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Charles André

Charles André

Lágrimas pelo partido

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Era uma espécie de ala jovem de um partido radical, que se achava parecida com o grupo idealista montado por São Francisco com a permissão de algum papa moderno; um coletivo que recebia suporte financeiro do partido para poder delirar e experimentar novas ideias de ação política. Viviam juntos, dormindo embolados em camas grandes, nos quartos apertados de um prédio de apartamentos com divisões anárquicas. Cozinhavam em grupo, alguns suas próprias comidas cheias de idiossincrasias – vegetarianos, neandertais, jejuadores sistemáticos, adeptos da dieta líquida etc. E se reuniam diariamente para longas reuniões com pautas políticas e comportamentais, em que decisões eram tomadas e manifestos eram produzidos apenas se alcançassem consenso, o que quase nunca acontecia, pelo pouco que vi.

Eu entrei naquilo por um curto período, sem que a maioria das pessoas se interessasse ou questionasse minhas razões. Eu me aproximara de duas garotas, atraído de início por uma delas, que se insinuou numa festa meio punk, cheia de modelos vestindo roupas feitas de plástico e metal. Elise me disse para ir vê-la na “sede”. Me fez conversar na cozinha e depois deitado em sua cama, sempre com o barulho dos rapazes e moças que entravam e saiam a todo instante. Em um momento mais aquietado lá fora, abriu os botões da minha calça e me fez gozar, me lambendo a boca, mordendo e chupando meu pescoço. Foi só dias depois que ela me apresentou a outra, ainda mais novinha, animada também, mas que por algum motivo me pareceu mais elegante – talvez só falasse com menos gíria e mais recursos linguísticos, ou um pouco mais baixo. Margareta tinha os cabelos e os olhos castanhos. Também usava miniminissaias todo o tempo, geralmente pretas, enquanto sua amiga loura, claríssima na pele, cabelos e pelos, experimentava várias cores nas roupas sempre curtíssimas. Ambas ficavam arrepiadas quando fazíamos amor, mas amor mesmo. Era sexo forte e frequente, com uma, com outra, com as duas me agarrando em sucessão, eu suando e com fome infinita. E seja antes, durante ou depois daquelas apoteoses, surgiu rápido em mim uma sensação de que eu só era verdadeiro ali, eu não

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existia fora dali. Eu precisava delas, e como uma coisa só.

As reuniões também eram relevantes para mim. Mas não como para elas, que ajudavam a construir as pautas e discutiam suas posições em sucessivos encontros preparatórios com pequenos grupos de pensamento político mais ou menos parecido. De início muito tímido, eu simplesmente ia e ouvia, interessado principalmente em estar ali com elas, mas também achando beleza naquele tipo de discussão de ideias quase anarquicamente diferentes. Fiquei mais animado depois que tive coragem de fazer minha primeira intervenção, que talvez tenha soado interessante e levou a várias falas criticando ou expandindo as ideias tremendamente radicais que expus. Não me cobravam coerência, e nas semanas seguintes eu me vi integrado àquela turma, falando com alma, propondo coisas como passeatas pelas ruas de Berlim com todo mundo pelado, usando só sandálias, invasões panfletárias do metrô, ou um mês vivido apenas queimando papéis e lixo para o aquecimento do prédio.

Um dia tudo mudou. Depois de uns oito meses. Era prevista uma festa de fim de verão durando dois dias, organizada pelo partido para um debate mais amplo. Haveria discursos sobre o que os vários grupos e núcleos partidários tinham realizado no semestre, e a atração de comida farta e bebida boa. Eu viajei para ver meus pais no interior uma semana antes, e tinha pouca ideia do que pudesse estar acontecendo quando cheguei ao evento já no domingo, com a melhor roupa que tinha, bem pobre comparada aos modelos que encontrei. Ali eu vi como a engrenagem toda era careta, com senhoras distintas e de nariz empinado, exibindo seus chapéus, fumando em piteiras de marfim. Vários salões com mesas redondas sem lugar marcado, em geral meio vazias, e eu ia procurando por minhas garotas. Circulei em vários ambientes, sorrindo e andando devagar para chamar pouca atenção daquele grupo um tanto intimidador. Não encontrei ninguém dos meus conhecidos, e depois de alguns minutos dois homens barbudos me chamaram para conversar numa saleta. Representavam a hierarquia do partido, trabalhador e socialista no nome, na verdade fascista em sua inclinação. Haviam desalojado todo o grupo jovem do prédio de nosso coletivo, que decidiram demolir para criar uma nova sede, depois de cortar o suprimento de gás aquecedor e de luz. Não quiseram me dizer nada sobre meus conhecidos, e pediram que eu saísse dali, já que nem eu nem ninguém daquele grupinho de cinquenta adolescentes era oficialmente membro do partido. Sorte que eu já tinha comido uns cinco sanduíches. Azar que mesmo ficando depois mais de uma hora

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junto à entrada do casarão não passou ninguém conhecido por ali, seja para protestar ou para tentar entrar, desavisado como eu.

Minha escola ainda estava fechada para as férias de verão, porém me abrigou como a uns poucos gatos pingados, garotos menores que por algum motivo os pais deixaram ali no fim de semana. Mas não havia colegas conhecidos, e nos dias seguintes, eu me vi sem dinheiro, obrigado a passar o tempo caminhando por horas na cidade ou vagando no metrô, sempre com fome e tirando cochilos nos bancos do Tempelhofer ou do Volkspark. Foi assim que desisti e voltei para casa, no sul, pertinho de Nuremberg, e foi assim que perdi meus amores. *

Voltei a encontrar Elise já adulto, depois da guerra. Num domingo de manhã, no vernissage de uma mostra especial de arte visual, com colagens de filmes passando em salas escuras da Neue. Havia uma pequena recepção com champanhe para convidados. A loura continuava linda, livre e agora muito mais chic. Casada, morava em Dusseldorf e tinha uma filha de quatro aninhos. Falou comigo como a um velho conhecido. Tivemos um breve momento a sós em uma das salas da exposição. Por cima da calça, ela segurou meu pau, que ficou dolorosamente duro, e propôs nos encontrarmos num hotel naquele mesmo dia. Eu achei aquilo estranho e recusei, apesar dos arrepios que senti percorrerem suas lindas coxas brancas. Tentando ser simpático, perguntei por nossa amiga. Com a cara fechada ela respondeu que perdera totalmente o contacto, e em seguida saiu da sala de exposição sem se despedir de mim.

Encontrei minha morena uma única vez, há sete anos, em uma feira de negócios agrícolas em Dresden, com exposição e venda de máquinas. Nossas vidas tinham trilhado caminhos muito divergentes, separadas por ideias políticas e por países totalmente diferentes. Margareta tinha se mudado, vivia na Rússia, participava de comitês de fábrica, estava integrada na hierarquia do partido comunista. Conversamos do modo gentil que eu esperaria. Ela conservava a pureza e o idealismo, motivada e iludida pelo regime stalinista horroroso. Não quis me mostrar onde estava hospedada com amigos da universidade, perto da casa de Ibsen. Fizemos amor em dois encontros no meu hotel, e nas duas vezes, sem saber explicar porque, eu me vi escorrendo lágrimas sobre seu corpo dourado como um campo de trigo.

Hoje sonhei com as duas. Acordei gozado e chorando.

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