscada, com uma firmeza que lhe é própria, na calma que lhe é própria, com aquela expressão meio sorridente que lhe é própria. Eu tive a sorte de encontrar um bicho preguiça— que eu acho que não deveria ser chamado de preguiça mas eu já expliquei o por quê — pela primeira vez e acordado. Sentei na calçada e por cerca de quarenta minutos olhei para o alto, contemplando aquele bicho sem preguiça , ocupado em ser somente o que ele é, no seu tempo, que dilatado, se expandiu e se fundiu ao meu, apressado, sempre ocupado em ser tantas coisas que não eu mesma.
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Como uma espectadora que assiste à cena de um dançarino de butô, com seus movimentos precisos e volumosos no tempo e espaço da árvore-palco, com sua pelagem-figurino em consonância com o tronco-cenário, fui arrebatada, da minha calçada-poltrona daquele teatro-floresta por uma contemplação meditativa que me conduziria a uma consciência do meu corpo e movimentos que em quase seis meses de confinamento, ainda que no mesmo corpo todos os dias, eu talvez ainda não estivesse experimentado. Cada movimento daquele pequeno mamífero de sorriso de buda nutria de percepção cada segmento do meu corpo de mamífera bípede, que não depende dos membros superiores para sustentar o próprio peso a trinta metros do chão. Cada virada suave do pescoço dele me provocava sutilmente a descompressão de cada articulação minha. Cada movimento de cada pata me provocava uma respiração profunda e consciente. Cada vez que ele movimentava a articulação da extremidade da pata dianteira, pressionando as longas unhas contra a superfície do tronco, eu percebia a sensação de cada articulação das minhas mãos. Ele desceu, pata por pata pelo tronco, estendeu a pata esquerda traseira, depois a pata esquerda dianteira e se transferiu para um cipó, consciente de cada pedaço que seu corpinho ocupa. Se organizou em unidade cabeça-tronco-patas e subiu rapidamente pelo cipó até chegar ao topo da árvore, em completa consciência, força, beleza e sabedoria corporal, me convocando a habitar melhor meu próprio corpo, como ele faz com o dele. Levantei, me alonguei rapidamente, como se eu me transferisse de um tronco para um cipó e continuei minha caminhada, perna esquerda, perna direita. Em presença, sem preguiça.
Importante: mantenham tanto quanto for possível o isolamento social. Evite aglomerações. O vírus segue em circulação e o número de mortes segue aumentando.
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Sandra Modesto Ituiutaba/MG
Angústia Gostava da calmaria antes de tudo se perder Do gesto suave às vezes sem hora marcada Sem medo Mesmo olhando o luar sobre nossas cabeças encostadas e ofegantes de amor Gostava quando o silêncio não era o fim E nessa vida repentina, choro, velas, insônias. Nem o café é doce Nem o cheiro é vivo A gente cruza o passado e o agora Entende que o coração abandona o barco Sem leme, sem poemas bonitos. O peito abafado A brutalidade dos dias O ano catando a cantoria perdida, naquela emoção de que tudo vai diminuir. Afinal, são mais de três anos tramados para o país acabar. Desde o fatídico janeiro de dois mil e dezenove. Houve momentos de desespero, choros, exaustão. Onde foi que nos perdemos e porque perdemos tanto? A angústia de cada dia A angústia virando a doença emocional nessa dança brasileira de lutar contra o tempo Nos arranjos e perrengues, lágrimas melando o rosto enrugado ainda que essa ruga não seja protagonista. Mas é uma ruga, é uma coluna em desvio no meio do cais sem rumo.
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É uma mãe desesperada procurando comida pra dar aos filhos, osso, restos de dias sem aconchegos, abafam palavras. Quando as mudanças climáticas eram apenas diversão resenhada em abraços e sorrisos Na imensidão de tantas memórias, desenho angústias, nessas travessias transtornadas e bêbadas. Sem escapatória, alguém faz terapia. Alguém não tem o que contar para quem contar. Dói o peito, dilacera uma dança da mísera poesia. Eu reescrevo uma ilusão. Enfim, se eu não catar minha força perante o abismo existente, deixar meu péssimo gosto de realismo não vai dar. E ninguém notará o meu vestido vermelho. A esperança vem chegando, a esperteza dos abraços se abarcam e todos os espaços angustiados, serão aos poucos, batidas esperançadas. O amor vencerá. Com pegadas de abraços e beijos numa manhã qualquer.
https://www.facebook.com/sandraluciamodesto.modesto
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Schleiden Nunes Pimenta Bernardino de Campos/SP
Eu me vejo no flash “Vem, vem, vem aqui... Consegue me ver?”, eu pensei e, em passos lentos, cautelosos, de receio, ela pareceu não muito querer se aproximar. Umn... mas queria afinal, umn!, queria sim. Vai fosse a estranheza, vai fosse a surpresa, de se deparar com o absurdo que somos nós. Paradas, alinhadas, em pé, com expressão de nada. De toda forma, me fazendo de dada fui à frente, chamei-a com o carinho que ainda me restava, fiz suas bochechas tremer. E, ao vê-la a se ajoelhar ante de mim, no exato instante do clique da sua máquina, umn!... eu lhe falei. Sabe?, não é sempre que pessoas vêm nos fotografar. Não sei quanto tempo ainda me resta para ver outra chance, para aproveitar. E eu quero aproveitar. Você. Aí. Umn. Vou lhe dizer, mulher. É vergonhoso, é aviltante, mas em verdade é muita audácia demais. Este lamento, mesmo, poderia ser feito em terceira pessoa, deles para nós, mas assim a audácia da qual falo acabaria por ser ainda maior. Lembro que, há muito, bastante tempo, eu esperava mais da minha vida, embora não me lembre sequer do rosto da minha mãe. Penso como seria, viver em família, antes de ser objetificada, julgada pelo tamanho dos peitos, da
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bunda, das coxas, umn? Bem antes de ser trancafiada nestes quartos, nestes prédios, posta à venda desde a adolescência e aos prazeres de pessoas com mais direitos do que nós. Nos acostumamos de tal modo que esquecemos haver um mundo além da vitrine, dessa vitrine, de você aí, e penso-pensei: “Será que alguém sabe da nossa existência, que estamos aqui?”. Que há outras como nós, várias, de, nós, aprisionadas, servindo de corpo e alma, umn?; de ventres e seios rasgados, obrigadas e à mercê de quem simplesmente tenha dinheiro para nos alugar? A comida diária, o banho semanal, a limpeza frequente... enganam apenas os clientes que, querendo ou em vistas grossas, ignoram o freio que cala nossas bocas, que aperta nossas tetas chupadas, que se aproveita dos nossos filhos roubados, que bebe da nossa liberdade que não é nossa há tempo demais. Como em leilões, quantificadas; como em circos ou zoológicos, ridicularizadas; como em vitrines, expostas; nossos maridos, de uma forma ou de outra, mortos.
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E os clientes, umn? Riem... Como todos, imaginam que ao lhes dar prazer nos aprazemos também. Como se fôssemos feitas para eles, e só; como se fosse um favor nos manter aqui e não nos fazer coisa pior. “Neste foco, nesta foto, eu te olho”. Veja, aqui: a realidade oculta da vida, não tão oculta assim. Ao olhar para aquela fotógrafa como se fosse o meu último ato de liberdade, eu olhei. E, por trás daquela lente profunda, minuciosa, fria, senti que ela me focou também. Umn... um milagre! Percebeu eu, mesmo, minha alma, minhas intenções, por trás dessa roupa fofa, dessas joias e metais vultuosos, dessas camas confortavelmente enganosas: nós. Afinal, como não me reconheceria, ela, mulher no mesmo mundo violento e opressor que eu? “Deixe elas bonitas”, meu empresário deve ter lhe dito, sorrindo de vilão rico como só o tipo rico dele faz. E acha não ser por mal. Aquela sutileza, aquele carinho, de não sei de onde tirei isso, que nos bate, que nos verga, ao mínimo gesto ou movimento que fizermos em sentido contrariado. Se correu, umnn!...
Pode, nos fotografar: façamos pose, mostremos os dentes, brancos na frente, vermelhos atrás; assim, isso assim, olhar doce, o sol ao fundo, como fingindo vida em liberdade. Vem, amiga, sobe aqui... Me olhe, mas eu mesmo. Umn? Eu, aqui, para além da embalagem, para além da caixinha do mercado. Eu sei, quando te vi, senti, que não seria mais um ensaio comum. Umn? A lágrima que embaça seu flash me diz que, embora hoje sirva aos desejos de nossos donos, é a mesma que um dia ajudará a nos libertar daqui. Enquanto isso, aprisionadas, agrilhoadas, aproveitadas, humilhadas, de todo mundo, uni-vos! Humhumhumn! Oh! Firmem os cascos, não deixem de mugir bem alto, umn? Todos os campos do mundo são seus. Me revele, essa foto, na gordura do meu leite e do meu sangue fermentando dentro de todos eles ali! E tomara que lhes dê uma vaca de uma queimação. “Vem, vem aqui... consegue me ver?”. Umn…
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Sérgio Soares Simão Pereira/MG
Tião, a história do menino fogueteiro — Naquela manhã acordei com um gosto de morte na boca. Já sabia que a inominada estava a caminho, por isso, antes de assumir meu posto, dei um longo e demorado beijo na minha preta, e fiz um último carinho em meu filho. Tião, que contava 18 anos, morava com Karolyne, de apenas 16, com quem já tinha um menino, Isaac - Isaac Newton. Depois da despedida, pegou sua companheira inseparável, a Russa Catarina, seu rádio e foi pra laje. Lá, como de costume, sentou numa lata, acendeu um baseado, e ficou entorpecido pela calmaria, um silêncio no morro, que só podia significar uma coisa… Perdido no espaço-tempo, lembrou-se do dia em que chegou na comunidade, com apenas 11 anos, cheio de mágoa, e se tornou fogueteiro. De tão bom que era, em pouco tempo já comandava os moleques do foguete, e por todos era temido porque, caso algum pisasse na bola, Catarina cantava alto. Esse sentimento de raiva só foi quebrado com o nascimento de Isaac, o nome foi uma homenagem a seus pais, que não conheceram o bebê, mas sempre acreditaram que ele poderia fazer algo importante na vida. Na noite anterior, ficaram os dois - ele e o pequeno - deitados na laje, olhando
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para as estrelas entre gargalhadas, onde Tião contava para o filho a história de cada constelação, e tudo que havia visto na sua visita à Base de Alcântara. Então, como que no despertar de um sonho bom, foi acordado com o rádio gritando: Caveira! Caveira! No mesmo instante o céu da comunidade ficou tracejado pelas rajadas de fuzil, e pelo barulho ensurdecedor dos helicópteros dando rasante. Tião se colocou em posição de tiro, e sentou o dedo na Russa, porém, aquele instante – minuto, que pareceu uma eternidade, foi interrompido pela bala certeira de um Sniper que, com um único disparo, interrompeu a carreira do menino fogueteiro… — Me chamo Sebastião, sou filho único de uma família muito humilde, mas honesta. Fui criado em uma comunidade onde nunca me envolvi com nada de ruim, apesar da violência do local. Filho de pais evangélicos, minha vida sempre foi Casa – Escola – Igreja, mas, ainda assim, era uma criança muito feliz, e dedicada aos estudos. Meu maior sonho era ser astronauta. Até que um dia, aquele menino preto, pobre e
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crente quase acreditou que isso poderia se tornar realidade. Era semana da Pátria, e em comemoração a essa data especial, a escola iria receber a visita do Coronel Astronauta, meu maior ídolo. Na véspera da visita, nem dormi direito, pensando em como seria encontrar com o meu herói, e o que eu poderia perguntar para ele. Acordei cedo, me despedi dos meus pais e, num galope, cheguei à escola antes mesmo do portão se abrir. Quando tocou o sinal de entrada, eu já estava a postos para sentar na primeira fila do auditório. E a hora chegou. Foi como se eu tivesse sido teletransportado para outra dimensão, cada palavra, cada gesto do convidado me fazia voar alto, sonhando em como seria conhecer o espaço. Foi então que, num sacolejo, fui acordado com alguém chamando meu nome: – Sebastião da Silva, Sebastião da Silva – até que a Diretora me puxou da cadeira. – Vem cá Tiãozinho, você foi o sorteado. Ainda atônito, e sem entender o que estava acontecendo, fui levado para o centro do palco, onde o Coronel me cumprimentou dizendo: – Parabéns, você foi o escolhido para viajar comigo, e conhecer a Base de Alcântara, o Centro Aeroespacial Brasileiro. Você aceita? Sem palavras, aquele garoto que sempre sonhou com esse momento só conseguiu responder com um abraço do tamanho da Estratosfera, e que
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envolveu seu maior ídolo com a força da Gravidade. Os dias seguintes foram de pura excitação e preparação. Acompanhado de minha mãe, embarquei na viagem que mudaria minha vida para sempre, de maneira definitiva. Vivi a experiência de viajar de avião, aproveitei as mordomias de um hotel e, finalmente, conheci a casa do Astronauta brasileiro. Chegando à Base, não perdi um segundo sequer das explicações dos militares, absorvendo cada palavra, e guardando em minha retina cada imagem – o Centro de Comando, a Área de Treinamento Físico, a Base de Lançamento, mas o que me fez perder o chão, foi realmente conhecer o Simulador de Gravidade. Aquele foi o dia mais longo, e ao mesmo tempo mais marcante de minha vida. Na despedida ganhei um uniforme, feito especialmente para mim, igual ao dos oficiais aviadores que faziam seus treinamentos em Alcântara. De volta à comunidade, o que deveria ter sido a realização de um sonho, começou a se tornar o maior pesadelo da minha vida de meninohomem. Eu, que acreditei que seria recebido com honras militares, como aconteceu com Neil Armstrong quando retornou de sua viagem à Lua, fui surpreendido, no dia em que voltei à escola, com a indiferença dos meus colegas. Mas o que mais me machucou, de verdade, foram as piadinhas – “filhote
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de astronauta”, “lambe botas de milico”, “baba-ovo de governo”. Aquelas palavras pareciam não fazer sentido em minha cabeça que, com apenas 11 anos, estava sofrendo sua primeira e maior decepção. E as ofensas não melhoraram, na verdade foram só piorando, até que um dia aconteceu a gota d’água – a professora de História, aquela filha duma vagabunda, falou em tom de deboche para a sala inteira ouvir que “a única forma de moleque negro e pobre conseguir chegar perto das estrelas, era subindo em um andaime bem alto, para lavar janela de prédio”. – Se orienta moleque, e acorda pra vida! Disse a professora, em tom de vaticínio.
Aquele chamamento realmente me “orientou”, e me fez acordar pra uma vida que eu não havia escolhido. Se antes eu andava apenas triste, desde então comecei a nutrir uma revolta contra tudo e contra todos que, não aguentando mais, me fez, no meio da madrugada, pegar minhas coisas e fugir de casa, deixando para trás meus pais e meus sonhos. Acabei indo parar em outra comunidade, mais distante, onde descobri que podia ganhar dinheiro e abrigo, trabalhando de fogueteiro para o tráfico. Naquele dia morria o Tiãozinho – Sebastião da Silva, e nascia ali o “Tião fogueteiro”.
https://articulanciablog.wordpress.com/ https://sergiosoares517.wixsite.com/sergiosoares
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Shirlei Pinheiro Teresópolis/RJ
A temida fila A maioria das pessoas tem pavor de filas e claro eu me incluo nessa massa, porém quando elas são inevitáveis eu tiro esse tempo para além de sair um pouco do ambiente do escritório, aproveitar o que ela tem para me oferecer. É interessante observar os tipos de pessoas e assuntos que surgem nas filas. Dia desses tive que ir ao banco para resolver assuntos do trabalho, cheguei as 10:00 horas para pegar um lugar melhor, mas como era sexta-feira não adiantou muito, a fila já estava longa. Durante 1 hora que fiquei esperando revi conhecidos passando, cumprimentei alguns que não via a algum tempo, inevitavelmente ouvi conversas, numa dessas aprendi uma receita de frango caramelizado, para quem como eu não tenho tantos dotes culinários são uma maravilha, em outra fiquei sabendo de uma loja de sapatos que estava em liquidação (isso é bem interessante), assuntos como política que ultimamente se resumiu entre direita e esquerda, futebol, novelas, escândalos com famosos…nunca faltam. Enfim, filas são um prato cheio para acontecer coisas inesperadas, pode-se conhecer pessoas, fazer amizades, indicação de emprego, há quem diga que encontrou a cara-metade em uma, por que não? Às vezes uma coisa chata pode trazer oportunidades, quem sabe na próxima eu aprenda uma nova receita. https://jornalescritoresdaserra.blogspot.com/
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Sigridi Borges São Paulo/SP
Triste Separação Chego a este ponto da vida onde minh’alma cansada, mas feliz carrega doces lembranças de uma época em que meus olhos eram a porta de entrada das letras e das frases dos versos da magnífica visão de um livro pequeno e humilde mas amigo fiel. Meus olhos estão a fechar descansarão em breve mas levarei em meu peito, coração e memória os poemas que li as histórias que acompanhei que um dia encantaram meu viver.
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Sinval Farias Fortaleza/CE
Resistência a casa é a mesma de antes tecida de taquaras e tabiques espessos em feitio de taipa escorre de lá o dizer do passarinho e das coisas comuns — o relógio de parede
a penteadeira o curumim descalço tudo põe fala no tempo como fala o açude de seu enverdecer ou o olho-d'água em espanto puríssimo a vida desembesta a moer as horas no ranger morno das noites a casa é essa nódoa entramelada nos rostos ovais dos retratos @profsinvalfarias
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Sonia Re Rocha Rodrigues Santos/SP
Uma mulher na sombra A senhora Alzira faleceu de repente,
um banho, comer algo. Você vai
depois de 30 anos de um casamento, se
primeiro, eu fico com sua mãe.
não feliz, harmonioso.
— A madrinha me acompanha?
Sua filha Nadir, sentada ao lado do
Ela observou a troca de olhares entre
caixão, enxugou discretamente os olhos
eles.
com um lencinho de papel e olhou ao
— Claro, vamos.
redor de si. Viu as costas do pai e a mão
Enquanto se encaminhavam para o
da madrinha no braço dele, e logo atrás
carro, Nadir ia recordando o pouco
da
tempo que passara em companhia
mão,
uns
olhos
atentos.
Bem
atentos e brilhantes. O pai, reparou ela,
dessa
retribuía o gesto.
notícias apenas em duas ocasiões:
Pouca gente havia no velório. Nadir, o
em seus aniversários e nas vésperas
pai, a madrinha e alguns vizinhos que já
de Natal.
tratavam de se despedir.
Nos
— Voltaremos para a cerimônia. Aliás, a
enviava um presente, sempre caro,
cremação é bem mais bonita. A senhora
grande, algo que o pai sabia que ela
não acha?
queria muito. Nos natais, enquanto a
— Acho triste.
mãe recebia os visitantes, o pai saía
— Ah, claro. Queira desculpar...
com ela para algumas visitas de
A madrinha agora aproximou-se, olhos
praxe
baixos, afastada do pai, e propôs que
parentes
saíssem para um lanche.
visitavam a madrinha.
- Deixando o cadáver sozinho? Nunca.
Um dia mudaram de cidade, mas as
— Filha, ainda faltam algumas horas,
visitas natalinas continuaram, pois o
melhor ir para casa, descansar, tomar
pai
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madrinha,
aniversários
ia
a
de
da
alguns
a
tinha
afilhada
amigos,
distantes.
visitar
quem
Por
família,
ela
clientes, último,
e,
de
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passagem, a madrinha. Só que agora as
— Grosso. Fiquei furiosa. Aí ele pediu
visitas
meu telefone e eu neguei. Ele disse
aconteciam
em
um
dia
da
semana entre o Natal e o Ano Bom.
que
Vez por outra, à mesa, o pai citava a
"atrevido".
madrinha,
com
encontrando
por
íamos
casar
e
eu
respondi
quem
conversara,
— Isso não é uma história de amor.
acaso,
e
— Não era, mas virou. Um mês
a
mãe
perguntava quais eram as novas.
depois eu voei até a casa dela, fui
Certas férias, conversando sob a luz das
recebido pelo seu avô e pedi a mão
estrelas, os pais lembraram como se
de sua mãe em casamento.
conheceram. Nadir ficou curiosa.
— Em namoro, não é, pai?
—
Um
atraso
de
— Que namoro, criatura? Nao existia
aeroporto. Todos dormindo no chão.
internet, o telefone era discado, eu
Meus
morava na Paraíba e ela em Santa
primos,
de eu
avião. e
um
Greve grupo
de
mocinhas.
Catarina. Era casar ou casar.
— Nem me lembre, que transtorno! Eu
— Assim, feito cigano?
estava tão mal humorada, e as tontas
— Bem, eu fiquei uma semana na
de minhas amigas a procurarem rapazes
cidade. Era o tempo de licença que
para paquerar.
consegui no emprego. Nessa semana
— Paquerar?
eu fiz sua mãe se apaixonar por mim.
— Flertar. Namorar. Ficar. Algo assim.
Ela é uma mulher especial, linda por
— Ah... Então vocês namoraram?
dentro.
— Nada. Sua mãe estava um gelo. Os
mulheres
meus primos eram altos, bonitos, mais
geralmente bobas, e um dia a beleza
espertos e logo trataram de fisgar as
acaba. Já a beleza interior, isso é
mais bonitas.
especial.
— Papai, você está chamando a mamãe
— Na verdade, eu era feia, gordinha,
de feia.
sem graça e tinha um defeito horrível
— Gordinha. Ela olhava furiosa para
na cabeça: eu pensava. Seu pai,
mim e não resisti, disse bem alto "a
bem, ele é um homem inteligente.
gordinha é minha", só de pirraça. Ela
Tão inteligente que percebeu que eu
ficou toda vermelha.
valia a pena. Disso eu gostei nele.
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Eu
não
importava
bonitas.
Elas
com são
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— Eu sempre atraí as garotas pela
— De você nascer, claro. Porque ele
minha conversa, que eu também nunca
veio me dizer que queria convidar
fui lá o tipo bonito. Sempre adorei um
como
desafio, e sua mãe foi um desafio e
infância, eu concordei. Só depois de
tanto.
batismo é que meu sogro me contou
— Depois de nos casarmos, bem depois,
a história toda.
para falar a verdade, eu descobri que
— Essa amiga de infância era a
ele estava noivo naquela época. - contou
mocinha apaixonada? A madrinha?
a mãe.
— Bem - disse o pai - ela me
—
Nada
disso.
Noivo,
madrinha
uma
amiga
de
exatamente,
telefonou e disse que queria ser
nunca fui. Tinha uma menina lá na
madrinha de minha filha. Insistiu.
minha
cidade
Pediu que eu permitisse ao menos
Fomos
vizinhos,
que
cismou
estudamos
comigo. juntos.
isso, por favor. Eu aceitei.
Depois fui para a faculdade no Rio e
—Eu cortei logo toda e qualquer
quando voltava de férias a gente ia
visita, que não quero saber de rival
tomar sorvete, dançar, se divertir. Nunca
dentro de casa, não. Ela foi quem
prometi nada, mas ela dizia que ia me
quis
esperar. Arrumei um emprego e fui
então...acabou assim.
ficando longe. A menina inventou que
Quando Nadir cresceu, começou a ir
era minha noiva. Quando eu apareci por
sozinha para a casa da madrinha, que
lá e disse a meu pai que ia casar, ele me
agora
disse que eu enganara a pobre moça. Eu
vizinha.
fui
enganei
Sempre bem arrumada, vivia sozinha
ninguém. Encontrei uma mulher e vou
em uma casa elegante, rodeada de
casar, você também arrume um marido
flores, livros e quadros. Dava aulas
e seja feliz. Ela me disse que nunca ia
de pintura, tocava piano, lia poemas.
se casar com ninguém se não se casasse
Levava Nadir ao cinema e depois
comigo. Tola.
tomavam chá com doces.
— Se ele tivesse me contado a historia
— Mamãe, você não tem ciúmes?
antes... - começou a mãe.
— Eu sou a esposa, a escolhida.
— Antes do que?
Ciúmes? Tenho é pena. Ela e louca
falar
com
ela.
Nunca
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manter
se A
mudara mulher
esse
para era
contato,
a
cidade
intrigante.
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mansa, nunca me fará mal. Ela quer ver
—
o homem que ama feliz, e ele é feliz -
comentavam as pessoas - A pobre da
comigo. Minha vingança. Modo de dizer,
esposa
claro, que a pobrezinha nunca me fez
precipitação.
mal.
— Esperar para que? Ele já está tão
Nadir pensou em tirar da madrinha sua
velho. - respondia Nadir.
parte da história, mas ficou sem jeito.
Quanto à madrinha... bem, depois de
As oportunidades passaram. O velório
30
não era um momento apropriado para o
persistente mulher merecia perder
assunto.
suas ilusões com o homem de seus
Chegando em casa, Nadir
ofereceu o
Seu
pai nem
anos
de
casou esfriou
um
aconselhar com ironia:
trocaram
de
até
-
Que
que
a
sonhos. Nadir
Comeram,
rápido
ainda.
espera,
sofá para que a madrinha descansasse pouco.
tão
lembrava-se
da
mãe,
a
roupas, voltaram ao velório.
— Nunca se case com um viúvo,
Passou-se o tempo.
querida. Você será comparada com a
Quatro
meses
depois,
no
segundo
casamento do pai, a madrinha, agora
morta. Rival imbatível. Depois de morto, todos nos tornamos perfeitos.
madrasta, descia o altar radiante, de branco, de véu e grinalda.
https://www.facebook.com/soniareginarocharodrigues
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Tauã Lima Verdan Rangel Mimoso do Sul/ES
Decanato Contemplativo O céu azul cerúleo, tomado por densas nuvens Faz-me pensar na intensidade jocosa, tu vens Preenche-me por inteiro, ultrapassam aléns É um sabor doce e sem igual da brisa em lufada Ergue-se imponente a noite intensa, enluarada Com a beleza da pureza e da feliz gargalhada Palpita em uma intensidade sem igual ou par Na rajada do cheiro suave a nos impregnar Em uma floração dançante a correr pelo ar Contemplação da surreal beleza da natureza
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Tauby Coutinho Rio de Janeiro/RJ
Minha Querida Sáens Pena
“ENTRE Morros Verdejantes A Tijuca Foi Crescendo Nas Manhãs Sarau E Festas Violões Tocando Pelo Ar Os Sons Plangentes Depois O Silêncio Vinha Envolvendo A Paz Das Frias Madrugadas De Um Passado Que Não Volta Mais Mas No Coração A Tijuca Não Mudou Mantém A Tradição “ Ode a Tijuca - Lourdes Fiqueredo Maria Alice Saraiva
Bom dia doutor, açúcar ou adoçante? Quantas vezes respondi a simpática e solícita Nice essa pergunta. Na mesma quina do mesmo balcão, ora só, ora acompanhado, ora nas primeiras horas do dia, ora depois do almoço, foram mais de 30 anos respondendo a Nice: - adoçante. O tempo foi benevolente com Nice, não sei se ela pensa o mesmo de mim. Sempre bem arrumada, bem maquiada, olhar atento por todo o balcão, atendia a todos com um sorriso que não combina com um atendimento de um balcão as sete horas da manhã. Da grande lanchonete Palheta, no centro da praça Sáens Pena, hoje só resta um pequeno balcão, onde, gerenciado por Nice (em outrora uma iniciante balconista), serve o café da casa e alguns salgados e doces. Esse pequeno espaço, “Café Palheta”, reluta em sobreviver nos dias de hoje por pura tradição Tijucana. Todo o resto da lanchonete se transformou em uma enorme farmácia, aliás coisa normal hoje em dia. Grandes estabelecimentos se transformaram em farmácias e Igrejas Evangélicas. Faz nos pensar que as pessoas andam doentes de corpo e espírito.
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Fui apresentado pela primeira vez a lanchonete Palheta pela minha madrinha aos 9 anos de idade após uma sessão de cinema no Grande cine Metro que ficava a alguns passos na mesma calçada. Era uma enorme galeria, sem saída. Um teto alto com grandes ventiladores pregados na parede, abrigava um gigantesco balcão em forma de U, com dezenas de cadeiras giratórias presa ao chão, até um tanto alta para crianças da minha idade. Eram servidos almoços, lanches e os melhores waffles e a melhor banana splits da Tijuca. Nesse meu primeiro dia fui apresentado ao ovo recheado e ao maldito milk shake de chocolate que me persegue até os dias de hoje. Já o ovo recheado só é encontrado em alguns botecos dos subúrbios do Rio. Os ovos recheados, presença constantes em qualquer lanchonete e padaria, deram lugar as coxinhas de galinha. A tradicional “coxinha de galinha” era feita com a verdadeira coxa da galinha com osso e tudo, recheada, era uma iguaria servida somente em lanchonetes tradicionais. Hoje virou pop, não são mais coxinhas e sim tiras de peito frango, mas ainda mantem a tradição do nome. Propaganda enganosa? Como todo Tijucano passei a ser mais um transeunte habitual a circular pela formosa Praça Sáens Pena. Atravessava de um lado para o outro dependendo do filme que queria ver. Ao redor da praça, eram oito cinemas a nossa disposição, e depois, lá estava a nossa frente o Palheta. Ficava encantado com aqueles chafarizes jorrando água nas alturas e ficava pensando: como aquela água não acabava nunca. O que muito me impressionava era a escultura gigantesca de um ginasta que para enxergar até o fim da estátua eu tinha que curvar todo o pescoço para trás. Nunca procurei saber quem era ou quem a esculpiu, e acho que como eu, todos que ali passavam nunca se preocuparam com isso. Mais velho, já fazendo o vestibular num cursinho, ali mesmo na Saens Pena, meu colega de sala me mostrou um o lado boêmio da minha querida praça. Caminhamos até o Palheta e à direita da entrada, tão escondido que na minha pureza nunca tinha percebido, havia uma escada de madeira que dava para a parte de cima da lanchonete. Conforme fomos subindo, pelo vozerio, senti que algo muito forte estava para acontecer. Chegando no último degrau um mundo novo se abriu. Luzes, tacos, barulhos de bolas se chocando, muita fumaça, bebidas, amigos alegres disputando partidas de sinuca. Eram oito mesas oficiais de sinuca a disposição de seus inquietos jogadores. A vontade de participar de tudo aquilo dividiu minha presença entre a frequência no curso e os tapetes verdes das mesas de sinuca. Acho que acabou tudo bem. Passei para faculdade e me tornei um bom jogador de sinuca. Passado muito anos, morando longe da Tijuca, em uma inesperada volta, me vejo no centro da praça Sáens Peña. Olho ao redor e não vejo mais nenhum sinal da minha querida praça, nem as pessoas que circulam se parecem mais com os tradicionais Tijucanos. Os chafarizes foram desligados pois a garotada fazia deles
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uma piscina pública e alguns moradores de ruas tomavam banho e lavavam suas roupas no local. Corri para aquele que jamais poderia ter batido em retirada, a estátua gigantesca de um ginasta que deve ter observado do alto toda essa transformação. Com o passar do tempo percebi que não era tão gigantesca assim, mas lá estava ela, impoluta, soberana ao tempo. Num lampejo cultural, quase como uma homenagem a sua resiliência ao tempo, resolvi homenageá-la lendo enfim, quem era aquele gladiador que atravessou o tempo incógnito, e seu criador. Coloquei meus óculos e fui ler as placas no pedestal da estátua. Não havia mais nenhum sinal de identificação. Roubaram todas as placas e ainda quebraram um dedo do formoso e agora mais ainda desconhecido atleta. Triste, ergui a cabeça e do outro lado da rua lá estava ele, o Café Palheta. Com as pernas enfraquecidas pelo tempo, atravessei cuidadosamente a movimentadíssima rua Conde de Bonfim e a cada passo que dava parecia diminuir a distância com o passado. Encostei no mesmo balcão, olhei à direita, não existia mais a escada dos gloriosos jogos nos tapetes verdes. A enorme lanchonete se transformou em uma farmácia. Aquele montão de gente feliz saindo com sacolas repletas de remédios, talvez fossem mais felizes no tempo dos waffles e bananas splits. Ainda impactado com tanta transformação, com a cabeça no passado, escutei: — Bom dia doutor, açúcar ou adoçante?
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Vagner Santos Pereira Barra Mansa/RJ
Espírito Beladona No centro espírita Tríade de Amor, o médium Carmona Silva encerrou a psicografia. Saiu do transe. Fez uma prece silenciosa, agradecendo o prestimoso auxílio dos seus guias espirituais. Recolocou seus óculos de armação pesada e bebeu o copo de água. Entregou as laudas a oradora, Fábia Paes, para ler a mensagem aos presentes na sessão pública.
Deixei a Terra em março de 1995, quando tinha 27 anos. Tinha muito o que viver ainda, muitas coisas boas poderia ter feito. De forma covarde preferi sair da vida. Preferi abrir a porta mais cômoda para solucionar o meu problema. Erradamente, acreditei que aquele nó pernicioso jamais se desataria. Ledo engano, se tivesse fé e um pouco de paciência para trabalhar a situação — o tempo, sem dúvidas e dívidas — seria o remédio mais sábio. Conseguiria, talvez, não a resposta que viesse ao sabor de minhas vontades, todavia seria a que me permitiria lapidar o meu coração bruto. Abri a porta do suicídio, pensando que com minha morte física tudo se resolveria. Pensei que findaria aquilo que me consumia, levando-me às raias da loucura. Mas loucura maior foi desertar da vida, abdicar de lutar, deixar de amar os corações que continuam a orar por mim, deixar de aprender cada sagrada oportunidade dada por Deus. Como não acreditava em Deus, naquela época, logo não acreditava em vida após a morte. Entretanto, estava errada. Meu único pseudo deus era o dinheiro oriundo da fortuna acumulada pelo meu pai famoso, craque de futebol aposentado. Com ele conseguia comprar tudo, desde prestígio social a falsos amigos. Todas as portas se escancaravam facilmente para meus caprichos,
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permitindo-me frequentar círculos elevados da sociedade, não se importando com o fato de eu ser uma mulher negra. Tudo era fácil, tudo era lindo, tudo era divertido, um carrossel efervescente da mais eufórica fantasia. A porta daquele falso mundo era larga e colorida. E, nunca desconfiei ser uma ratoeira estreita na saída. Por conta da minha máxima transgressão na Terra, traí o sagrado compromisso da Vida. Fui obrigada a expiar àquelas cenas de terror, as quais julgava ser delírio fantasioso de uma novela das sete ¹ que minha mãe assistia. Pior que tais cenas dantescas, era ser obrigada a reviver seguidas vezes minha dolosa morte física. Essa tortura constante era resultado da moenda do remorso. Isso levava-me muito além do limite da exaustão e da sanidade, fragmentando aos pouco minha alma. A consciência é o tribunal mais justo que um homem pode enfrentar. Nele todas as suas faltas que por mais soterradas estejam, vem à tona. Minhas faltas sempre me faziam retornar ao momento derradeiro onde poderia ter escolhido o que era certo, e, infelizmente, escolhi o que me era mais fácil. Por uma breve porção de segundos, via-me vestida de noiva, aos prantos. Havia acabado de retornar da igreja onde me casaria. Aquele era para ser o dia mais feliz da minha vida. No entanto, não foi. Meu noivo preferiu me abandonar no altar para fugir com minha prima pobretona. Afinal de contas, não havia amor verdadeiro entre nós dois. Ele para mim era um mero joguete, um brinquedo caro que eu queria roubar de minha prima. Sempre tive por mim que as melhores coisas da vida deveriam ser destinada para mim e o bagaço para os outros. Tanto fiz e tramei, atravessando a felicidade deles. Minha vitória aparente era um castelo de cartas que desabaria mais cedo ou mais tarde com a primeira
¹Novela das sete = A novela referida é a “A Viagem”, de autoria de Ivanir Ribeiro, foi a 50ª a passar nesse horário da Rede Globo. Originalmente, foi um grande sucesso televisivo na extinta TV Tupi, entre os anos de 1975-76, e, no ano de 1994 foi feito um remake da trama.
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tempestade. Infelizmente, desabou no dia que era para consagrar minha audácia. Tranquei-me no quarto. Do outro lado da porta, meus pais tentaram me acalmar. Estava alucinada por ser tão humilhada, publicamente — jamais pensei passar tamanha humilhação, mesmo semeando tanta tempestade. Senti-me desamparada, a carga era demais. Minha maquiagem borrada era reflexo do meu coração em colapso conflituoso. Decidi dar um basta naquilo. Deixei um bilhete sobre a cômoda, onde peço perdão por tudo. Retirei meus óculos, colocando-os sobre a mensagem que alguém leria mais tarde. No instante seguinte, joguei-me do sétimo andar. Quando toquei o asfalto, pensei que tudo estava acabado; nem senti dor. Meu espírito saiu do corpo físico. Vi-me toda quebrada e ensanguentada. O trânsito parou. Os curiosos se acumularam aos montes, até tentaram ajudar minha matéria. Então, recebi o primeiro choque térmico; percebi que continuava viva, numa forma impensada, anteriormente, por mim. Como sempre dizia, retrucando a quem me questionava quanto a minha vida tresloucada na Terra: “Morreu, acabou! Por isso vou me esbaldar!”. Enganei-me. Continuava viva, fora do meu corpo. Tentando chamar a atenção, mas ninguém conseguia me ver. Isso me desespera, fazendo-me berrar embora ninguém por perto conseguisse me escutar. Ainda tive o dissabor de ver meu cadáver sendo recolhido como lixo que suja o asfalto pelo rabecão, ou acompanhar o sofrimento dos meus familiares em meu velório. Sofri, tentei contato com eles, mas não consegui. Desesperei-me quando meu corpo desceu à sepultura. Gritei e esperneei. Os vivos não conseguiram me escutar. Até tentei sacudi-los, puxá-los pelos braços para alertar que estava ali. Mas meu toque se tornou intangível, atravessando-os. Quando isso acontecia, eles sentiam algo semelhante a uma corrente de ar fria adentrando o peito, causando um ligeiro calafrio. Meus parentes foram embora para casa, juro que queria voltar com eles à minha antiga vida, mas não já mais era possível. Depois lembro-me que uns vultos cercaram-me, raptando-me para o infame Umbral, fui conduzida ao Vale dos Suicidas.
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Vaguei por um longo período por aquelas masmorras degradantes. Perdi a noção do tempo, pois em todos os momentos não havia luz no céu. Tudo era trevas e sofrimento, agonia misturada aos pedidos aflitos de socorro. Eu era apenas uma gota de dor em meio aos náufragos desvalidos daquele oceano de pesadelos perpétuos. Um emaranhado de corpos se digladiando ao buscar a qualquer custo uma salvação. Não conhecia nenhuma daquelas pessoas imundas, esfarrapadas e mutiladas. Tudo que sei, que elas vibravam uma energia negativa capaz de fenecer a esperança, embrulhando meu âmago. Elas urravam de dor, rangendo dentes, lamentando, e, implorando para aquele sofrimento acabar. Não havia pudor ou compaixão, apenas desespero. Isso me assustava, fazendo-me afastar de qualquer um. Tinha medo de que aquelas mãos me puxassem para baixo da densa camada formada pelo amontoado de corpos aflitos novamente, sufocando-me. Aquele sentimento como se estivesse sendo soterrada era horrível. Quando conseguia vir a tona por entre os corpos para respirar, minha vontade maior era vomitar. Só assim, conseguia um fôlego para lutar, desvencilhando-me daquela opressão sufocante e se afastar dali. No entanto, não sabia para onde ir. Apenas pervagava por aqui, por ali, por acolá; sem destino, sentido dor, medo, fome, sede e frio, e, sem a certeza de futuro. Reunindo um pouco de força para rastejar como os vermes no lodo pestilento à procura de fendas nas rochas cruas onde pudesse me esconder dos sabores da desgraça. Uma vez abrigada pela escuridão providencial da caverna, eu e os outros, assemelhávamos a ratos nas estranhas do esgoto esperando a melhor hora para sair pela boca do bueiro atrás de alimento. Os poucos momentos livres, observava a paisagem tão tenebrosa, acompanhando o sofrimento alheio, igual ou pior que o meu. Teve um dia que eu pensei
em
desistir
de
tudo,
simplesmente,
deixar
ser
levada
pelas
consequências. Tive o pensamento tolo de querer morrer daquele lugar. “Mas, já estava morta!”; recordei-me. Ansiava fugir daquele cativeiro sinistro. “Fugir para onde?”; questionava-me incredulamente. Então, fiz uma prece de coração e adormeci.
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Quando acordei, estava num leito hospitalar recebendo os devidos cuidados. Soube que havia sido resgatada e acolhida em Luz Eterna. Luz Eterna é uma colônia espiritual vizinha a Nosso Lar. Aqui, por hora, encontrei uma paz que me permite vislumbrar muito além do horizonte estreito da visão humana. Vislumbro que, qualquer coisa era melhor que atentar contra minha vida. Estou a reestabelecer minhas forças vitais, necessárias para reconstrução do meu espírito despedaçado. Força, Fé e Esperança são ingredientes necessários para encarar as batalhas diárias, onde poderei reparar minhas falhas de outrora. Hoje, sim, sei que existe vida após a vida. Como o espírito André Luiz afirmou: “A vida é uma fonte eterna, enquanto a morte é o jogo escuro das ilusões”. Pessoalmente não o conheço, mas estudo as obras dele, bem como o sagrado evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Estou adquirindo preciosos conhecimentos, os quais permitem-me alcançar maior consciência de minhas obrigações futuras. Aqui trabalho na Mansão do Auxílio, que presta serviços aos irmãos que sucumbiram à armadilha, deixando a Terra prematuramente pela mesma falsa porta como eu. Fico feliz quando vejo um irmão curado das enfermidades da alma, pronto para dar os primeiros passos na esteira do bem. Nunca imaginei ficar tão contente com a felicidade e o sucesso de alguém. Até parece um elixir milagroso, dando-me uma colher de chá, ao que é o verdadeiro sentimento de paz. Aqui todo momento é oportunidade de aprendizado contínuo, um aperfeiçoamento para depuração da alma. Tiro grandes lições de pequenas coisas. Eu, de hoje sou fruto do que plantei ontem, mas, eu de amanhã, sou fruto que planto hoje. Estou aprendendo a ser mais humilde, aprendendo a valorizar o que realmente importa. Aprendendo a apreciar as coisas singelas da vida, longe da ebulição da modernidade da mídia que nos obriga a ficar em evidência. A antiga Beladona viveu uma vida sem limites embarcando numa fuga vã,
longe
das
responsabilidades.
Achava
que
se
estivesse
rodeada
de
bajuladores, jamais me sentiria só, ou seria esquecida na prateleira de
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descartáveis. Pior foi apostar minha felicidade como se estivesse num cassino, enquanto me enveredava pela seara das paixões obscuras. A ilusão passou tão rápido, convertendo-se em um sonho mau. A vida pode ser dura. Todavia nunca ingrata, cada um tem a experiência necessária ao seu desenvolvimento. A vida é uma bênção que merece ser vivida a cada suspiro. Não em um passado remoto com os resquícios saudosos e máculas de erros hediondos, que formam grossas correntes que nos aprisionam, e a nossa falta de fé nos obriga a arrastá-las. Não em um futuro utópico de hipóteses e outras incertezas catastróficas que são capaz de roubar nosso sono. E, sim, no presente. A vida é um presente. É o presente mais dadivoso de Deus. Porque o Pai sempre acreditará em nós. Para Ele, nós somos o milagre que desce dos céus para florescer maravilhas na face da Terra. A cada dia bem vivido no palco de Deus é semelhante a pavimentar uma estrada rumo ao Bem maior. Tanto é que somos Sua imagem e semelhança configurados na promessa divina de amor, na centelha da vontade, no santo acalanto e no sabor de um sonho eterno. Mãe, pai, desculpe-me por tudo de ruim que fiz. Por toda a tristeza que plantei no coração de vocês. Estou aqui com a vovó Emília e o vovô Edson. Aquele vazio que esquartejava meu interior, já não existe mais. Aprendi que abrir os braços e estender a mão a quem precisa é um santo remédio contra a solidão. Semanas atrás assisti uma preciosa palestra com a Madre Teresa de Calcutá, onde ela disse: “As mãos que ajudam são mais sagradas que os lábios que oram”. Verdade seja dita, o fato de ser útil aqui na Mansão me faz tão bem que não encontro palavras para descrever tal sensação de bem-estar. Que o Senhor Jesus possa iluminar nossas decisões hoje e sempre. Um beijo no coração de vocês. Beladona, Luz Eterna, 29 de julho de 2017.
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Nesse instante, um casal idoso que assistia a palestra, abraçou-se. Emocionados. Reconheceram que aquela mensagem emocionante era de sua amada filha. Foram às lágrimas. Unindo-se a esse abraço, o filho, a nora e os netos. Eles se sentiram amparados como se um manto poderoso os envolvesse, fortalecendo-os para dias vindouros. Em Luz Eterna, sentada à beira de um lago sereno, Beladona sentiu a vibração de energia positiva tocando o seu íntimo, fazendo-a sorrir. Era como se chovesse pétalas luminosas que ao tênue contato com ela, estouravam e ressoavam borbulhas de felicidades. Assim, eram liberados uma dócil fragrância e uma benéfica emoção que faziam expandir um halo energético ao seu redor. Então, vibrou na mesma frequência para retribuir o carinho primoroso dos seus familiares na Terra.
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Valéria Vanda Xavier Nunes Campina Grande/PB
Violação A palavra certa é violação. A casa de nossa mãe foi violada, violentamente. Era como se ela tivesse sido enterrada pela segunda vez. Num momento estava tudo lá, e, de repente, como num passe de mágica, nada mais estava lá. Tudo que representava a sua e a nossa história tinha sido literalmente roubado. A visão daquela sala limpa, nua e vazia de tudo, foi um choque terrível para todas. Entrar naquele apartamento era como ter um encontro marcado com mamãe e papai novamente. Agora a sensação era a de que eles, de verdade, estavam enterrados para sempre. O sentimento maior era de raiva e de um vazio imenso penetrando no peito no momento em que entramos no apartamento e nos deparamos com aqueles ambientes vazios. Onde estava tudo? Onde andavam as nossas fotos, nossos quadros, nossos biscuits, aquela velha cadeira de balanço onde eles sempre se sentavam para descansar os ossos já velhos; as suas toalhas, os seus lençóis, suas panelas? Nada...nada...nada havia restado. Foi um golpe baixo. Um golpe muito baixo mesmo. Só restou um grande vazio. Vazio físico e vazio interior. A sensação de impotência diante do fato consumado, a tristeza foi muito grande. Mas, a vida é assim mesmo, e cada um tem o seu modo de pensar e agir diante das adversidades que ela nos traz. O fato é que ficamos sem referência no que diz respeito à “casa de mamãe”, pois assim como ela, sua “casa” já não existe mais, pois tudo que foi dela - as nossas referências materiais - estão agora nas mãos de uma estranha; nas mãos de quem não tinha nenhum direto sobre elas. Há quanto tempo nos pertencia aquele conjunto de mantimentos de alumínio com a tampa azul? Crescemos vendo papai e mamãe abrindo aqueles potes. Nunca imaginei que um dia chegaríamos àquele apartamento e não mais veríamos aquela estante enorme cheia de fotos de nossos casamentos, dos os filhos, dos netos. Aquela velha cadeira de balanço no seu lugar de costume, aquela linda tela de Nossa Senhora da Conceição na parede; e as suas inúmeras santinhas. Toda a nossa história de vida estava ali, e ali, tinha de permanecer sempre, naquelas peças de mobília já gastas, porém, nossas - naqueles armários
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da copa tão conhecidos, naquela minúscula cozinha, naquele velho fogão já gasto pelo uso - onde vimos mamãe passar a maior parte dos seus anos de vida. Agora nada mais existe. Tudo tinha sido literalmente roubado por duas surrupiadoras da coisa alheia, que não tinham o menor direito de fazer o que fizeram. Seus quadros, seus álbuns de retratos, suas santinhas, seus terços. Aqueles objetos jamais poderiam pertencer a mais ninguém que não a nós, seus filhos que os guardariam como verdadeiras relíquias. Naquele triste início de tarde, nós quatro ficamos estarrecidas, quando nos deparamos com o vazio daquelas salas e quartos. Chegamos lá para fazermos uma avaliação de como seria dali para frente, uma vez que, para nós, aquela era mais uma página virada na história das nossas vidas. Enquanto três das irmãs vagavam de quarto em quarto e de sala em sala, impressionadas com a desolação dos ambientes vazios de tudo, encontrando de quando em quando uma ou outra coisa deixada por acaso - como uma blusa de umas das ladras - que logo foi jogada no lixo - alguns livros espalhados pelo chão e algumas fantasias velhas de carnaval - nossa irmã mais nova, Felicia “entendida em orações” que afugentam energias negativas –, ia na frente com um litro de água misturada com sal grosso, orando e espargindo esta água nos ambientes, e, logo em seguida, levava um grande jarro com incenso aceso que ia soltando a sua fina fumacinha em todos os ambientes e em todos os recantos.. A nossa irmã mais nova, parecia uma “profetisa maometana de tão concentrada nas suas orações e em seu ritual. Tudo seria cômico se não fosse trágico. Enfim, após todo esse ritual que de modo algum parecia satânico – satânico era o estado em que encontramos o apartamento – as irmãs resolveram que tudo seria comprado novamente: móveis, louças, panelas, toalhas e tudo o mais que faz de uma casa um lar, e foi nesse lar, que o irmão Thiago continuou a escrever a sua história de vida. Livre, finalmente, daquele encosto, que era a sua mulher.
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Vanderlei Kroin Cascavel/PR
Enquanto estamos aqui bonitos nutridos e maquiados morre um homem Enquanto estamos aqui bonitos e nutridos um homem esmaece Enquanto estamos aqui bonitos um homem perece Enquanto estamos aqui bonitos Enquanto estamos aqui Enquanto estamos Enquanto Morre. Morre e nem sabemos quem era, de onde era, o que precisava, o que sentia Morre e nem sabemos quem era, de onde era, o que precisava Morre e nem sabemos quem era, de onde era Morre e nem sabemos quem era Morre e nem sabemos Morre. Enquanto fazemos ilações, maquinações, patifarias, conspirações, alarde vão Um homem morre sem ter culpa, sem ter pecado, sem ter oportunidades Um homem morre na completa miséria, órfão de humanidade Um homem morre como cai uma folha ao vento Um homem morre e ninguém nota Um homem morre sozinho Um homem morre Um homem Morre. Morre um homem e nem a centelha da luz de uma vela usada recebe o miserável Morre um homem e não pode nem escolher o lugar menos pior ao tombar Morre um homem com a mesma naturalidade de seu nascimento Morre um homem incompreendido, sem destino traçado Morre um homem na sua íntima solidão Morre um homem e seu coração Morre um homem Morre apenas Morre.
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Vera Raposo Teresópolis/RJ
As Mulheres e as Flores Mulheres que enfeitam nossa vida Delicadas como o jasmim
Alegres como as margaridas Quantas fazem parte do seu jardim? Conheci Rosa, Hortência e a Margarida
Mulheres amorosas que falavam de amores Fazem a vida florida
São as mulheres e as flores Seu sorriso é o desabrochar de um botão Seu coração pode guardar dores
Das sementes espalhadas pelo chão De quantas Dolores? Perfumadas inebriam o ar São as maravilhas da vida
Mulheres e flores para o amor cultivar
Desde as rosas até as singelas margaridas
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Vinicius Silva Orlando Rincão/SP
O Fazendeiro Sou fazendeiro Planto atenção Planto carinho Planto amor Planto com emoção Sou fazendeiro Colho seu olhar Colho seus sorrisos Colho o toque da sua mão Antes de tudo, sou fazendeiro Essa é a minha profissão
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Fotos Vitor Geovane Arapiraca/AL
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Vitor Sergio de Almeida Uberlândia/MG
Soneto - Educação: Bem material, maior não há. Fortuna! A educação é para a formação, soma-se a isso a ilustre libertação. Romper o status quo do mero acato. Entender a origem e o ir, vir. Ser grato! Sobrepuja o opressor, útil e nobre ato. Valoriza o argumento, o dado e o fato. Fake news e anti-ciência: Objeção! Oprimido, estudar é a (re)ação. Não basta saber, humilde eis que ser. Foco no ouvir, ler, entender, prever. Conhecer é saudar, sorrir e olhar. Ensinante e aprendiz, um elo a ornar. Que o educar não intolere e segregue. Una. Bem material, maior não há. Fortuna!
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Wagner Azevedo Pereira Nova Iguaçu/RJ
Metacanção ... e apenas uma vontade de cantar minha canção na tua, mais pura verdade! Não me leve essa intenção como apenas uma saudade que parece um riso em vão! Isso pode valer um amor, Deixar a vida muito mais Que uma paixão se refaz De beleza de verão de calor Pode sim trazer um bem Porque provocamos o nascer Da fruta, sem nos esquecer Que o melhor não está além...
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Willian Fontana Rio de Janeiro/RJ
Submersores das emoções No breu absoluto das trevas soturnas podíamos sentir seus sussurros. Além aparelhos sensoriais enxergamos com os corações numa projeção empática que conectava a nós as dores e vítimas e ao sadismo dos algozes. A 'máquina dos profetas', como chamavam seus usuários, potencializava suas sensíveis empatias ao extrasensorial afim de detectar mediante conexões sentimentais pistas de meliantes sádicos e psicopatas, assim como suas vítimas. Era um perigoso mergulho no submundo do qual nas projeções da máquina as partes claras era o mundo ordinário dos quais pessoas viviam suas vidas, e as partes trevosas o submundo nebuloso de obscuridade. Quando este cruzava a linha zonas cinzas e choques maiores ocorriam. Como sombras o submundo não emergia na totalidade, ainda que rumores persistentes dentre todos usuários sentiam algo de um poder cruel do ódio e medo a jurar trazer as trevas definitivas ao mundo da superfície. Era como um Tor de volições para as camadas de valores civilizatórios inferiores, ainda que muitas vezes escondidos no alto do espaço comum e social, como elites com relações diretas ao submundo. Algo custoso e niilista que
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era fonte apenas de infelicidade e ausência de autoestima para nós. Fora assim que numa de minhas viagens senti a presença de uma criança em sofrimento. Muitas vezes recebemos as emoções como recados de volições sem saber o remetente. Buscamos por informações volitivas, associações que identifiquem a transmissão emocional para que finalmente a identifiquemos e possamos saber onde está e o que lhe fazem. A menina de 12 anos pranteava, sentia ela clamar por seus país, ao dizer o nome deles soubemos se tratar de uma das inúmeras crianças, e pessoas desaparecidas de modo misterioso. Aquele sinal de volição aludia a outros semelhantes, e uma vez estabelecendo conexão empática com imagens, pertences e sons da vítima eu pareava com seus sentimentos, mesmo sendo bons. Alguns não conseguia sentir senão vítimas associadas, como se fosse um vão esses propulsores do medo e ódio é como fosse vazios de qualquer humanidade, apenas os ecos são sentidos. Fora assim que descobri o paradeiro de Angelina Alves, tinha apenas 17 anos e estava num shopping abandonado na zona norte
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do Rio. Parecia estar sendo molestada entre outros crimes, por mais de uma pessoa. – Salve as vítimas, Professor Xavier. – ironizou o controlador ao ouvir de mim os dados. Todavia, aqueles homens eram um agravo aos demais ao virem acompanhados da "A Voz" enquanto os oficiais da lei realizavam as buscas no lugar. Terminei meu trabalho e tive que me desconectar, o cancro sádico e psicopata era a própria maldição e ser exposto por tempo prolongado drenava a vitalidade mental de nós, usuários. Aquela máquina de detecção de sofrimentos e aflições visava mapear no mundo real indivíduos do submundo, tanto quanto localizar vítimas e desaparecidos. O problema é que conectar-se ao submundo tem efeitos psicológicos graves a estes usuários que frequentemente sofrem sintomas de depressão e síndrome do pânico ao serem expostos a sentir focos de injustiça e sofrimento no mundo. Quando nós não nos matávamos erámos levados a enlouquecer, precisando de frequente terapia e medicamentos ante aposentadoria por insalubridade social ser breve. O Sistema de Ressonâncias Volitivas, era uma espécie de radar das emoções negativas, tanto dos que sofrem aos que fazem sofrer. O medo e ódio afetam negativamente o caos intrínseco ao deteriorar as relações sociais. Por isso precisamos frequentemente desconectar, mesmo que "A Voz" - como
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os usuários falavam - nós chamavam frequentemente à morte e de que apenas o submundo do qual habitava era real. Alguns diziam ser ecos emocionais ou sincronicidades emocionais de nossas mentes em reação a estes contatos, todavia sabia que se olharmos muito para o abismo este olharia de volta para nós. Submergir naquele charco de sensações negativas era como um pesadelo desperto. Por isso, certo dia tal fato parecia se confirmar quando encontraria alguém semelhante a mim. Porém, sem as ferramentas da 'máquina da profecia' que a distância fazia leituras emocionais de nós, por onde rastreávamos tais elementos, o que me levantou suspeitas. Havia relatado a primeira vez que este localizou minha mente vagueando pelos corações alheios, era como se devolvesse os sentimentos transmitindo recados por meio de volições, ausente de palavras, apenas sentimentos. Era uma alma sofredora e igualmente atormentada pelo pesadelo do submundo que era um equivalente humano ao inferno. Obviamente que o superior descartou tal hipótese considerando apenas hipotética ciência marginal da parapsicologia, afinal conflagrava um Fator X, um contato supostamente telepático, tanto quando dos relatos da funesta "A Voz". Todavia, dessa vez ela estava mais intensa e parecia estar ressequida pelo ódio e medo, de que
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para este era uma colmeia coletiva do ódio e medo do submundo, algo que se alimentavam. Tentei indaga-lo sem boca e ouvi-lo sem ouvidos e assim senti. – A Voz me sitiou, ela invade outras mentes para trabalharem contra mim. Eles desejam destruir nossa autoconsciência afim de emergir uma consciência global junto "A Voz", disso levam pessoas a cometerem crimes ou a loucura, muitos deles são parte da Grande Escola dos Mistérios da Insanidade do qual acreditam que a loucura é a mais pura forma de contatar o deus deles, " A Voz" do qual a medida que traga mentes a sua utilidade se torna mais forte. – O que é "A Voz"? – Pensei pesaroso com ele. – Algo ancestral que carrega mentes do passado e geram as ilusões da reencarnação, podemos chamar de um demônio que possuem pessoas quando tomam controle de suas mentes ou as enlouquecem. O símbolo deles é uma tocha invertida, o qual o objetivo é trazer o pesadelo do submundo ao mundo ordinário. – Preciso te salvar, qual seu nome? Onde está? – Perguntei quando repentinamente a conexão do sistema fora cortada por meu superior. Saltei do divã volitivo e vociferei de supetão. – Havia encontrado o peregrino das mentes! Por qual motivo desligou? – Você perdeu a concentração! Os recursos do aparelho são caros e temos metas e objetivos que não foram cumpridos hoje!
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Me levantei ruborizado, peguei o copo de café e segui quando ao ver o superior dar as costas tinha o símbolo tatuado mencionado, uma tocha invertida. Perplexo fui para o quarto e pesquisei notando se tratar de um símbolo de Hipnos. Fiquei estupefato, aquilo talvez explicaria o motivo destes frequentemente isolarem ruídos volitivos não desejados, demonstrando que no mínimo o sistema estava infiltrado por aqueles agentes da Escola dos Mistérios da Insanidade, uma agremiação secretista que promoviam toda sorte de doenças mentais e medos presentes no imaginário popular. Envolta em conluios, ainda que oficialmente diziam ser um grupo de amadores filósofos especulativos. Por esse motivo esperei terminar o expediente e ir até a máquina e me conectar, o que era arriscado sem técnicos e superiores especializados monitorando. Vaguei a procura da mente em questão, sem resultado. Senti o ódio de uma mulher pega o marido a traindo, a de uma menina chorando a morte do pai e a de um estuprador desejando práticas sexuais repulsivas inomináveis (as mentes sãs) com uma celebridade. Porém, logo algo interrompeu, era o peregrino dos corações, como chamava. Um prisioneiro do qual apenas a mente e o coração eram livres. Como uma pessoa com tais habilidades inatas poderia existir, era como os profetas!
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– Tenho pouco tempo, preste atenção. A corporação que serve tem envolvimento em crimes e os usam para desviar o foco de mim que fui usado como cobaia, um mero rato de laboratório de maus ante quem tem as habilidades naturais para tornar possível a criação dessa máquina. Estou isolado para tentar usa-me para os próprios crimes que alegam combater. É um experimento que visa na verdade impor o controle total e absoluto sobre todas mentes para alimentar "A Voz". O DDV na verdade é uma empresa privada sob uma fachada governamental. Como o Departamento de Detecção Volitiva poderia fazer tal coisa? Me indignei, porém, perguntei novamente. – Onde você está? Ao perguntar isso este me surpreendeu ao sentir que ele estava mais próximo do que pensava, ligado diretamente ao máquina que utilizava. No porão, do subsolo, abaixo do piso o qual ao tirar a tampa da grade do ralo fitei uma cápsula com um homem conectado por cabos por toda cabeça. Seus músculos haviam atrofiado por estar sendo obrigado a vegetar num estado de coma induzido a fim de usar seus dons drenando lhe toda vitalidade. Era um experimento cuja hediondez mesquinha e funesta era uma insana profanação dos direitos naturais, constitucionais e mesmo bíblicos. A máquina explorava o cérebro dele até o âmago sendo nutrido apenas por canudos ligado a boca. Parecia uma figura artesanal presa dentro de uma garrafa.
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Ao ver aquilo prantei ante tamanha crueldade e pegando um extintor de incêndio quebrei o vidro da cápsula. Puxei os cabos com ela ainda desacordado, estava pálido apesar de ser pardo. Uma barba espessa e desgrenhada tomava seu rosto enquanto sua boca entortada no canudo escorria uma baba. Era um crime, mesmo ante um estado de guerra. O levei para cima e pus ele no piso onde parecia recobrar a consciência lentamente. Quando devagar abriu os olhos me fitou visivelmente enfraquecido e vulnerável, porém, num sussurro comentou. – Você, era você que sentia e me sentiu? Assenti com a cabeça tendo os olhos mareados, e tirei um casaco e pus sobre ele. Peguei o telefone e liguei para a polícia. – O que acontecerá agora? – Eu não sei, mas sinto que eles estão nos vendo. O ódio deles está crescendo e se aproximando, é como a bússola deles ante nosso medo. Alguém deve ter acionado eles. Nunca consigo sentir o que seriam apenas seu exalar do ódio contínuo como sombras. Perguntei a ele se conseguia andar, mas suas pernas flácidas estavam finas e fracas demais para correr. Consegui erguer ele quando atendia a ligação ante o flagrante crime. Ele caminhou trocando passos
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ao se apoiar em mim quando passei o cartão de segurança na área restrita. O alarme soou, e luzes vermelhas piscavam dentro do edifício quando surgiu um homem desprovido de pelos no corpo, vestindo um alinhado terno preto. Seus olhos exalavam ódio e seus dentes cerravam o rosnado disso. Estava quase na saída do prédio quando vi a viatura flagrante vindo quando o meliante segurança empunhava a arma. O que se seguiu fora o óbvio ante olhos vistos, o inegável flagrante tornava o fato incontestável. Conseguimos fugir.
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Todavia ante o incidente mesmo com ele em lugar seguro teve na poderosa equipe de direitos a tentativa de acordo nos oferecendo dinheiro em troca do silêncio jurídico. Eles achavam que poderiam comprar tudo e a gente apenas pagar. Porém, agora tínhamos provas inegáveis desses cães. Ele havia sido sequestrado de sua casa e seus bens fraudados para que lançado na servidão todos seus dons fossem usados e abusados.
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Yuki Eiri Maringá/PR
Só por hoje Hoje eu queria saber Onde foi que eu errei O que te tão mal eu fiz Hoje eu queria saber Queria entender O porque você não me diz Hoje eu queria entender Qual foi o meu erro O que eu fiz O que eu falei O que aprontei Hoje eu queria saber Porque sinceramente eu não sei Hoje eu queria saber o por quê Por que do distanciamento Por que dos pensamentos Dos tremores noturnos Do suor diurno Da ansiedade a mil Hoje eu queria saber Qual foi o meu pecado O porquê de ser condenado Por que do medo da escuridão Por que do medo da solidão Hoje eu só queria uma explicação
Hoje eu queria conversar como antes Brincar como antes Sorrir como antes Te abraçar como antes Amar como antes Acreditar como antes Hoje eu queria saber Os motivos dos pesadelos Os motivos dos meus anseios Hoje eu queria saber O motivo das preces não ouvidas Das orações não respondidas Hoje eu queria saber Hoje eu queria ver Uma luz no fim do túnel Só por hoje eu queria ver Um sorriso ensolarado Um olhar estrelado Hoje eu queria saber O motivo das noites mal dormidas Hoje eu queria saber O motivo das questões mal resolvidas O cansaço da vida Hoje eu queria só saber
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Fotos Roberto Schima Itanhaém/SP
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Caricaturas Jamison Paixão Las Palmas de Gran Canária/ Espanha
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Fotos Wagner Dias Caldeira Parauapebas/PA
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Concurso Artístico e Literário “A vida e a obra de Mauricio de Sousa” A Revista SerEsta está promovendo o Concurso Artístico e Literário “A vida e a obra de Mauricio de Sousa”.
Para mais informações, acessem o edital: https://revistaseresta.blogspot.com/p/edital-de-concurso.html
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Revista Ikebana 2ª edição A Revista Ikebana é um projeto literário originado em Cuiabá-MT, pela artista trans non-binary Ariel Von Ocker. A 2ª edição já está no ar!
Acessem a revista neste link: https://medium.com/@RevistaIkebana/estreia-do-n-02-da-revista-ikebana374206a567b7
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Projeto Cartas para a Vida Esse é um projeto que tem como premissa levar mensagens de esperança, acalento às pessoas que estão se sentido fragilizadas com a vivência cotidiana. Em tempos de pandemia da COVID-19, todos nós de alguma maneira, somos afetados emocionalmente com a nova dinâmica social que vem se desenha no último ano. Mais relevante se torna a circulação de mensagens edificantes, nos motivando a continuidade da nossa jornada. Seja um parceiro do projeto, escrevendo uma carta curta, mas com mensagem significativa. Sua mensagem pode salvar vidas, tocar almas. Envie a carta para: cartasparaavida2018@gmail.com A pessoa é livre para se identificar ou usar pseudônimo. Acompanhe as nossas redes sociais e tenha acesso às mensagens que recebemos. Auxilie no compartilhamento destas cartas e assim fazer com que elas cheguem ao seu destinatário. Instagram: https://www.instagram.com/cartasparaavida1/ Facebook: https://www.facebook.com/cartasparaavida
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LiteraAmigos Espaço dedicado a todas as entidades e projetos amigos que de alguma forma nos ajudam ou possuem proposta de trabalho semelhante a nossa: Corvo Literário O Corvo literário é um espaço para propagação da arte, em especial da literatura. Mas também para discussões e debates, por isso sempre traremos opiniões,
entrevistas, notícias, e contamos com a participação de todos. Acessem o site e enviem seus textos com tema livre:
https://corvoliterario.com/ https://corvoliterario.com/contact/
“Blog Concursos Literários” Blog criado em 2011, com o objetivo de divulgar editais e resultados de concursos literários e prêmios literários. É considerado por muitos autores como uma fonte completa e acessível de editais e resultados de premiações realizadas no Brasil e em todo o mundo. O projeto também é elogiado por não incluir
em suas postagens os concursos que cobram quaisquer taxas de inscrição ou publicação dos autores. Além disso, muitos organizadores de concursos literários reconhecem este espaço como uma referência no apoio à divulgação. Acessem o site e conheçam os Concursos do mês, do ano e as seleções permanentes:
Blog: https://concursos-literarios.blogspot.com.br/ Facebook: https://www.facebook.com/concursosliterarios/
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Editora Pé de Jambo -Fundada em fevereiro de 2019, em meio a pandemia do Covid19 pelo escritor Mikael Mansur-Martinelli, a Editora Pé de Jambo é uma empresa prestadora de serviços editoriais, revisão gramatical, copidesque e orientações textuais para autores independentes. O principal objetivo da Editora é contribuir para a disseminação da Literatura, principalmente de novos autores e transformar em uma forma acessível a todos. Veja os editais no site: https://editorapedejambo.wixsite.com/editorapdejambo/antologias
Blog Alan Rubens No blog do autor Alan Rubens, o leitor terá a oportunidade de ler textos incríveis escritos pelo próprio Alan e também de autores convidados de todos os lugares, numa reunião de talentos eclética e divertida. https://alanrubens.wordpress.com/
Mulheres Audiovisual” - uma plataforma criada para unir as mulheres e a arte em geral, cadastre seu portfólio e participe:
http://mulheresaudiovisual.com.br/
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Literatura já - No canal e podcast “Literatura já”, criado pela escritora Joyce Nascimento, você encontrará muita leitura e narração de textos: poesias, contos e crônicas autorais e de outros escritores. Entrevistas, bate-papo com convidados, dicas e informações sobre o que está acontecendo no mundo literário. Tudo em formato de áudio publicado toda sexta-feira, a partir das 19h. Se inscrevam e não percam nenhum conteúdo! https://open.spotify.com/show/7iQe21M7qH75CcERx5Qsf8
Maldohorror - Coletivo de escritores fantásticos e malditos Aventurem-se lendo o que há de melhor na literatura de Terror/Horror. Visite o site do Coletivo Maldohorror, que reúne os melhores contos de terror, poesias malditas, crônicas ácidas e histórias imorais, escritos
por autores consagrados e também por iniciantes, numa grande mistura de estilos.
Site oficial: www.maldohorror.com.br Página do facebook: https://www.facebook.com/maldohorror/
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Portal Domínio Público Tenha acesso gratuito e legalizado à milhares de textos, sons, vídeos e imagens do Brasil e do mundo em domínio público.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp Sci-fi Tropical Semanalmente, o site Sci-fi Tropical traz um artigo, resenha de livro ou análise sobre o cenário do fantástico nacional, permitindo que os fãs do gênero, tão acostumados a ler obras estrangeiras, conheçam também autores nacionais que ajudaram a consolidar a ficção-científica por aqui. O site traz ainda O PROJETO MINIBOOKS FANTÁSTICOS, com obras de autores de FC em língua portuguesa para download. Com um design
exclusivo, o leitor terá uma experiência imersiva nas histórias. Rubens Angelo, criador do site Sci-fi Tropical, é formado em design, mestrando em mídias criativas e, principalmente, fã incondicional da ficção científica. Venha conferir:
https://scifitropical.wordpress.com/
Canal “Conto um Conto” - Canal do Youtube criado pelo locutor Marcelo Fávaro, onde podemos “ouvir” clássicos da literatura mundial. O canal proporciona entretenimento
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inclusivo e de qualidade para todos os amantes da boa literatura; tem Guimarães Rosa, Monteiro Lobato, Stephen King, Edgar Allan Poe, Machado de Assis e muito mais. Conheçam, se inscrevam e aproveitem. Ouvir histórias é relaxante e instrutivo!! https://www.youtube.com/channel/UCsqheVzvPGoI6S3pP3MBlhg
Site “Seleções Literárias”
https://selecoesliterarias.com.br/
Podcast Toma aí um poema O Podcast Toma Aí um Poema tem com objetivo declamar o máximo de poemas brasileiros possíveis e disponibilizá-los em áudio para torna-los mais acessíveis, nos diferentes canais e formatos. Acesse o site e envie seu poema!! https://www.jessicaiancoski.com/toma-ai-um-poema
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Modelo de envio de textos para publicação na revista No meio do caminho (título) Carlos Drummond de Andrade (nome para publicação – este nome não será trocado) Rio de Janeiro/RJ (cidade e estado onde vive – país somente se for do exterior) (no máximo 3 textos com até 3 páginas)
(texto – utilize fonte arial ou times new roman) No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho, tinha uma pedra, no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento, na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho, tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra.
https://www.pensador.com/melhores_poemas_de_carlos_drummond_de_andrade/
(site, página ou blog – pessoal ou de divulgação de obras)