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Vagner Santos Pereira

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Vanderlei Kroin

Vanderlei Kroin

Vagner Santos Pereira Barra Mansa/RJ

Espírito Beladona

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No centro espírita Tríade de Amor, o médium Carmona Silva encerrou a psicografia. Saiu do transe. Fez uma prece silenciosa, agradecendo o prestimoso auxílio dos seus guias espirituais. Recolocou seus óculos de armação pesada e bebeu o copo de água. Entregou as laudas a oradora, Fábia Paes, para ler a mensagem aos presentes na sessão pública.

Deixei a Terra em março de 1995, quando tinha 27 anos. Tinha muito o que viver ainda, muitas coisas boas poderia ter feito. De forma covarde preferi sair da vida. Preferi abrir a porta mais cômoda para solucionar o meu problema. Erradamente, acreditei que aquele nó pernicioso jamais se desataria. Ledo engano, se tivesse fé e um pouco de paciência para trabalhar a situação — o tempo, sem dúvidas e dívidas — seria o remédio mais sábio. Conseguiria, talvez, não a resposta que viesse ao sabor de minhas vontades, todavia seria a que me permitiria lapidar o meu coração bruto.

Abri a porta do suicídio, pensando que com minha morte física tudo se resolveria. Pensei que findaria aquilo que me consumia, levando-me às raias da loucura. Mas loucura maior foi desertar da vida, abdicar de lutar, deixar de amar os corações que continuam a orar por mim, deixar de aprender cada sagrada oportunidade dada por Deus.

Como não acreditava em Deus, naquela época, logo não acreditava em vida após a morte. Entretanto, estava errada. Meu único pseudo deus era o dinheiro oriundo da fortuna acumulada pelo meu pai famoso, craque de futebol aposentado. Com ele conseguia comprar tudo, desde prestígio social a falsos amigos. Todas as portas se escancaravam facilmente para meus caprichos,

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permitindo-me frequentar círculos elevados da sociedade, não se importando com o fato de eu ser uma mulher negra. Tudo era fácil, tudo era lindo, tudo era divertido, um carrossel efervescente da mais eufórica fantasia. A porta daquele falso mundo era larga e colorida. E, nunca desconfiei ser uma ratoeira estreita na saída.

Por conta da minha máxima transgressão na Terra, traí o sagrado compromisso da Vida. Fui obrigada a expiar àquelas cenas de terror, as quais julgava ser delírio fantasioso de uma novela das sete ¹ que minha mãe assistia. Pior que tais cenas dantescas, era ser obrigada a reviver seguidas vezes minha dolosa morte física. Essa tortura constante era resultado da moenda do remorso. Isso levava-me muito além do limite da exaustão e da sanidade, fragmentando aos pouco minha alma.

A consciência é o tribunal mais justo que um homem pode enfrentar. Nele todas as suas faltas que por mais soterradas estejam, vem à tona. Minhas faltas sempre me faziam retornar ao momento derradeiro onde poderia ter escolhido o que era certo, e, infelizmente, escolhi o que me era mais fácil. Por uma breve porção de segundos, via-me vestida de noiva, aos prantos. Havia acabado de retornar da igreja onde me casaria. Aquele era para ser o dia mais feliz da minha vida. No entanto, não foi. Meu noivo preferiu me abandonar no altar para fugir com minha prima pobretona. Afinal de contas, não havia amor verdadeiro entre nós dois. Ele para mim era um mero joguete, um brinquedo caro que eu queria roubar de minha prima. Sempre tive por mim que as melhores coisas da vida deveriam ser destinada para mim e o bagaço para os outros.

Tanto fiz e tramei, atravessando a felicidade deles. Minha vitória aparente era um castelo de cartas que desabaria mais cedo ou mais tarde com a primeira

¹Novela das sete = A novela referida é a “A Viagem”, de autoria de Ivanir Ribeiro, foi a 50ª a passar nesse horário da Rede Globo. Originalmente, foi um grande sucesso televisivo na extinta TV Tupi, entre os anos de 1975-76, e, no ano de 1994 foi feito um remake da trama.

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tempestade. Infelizmente, desabou no dia que era para consagrar minha audácia.

Tranquei-me no quarto. Do outro lado da porta, meus pais tentaram me acalmar. Estava alucinada por ser tão humilhada, publicamente — jamais pensei passar tamanha humilhação, mesmo semeando tanta tempestade. Senti-me desamparada, a carga era demais. Minha maquiagem borrada era reflexo do meu coração em colapso conflituoso. Decidi dar um basta naquilo. Deixei um bilhete sobre a cômoda, onde peço perdão por tudo. Retirei meus óculos, colocando-os sobre a mensagem que alguém leria mais tarde. No instante seguinte, joguei-me do sétimo andar. Quando toquei o asfalto, pensei que tudo estava acabado; nem senti dor.

Meu espírito saiu do corpo físico. Vi-me toda quebrada e ensanguentada. O trânsito parou. Os curiosos se acumularam aos montes, até tentaram ajudar minha matéria. Então, recebi o primeiro choque térmico; percebi que continuava viva, numa forma impensada, anteriormente, por mim. Como sempre dizia, retrucando a quem me questionava quanto a minha vida tresloucada na Terra: “Morreu, acabou! Por isso vou me esbaldar!”. Enganei-me. Continuava viva, fora do meu corpo. Tentando chamar a atenção, mas ninguém conseguia me ver. Isso me desespera, fazendo-me berrar embora ninguém por perto conseguisse me escutar. Ainda tive o dissabor de ver meu cadáver sendo recolhido como lixo que suja o asfalto pelo rabecão, ou acompanhar o sofrimento dos meus familiares em meu velório. Sofri, tentei contato com eles, mas não consegui.

Desesperei-me quando meu corpo desceu à sepultura. Gritei e esperneei. Os vivos não conseguiram me escutar. Até tentei sacudi-los, puxá-los pelos braços para alertar que estava ali. Mas meu toque se tornou intangível, atravessando-os. Quando isso acontecia, eles sentiam algo semelhante a uma corrente de ar fria adentrando o peito, causando um ligeiro calafrio. Meus parentes foram embora para casa, juro que queria voltar com eles à minha antiga vida, mas não já mais era possível. Depois lembro-me que uns vultos cercaram-me, raptando-me para o infame Umbral, fui conduzida ao Vale dos Suicidas.

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Vaguei por um longo período por aquelas masmorras degradantes. Perdi a noção do tempo, pois em todos os momentos não havia luz no céu. Tudo era trevas e sofrimento, agonia misturada aos pedidos aflitos de socorro. Eu era apenas uma gota de dor em meio aos náufragos desvalidos daquele oceano de pesadelos perpétuos. Um emaranhado de corpos se digladiando ao buscar a qualquer custo uma salvação. Não conhecia nenhuma daquelas pessoas imundas, esfarrapadas e mutiladas. Tudo que sei, que elas vibravam uma energia negativa capaz de fenecer a esperança, embrulhando meu âmago. Elas urravam de dor, rangendo dentes, lamentando, e, implorando para aquele sofrimento acabar.

Não havia pudor ou compaixão, apenas desespero. Isso me assustava, fazendo-me afastar de qualquer um. Tinha medo de que aquelas mãos me puxassem para baixo da densa camada formada pelo amontoado de corpos aflitos novamente, sufocando-me. Aquele sentimento como se estivesse sendo soterrada era horrível. Quando conseguia vir a tona por entre os corpos para respirar, minha vontade maior era vomitar. Só assim, conseguia um fôlego para lutar, desvencilhando-me daquela opressão sufocante e se afastar dali. No entanto, não sabia para onde ir. Apenas pervagava por aqui, por ali, por acolá; sem destino, sentido dor, medo, fome, sede e frio, e, sem a certeza de futuro. Reunindo um pouco de força para rastejar como os vermes no lodo pestilento à procura de fendas nas rochas cruas onde pudesse me esconder dos sabores da desgraça. Uma vez abrigada pela escuridão providencial da caverna, eu e os outros, assemelhávamos a ratos nas estranhas do esgoto esperando a melhor hora para sair pela boca do bueiro atrás de alimento.

Os poucos momentos livres, observava a paisagem tão tenebrosa, acompanhando o sofrimento alheio, igual ou pior que o meu. Teve um dia que eu pensei em desistir de tudo, simplesmente, deixar ser levada pelas consequências. Tive o pensamento tolo de querer morrer daquele lugar. “Mas, já estava morta!”; recordei-me. Ansiava fugir daquele cativeiro sinistro. “Fugir para onde?”; questionava-me incredulamente. Então, fiz uma prece de coração e adormeci.

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Quando acordei, estava num leito hospitalar recebendo os devidos cuidados. Soube que havia sido resgatada e acolhida em Luz Eterna. Luz Eterna é uma colônia espiritual vizinha a Nosso Lar. Aqui, por hora, encontrei uma paz que me permite vislumbrar muito além do horizonte estreito da visão humana. Vislumbro que, qualquer coisa era melhor que atentar contra minha vida. Estou a reestabelecer minhas forças vitais, necessárias para reconstrução do meu espírito despedaçado. Força, Fé e Esperança são ingredientes necessários para encarar as batalhas diárias, onde poderei reparar minhas falhas de outrora.

Hoje, sim, sei que existe vida após a vida. Como o espírito André Luiz afirmou:

“A vida é uma fonte eterna, enquanto a morte é o jogo escuro das

ilusões”.

Pessoalmente não o conheço, mas estudo as obras dele, bem como o sagrado evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Estou adquirindo preciosos conhecimentos, os quais permitem-me alcançar maior consciência de minhas obrigações futuras. Aqui trabalho na Mansão do Auxílio, que presta serviços aos irmãos que sucumbiram à armadilha, deixando a Terra prematuramente pela mesma falsa porta como eu. Fico feliz quando vejo um irmão curado das enfermidades da alma, pronto para dar os primeiros passos na esteira do bem. Nunca imaginei ficar tão contente com a felicidade e o sucesso de alguém. Até parece um elixir milagroso, dando-me uma colher de chá, ao que é o verdadeiro sentimento de paz.

Aqui todo momento é oportunidade de aprendizado contínuo, um aperfeiçoamento para depuração da alma. Tiro grandes lições de pequenas coisas. Eu, de hoje sou fruto do que plantei ontem, mas, eu de amanhã, sou fruto que planto hoje. Estou aprendendo a ser mais humilde, aprendendo a valorizar o que realmente importa. Aprendendo a apreciar as coisas singelas da vida, longe da ebulição da modernidade da mídia que nos obriga a ficar em evidência. A antiga Beladona viveu uma vida sem limites embarcando numa fuga vã, longe das responsabilidades. Achava que se estivesse rodeada de bajuladores, jamais me sentiria só, ou seria esquecida na prateleira de

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descartáveis. Pior foi apostar minha felicidade como se estivesse num cassino, enquanto me enveredava pela seara das paixões obscuras. A ilusão passou tão rápido, convertendo-se em um sonho mau.

A vida pode ser dura. Todavia nunca ingrata, cada um tem a experiência necessária ao seu desenvolvimento. A vida é uma bênção que merece ser vivida a cada suspiro. Não em um passado remoto com os resquícios saudosos e máculas de erros hediondos, que formam grossas correntes que nos aprisionam, e a nossa falta de fé nos obriga a arrastá-las. Não em um futuro utópico de hipóteses e outras incertezas catastróficas que são capaz de roubar nosso sono. E, sim, no presente. A vida é um presente. É o presente mais dadivoso de Deus. Porque o Pai sempre acreditará em nós. Para Ele, nós somos o milagre que desce dos céus para florescer maravilhas na face da Terra. A cada dia bem vivido no palco de Deus é semelhante a pavimentar uma estrada rumo ao Bem maior. Tanto é que somos Sua imagem e semelhança configurados na promessa divina de amor, na centelha da vontade, no santo acalanto e no sabor de um sonho eterno.

Mãe, pai, desculpe-me por tudo de ruim que fiz. Por toda a tristeza que plantei no coração de vocês. Estou aqui com a vovó Emília e o vovô Edson. Aquele vazio que esquartejava meu interior, já não existe mais. Aprendi que abrir os braços e estender a mão a quem precisa é um santo remédio contra a solidão. Semanas atrás assisti uma preciosa palestra com a Madre Teresa de Calcutá, onde ela disse: “As mãos que ajudam são mais sagradas que os lábios que oram”. Verdade seja dita, o fato de ser útil aqui na Mansão me faz tão bem que não encontro palavras para descrever tal sensação de bem-estar. Que o Senhor Jesus possa iluminar nossas decisões hoje e sempre. Um beijo no coração de vocês.

Beladona,

Luz Eterna, 29 de julho de 2017.

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Nesse instante, um casal idoso que assistia a palestra, abraçou-se. Emocionados. Reconheceram que aquela mensagem emocionante era de sua amada filha. Foram às lágrimas. Unindo-se a esse abraço, o filho, a nora e os netos. Eles se sentiram amparados como se um manto poderoso os envolvesse, fortalecendo-os para dias vindouros.

Em Luz Eterna, sentada à beira de um lago sereno, Beladona sentiu a vibração de energia positiva tocando o seu íntimo, fazendo-a sorrir. Era como se chovesse pétalas luminosas que ao tênue contato com ela, estouravam e ressoavam borbulhas de felicidades. Assim, eram liberados uma dócil fragrância e uma benéfica emoção que faziam expandir um halo energético ao seu redor.

Então, vibrou na mesma frequência para retribuir o carinho primoroso dos seus familiares na Terra.

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