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Amélia Luz

Amélia Luz Santo Antônio de Pádua/RJ

Carro de Bois

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O carro de bois chega alegrando com a sua bela cantoria. Som estridente, vazando as manhãs ensolaradas. O candeeiro vai à frente com a sua vara dialogando com a boiada mansa; de calças arregaçadas, chapéu de palha, pés descalços, autoritário e pequeno, quase menino. Do alto, o carreiro imponente comanda, com a vara de ferrão e o chocalho de guizo. O canivete na cinta, o chicote amarrado no fueiro.

— Vem Rochedo, endireita Queimado, vai Fumaça, afasta Pintado, vai Tenente, vem Capitão! O facão no bornal de brim e a coragem para vencer desafios. Em baixo, na mesa, a moringa de barro com água da mina, o boião de comida, almoço do dia e a rapadura de sobremesa. Um cachorro acompanha fiel ao seu dono.

A canga prende o cabeçalho, o boi aceita humilde na sua missão de

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obedecer. O canzil atravessando a canga com a brocha, vem para firmar o pescoço do animal com segurança. O cabeçalho é ligado ao corpo do carro cargueiro. Atrelados os bois que puxam, o carro movimenta-se. A mesa do carro é de madeira maciça para durar sob sol e chuva e segurar com firmeza a carga escolhida.

Junta de cabeçalho, o tambueiro, junta do meio, junta de guia. Vai boiada! A esteira é trançada de bambu o fueiro prende a esteira que leva a carga. O freio é preciso na descida perigosa, o candeeiro é habilidoso, o carreiro firme a comandar autoritário do alto. Pesado de cana-de-açúcar, café em grãos, espigas douradas de milho, cachos de arroz, sacas de feijão ou lenha seca para alimentar o fogão, cargas diversas segue pela estrada da matinha. Quanta utilidade!

Desce cauteloso morro abaixo, vem de longe, chorando, sob sol escaldante. O carreiro assobia, comandando com a garganta seca. A casa da moça bonita na beira da estrada é logo reconhecida. O arvoredo, o pequeno jardim, o pomar, a tulha e o galinheiro. Imagens familiares. A boiada para, a moça vem correndo e traz a água fresca na cuia para matar a sede dos visitantes inesperados. Olhos negros, tímidos e fugidios. Pouca conversa e muitas trocas misteriosas. A donzela é morena, cabelos trançados, vestida de chita floral, boca pintada de vermelho, cheirando a perfume barato. Vem um leve descanso. Tirando o chapéu o carreiro agradece e segue viagem, cantando: “Vem donzela,

Olha pra mim

Donzela bonita

Vem pra janela

Com laço de fita

Cheirando a jasmim,”

O carro de bois segue de novo o caminho do Encantado na direção da Boa Esperança, rangendo vagaroso pelos vales floridos. O toldo de tecido rude, embora remendado, é resistente e caprichosamente amarrado, protegendo a carga de algum imprevisto temporal.

Esse mesmo carro de bois que transporta carga era também de costume levar as famílias às igrejas do arraial para missas, batizados e outras cerimônias religiosas. Com cuidado as moças para não amarrotarem os vestidos de tafetá ou

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seda viajavam em pé no sacolejo do carro que também levava jovens vestidas de noiva com véu e grinalda para o altar em dia festivo de casamento. Quantas sinhazinhas já viajaram de carros de bois em dia de casório com pais, damas, testemunhas e convidados. Quando tinha missa na capela das fazendas ou nos cruzeiros o carro trazia o vigário para o ofício santo e para a benção, após farto almoço na sala grande na companhia dos donos da casa e vizinhos mais importantes. Era comum a mulher em locais mais atrasados, a dona da casa não se sentar à mesa do marido que chamava de senhor, ao lado dos convidados. Em muitos casos comia na cozinha como sinal de respeito.

O carro-de-bois conduzia também nos cortejos fúnebres o corpo do finado para Cemitério e Capela de são Vicente para missa de corpo presente no povoado em dias de sepultamento. Nesse dia os carreiros besuntavam os cocões com bastante graxa para não haver a cantoria do carro em dia de tristeza.

Como foi importante o carro-de-bois na nossa história. Transportava soldados, víveres e munições em tempos de guerras e conflitos. Serviam para conduzir enfermos, como se fosse ambulância, em longas distâncias, buscando curandeiros, benzedeiras, farmacêuticos ou raros recursos médicos.

Lá vem de novo o carro chorando na minha lembrança. O carro que veio de longe, que atravessou o oceano em naus portuguesas e até hoje é respeitado pelo serviço que nos prestou. No interior do Brasil esse tipo de transporte ainda é muito utilizado nos sertões, indispensável nas fazendas.

O treino dos animais arredios é trabalho penoso que exige muita paciência e muito conhecimento dos peões para que os bois adestrados fiquem mansos e adequados para o uso. Levam muito tempo treinando, a fim de que, sem risco, possam colocar as juntas em parelhas, entrando nas estradas e trilhas do meio rural ou entrando garbosos nas pequenas cidades. No cadião as crianças gostavam de apinhar aos gritos num divertimento característico, ouvindo a cantadeira em contato com o chumaço a entoar

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suave e tristonho lamento. E canta alegre o carreiro: “Para Rochedo, para Queimado,

Ajeita Fumaça, endireita Pintado.

Tô com vontade de vê a comadre

Mas tô com medo, o patrão é zangado.”

Raros artesãos, carpinteiros, por amor à arte, ainda continuam a construí-los, sobretudo no nordeste, ajudando-nos a contar essa história verdadeira do homem do campo, do carro-de-bois e da sua boiada. E o carreiro amigo além de trazer a pesada carga sempre traz consigo um leve sorriso solto, um assobio alvissareiro, a cantoria de modinhas sertanejas e numa boa prosa, “causos” de gente pura da roça que não acabam mais. Um pito aceso, uma cachaça no fundo do copo, a moringa de barro com água fresca, o bornal de brim com o boião de almoço Por onde passo ainda vejo os restos de muitos carros-de-bois a apodrecerem debaixo do arvoredo esperando o carreiro, o candeeiro e a boiada em parelhas. As lembranças ficam, sou menina na janela do sítio, no alto da colina, a esperar a chegada do carro-de-bois na brisa da tarde sob o arvoredo florido. No fundo do chapéu de lebre cajus maduros, no bornal quitandas da padaria Marino para nosso café da noite. Levado pelo tempo o Sítio do Encantado não existe mais, nem o carreiro, nem o candeeiro, nem a boiada. Existe a história viva no cheiro da terra que teima em me trazer uma lágrima de saudade.

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