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May Cass

May Cass Teresina/PI

A caminho do trabalho

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Hoje, com o tempo nublado nos faz pensar nas coisas. Como era o passado. Uns anos atrás. A gente se perde pelo vão do asfalto, se perde em cada esquina, nos perdemos em cada cenário.

A espera se vai como o tempo que corre. Os pingos que caem já não me afeta: caminho anestesiada dos sentidos. Nem o frio me assola. Ignoro meu corpo sendo tocado pelas gotinhas da chuva. É nessa hora que o olhar sobre a vida pede mais atenção: mais calma, mais paz.

Preciso ressignificar meu caminho. Deixo a mente me soltar as memórias. As vejo com carinho e permito vir, sentir. Elas me dão um aconchego de que vivi

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o que eu tinha que viver e que sou feliz por ter experienciado o melhor mesmo com fases não muito boas.

Mas me pergunto: como escrever sem esse fluxo de consciência que me acelera os pensamentos? Será mesmo que preciso de um roteiro, um script e pautas do que deve ser escrito? Por que dizem que escritores devem ter um objetivo de escrita, uma "fórmula" com começo, meio e fim?

Sem essa! Eu só queria era falar das minhas andanças a caminho do trabalho. A nova van, com seu respectivo novo motorista e auxiliar, vai devagar. A cada sacolejo, uma parada. Uma parada antes de imperfeições no asfalto, uma baixa que separa o esgoto, um buraco mais a frente, uma curva curtinha à direita e assim íamos devagar custando o atraso da chegada ao trabalho.

E foi desse trajeto mais lento, mais devagar que fui percebendo mais a vida. As conversas com o colega de trabalho já não tinham tanta empolgação de antes. Pareciamos muito mais conhecidos academicamente do que amigos de vida. Desacelerei para esse "arroto" de ser cheia de si. Desacelerei para querer saber mais sobre qualquer assunto. Me deixei vencer pelo que me ia acontecendo: trajeto que me lembrava uma caminhonete levando trabalhadores cansados da lida para a lavoura e, no meio do caminho, não havia tantas pedras visíveis, só e apenas nossas mentes em silêncio, fatigadas e mastigadas lentamente como a vaca faz ao moer lentamente o pasto verde sobre a boca.

Continuamos a seguir, anestesiados de qualquer dor e sofrimento, pela busca da independência financeira. As paisagens viraram só paisagens. O poder de percepção morre a cada minuto de existência. A gente morre e nem contempla o Rio Parnaíba. Ninguém nem presta atenção nas ruas do Buenos Aires, Memorare, o Jardim Botânico e a Lagoa do Norte do Mocambinho. Nem na Lagoa do Norte do bairro São Joaquim, nem no pólo cerâmico do Poty Velho.

Essa letargia é contagiante. Mortinho da Silva, de Sousa, da Maria, do João, nomes comuns para vidas comuns, assim como a existências dos lugares citados acima se tornaram tão comuns que só por existirem parece que ninguém os nota mais. A invisibilidade existe para quem não dá a mínima para o que já temos e mesmo assim, seguimos, como quem leva uma carga sobre as costas.

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Ontem, antes de ir ao trabalho, peguei o transporte público e me deparei com a visão de um motorista também trabalhador que não desgrudava os olhos do semáforo enquanto mordia, com todo o contorno dos lábios, a maçã verde. Impressionante como os lábios dele se aderiram à fruta como quem não quisesse sequer perder um pedacinho dela. Foi o que pensei e lembrei também do conto Amor de Clarice Lispector quando descreve a cena do cego e da personagem protagonista, Ana que se encoleriza com a felicidade do cego enquanto ele próprio masca chiclete e aparentemente rir de si mesmo. Mas diferente dessa cena, é que na vida real, eu também sou como esse trabalhador, de olhos vivos no semáforo, vermelhos e arregalados, com foco no propósito sem nem lembrar de sofrimento, de dor. Parece que a gente se acostuma a uma vida de trabalho e trabalho e trabalho. Um looping e sua mente não critica mais a realidade e nem reflete sobre.

Me sinto com o dever de deixar registrado tudo que me vem a mente para não deixar de pensar, de poder criticar e refletir como vivo, pois a mente também não para e em dias de "inverno chuvoso" em Teresina, eu tenho que aproveitar esses instantes de paz e luta internas para mediar uma vivência única que ocorre todo dia, dentro de mim.

ig: @mayaracass https://www.instagram.com/mayaracass/?hl=pt-br

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