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Tauby Coutinho
Tauby Coutinho Rio de Janeiro/RJ
Minha Querida Sáens Pena
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“ENTRE Morros Verdejantes A Tijuca Foi Crescendo Nas Manhãs Sarau E Festas Violões Tocando Pelo Ar Os Sons Plangentes Depois O Silêncio Vinha Envolvendo A Paz Das Frias Madrugadas De Um Passado Que Não Volta Mais Mas No Coração A Tijuca Não Mudou Mantém A Tradição “
Ode a Tijuca - Lourdes Fiqueredo Maria Alice Saraiva
Bom dia doutor, açúcar ou adoçante? Quantas vezes respondi a simpática e solícita Nice essa pergunta. Na mesma quina do mesmo balcão, ora só, ora acompanhado, ora nas primeiras horas do dia, ora depois do almoço, foram mais de 30 anos respondendo a Nice: - adoçante. O tempo foi benevolente com Nice, não sei se ela pensa o mesmo de mim. Sempre bem arrumada, bem maquiada, olhar atento por todo o balcão, atendia a todos com um sorriso que não combina com um atendimento de um balcão as sete horas da manhã. Da grande lanchonete Palheta, no centro da praça Sáens Pena, hoje só resta um pequeno balcão, onde, gerenciado por Nice (em outrora uma iniciante balconista), serve o café da casa e alguns salgados e doces. Esse pequeno espaço, “Café Palheta”, reluta em sobreviver nos dias de hoje por pura tradição Tijucana. Todo o resto da lanchonete se transformou em uma enorme farmácia, aliás coisa normal hoje em dia. Grandes estabelecimentos se transformaram em farmácias e Igrejas Evangélicas. Faz nos pensar que as pessoas andam doentes de corpo e espírito.
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Fui apresentado pela primeira vez a lanchonete Palheta pela minha madrinha aos 9 anos de idade após uma sessão de cinema no Grande cine Metro que ficava a alguns passos na mesma calçada. Era uma enorme galeria, sem saída. Um teto alto com grandes ventiladores pregados na parede, abrigava um gigantesco balcão em forma de U, com dezenas de cadeiras giratórias presa ao chão, até um tanto alta para crianças da minha idade. Eram servidos almoços, lanches e os melhores waffles e a melhor banana splits da Tijuca. Nesse meu primeiro dia fui apresentado ao ovo recheado e ao maldito milk shake de chocolate que me persegue até os dias de hoje. Já o ovo recheado só é encontrado em alguns botecos dos subúrbios do Rio. Os ovos recheados, presença constantes em qualquer lanchonete e padaria, deram lugar as coxinhas de galinha. A tradicional “coxinha de galinha” era feita com a verdadeira coxa da galinha com osso e tudo, recheada, era uma iguaria servida somente em lanchonetes tradicionais. Hoje virou pop, não são mais coxinhas e sim tiras de peito frango, mas ainda mantem a tradição do nome. Propaganda enganosa? Como todo Tijucano passei a ser mais um transeunte habitual a circular pela formosa Praça Sáens Pena. Atravessava de um lado para o outro dependendo do filme que queria ver. Ao redor da praça, eram oito cinemas a nossa disposição, e depois, lá estava a nossa frente o Palheta. Ficava encantado com aqueles chafarizes jorrando água nas alturas e ficava pensando: como aquela água não acabava nunca. O que muito me impressionava era a escultura gigantesca de um ginasta que para enxergar até o fim da estátua eu tinha que curvar todo o pescoço para trás. Nunca procurei saber quem era ou quem a esculpiu, e acho que como eu, todos que ali passavam nunca se preocuparam com isso. Mais velho, já fazendo o vestibular num cursinho, ali mesmo na Saens Pena, meu colega de sala me mostrou um o lado boêmio da minha querida praça. Caminhamos até o Palheta e à direita da entrada, tão escondido que na minha pureza nunca tinha percebido, havia uma escada de madeira que dava para a parte de cima da lanchonete. Conforme fomos subindo, pelo vozerio, senti que algo muito forte estava para acontecer. Chegando no último degrau um mundo novo se abriu. Luzes, tacos, barulhos de bolas se chocando, muita fumaça, bebidas, amigos alegres disputando partidas de sinuca. Eram oito mesas oficiais de sinuca a disposição de seus inquietos jogadores. A vontade de participar de tudo aquilo dividiu minha presença entre a frequência no curso e os tapetes verdes das mesas de sinuca. Acho que acabou tudo bem. Passei para faculdade e me tornei um bom jogador de sinuca.
Passado muito anos, morando longe da Tijuca, em uma inesperada volta, me vejo no centro da praça Sáens Peña. Olho ao redor e não vejo mais nenhum sinal da minha querida praça, nem as pessoas que circulam se parecem mais com os tradicionais Tijucanos. Os chafarizes foram desligados pois a garotada fazia deles
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uma piscina pública e alguns moradores de ruas tomavam banho e lavavam suas roupas no local. Corri para aquele que jamais poderia ter batido em retirada, a estátua gigantesca de um ginasta que deve ter observado do alto toda essa transformação. Com o passar do tempo percebi que não era tão gigantesca assim, mas lá estava ela, impoluta, soberana ao tempo. Num lampejo cultural, quase como uma homenagem a sua resiliência ao tempo, resolvi homenageá-la lendo enfim, quem era aquele gladiador que atravessou o tempo incógnito, e seu criador. Coloquei meus óculos e fui ler as placas no pedestal da estátua. Não havia mais nenhum sinal de identificação. Roubaram todas as placas e ainda quebraram um dedo do formoso e agora mais ainda desconhecido atleta. Triste, ergui a cabeça e do outro lado da rua lá estava ele, o Café Palheta. Com as pernas enfraquecidas pelo tempo, atravessei cuidadosamente a movimentadíssima rua Conde de Bonfim e a cada passo que dava parecia diminuir a distância com o passado. Encostei no mesmo balcão, olhei à direita, não existia mais a escada dos gloriosos jogos nos tapetes verdes. A enorme lanchonete se transformou em uma farmácia. Aquele montão de gente feliz saindo com sacolas repletas de remédios, talvez fossem mais felizes no tempo dos waffles e bananas splits. Ainda impactado com tanta transformação, com a cabeça no passado, escutei: — Bom dia doutor, açúcar ou adoçante?