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Vagner Santos Pereira

Vagner Santos Pereira Barra Mansa/RJ

Uma Fatia De Oásis

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Fui coagida perversamente a deixar meu lar. Com tristeza, não olhei para trás, tive de salvar minha pele. Era uma questão de vida ou de morte.

O demônio caminhante de duas patas chamado homem, levou o inferno ao meu paraíso. Aproveitando-se que o céu não chorou como nos últimos anos para destruir minha casa. Ultrajou a vida cortejando a morte alheia. Cismou de pintar o céu azul, lindo, em um cinzento macabro. Maculou a pureza do ar com as tóxicas e grossas cortinas de fumaça. Suplantou o verde esperança em labaredas caóticas, reduzindo tudo a carvão.

Durante minha fuga, a esmo, desesperada, parei algumas vezes para tentar puxar um fôlego revitalizador. Mas quase morri sufocada pela fumaça venenosa. Fiquei mais desorientada, não sei há quanto tempo estava fugindo. Ou quantas léguas rastejei. O chão começava a ficar mais quente, parecendo que o calor brotava das entranhas da terra. Vez e outra, esbarro em famílias inteiras. Carcaças carbonizadas, de seres mais fortes do que eu, e que sucumbiram ao calor. Até as criaturas aladas, cujas chances de sucesso eram maiores que as minhas, fracassaram. Também ouço gritos desesperados pedindo socorro. Tento identificar de onde partem, infelizmente, não consigo ver nada além das paredes de fogo. Olho para o céu e clamo por um dilúvio que não vem para nos salvar. Isso causa-me muito sofrimento.

Estou quase sem forças. Sei se parar, o fogo vai me alcançar. Lembro-me de histórias maravilhosas contadas pelos antigos, de uma época em que a água abundante nunca teria fim. De um tempo em que o demônio era bem menos ganancioso, o céu derramava suas bençãos sobre a terra, renovando o ciclo de vida pantaneiro. Então, milagrosamente, a vida era capaz de brotar pungente até de pedras e todos ficavam gratos. Nesse ano, veio bem menos chuva

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que os anos anteriores para a tristeza de quem gosta daquele pedaço de chão. E o demônio cresceu os olhos, com a intenção de se tornar o novo rei do gado, tacou fogo com a finalidade de criar pastagens. Todavia, o fogo é insubordinado, gosta de contrariar as expectativas, aproveitando a ausência da água, rebelou-se ao se aliar com o vento. Golpeou, alastrou e desgraçou.

De repente, vejo em minha frente uma muralha, que não deveria estar ali. Xinguei aquela edificação feita pelo demônio que visava roubar o espaço natural do meu hábitat. Para mim, blasfemar ou ficar parada perante o perigo, de nada adianta. Ergo a cabeça e consigo focalizar, pouco acima da muralha, um ponto luminoso que sei que não é a lua.

Junto o resto de forças, pedindo que Deus me valha, e, se possível, se me der mais um pouco para subir, aceitarei. Não sei o que há do outro lado, o que me espera. “Será outro incêndio criminoso?”. “Seja o que Deus quiser!’’; penso eu.

Concentro todas minhas forças almejando estar perto da luz, caso consiga tenho chances de me salvar. Não encontro dificuldades na subida, rastejando meu corpo de quase dois metros e meio.

Venci e estacionei sob a luz fria. Fico orgulhosa de mim, bem que vovó dizia: “A necessidade ensina a lebre a correr”. De lá de cima, observo o contraste de dois mundos. Mas para mim, são partes opostas da mesma moeda. Tive vontade de chorar. As lágrimas não saíram, estava quase desidratada. O meu passado ardia como um pesadelo febril em chamas abomináveis. Meu futuro, uma fatia de oásis criado pelas mãos destruidoras do demônio, que tanto repudio.

Vislumbrei um enorme quadrado mágico cheio de água azul, iluminado por luzes artificiais que viam das profundezas. Bastaria descer e mergulhar. A muralha barraria aquele inferno atrás de mim. E, a minha frente, estava tudo tão calmo, não havia demônios presentes. A casa estava fechada e com as luzes apagadas. Não sei a quanto tempo estava sem tomar banho. A temperatura do meu corpo estava alta demais; pronto para entrar em colapso.

Não banquei a orgulhosa diante da tentação. Mergulhei. Foi refrescante sentir aquela água parada tirar a fuligem e farpas de minhas escamas.

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Mas tinha por mim que as águas turvas e movimentadas do Pantanal eram melhores que aquela. Não sei quanto tempo fiquei brincando, serpenteando de um lado para o outro, esquecendo dos problemas da vida. Saí e fui caçar alguma coisa para comer. Tudo o que encontrei no quintal foi um camundongo. Aquele petisco mal fez cócegas em meu estômago. Paciência, era o que tinha de melhor para hoje, aquilo foi melhor do que nada. Fui ajeitar um cantinho atrás de um arbusto ornamental para dormir sossegada, estava precisando recompor minhas forças, amanhã será um novo dia. Quem sabe amanhã, encontre um banquete digno de minhas proporções?

Apaguei.

Na manhã seguinte, acordei com os gritos dos demônios. Eram cinco; uma família completa. Quem me encontrou foi um dos três pequenos ao resgatar uma bola chutada sem direção. Ele alardeou todos, até o quatro patas deles latiu raivoso para mim, mostrando os dentes afiados. Com certeza, ele queria bancar o herói impressionando os seus demônios e mostrar sua eficiência servil. Se chegasse mais perto, dar-lhe-ia um bote certeiro. Enroscaria meu corpo aprisionando-o num abraço infalível até ouvir os estalos dos seus ossos se quebrando, bem devagar. Talvez latisse, pedindo arrego, mas seria tarde demais para ele. Depois, o engoliria e ia dormir satisfeita.

Nunca estive tão próximo desses demônio, eles cheiram mal e causam incômodos. Senti-me ameaçada, apesar de inspirar pânico neles. O perigo aqui era maior que voltar para aquele inferno; demônios são sorrateiros, imprevisíveis e cruéis.

Mal pensei em fugir e logo vieram os demônios fardados com suas armas especiais. Fiquei acuada. Se fosse capturada não sabia o que seria de mim. Será que seria assassinada bruta e covardemente, sem direito a defesa? Ou teria um destino pior? Onde seria capturada e devolvida para o inferno fora da muralha.

Armei minha posição de ataque. Eles tremeram — senti isso — pois esperavam ansiosos um bote meu. Desde Gêneses, sempre esperam o pior da minha espécie; por isso tão sou amaldiçoada. Não se conformam pelo fato de um antepassado meu têlos induzidos a comer uma fruta proibida. Vovó nos contava que eles foram expulsos de sua primeira casa,

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sob espadadas de fogo dos guardiões alados do Éden perdido. Desde então juraram vingança eterna.

Já nós, perdemos tudo. Nossos quatro membros como os demônios ainda possuem. Dois pares de asas. A capacidade de falar com fluência todas as línguas do reino animal, inclusive as dos demônios. E, nossa saliva que era curativa, em alguns casos foi convertida em peçonha venenosa. Hoje, somos obrigados a rastejar sobre nossos ventres e ter fama de traidora dentro da Criação.

Percebi que estava cercada. Um deles, com certeza, iria me distrair para os outros atuarem mais tranquilos. Olhei de canto de olho, sem mover a cabeça, mantendo-a imponente, erguida com toda dignidade de minha linhagem. Vi dois deles, um de cada lado, calculando suas ações sórdidas, provocariam o movimento inicial para que eu cometesse um erro em seguida.

Por um instante, meu olho viu aquele quadrado mágico; tão magnífico. Estava tão quente e nem sinal de chuva. Também o ápice da situação ajudava a esquentar nossos ânimos.

Distrai-me. Desejei mergulhar de novo para sufocar todo o calorão. Esquecer da vida. Esquecer que nada mais importante existe fora daquelas águas. Mesmo que pela última vez nessa vida, supliquei a Deus: “Ah, como eu queria me refestelar naquele oásis tão convidativo!”.

Então, eles se aproveitaram desse instante de fraqueza para triunfarem sobre mim. Facilmente, fui dominada. Puseram-me em cativeiro provisório. Triste vi, aquela água gostosa ficar mais distante. Fui conduzida para uma penitenciaria de animais, que eles tanto insistem em chamar de santuário. Reservaram-me um lugar de destaque para as fotos. Talvez amanhã divida espaço nas manchetes com mais notícias queimadas do Pantanal?

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