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Beto Filho
Beto Filho Belo Horizonte/MG
Para Sempre
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Os raios do sol cintilam na água do mar formando uma chuva de estrelas e o dia se aquece, à espera de alguma aventura. Ainda assim, dormem todos. Um absoluto silêncio domina a “kitnet” de verão da Marinalva. Ela é o que se pode chamar de excelente senhoria. Entrega as chaves e some. A paz do sono só é rompida quando a campainha toca. Toca, insistentemente, com a urgência de uma tragédia que se anuncia. Otávio, sempre atento e solícito, levanta-se da cama para abrir a porta. A preguiça lhe faz arrastar o corpo. A noite anterior, como sempre, foi longa, com muita cerveja e cachaça baratas e pouca mulher, ou nenhuma. Ao ouvir o frenético tilintar, Sílvio abre os olhos mas segue deitado. Na cama do meio, Gegê dorme feito um grande neném, e assim continua. Em breve, ele despertará como um urso polar na primavera. Quem esmurra a campainha é Arthur. Porta aberta, ele segue para o quarto. A excitação parece saltar de seus olhos. Arthur é assim, eufórico, sempre precisando fazer algo para dispersar a sua energia juvenil. Sobre a velha cômoda do quarto, alguns maços de cigarro se espalham. É tudo bem rápido. Arthur olha para os maços, seleciona uma caixa de Malboro fechada, bem rija, com as quinas afiadas, e mira a testa de Gegê. A caixinha explode em cheio na cabeça do grandalhão. Gegê acorda num misto de ódio e desespero. Ergue o corpanzil e parte, atordoado, na direção de Arthur, que ainda gargalha. Um potente soco de esquerda sai enviesado e atinge a parede, gerando um forte estrondo. Assustado, em meio à confusão, Arthur ainda acha tempo para protestar contra a atitude violenta do amigo e vai embora. Gegê precisa de algum tempo para recobrar o equilíbrio. Ele bufa; tem o rosto vermelho. A sua expressão é de quem foi sufocado pela própria alma. Pouco depois, os ânimos serenados, Otávio, Gegê e Sílvio tomam um modesto café da manhã e seguem para a praia, onde Arthur se refugia. De fato, lá está ele, na barraca do Inácio, o sujeito que faz o melhor peixe da região.
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Arthur olha para os três amigos com os olhos medrosos de uma criança que sabe ter feito algo errado. A praia está perfeita nessa temporada. As nuvens parecem dormir. Gegê espia rapidamente Arthur e não diz nada. Ninguém diz muita coisa. Tudo está bem. Um assunto qualquer se joga ao vento e é impossível, trinta anos depois, lembrar-me do que se trata. Só me lembro que ficamos ali, sentados na areia, perfilados, mirando o mar. E me lembro de tudo isso como se fosse hoje: as ondas se quebram e criam uma espuma branca que contrasta com o azul vibrante da água gelada; as pessoas chegam com suas toalhas, sacolas e crianças; um ambulante grita: “Olha o camarão!” – e a gente pensa noutro tipo de camarão. Nalgum trecho de areia, deve haver, agora, quatro amigos conversando. Ou cinco, talvez seis… Pode ser que um deles seja uma espécie de Otávio, centrado, com futuro promissor. E pode ser que outro deles, artero ou dorminhão, não venha a ser grande coisa na vida. Mas pode ser o contrário. Também haverá casamentos ou filhos para uns e solidão para outros; e talvez a solidão não depende de nada disso para acontecer. Meio que em vão, tento voltar-me para o presente. Mas o passado continua aqui e isso é bom. Nem o forte calor de 40º ameaça o prazer que sinto; o mesmo prazer que várias vezes sentimos. Uma brisa suave acalma o sol. A essa altura, a estrela do dia já voa bem alto e luminosa, e tudo parece se encaixar. De alguma maneira, tudo parece se encaixar e se repetir, como o próprio sol, que nasce e morre todos os dias.
Para sempre.