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David Leite

David Leite

Jorge, da contabilidade

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— Qual o seu nome? — Jorge. – O homem, absorto, respondia a pergunta serenamente. — E o que você faz, Jorge? – O entrevistador continua. — Eu sou contador. – A mesma voz inócua. — E quanto às terríveis visões que lhe perseguem? — São frutos de meu distúrbio. Devo ignorá-las. — Bem, Jorge. Muito bem. Devo dizer que houve um grande avanço aqui. Com as medicações e com a terapia, acredito que você retornar para o convívio social. — Obrigado, doutor. O senhor foi muito bom para mim. — Imagine. Minha missão é essa. Vou trazer a papelada. Acredito que você próprio possa assiná-las e estará de volta ainda hoje para sua casa. Após a burocracia terminada, o doutor acompanha seu paciente para a porta do asilo, carregando seus poucos pertences numa bolsa puída. Uma pequena reserva de medicação e a receita estavam numa sacola plástica. — Bem, Jorge. Pronto para sua nova vida? – O doutor, com um sorriso simpático, o indaga. — Sim. Creio que sim. Ambos se despedem no ponto de ônibus. Jorge, ansioso, aguarda pela condução olhando para o fim da rua. Ela não tarda a chegar e logo ele está de volta a sua residência. Seu modesto apartamento se encontrava na exata condição em que deixou, um mês atrás. Por não haver poeira, acreditava que sua diarista tivesse mantido as visitas, ainda que não a tenha pedido. Jorge joga a bolsa em cima da poltrona, deixa os remédios na escrivaninha e se joga na cama, pesadamente. O relógio apitou com o mesmo horário de costume no dia seguinte. Sua mão se move pesadamente para reivindicar mais cinco minutos de descanso. Passados os cinco minutos, levanta-se sofregamente. Passa do pequeno quarto para o ainda menor lavatório. Olhando-se no espelho, impressiona-se com as cavas embaixo dos olhos. Boceja, e coloca a pasta na escova de dente. Após o gargarejo, cospe na pia. Enquanto levanta o olhar, se espanta ao perceber um fluido vermelho escorrendo em filetes pelo espelho. O líquido sanguíneo começa a desenhar no espelho terríveis dizeres:

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“O ônibus passa às 8:20.” Aterrorizado, Jorge se lembra que já estava quase atrasado. Calça, camisa, gravata e paletó vestidos com pressa. Não havia tempo para o café da manhã, e sua despensa estaria vazia, de qualquer forma. Pega sua pasta e celular e corre para o elevador.

O elevador pára em seu andar. No entanto, estava como nunca antes. Seu interior era uma estrutura de ferro e arame oxidados. Jorge fecha os olhos e tenta se acalmar enquanto entra. Aperta o botão, não um botão eletrônico e sim um rudimentar botão enferrujado que ameaçou cair depois de pressionado. O elevador range e treme conforme desce pelo poço, e o barulho fica cada vez mais grave conforme desce, como se mergulhasse num abismo que o fizesse ecoar. A porta se abre para a entrada do prédio. Desesperado, Jorge corre para o ponto de ônibus o mais rápido que pode. Vê o ônibus atravessando a rua transversal à sua rua. Porém, um veículo completamente transfigurado surge quando atravessa a esquina. O tétrico transporte carnado que reaparece ao fim da rua era coberto de estruturas fibrosas, como músculos, que se retesavam e relaxavam conforme seguia. Ao lugar de janelas, vitrines onde um espesso e amarelado líquido escorria. O assombro sobre rodas pára à sua frente, onde uma fenda vertical como uma mucosa, ladeada por dentes afiados, saído dos mais edipianos complexos, se abre convidativamente. Tentando ao máximo ignorar a aterradora visão, Jorge salta para dentro e o comboio maldito pode prosseguir viagem. Dentro do ônibus, os passageiros observam o homem patentemente alarmado e ofegante, que se dirige para um banco afastado de todos e desaba. Chegando a empresa, tenta evitar o olhar de todos até se dirigir para sua mesa. Ignora o elevador, temendo ainda pior experiência se tentasse pega-lo e vai direto para as escadas, subindo os quatro lances até seu andar. Na sua sala, joga a pasta sobre a mesa e põe o paletó no espaldar da cadeira, sentando-se cansado logo em seguida, afrouxando a gravata. — Quanto tempo, hein Jorge? Estava de férias? – Um dos colegas de sala o saúda. — Não. Estava... de licença. – Jorge retribui, hesitante. Jorge se pergunta que desculpa daria para sua chefia. Não se recorda em que condições teria sido internado. Um medo começa a se avolumar em seu interior, quando é interrompido. As luzes da sala começam a baixar quase ao breu. Da porta surge uma mulher, vestida em couro negro, com ameaçadores arrebites prateados, um olhar altivo e aterrorizantes lábios encarnados como sangue e

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carregando numa bandeja de prata o que parecia ser uma cabeça degolada. Com passos firmes se dirige a ele e, para seu terror, retira a cabeça da bandeja, sustentando-a no ar. Era a sua cabeça! — Seus relatórios. A mulher estava a sua frente segurando alguns papéis. Agora com a maquiagem mais sutil, com uma camisa de linho e saia cinza. Ela coloca o material em sua caixa de entrada e se retira da sala agora iluminada. Jorge coça as vistas, tentando entender o que aconteceu e pega os relatórios deixados ali. Ele começa a organizar os papéis quando seu ramal toca. A sala da diretoria o convocava para uma reunião. Apreensivo, Jorge pega seus relatórios e se dirige para ter com os chefes. Entrando através de uma porta dupla, que se bate logo após atravessá-la, Jorge está numa espécie de câmara sacrifical. Archotes fumegavam nos quatro cantos da sala iluminando-a com sua luz avermelhada. Num pelourinho, reconhece o corpo lacerado de um de seus colegas, que agonizava. E ao redor de uma tábua de pedra, quatro homens com as mais assombrosas feições se reuniam. — Sente-se, Jorge. – Diz o primeiro deles, numa voz que retumbou por toda a câmara. Abalado, Jorge não cogita desobedecer. Senta-se à mesa numa quinta cadeira, segurando os papéis sobre o peito, temerariamente. — Jorge. – O homem de feições cadavéricas e pálida se dirige a ele. –Estamos esperando por você por todo esse tempo. Onde esteve? — Eu? Eu estive em licença médica. — E por que sua saúde importaria? Não podemos atrasar nosso projeto por essas frivolidades. — Que projeto? — Ora, o fim do mundo. – Outro deles responde. Um homem de pele vermelha e semblante colérico. — O quê? – Jorge se espanta. Ao mesmo tempo, começa a ler as plaquetas de identificação sobre a mesa. Peste, morte, guerra e fome. — Quem são vocês? — Ora. Não nos reconhece mais? Somos os cavaleiros do apocalipse. Como você. — Como eu? Isso é loucura. Eu sou apenas eu... Sequer tenho uma alcunha, como vocês. — Alcunha? Esse é o nosso nome. –O homem com feridas no rosto diz, enquanto estende um documento onde a assinatura sugeria seu nome, Peste. — Seu nome poderia ser tédio. Cavaleiro do tédio é um bom nome para você. – O homem com a face coberta diz. — Mas o que eu faria? Por que me escolheram para isso? – Jorge continua perplexamente.

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— Você ignorou os sinais? Você ignorou os sinais que temos te mandado por todos esses tempos? — Sinais? Tudo isso é um delírio... Onde estão meus remédios... — Não são delírios. Esse é o seu mundo. Esse é o mundo que você deve ajudar a criar. Jorge se sobressalta. Levanta-se da mesa e começa a confrontar aquelas figuras medonhas por alguns momentos. Com um grito preso na garganta, ciente de que estava preso novamente em seus desvarios, começa a bater na porta de entrada da sala desesperadamente. Do outro lado, a secretária de antes abre a porta, para um terrificado homem saltar para fora, gritando e correndo em direção as escadas. O diretor da empresa, ajeitando a gravata, sai logo atrás. — O que será que deu nele? – O homem pergunta a secretária, que dá de ombros. Constrangido em uma camisa de força, Jorge é carregado pelos corredores do asilo em que havia se internado. — É realmente lamentável. Acreditava que ele pudesse superar sua condição. – O médico que o atendia anteriormente lamenta. — Sim. Acreditava nisso também, mas vimos que não. Jorge, sedado, olha para as salas ao seu redor. Numa delas, um familiar homem pálido e de feições cadavéricas retorna o olhar para ele e, alheio a tudo, salivando pelo canto da boca, acena para ele com um leve sorriso. — Ele... Ele está ali... – Jorge balbucia. — Sim, meu caro. É outro paciente nosso. Jorge é gentilmente conduzido a uma cela. Senta-se na cama, contemplativo. — Veja pelo lado positivo. De um jeito ou de outro realizamos a nossa missão. – Um dos médicos se dirige ao outro. — Sim, sim. Evitamos mais uma vez o fim do mundo... – O médico responde.

Fim

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