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Reinaldo da Silva Fernandes

Reinaldo da Silva Fernandes

Brumadinho/MG

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Caixa de chocolates

A ocasião era perfeita. Vinte e quatro de dezembro, economia pungente, o “american way of life” impregnado nas veias, loja grande, shopping grande, cidade grande.

Escolheu as Americanas do BH Shopping. Não que tivesse preferência por ianques – que, a bem da verdade, nem sabia o que ou quem eram – mas porque ali estavam alguns de seus sonhos de consumo: um tênis da Nike, ipod da Apple e uma caixa de chocolates da Garoto. Sabia também que teria que segurar seu ímpeto: ou ficava com a Nike, ou ficava com a Apple ou ficava com a Garoto. Com os três não ia ter jeito.

Saiu do Morro do Papagaio, rumou para a Nossa Senhora do Carmo, tomou o 8106, subiu em direção à BR 356. A tarde de sábado anunciava o confronto entre o camarão grelhado e o arroz com ovo; os apartamentos de três milhões do Belvedere e o barraco do beco 2; o exagero e a privação.

Foi sozinho, para não levantar suspeitas. Como se fosse possível que um menino com pele da cor da sua não levantasse suspeitas.

Ao passar pela entrada principal, olhou o crachá do segurança, cumprimentando:

“Boa tarde, senhor Geraldo!”

“Boa tarde, menino!”, respondeu o segurança entre surpreso e feliz.

Não tinha posses mas era bom conhecedor da alma humana e aprendera a manejar bem as palavras.

Uma trombadinha aqui, uma ali, foi enveredando pela loja. Seu destino: a seção de guloseimas. Decidira pelo chocolate. O ipod e o tênis ficariam para uma próxima oportunidade. ― Por favor, onde fica a seção de doces?, simpático para uma promotora de vendas. ― No fundo da loja, retribuiu da mesma forma. ― Muito obrigado, sorriu.

Ali também a confusão reinava e a disputa pelas últimas caixas era acirrada. “Licença, por favor”, aqui; “Com licença”, ali, foi ganhando terreno. E garantiu a sua.

Passou ao largo das intermináveis filas dos caixas e riu. Riso gostoso de malandro.

Seguiu para a saída naturalmente, feito cidadão que cumpriu seu dever. Talvez não soubesse porque sua testa franziu levemente quando ouviu o: ― Biiiii! Biiiii! Biiiii!

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E em menos de dez segundos estava cercado por cinco seguranças. Mais cinco – segundos – e uma pequena multidão se formou. Houve até uma, moça assim de uns 30 anos, que largou a fila do caixa para ir ver o que estava acontecendo (esperara 35 minutos e era a próxima a ser atendida).

Um segurança, homem que aparentava ter uns cinquenta anos, e que parecia ser o chefe dos guardiões, se antecipou. Segurou firme um braço: ― Querendo sair sem pagar, rapazinho?

Não tinha como pagar, queria levar o chocolate, não queria ser pego. Pensou rápido. O jeito era apelar: ― Boa tarde, senhor... Agenor (olhando, primeiro, para o peito e, depois, nos olhos). Eu tenho nome, é Máicon Jhequisson da Silva. Talvez se eu fosse branco o senhor me chamasse pelo meu nome (tomando uma expressão séria). Mas, tudo bem! (com uma firmeza na voz que seu Agenor começou a perder a altivez inicial). Quer dizer que os senhores (olhando ao redor, como quem faz palestra para grande público) acham que eu estou roubando... Um menino negro, que não usa roupa de grife, só pode estar roubando (e a caixa firme debaixo de braço). É isso (levantando a voz): o preto é sempre suspeito! É assim desde 1500! Sempre foi assim! A discriminação racial. A discriminação racial (repetindo para ser ouvido por um grupo cada vez maior de clientes que abandonaram as filas e se juntaram ali e o ouvem, calados, espantados). Primeiro foi a escravidão, o açoite! Marcados a ferro e a fogo! Depois veio a falsa abolição. Abolição sem terra? Sem emprego? (aumentou o tom de indignação na voz e lembrou-se das aulas da professora Adélia) O preconceito continua (seu Agenor ouvindo, entre frustrado e atônito, já afrouxou a mão). O maldito racismo.

Uns que acabaram de chegar veem apenas as pessoas, seu Agenor e os outros seguranças ao lado do menino, não entendem bem; porém aumenta o número dos que estão acenando positivamente com a cabeça. ― Querem me pegar para bode expiatório? (agora o menino até arrancou uma ou duas palmas). Então, tudo bem! Mas até quando? (agora olhando para os clientes). Até quando vamos aceitar o racismo?

E se calou. Propositalmente. Por dois segundos. Voltou à carga: ― Quer me prender, seu Agenor! (olhando para o coitado do segurança que já está dando a batalha por perdida). Vamos lá, prenda o preto, o ladrão, o safado! (e esticou as duas mãos - claro, sem deixar a caixa escapar de debaixo do braço! -, num gesto simbólico, o que faltava para ganhar de vez a plateia.) ― Solta ele, seu Agenor! Solta ele!, gritou o primeiro. ― Fora com o preconceito!, disse outro. ― É véspera de natal, gente, falou chorosa uma senhora de certa idade.

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― Viva o aborto! Abaixo o racismo! – bradou uma mocinha com piercing no nariz e na língua. ― Racismo, não! ― Viva a liberdade! ― Negro também é gente!, quase chorando uma menina – negra -, segurando a emocionada mão do pai. ― Lula livre!, um outro vestindo uma camisa vermelha do MST, não se sabe de onde apareceu.

Agora, ao ouvir cada vez mais vozes e gritos, foi seu Agenor que pensou rápido: ― Vai embora, menino... me desculpe: “Vai embora, ‘Máicon’!”.

E ele foi. Com sua caixa de chocolates debaixo do braço. Não sem, antes, olhar para as gentes do shopping, levantar a mão que estava livre da caixa e proferir suas últimas palavras: ―“Obrigado, meu povo!”

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