2 minute read
Samira Martins Marana
Samira Martins Marana São Paulo/SP
Preguiça
Advertisement
Domingo passado saí para ver o céu. Depois de 160 dias em confinamento, saí “sem necessidade”, já que olhar o céu, não é exatamente importante para a vida tal qual erroneamente inventamos. Então saí para vê-lo sem a mediação da minha janela, enquanto a população carioca aglomerava nas praias. Corri para o isolamento da floresta da Tijuca me recordar que “apesar de você” a vida ainda pulsa. E aí eu olhei pro céu e avistei, agarradinho em um tronco, um bicho-preguiça, que deveria se chamar bicho-presença ou bicho-sem-pressa ou bicho-qualquercoisa que fosse mais honestamente de acordo com sua qualidade contemplativa de existir. Tive para mim que chamá-lo de preguiça pode ser um pouco injusto. Desafiar a gravidade, em qualquer circunstância, ainda que se possa contar com o apoio de um tronco de árvore, requer um engajamento muscular que não condiz com o estado de preguiça. Em qualquer corpo, seja ele humano ou não. Li que seu tempo, dilatado, resulta de seu metabolismo lento. Ele dorme cerca de catorze horas diárias. Mas ele se segura inteiramente em um tronco, numa altura arriscada, com uma firmeza que lhe é própria, na calma que lhe é própria, com aquela expressão meio sorridente que lhe é própria. Eu tive a sorte de encontrar um bicho preguiça— que eu acho que não deveria ser chamado de preguiça mas eu já expliquei o por quê — pela primeira vez e acordado. Sentei na calçada e por cerca de quarenta minutos olhei para o alto, contemplando aquele bicho sem preguiça , ocupado em ser somente o que ele é, no seu tempo, que dilatado, se expandiu e se fundiu ao meu, apressado, sempre ocupado em ser tantas coisas que não eu mesma.
173
Como uma espectadora que assiste à cena de um dançarino de butô, com seus movimentos precisos e volumosos no tempo e espaço da árvore-palco, com sua pelagem-figurino em consonância com o tronco-cenário, fui arrebatada, da minha calçada-poltrona daquele teatro-floresta por uma contemplação meditativa que me conduziria a uma consciência do meu corpo e movimentos que em quase seis meses de confinamento, ainda que no mesmo corpo todos os dias, eu talvez ainda não estivesse experimentado. Cada movimento daquele pequeno mamífero de sorriso de buda nutria de percepção cada segmento do meu corpo de mamífera bípede, que não depende dos membros superiores para sustentar o próprio peso a trinta metros do chão. Cada virada suave do pescoço dele me provocava sutilmente a descompressão de cada articulação minha. Cada movimento de cada pata me provocava uma respiração profunda e consciente. Cada vez que ele movimentava a articulação da extremidade da pata dianteira, pressionando as longas unhas contra a superfície do tronco, eu percebia a sensação de cada articulação das minhas mãos. Ele desceu, pata por pata pelo tronco, estendeu a pata esquerda traseira, depois a pata esquerda dianteira e se transferiu para um cipó, consciente de cada pedaço que seu corpinho ocupa. Se organizou em unidade cabeça-tronco-patas e subiu rapidamente pelo cipó até chegar ao topo da árvore, em completa consciência, força, beleza e sabedoria corporal, me convocando a habitar melhor meu próprio corpo, como ele faz com o dele. Levantei, me alonguei rapidamente, como se eu me transferisse de um tronco para um cipó e continuei minha caminhada, perna esquerda, perna direita. Em presença, sem preguiça.
Importante: mantenham tanto quanto for possível o isolamento social. Evite aglomerações. O vírus segue em circulação e o número de mortes segue aumentando.