4 minute read

Benjamim Franco

Benjamim Franco Taubaté/SP

Estranho retorno

Advertisement

Mais uma vez, o assoalho estava molhado.

“Quase me afoguei. Se eu não estivesse ali, ela iria...” Seu Silvério, meu vizinho mais próximo, batia seus óculos contra a palma da mão. “Logo, logo, chegaria nas pedras!” Mais encharcada que Silvério, só mesmo Ciara, minha esposa. Além da água salgada, que lhe enchia os sapatos e pesava a colcha cinzenta — seu tesouro de família — Ciara não parava de chorar.

“Me desculpe”, ela repetia em seu sotaque irlandês carregado, suas mãozinhas enrugadas espremendo a colcha contra o peito. Eu tentava, mais que secar alguma parte de seu corpo, confortá-la. “Querida, está tudo bem”, menti.

“Seu André, você me desculpe”, dizia Silvério, tremendo sob uma toalha. “Tu tens que fazer alguma coisa. Se não consegue tomar conta da Dona Ciara, deveria…”

“Silvério, já basta”. Abracei Ciara com firmeza, e tapei as suas orelhas, geladas. “Deixa que eu cuido dela”. Silvério afastou-se. “Melhor mesmo… Faça-se o favor. Faça isso por sua esposa”. Agradeci a ele, que se retirou, deixando uma poça d’água em seu lugar. O que eu poderia fazer?

Na água quente da banheira, Ciara brincava. Seu sorriso era como o da juventude, e seu olhar, estranhamente lúcido. Ela brincava com a água, fazendo ondas, batendo palminhas, rindo das próprias estripulias. E eu quase não estava triste.

“Por que você fez isso?” Ciara não respondeu: ocupava-se com a água. Ignorava o patinho de borracha, a bolinha multicolorida, e a loucura que tentara cometer. Ela olhava apenas para o ondulado na superfície da banheira.

Não sabia mais o que fazer. A doença veio rápido demais, e só o convívio, o amor, e o exercício da santa virtude da paciência, não me deixaram perceber seu avanço. Suas brincadeiras tornaram-se idiotas, seus esquecimentos passaram a ser perigosos — quantos sustos tomamos com o fogão! — e seus banhos de mar, de saudáveis exercícios no raso e no calor, tornaram-se longos, tensos, descabidos: o inverno nunca foi tempo de nadar.

25

“André”, disse Ciara. “Eu quero minha colcha”.

“Está secando, querida”.

“Quero voltar pro mar”, ela disse. Saí do banheiro: não quis chorar na frente dela.

Levantei cedo no dia seguinte. Fazia frio. Ciara dormia, apesar do despertador. Precisaria falar com Silvério antes que ele fosse para a cidade trabalhar. Além de lhe agradecer pelo socorro, precisava conversar com alguém. Como tudo chegou a este ponto?

Silvério alternava entre assoar o nariz com um lenço, e aparar seu bigode com uma tesoura. “O senhor terá que fazer uma escolha difícil”, disse ele, como se não fosse óbvio. “Taí a importância de ter filhos. Por exemplo, quando minha tia...”

Suspirei. “Agora é tarde”.

“E a família dela?”

Repeti a ladainha. “Lá na Europa. De onde ela veio. Não se falam. Só sei isso. Há coisas que não me contou enquanto podia.” Olhei nos olhos de Silvério; ele se encolheu, e soprou seco no lenço. “Pense com carinho numa casa de repouso… mandei minha mãe para uma. Não ouço reclamações.”

“Não tenho coragem. E não quero que ela fique sozinha.”

Silvério tomou o guidão de sua velha bicicleta. “Pois então, vá junto! Ou… mude-se pra longe da água.”

Quis mandar Silvério às favas — por acaso pensa que é jovem? — mas o cretino tinha alguma razão. “Vou pensar em algo.”

“Pense sim.” Silvério guardou o lenço imundo no bolso, e montou na bicicleta. “Cuidarei de sua casa por você, meu chapa”, disse ele, pedalando em direção a cidade. “A praia ficará triste sem vocês”.

A praia, minha casa, nossa vida: teria que me decidir logo. Como eu queria, que por um instante apenas, Ciara e eu pudéssemos conversar! Qualquer escolha seria dolorosa: mas faria o que ela quisesse. Se apenas pudesse me entender...

Chegando em casa, chequei as janelas — fechadas — e lutei contra o cadeado do portão, a chave seca da porta. Será que me acostumarei a trancar tudo? Numa vizinhança tão parada… E, ao abrir a porta, lá estava ela: Ciara, segurando sua colcha cinzenta, me encarando.

“Me desculpe”.

Ciara me derrubou. De onde tirou tanta força? Não pude sentir dor, não deu tempo — apesar do barulho que meus ossos fizeram ao bater no assoalho.

Levantei-me depressa. “Ciara!” eu gritei. Eu deveria ter trancado o portão ao entrar. Ciara corria, é claro, em direção a praia. Eu não podia perder tempo: não havia Silvério e nem ninguém. Frio demais pra

26

turistas, e foi-se o tempo dos pescadores… Só eu poderia impedi-la.

A calçada, o mato alto, as pedras, e a areia: nada lhe atrasava o passo. Contava com uma queda, um infarto, qualquer coisa que lhe parasse: mas era o meu peito que doía, por dentro e por fora, e os meus pés que tropeçavam. “Ciara!” E ela não desistia, seguindo em corrida torta, mais rápida do que eu poderia imaginar. Quando pus meus pés na areia, os dela já tocavam a lama fria das ondas. Mais uma vez, gritei seu nome. “Ciara!”

E ela se virou para mim. Seu sorriso era como o da juventude, e seu olhar, estranhamente lúcido. “André, adeus”.

Ciara envolveu-se na colcha cinzenta — seu tesouro de família — e correu em direção ao oceano. O cinza da colcha se misturava ao grisalho de seus cabelos, e à espuma das ondas. Passo após passo, saltando sobre as ondas, Ciara adentrava o mar, com rapidez além da idade.

Não pude segui-la: Meu joelho cedeu. Caí de bruços na areia. Todas as minhas dores se manifestaram: nas costelas, pulmões, no meu coração. Ergui minha cabeça e olhei para o mar, em busca de Ciara. O mormaço prateado do céu me ardia os olhos: a maresia e a areia ofuscava meus óculos. “Ciara”, gritei.

De longe, nas pedras, havia uma foca cinzenta. Estendi minha mão, como se pudesse alcançá-la.

twitter.com/benjamimfranco

This article is from: