MACONDO revista literária
N.º 4 TRIMESTRAL nov dez jan 2012
ENTREVISTA EXCLUSIVA COM menalton braff
apresenta alberto bresciani, reynaldo bessa, arrudA, carolina mello, wender montenegro, germano viana xavier, léo tavares, ari marinho bueno, jorge colaço, danilo lovisi, christian botelho borges, otávio campos, cristina desouza, aline veras, adriano scandolara, bruna maria, heloisa campos freire, eleazar venancio carrias, luís roberto amabile, carlos gomes, leonardo chioda, ani almeida, lidiane lobo, pê sousa, jjLeandro, ronie von rosa martins, randolfo dos santos jr.
POESIA MINICONTO RESENHA BIBLIOPHILIA CONTO ARTIGO HAICAI CRÔNICA
expediente
EDITORES
francisco mariani casadore marcos mariani casadore COLABORADORES
os autores dos textos publicados na presente edilçao estão listados, por ordem alfabética, nas páginas finais da revista. IMAGENS CAPA:
“dragão”, de mauricio nascimento; disponível em “domínio público”. ENTREVISTA, RESENHA E BIBLIOPHILIA: google imagens CONTOS: “áfrica” de mauricio nascimento; disponível em “domínio público”. não nos responsabilizamos por ideias e demais conceitos expostos pelos autores, bem como pela autoria dos textos. APOIO À PAGINAÇÃO
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A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste. Graciliano Ramos
editorial A um passo da edição de aniversário, insistimos em usar esse espaço para expressar o quão gratificante é conceber mais um número da Macondo. Em uma curta trajetória de erros, acertos e, sobretudo, a vontade de oferecer uma publicação com um conteúdo que interesse a cada um de vocês, não nos esquivamos, todavia, do desafio de lidar com a crescente quantidade de material
que recebemos. Entre tantos poetas e contistas que temos o prazer de conhecer, imaginem a nossa surpresa ao nos depararmos com a colaboração de arrudA, ou mesmo a felicidade, embora turvada pelo senso de responsabilidade, em entrevistar o escritor Menalton Braff - que se prepara para lançar seu novo romance, Tapete de silêncio, logo após o carnaval. No mais: as duas se-
ções que inauguramos na edição passada continuam; e como um presente que chega adiantado, trazemos outras duas para o quarto número. Crônicas, com a participação de Pê Sousa e Jorge Colaço e Artigo, com um interessante trabalho de Aline Veras acerca das relações entre jornalismo e literatura na nossa imprensa. Com a finalidade de valorizar a produção cultural do nosso país, também, selecio-
POESIA
ENTREVISTA
ESPAÇO VIRTUAL
página 6
página 32
página 58
HAICAI
CONTO
BIBLIOPHILIA
página 27
página 40
página 59
namos alguns trabalhos de Mauricio Nascimento, disponíveis no Domínio Público, para ilustração da capa e dos contos. Para finalizar, cabe ainda dizer que o grande desafio da presente edição foi o de não extrapolar - em muito - o número de trabalhos publicados. O que consiste em afirmar, com outras palavras, que o aumento de material recebido é proporcional ao da qualidade dos mes-
mos. Por vezes, ficamos tentados a abrir uma exceção e publicar “só mais um” conto, “só mais uma” poesia... Os critérios para seleção, por mais esforços que se faça, escondem consigo algum traço de subjetividade, que tentamos em vão rechaçar. Esperamos, então, que este não tenha se sobreposto. Obrigado a todos que enviaram versos, narrativas, resenhas e cia (i) limitada. Relativizamos o
conceito de revista “independente”, já que dependemos integralmente das colaborações que recebemos. Portanto, continuem participando - seja em forma de colaboração, de divulgação ou enviando suas sugestões e críticas e boa leitura!
ARTIGO
CRÔNICA
COLABORA
página 61
página 75
DORES
RESENHA
MINICONTO
página 83
página 70
página 79
poesia
poema simples enquanto o livro mudo sobre a mesa guarda tua casa e teu corpo sobre a cama vela teu sangue desconheço todas as palavras num sono da alma que já dura muitos anos mas agora bato o cadeado e escorro num filete sob a porta
blue day ficou o dito pelo não dito poema não-sentido sem revisão ortográfica sobrou um antidesejo para a dor sem antídoto um copo d’água e a cotidiana paisagem
lidiane lobo
quarta edição
7
poesia
poema I pássaro cego que saudade dos telhados de ouro preto pássaro cego de alumínio pássaro cego um deus narciso penteando lá de cima nossos enganos de aço inox
8
MACONDO revista literária
poema II faz de conta que é domingo e o faz de conta já não cabe faz um pouso de emergência nem todo pouso é tão suave faz frio no hemisfério norte a essa altura tanto faz faz do vazio geografia faz de conta que é poesia
quarta edição
9
poesia
ESCUTO OS NAVIOS do porto de rotterdam e os ventos do norte da áfrica antes do dia escuto a manhã e o sono intranquilo das galáxias o coração nas têmporas o tempo se ajustando a cada despedida a rotação da terra nas rótulas dos joelhos uma palavra nascendo o alfabeto em flores e as flores em silêncio perfumando os dias e as noites sem pedir explicações
arrudA
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despercebidos O que se passa nesses filmes modernos de amor É como uma ciranda: encontro casual depois um mal entendido Pra justificar o final estrombótico com perseguições em aeroportos e o the end (Logo após um beijo de plástico) Confesso que ando mesmo sensível aos amores despercebidos nas vias e janelas da cidade nas despedidas de rodoviária Sem trilha sonora Mas com falta sentida Em plano-sequencia Sem exposição de motivos De certo sabem estes amantes Nas plataformas de embarque Que aquele instante é sem reprise Que cada despedida é um ensaio pra morte
quarta edição 11
poesia
bolão de fim do mundo Nem asteróide Nem peste Ou modernas glaciações tribunais e júris caíram em descrença bomba é sempre uma boa aposta mas guardaram bem o botão Nesses tempos de ciborgues assepsia euforia distração ignoro as previsões do tempo aposto em tédio náusea plenitude e solidão
randolfo dos santos jr.
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verso em metro Verto verso Sem metro Porque não sei Medir as palavras. Mas meço O meu decoro Nos versos Que digo ao mundo. As palavras Nem sempre são limpas Mas meu poema Nunca é imundo.
sigilo Seixos postos Lado a lado na rua Guardam os Passos do passado. Sabem da vida de todos Mas se mantêm calados.
jjleandro quarta edição 13
poesia
é preciso ouvir: o deslizar das nuvens sonhar: fora da cama dar fim: ao carnaval sentir: o cheiro das casas alheias conferir: até sete o número de anões de jardim reparar: que as estrelas se multiplicam por timidez perceber: que a única pretensão do fogo é subir ouvir: as gotas de chuva baterem palmas umas pras outras haver: vagalumes cegos iluminando de acasos a escuridão escutar: o silêncio dos sonhos ao caírem no chão arrancar: com leveza dedicatórias de livros não ser: um túmulo anônimo navegar: até desconhecer-se
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nível de água: extra baixo O som da máquina de lavar invadiu meu sono no meio da tarde: lá, minhas vontades eram centrifugadas, até escoarem, cinzas e os sonhos, sacudidos até desmancharem, macios
mesa de centro anjos mortos, de mármore olhando pra cima desacreditados no próprio céu
danilo lovisi
quarta edição 15
poesia
delírios do verbo OU ARAPUCAS DE PEGAR MANOEL
(Para o poeta Manoel de Barros) 1. As manhãs me imensam como em Ungaretti; arroios me gorjeiam de esplendor lá, onde as árvores se garçam e o sol brinca de arvorecer. 2. A palavra cansanção tem ardimentos e o menino descalço nem aí pois lhe escuda a voz dos passarinhos; esse moleque arteiro estica o sol carrega o cenho do peru no grito. 3. Bicho danado é maracujá: engole a voz das ateiras; as mangueiras roubam o sol do chão e o pé de mastruz enverdece os ossos da avó. 4. Mosca de manga se agiganta no amarelo como Van Gogh; borboletas adoçam a aridez dos cactos e o sanhaçu assusta os mamoeiros. 16 MACONDO revista literária
5. Nas mãos do mar a linha do horizonte tem cerol lá, a pipa do céu cai mais depressa quando as margens da tarde me anoitecem.
poeminha colhido de um sonho de adélia O sono me acorda para dentro onde os gerânios florescem acendendo as manhãs nos olhos da menina de vestido florido e flores no sorriso. O teu cabelo limpo, Adélia, refletia vermelhos mas um vermelho assim, possível apenas nas veias de um poema e nos sonhos em chamas. Eu sangrei uma cor, Adélia; eu sonhei.
quarta edição 17
poesia
sombra de sal e silêncio Não dizer palavra... Deixar o silêncio plantar sua nódoa na cinza dos olhos. E uma sombra há de vir, insustentável, e despojada de dor e remorso e cansaço trará numa das mãos linho novo, alfazema; na outra, conchas de praia deserta, frutos da estação, e ainda sem dizer palavra acenderá os cílios com o sal das águas de uma outra concha, essa mão que rasgará silêncios, tatuando na pele uma palavra gasta.
wender montenegro
18 MACONDO revista literária
dança simples palavra não dita esconde-se num poema numa dança que mansa pinta um quadro sem tinta
fuga a fuga passa por mim a minha espera cansada me rendo ouço a música o vento e de súbito só resta a terra
cristina desouza
quarta edição 19
poesia
o abridor, a luz Agora que estás (tu o sentes) só, se te revelam novas regras de não-destino. Jamais terás uma adega, mas comprarás um abridor. Tu o usarás até que o amarelo cristalino no copo seja a única luz nos teus olhos. A televisão será apenas um elemento da decoração auto-imposta. Revistas e roupas espalhadas negarão que há um vaso à porta, reclamando visitas. E o prédio não entenderá o que Van Morrison tem a ver com Daft Punk. Não serás nunca poeta. mas amarás tuas filhas. Agora que estás só, pouco importa falte água: só precisas de luz.
eleazar venancio carrias
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carteado de pilar ternera perfila as cartas na mesa velha o moinho de fubá criando o mundo amor de puta fuxicos e terremotos no ventre desabre as pernas em flor de plástico vem o gelo casa aos pedaços igual paixão de adolescente sem Aureliano continua lendo naipes de perfume barato pois feiticeira do fatídico o gelo encarnado nas rosas do jarro puta de amor cem anos de gordura fecha o baralho.
leonardo chioda quarta edição 21
poesia
a morte do camponês Seus ossos nome arado não restaram, gotas de suor pingando de rosto em branco somente em pontos cegos. Talvez tenha sido levado nas vagas de uma revolta mas na falta de rugas um olho retorcido qualquer traço é aceito como desenhar com graveto na areia. De resto, teve a graça de passar em branco na História.
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um adeus O caminho perdido no mato pedras sem cicatriz de marreta bomba a terra em tremor, o cansaço nos ossos, as pontes ruíram no passo da lenta reconquista das plantas. Obscuros na outra margem, teus acenos têm resposta do vento na folhagem.
adriano scandolara
quarta edição 23
poesia
sem sinaleiro à meia-noite (cenário) Atravesso a rua de mão dupla trânsito agudo e feroz (1ª opção) Volto-me à música que sopra de sua boca e não resisto ao gosto forte dessa pele É fácil crer (2ª opção) Mergulho no vácuo de três mortes e saio sem cortes – visíveis – de seus dentes Do outro lado sempre é passado (3ª opção) Escolho a contramão de meu peito antes que venha a hora de bater o ponto
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Estou limpo (as)cetivamente findo (nota do A.) Só rua e travessia são reais: o personagem em ruínas quando muito se esgota em letras.
presença Melhores os dias quando nos esquecemos (as horas são horas só horas) Vez por outra ainda acontece de vir ao corpo uma voz que fulgura a palavra SOL.
quarta edição 25
poesia
compulsão Uma pena mitológica um enredo de fogo: amputar as minhas mãos a cada amanhecer para que não escrevam seu nome não a moldem – imagem sem forma que todavia assume a minha pele as minhas mãos refeitas no perfume da recusa.
alberto bresciani
26 MACONDO revista literária
haicai
haicai
só restam nuvens nos meus olhos opacos que chovem em vão
atravesso só o canteiro de rosas sou vento em flor
saudades de mim numa noite nublada estrelas sem céu
sou satélite dos girassóis ao vento reluzo ouro
cristina desouza
28 MACONDO revista literária
à borda dos ipês fluxo florido nado a pé
manchados de tarde galhos se avolumam pardais em alarde
da vidraça estilhaçada só o voo da pedra me interessa
ari marinho bueno
quarta edição 29
haicai
Das histórias bem contadas (ao ler Bertold Brecht): Zé contou uma, duas, três vezes; contou e não entendi.
Haicai para Debussy: um sol esticado nas águas anunciando desorizontes
Claras, claras, claras...: em pino, não o sol, mas o artifício da luz.
Sodade: domingo eu penso no teu domingo
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Haicai para quedas: Pulou do telhado, (bicho de sete-cabeças) morreu sete vezes.
germano viana xavier
Horário de Verão: Manhã de sol e cal Prédios se espreguiçam no colo da cidade.
ani almeida
quarta edição 31
entrevista
MENALTON BRAFF
Nテグ CONSIGO MAIS VER A SOCIEDADE DA FORMA SIMPLISTA COMO VIA
entrevista
Já com 18 livros publicados (a maior parte deles, na última década), Menalton Braff é um expoente daquilo que nossa literatura nacional traz de melhor nesses últimos anos. Consagrado enquanto contista e romancista de mão cheia, o autor não só escreve para o público adulto como também passeia pelas prosas infanto-juvenis. Durante muitos anos, lecionou português e literatura para jovens. Nascido em Taquara, no Rio Grande do Sul, passou por lá seus anos de juventude. Militante político, foi obrigado a deixar seu estado natal com o Golpe Militar de 1964; erradicaria-se em São Paulo, onde cursou Letras e deu aulas para o ensino superior, em Literatura Brasileira. Hoje, mora em Serrana, cidade próxima a Ribeirão Preto, na região central do estado. Sob o pseudônimo de Salvador dos Passos, o autor publicaria seus primeiros livros na década de 80: o romance Janela aberta e o livro de contos Na força de mulher. Voltaria a assinar como Menalton Braff 14 anos mais tarde, já em 1999, na ocasião da publicação de À sombra do cipreste - livro de contos que o lançou ao grande público, agraciado com o “Prêmio Jabuti de Melhor Ficção” no ano de 2000. Desde então, o nome de Menalton sempre figurou pelos mais importantes prêmios literários do país: Muralha de Adriano, por exemplo, foi finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura, no ano de 2008, e obteve Menção Honrosa do Prêmio Literario Casa de las Américas (Havana, Cuba). Nestes últimos anos, Menalton publicou Bolero de Ravel e, recentemente, apresenta Tapete de Silêncio (ambos pela Global Editora) este último, com lançamento previsto para o próximo 1º de março. Sem mais delongas, apresentamos aqui um pouco de Menalton Braff a vocês.
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Você se sente mais à vontade escrevendo romances ou contos? Sou por índole mais romancista do que contista. Sinto-me melhor nadando no oceano do que numa piscina. Não desgosto do conto, mas é uma experiência de pouca duração. Prefiro o convívio lento, prolongado, com as personagens, a estrutura, e a linguagem. Entre À Sombra do Cipreste, que completa, em 2012, treze anos, e Tapete de Silêncio, seu último livro recém-escrito, lançado agora pela Global Editora, algo mudou no seu processo de criação e escrita? O quê? Não creio que tenha mudado. O que acontece é uma constante busca e isso implica um olhar mais agudo e mais atento, um trabalho com a linguagem mais intenso, mas o que eu procurava com “À sombra do cipreste” e o que continuo procurando ainda hoje: a
minha inflexão, o meu jeito de fazer literatura. Quais seriam as principais diferenças, para você, entre os escritos de Salvador dos Passos, da década de 1980, e os de Menalton Braff? Posso falar da principal diferença. O Salvador dos Passos foi o “caderno de exercícios” do aluno Menalton. Há certa continuidade entre eles, se bem com um afinamento dos instrumentos. Mas uma diferença é grande: o Salvador era panfletário, ou disso se aproximava. O Menalton deixou de querer salvar o mundo. Minhas inquietações se tornaram mais complexas e não consigo mais ver a sociedade da forma simplista como via. Eu via o homem através de óculos políticos. Agora quero ver o homem primeiro e, se for o caso, até botar os óculos, mas depois. Em 2000, seu livro de contos À Sombra quarta edição 35
entrevista
do Cipreste ganhou o prêmio Jabuti de Melhor Livro de Ficção; este é, ainda, um dos maiores reconhecimentos em forma de premiação do país. O quanto isso influenciou ou modificou sua carreira ulterior de escritor? Eu nem diria que influenciou ou modificou. Melhor seria dizer viabilizou. Na verdade (e esta é a situação existente no Brasil), um autor obscuro, sem que lhe aconteça algo, permanecerá obscuro para sempre. É preciso alguma explosão para que se torne visível. É preciso que um livro se torne um fato noticiável para que apareça. Claro que não é esse o único caminho, mas esse foi o meu caminho.
alguns autores jovens eu consigo acompanhar.
Você é uma pessoa bastante ligada às redes sociais – mantém um blog constantemente atualizado e interage com seus leitores através da rede. Como sente essa proximidade com os leitores? E, ainda, como vê a relação entre “internet” e “literatura”? Me parece que estas mídias novas nos ajudam. Claro que se deve tomar o cuidado de não substituir o consumo e a produção da literatura pelo verdadeiro voyeurismo a que somos sempre tentados. Procuro me disciplinar, impor-me horários para não cair na cilada. A relação da internet Como você vê a literatura com a literatura, segundo penso, é contemporânea brasileira? Acompanha apenas de divulgação, a possibilidade o lançamento de novos livros, de ir mais longe. Não acredito em uma produções de novos escritores literatura do internetês. O modo de se nacionais? produzir (escrever a lápis em cadernos A literatura não está mal, a não ser pela como fazia o Graciliano, usar uma falta de leitores. Lê-se mais hoje no Olivetti, como fiz boa parte de minha Brasil? Sim, isso é verdade. Mas o que vida, escrever no computador, nada se lê não merece o nome de literatura. disso muda a estrutura mais profunda Na medida do possível acompanho do pensamento). o que se está fazendo, tenho notícias das principais tendências. Tenho Como foi que começou a escrever algumas leituras de obrigação (o que livros de literatura infanto-juvenil? Qual não impede o prazer) e isso não me sua relação com esses escritos, com o permite ler tudo que gostaria. Mas gênero, com o público-alvo...? 36 MACONDO revista literária
As perguntas todas estão relacionadas à mesma resposta. Como professor, que fui, convivia com adolescentes, conhecia suas idiosincrasias, seus valores, suas perplexidades e expectativas. Alguém me desafiou perguntando por que nunca havia escrito para aquele que era meu público imediato, com quem trabalhava todos os dias. A ideia demorou ainda algum tempo germinando. Mas um dia, depois de uma cena vivida, e envolvendo a cena com um conto que me parecia falhado, me ocorreu a vontade de tentar um romance juvenil. E assim me saiu a primeira publicação no gênero. Bem, procuro não fazer muitas concessões, pois acho que literatura juvenil ou infantil são de qualquer forma literatura. Alguns cuidados, entretanto, tenho de tomar. Por exemplo, as questões éticas não podem ser
esquecidas. Quando se fala a um ser em formação, a responsabilidade é outra. Outro cuidado é com a linguagem. Não aderir à linguagem deles, usando gírias, que envelhecem um texto muito cedo, mas também não usar palavras “mortas”, como palor, périplo. Existem maneiras de se dizer isso, com um português mais moderno sem necessidade de ser modernoso. Você é formado em Letras e, durante anos, exerceu a atividade de professor. O Rubens Figueiredo, recentemente, numa entrevista, quando indagado se preferia escrever ou traduzir, respondeu que preferia, na verdade, dar aulas. E você, concilia bem as duas ocupações? Como vê a relação entre escrever e ministrar aulas? Conciliei muito tempo, mas de maneira conflituosa. Na sala de aula somos obrigados a ensinar as normas, pois quarta edição 37
entrevista
pois ninguém rompe com o que não conhece. Na hora de escrever, esquecia as normas e me dedicava às rupturas. Estou convencido de que um escritor que não tenha outra relação com os seres humanos a não ser intermediado por sua escrita, se empobrece. Então, não lastimo o tempo gasto em sala de aula, que poderia parecer um tempo roubado à literatura. Eram experiências de relacionamento humano que, penso eu, de alguma forma me enriqueciam. Mas é claro, sempre preferi escrever. Apesar do parentesco entre as duas atividades que cabem juntas no grande capítulo da comunicação. Fale-nos um pouco sobre alguns projetos futuros seus: novos livros que estão por vir, trabalhos, ideias a serem postas em prática, empreitadas pelo mundo literário... Bem, começo pelos livros futuros: tenho dois livros já editados com contrato vencido, tenho quatro romances inéditos e duas coletâneas de contos esperando a vez. Além disso, continuo antenado ao mundo, e eventualmente surgem temas ou figuras para um conto ou outro, e de repente pode pintar assunto para um novo romance. Contribuo periodicamente com as revistas 38 MACONDO revista literária
eletrônicas Bula e Carta Capital, aceito convites para eventos literários (palestras, mesas, salões de ideias e outros), tenho visitado escolas que adotaram livros meus para conversar com os alunos, viajo com bastante frequência. Mantenho meu blog e meu facebook, mais ou menos atualizados, leio quanto posso, às vezes me pedem um prefácio, uma orelha, enfim, atividade é o que não me falta. Meu próximo livro, por minha vontade, será o romance O casarão da rua do Rosário. Gosto muito do resultado. Para finalizar, como já é hábito daqui, gostaríamos de pedir que você deixasse algumas palavras aos escritores que lêem a revista e que possuem um interesse muito próprio ligado ao “ler” e ao “fazer” literatura; muitas vezes, estão começando agora a esboçar primeiros escritos ou procurar um espaço para divulgação de trabalhos. A primeira coisa que se pode dizer a um futuro escritor é que ninguém se torna escritor sem que tenha paixão pela leitura. Mas não uma leitura aleatória, como quem diz “Leio tudo que me cai nas mãos.” Sem essa! A quantidade de livros é ilimitada e nosso tempo é limitadíssimo. É preciso
ser seletivo. Críticos, professores, resenhistas, escritores experientes devem ser ouvidos. Depois de produzir, mostrar. Há blogs onde se pode expor o que se produz, mas há os amigos ligados ao assunto, que também deve ler e, por que não, até os familiares devem ler. E participar de concursos, isso é imperioso. Quando se participa de um concurso, pelo menos três leitores se consegue. E depois, ou antes de tudo, se é o caso de poesia, ler Cartas a um jovem poeta, de Rilke. É a bíblia do poeta.
» 3 LIVROS INESQUECÍVEIS PARA O AUTOR: * Dom Casmurro - Machado de Assis * O lustre - Clarice Lispector * Em busca do tempo perdido - Marcel Proust As capas da página 37 referem-se, respectivamente, aos livros Tapete de silêncio (romance com lançamento programado para o início de março), A muralha de Adriano e À sombra do cipreste. FOTOGRAFIAS: google imagens quarta edição 39
contos
a velha balada do ano novo Toda a ansiedade, afetação, todos os barulhos, expectativas tinham cessado. Até que não foi tão difícil. Pensou. Muito antes chegou a pensar que não iria aguentar, - estava ficando fraco? mas é que quando o lance veio, outras coisas também foram acontecendo e tudo foi se misturando e aí ele já não sabia mais o que era o que. Só por um breve momento saiu do ritmo dos outros e puxou-se prum canto, mas logo viu que isso não o levaria a lugar nenhum, então cerrou os olhos e deixou a coisa ir. Não lhe servia de nada. Pensou de novo. Depois uma coisa começou a vir pelo corredor: uma coisa que na verdade eram outras coisas que saíam logo que os pingos da chuva tocavam as pedras envelhecidas do jardim. Isso veio com tudo, mas aí, alguém, como um personagem que sai de um filme e entra em outro, num corte bruto - assim como são os cortes da tristeza ou da alegria - apareceu com uma taça erguida em sua direção e lhe disse: feliz ano novo. Ele com um sorriso saído de uma gaveta cheirando a ontens e que um dia foram amanhãs e hojes olhou
meio de lado, ergueu melancolicamente sua taça e disse: feliz ano novo, depois tomou um gole e ficou tentando lavar a mentira entre os dentes. Juntou-se ao restante. Não exatamente porque quis. Apenas fora levado como se alguém invisível lhe puxasse pelo braço. Todos estavam ali mesmo? Traziam tantos sorrisos e esperanças que era difícil de acreditar. Quem tivesse algo de ruim pra contar que se retirasse. Era isso? No meio do frisson, sem querer, pensou numa frase: “quando a porta da casa em que você vive se escancara e alguém que você gosta muito sai definitivamente por ela, até as portas das casas que já não mais existem também se escancaram”. Ele lembrou-se da porta aberta e do largo silêncio que ficou. Ainda soava em seu ouvido como um zumbido saído de uma concha do mar. Tinha que sair disso, portanto, olhou pro outro lado como a tentar vasculhar outra caixa de pensamentos. A chuva fina embaçava as janelas e ele pensou que elas também poderiam usar óculos. Ao pensar nisso, rio, rio de si mesmo. Isso seria um bom sinal? Talvez, talvez. Chegaram a casa com a sensação de que tinham dado o melhor de cada um. Pelo menos foi o que sentiu. Todos os anos a mesmíssima coisa. Ele já não sabia se as pessoas não queriam quarta edição 41
contos
mudar ou se existia algo mais além que as impedia de fazê-lo. Estava muito cansado pra pensar em perguntas desse tipo, então mergulhou numa cama que havia sido posta especialmente pra ele. Sentiu que a noite lá fora começava a colar na noite dentro dele. O arpão estava lá. Podia senti-lo mais presente que uma de suas pernas ou braços, ou até mesmo mais que sua cabeça. Fechou os olhos como se entrasse em um barco. Quilhas cortando o escuro líquido. Isso seria como morrer? Perguntou-se. Perguntou-se também quanto daquele escuro significava passado, presente ou talvez futuro. Despertou com alguém lhe tirando os sapatos. Era um negro tão nobre quanto um rei. Um rei negro lhe desatava os sapatos como se lhe acariciasse os cabelos, como se lhe protegesse do frio, como se lhe secasse todas as lágrimas. O filho dele, um pequenino e sorridente pingente, ao seu lado, lhe abraçava como se o conhecesse de outras existências. Quem sabe? Só uma criança consegue ser risonhamente profunda. Seus olhos eram como sóis e sua voz lhe chegava como ventos balançando roupas num varal que ele havia contemplado em algum momento na caixinha da sua infância. Aquela criança lhe conhecia como ninguém. Ela se enroscou nele e logo adorme42 MACONDO revista literária
ceu. É isso, as crianças conhecem a dor, mas, assim como fazem com seus brinquedos, as deixam de lado a qualquer momento. Pensando nisso, olhando-a dormir e vendo o rei negro pôr seus sapatos juntinhos num canto e desaparecer com um “boa-noite” num tom que só os grandes amigos conseguem atingir, sentiu o barco parando, estalando, se partindo e, por fim, afundando no escuro profundo e macio. Tão macio que lhe arranhava as pálpebras. Enquanto seus olhos ardiam, um silêncio foi-se tomando forma. Silêncio negro onde coisas nunca sabidas acontecem. Acordou mais cedo. Sabia que logo as crianças romperiam pela sala como corcéis. Em silêncio, desfez a cama. Pensou em deixar um bilhete, mas também pensou que isso já não se usava mais. Então, escreveu algumas palavras de agradecimentos num papel invisível do seu pensamento e as deixou sob uma xícara. Saiu de fininho e fechou a porta. O ano velho, talvez como uma forma de protesto, deixara uma chuva fina para o ano novo. Ela caía sobre ele como um carinho úmido, como uma bênção. As ruas estavam vazias. Só ele e a chuva se movimentavam. Pensou em pegar um táxi, mas queria andar, queria aproveitar a ociosidade das ruas. Precisava mexer tudo o que pulsava nele. Pôs uma
música no ipod. Na mosca. Pensou. Foi indo. Lembrou-se do arpão. Não queria pensar nele. Ainda estaria lá? Claro! Essas coisas não desaparecem assim. Mas não ia pensar nele agora. No momento, as únicas coisas que realmente lhe interessavam, eram: a chuva fina, a reverência das ruas e uma canção no ipod, que lhe dizia: “Minha moeda já está girando no ar e que seja o que tiver que ser”.
reynaldo bessa
bibliomania sempre quis ter uma livraria podia até ser um sebo em algum lugar qualquer longe perto do outro lado do mar do mundo desde que pudesse estar entremeada cercada envolvida por livros e ao mesmo tempo ganhando a vida faturando o seu cacau puro sonho impossível sempre duranga sempre correndo atrás sempre sempre pelo menos agora tinha conseguido descolar esse trabalho como auxiliar de vendas na mega livraria que abrira no bairro pertinho no final do leblon ganhava uma merreca mas o prazer de manusear brochuras e encadernações o dia inteiro desempacotando-as folheando-as dispondo-as tema a tema nas estantes e prateleiras era quase sexual Ah gostosura no começo tudo bem conseguia mesmo fingir indiferença olhar cada livro como meros objetos sem espanto surpresa cara feliz cara triste de desprezo como se fossem embalagens de cereais mas aos poucos foi perdendo a comquarta edição 43
contos
postura se traindo foi demorando mais cliente chefe a cada manuseio e as folheadas eram nada singelas só fruição nem nada ninguém puro perigo a qualquer momento podia levar um esporro da gerente podia até dançar perder tudo que loucura tinha que segurar a onda deixar passar entre os dedos simplesmente aqueles fragmentos do discurso amoroso aquele corpo amado tchekov baudrillard machado uns poemas do dillan haroldo drummond gullar as super cordas ai que difícil viver que perigoso por que não nascera ela um simples vaga-lume ao invés ali tendo que desaprender aquelas sensibilidades todas que levara anos cultivando como se cultivam orquídeas
bem que tentou até se empertigou linda vendedora com sorriso num canto do salão mas nem durou porque desabou um toró daqueles brabos e tudo se esvaziou horas a fio ninguém pra comprar olhar se informar foi dando aflição vontade de cair dentro se enredar com helenas ofélias baudolinos margaridas se esparramou nas almofadas cercada de volumes o tempo foi deixando de existir parece foi virando pasta a música da gal sumiu da voz também virando pasta gerente objetos coisas se desintegrando só capas e miolos e lombadas soltas fora de seus nichos ao léu como tijolos de uma nova construção
por demais amáveis
terna tentação.
se fosse descoberta pronto estava frita gostar de livros tudo bem era até conveniente um plus quase um luxo desde que doucement de leve sem temperamentos não assim apaixonada a ponto de se abstrair de tudo em volta entrar no túnel viajar feito alice na intemperança poética na divagação filosófica na urdidura mirabolante chesterton fonseca hammet sem ouvir telefone apelo de 44 MACONDO revista literária
heloisa campos freire
moby Abriu um olho-claridade, brilho, luz-piscou uma, duas-três, várias vezes ligou e desligou o mundo. O outro. Aberta as janelas, fronteiras entre o sono e o despertar, talvez entre a morte e a vida, pensou... (ultimamente pensava demais.) Precisava levantar- “levanta filho da puta, levanta vagabundo.” – ouvia os quase inaudíveis insultos que o cérebro – entidade funcionário público – gritava. O corpanzil velho gordo e suado lascivamente afundado qual Titanic ou Pequod em um mar de cobertas também velhas e também suadas. Girou os olhos pelo quarto, como fazia sempre; examinava o local-cela-quarto-prisão... grades? No chão entreaberto... Moby Dick – sonhara estar preso no mortal arpão de Ahab; Baleia, Moby como era chamado – a baleia era branca; ele era a própria noite. ...o zunido... Sempre o zunido daquela miserável... Um dia a pegaria. Barulho lá fora. Valia a pena sair? Na superfície o Pequod o espreitava. Sentia o seu suor, seu odor de negro fujão; de escravo. “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, quis cuspir no
chão. Achou melhor não. Dane-se o Pessoa. Tão louco que seu duplo era dobrado. Louco de merda. “Pelo menos eu sei quem sou, sei o que faço: Eu sou........... faço.........” Bobagens. A sombra do Pequod estava quase sobre ele. Piscou os olhos. Mergulhar mais fundo. O mar era seu território, seu universo. A mulher gritava para que não esquecesse a chave... “A chave! A chave!” e ele em desespero se apalpava. Bolsos do casaco, da camisa, da calça... “A chave! A chave!” “Levante, levante” implorava o cérebro; mas o corpanzil sorria constrangido na sua incapacidade de produzir ação. “Desculpe... respondiam todos os músculos, todos os nervos-neurônios–veias tudo. Todo o organismo em sussurro, depois lamentos depois em berros gritavam-berravam-ganiam-gemiam-murmuravam. Procurou pelo quarto – sempre o silêncio, abraço profundo; forte e sufocante como o da mãe “Não vá se sujar meu filho... não vá se sujar meu filho...” o perfume adocicado e enjoativo lhe invadindo as narinas e nauseando-o. A tentativa desesperada de fugir dos tentáculos maternos... “Não vá se sujar meu filho...” Fuga! Rua! quarta edição 45
contos
Corria livre o sorriso fácil riscado na face gordinha e rosada. “Brincar, brincar, brincar” lhe ordenava a alma infantil, e era a mesma alminha que se encolhia tal qual o corpo, assustado e humilhado quando os meninos da vizinhança o colocavam na roda e o chamavam de baleia, “Moby Dick!”, Moby Dick!” Chorar? Não. Quando o pai lhe encontrava chorando batia com violência no seu rosto “Home não chora bundão! Home não chora!” E ele, a baleia, engolia as golfadas de lágrimas em proporções desumanas. Na escola era o centro das atenções; as meninas riam e chamavam-no de Bolo fofo, A baleia sempre fugindo das ameaças. Fundo mergulhava. E o pai? Ausência presente. Presente indiferença. Vazio. Poltrona vazia, garrafa vazia. Uma lembrança... Vaga lembrança... A mãe? O abraço tentacular tão indiferente quanto à indiferença paterna “não vá se sujar meu filho, não vá.....” O arpão rasgando o mar. As lágrimas, as lembranças... Ahab. Vários Ahabs insanos em seu encalço. Afundar...afundar. Cada vez mais afundar. 46 MACONDO revista literária
A mãe-perfume Perfume-amante. Chances de amor? Sim, tivera a chance de ser normal. ( O que é ser normal?) Ela até que gostava do cetáceo, mas não tinha condições de suportar a pilhéria da marujada: “Não dá mais Moby, não dá mais.” “Por que fulana... por quê? Por quê? O coro da turba surgia em uníssono vociferando: “Gordo, Gordo!” Nos ouvidos as mãos, tampões exatos na exatidão da dor. Chorar? Não, Moby jamais chorava – o pai não deixava – Moby só mergulhava. Sempre o mergulho. Fugia incessante do arpão, para o arpão... Ar... Pra que serve o ar se há a imensa e delirante dor; pra que ar se o arpão da infelicidade lhe atravessa as costas numa gargalhada horrenda. A cama-mar- acamar- acalmar... Dor!Dor!Dor! Ardor e febre. Suor. O corpo se despede enorme. Abandono. Imensa nódoa escarlate que tinge a água e sufoca até Ahab. Os olhos – longe a baleia, na superfície arrasta para o inferno o navio, a fúria e a intolerância.
Então chegaram calmos, quase sorriam – os carcereiros-enfermeiros-amigos-sombras-marujos...sonhos. “O gordo foi pro saco.” “É” “Pois é.” O cérebro ativa a última luz... “Suicídio?” “Desde que nasceu.” Sorriu o outro. “É.” Parados e abertos os olhos. A visão. Ahab. Dentes arreganhados, toda a tripulação, todos os meninos, a mãe, o pai, a amante – o arpão. O corpo. Corpanzil de graxa, baleia imensa negra-branco cetáceo. Morte. Morte? Sim, por que não, só mais um grande mergulho... “Ta morto mesmo?” “Não sei...” O salto. O berro! Joga-se! A gordura imensa o peso intenso sobre os olhos claros os olhos parvos, o pânico definido pela indefinível morte. Sufocados-esmagados-triturados... Apagada a fornalha fecha-se o livro os olhos fecham. Mais um mergulho.
Encontrariam no outro dia dois enfermeiros esmagados pelo paciente do quarto 56. A vida... e a morte também podem ser ridículas. Não havia nenhum Ismael para escapar ao naufrágio.
ronie von rosa martins
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contos
um dia contaremos aos nossos filhos Um dia contaremos aos nossos filhos o que fazíamos com as portas trancadas. Contaremos o que fizemos das portas trancadas e o que elas fizeram conosco. Pois é, o que elas fizeram conosco? Teremos que saber para um dia contarmos aos nosso filhos. As portas continuam trancadas e de que lado você está? Um dia contaremos aos nossos filhos que você não me quis deixar ver o seu vestido para não sujá-lo e o trancou no guarda-roupa. Eu nunca vi o seu vestido. Eu nunca soube se você usou o seu vestido. Ele deve estar trancado. As portas continuam trancadas e de que lado você está? É você que está dentro do guarda-roupa ou é o vestido? Um dia nossos filhos abrirão a porta e te verão com o vestido, dentro do guarda-roupa. É lá que você está. Eu nunca te vi. Teremos de contar aos nosso filhos que você nunca me permitiu que te visse, para não te sujar. Afinal, de que lado você está? Nós nunca lutamos do mesmo lado, meu bem. Seus filhos saberão disso? Eu sempre lutei, sempre fui um 48 MACONDO revista literária
guerrilheiro, você sempre disse. Um dia contaremos aos nossos filhos que eu sempre fui um guerrilheiro? Teremos de contar a eles que foi a guerrilha que me fez fugir. Não foi covardia, apesar de você sempre ter jogado isso na minha cara. Eu tive de ir, me perder nas minhas ideologias, para permitir que você ficasse trancada no guarda-roupa experimentando seu vestido. Foi a guerra que me trancou. Foi você quem trancou a porta quando eu saí. Foi você quem me trancou na rua quando eu tive de lutar. Um dia contaremos aos nossos filhos que eu tive de lutar. Quando lutamos, temos de abrir algumas portas, descobrir algumas pessoas e as colocar para fora. E quantas portas eu tive de arrombar? Você sabe? Eu procurei por diversas vezes seu vestido, mas nunca o encontrei. Eu não colocaria as mãos nele, pois isso sim o sujaria. Eu só queria vê-lo. Você com ele ou só ele sem você. Você se lembra onde o colocou? Você se lembra onde guardou a chave? Não consigo encontrar a minha e eu preciso entrar em casa. Já vai amanhecer, Madalena, e eu preciso entrar em casa. Você já fez o café? Um dia contaremos aos nossos filhos que você dizia que eu era um sentimental e que, quando eu te batia, você ligava pra sua mãe e me fazia te pedir perdão. Eu nunca te bati, isso
tudo é coisa da sua cabeça. Um dia eu vou entrar em casa e contar pros nossos filhos que isso tudo é coisa da sua cabeça, isso tudo é culpa dessa cachaça que você anda tomando. Ah, me desculpe, Madalena, é que eu já bebi demais e não sei onde ando com a cabeça. Contaremos aos nossos filhos, sim, um dia, que você não me deixava beber e trancava as garrafas no armário. A porta do armário continua fechada e onde está a garrafa? Onde eu estou agora? Eu continuo trancado dentro do armário e você no guarda-roupa. Sai daí de dentro, mulher, e abre essa porta, que eu preciso entrar. Daqui a pouco o sol nasce e nossos filhos vão ter que ir pra escola. Um dia contaremos a eles o tanto de tempo que ficamos trancados. E, quando eles reclamarem que não podem sair, culparemos as portas, que continuam trancadas. As portas continuam trancadas e de que lado você está? Um dia. Contaremos aos nossos filhos?
otávio campos
anna, as pessoas boas escutam beethoven A gente ia fugir pra Cancun pra ficar tomando mojitos ao pôr-do-sol. Aquela coisa de silhuetas contra o laranja, sabe? E gaivotas. Queríamos uma centena delas. Corações na areia, iniciais, quartos de hotel bagunçados e cafés da manhã às duas da tarde. Toda a cafonice vital e merecida que nos incutiram no espírito como necessidade de sobrevivência. Duas contra o mundo, Thelma e Louise, Batman e Robin, Quixote e Sancho. Fiéis escudeiras da sanidade –e da loucura- uma da outra. Citações bêbadas de Camus a Friends, piadas internas e risadas eternas diante das caras pasmas dos outros. Os outros, tão distantes, Lia. Sempre ineficazes, sempre a pedra atirada contra o vidro da estufa. A gente obrigava a vida a ser feliz, a gente obrigou a vida até onde pôde, e agora é isso. O agora é uma sucessão de horas que transcorrem lentas como aqueles dois filetes de sangue que te enfeitaram os pulsos sobre uma pedra branca de banheiro, darling. Depois disso eu comecei a fazer coisas que duvidava. quarta edição 49
contos
Até rezar eu rezei, e foi com uma raiva fervorosa que ainda não abandonou o meu quarto. Deixo a luminária sempre acesa, Lia. Pra ver de vez em quando a gente dando o dedo pra câmera com Cancun atrás. E também porque passei a ter medo do escuro. Escalpei um coelho, outro dia. Lentamente, vermelho sujando o branco do pelo, o corpo pequeno se debatendo. Pavor naqueles olhos, Lia, eu vi tudo com paciência e enquanto ele me chutava os braços eu ia colocando mais força nas unhas e me arrepiava toda porque sentia que ali eu era Deus. Pânico de ser Ele. Acordei com as mãos cheirando a carne, e até hoje não saiu. Só vai sair quando eu parar de pensar no antes. Mas hoje eu sonhei que me lembrava. Eram cenas nossas que ousavam pingar belezas muito sólidas num cenário hediondo chamado mundo. Era você com meus sapatos de vinil azul dançando qualquer coisa num bar onde ninguém dançava. Eu com meus martinis e cigarros interpretando Garbo para o garçom. E depois os caminhos vazios das madrugadas sob os nossos calcanhares trôpegos e muito próximos um do outro. Quero de volta, Lia, os teus calcanhares. Quero protegê-los de eventuais flechas, quero lançar-me sobre eles quando pressentir as 50 MACONDO revista literária
rasteiras dos homens. Quero ouvir mais uma vez você me ensinando a sentir a música. Anna, as pessoas boas escutam Beethoven, você dizia, com aquele olhar perdido de quando verbalizava idiotices que se pretendiam grandes verdades reveladas em brilhantes sentenças. E eu pensava: os nazistas amavam a Nona, mas não falava em voz alta, só acenava com a cabeça e depois repousava no teu ombro, aprendendo a amar a música e assim, a ser boa também. Deixo a luz do banheiro acesa e começo a fingir que você está lá dentro. Assim, nós conversamos horas e horas e você me conta sobre coisas iluminadas que eu jamais suspeitei que existissem na Moldávia. Você me conta de idéias para possíveis telas e eu deliro dentro das tuas viagens. Improváveis metas, você sempre pensava que iria fazer algo e eu já sabia que nunca faria. Que nunca faríamos, Lia. Me conta os finais dos filmes que eu ainda não vi e quero tanto. Eu deixo. Espera eu dormir, Lia, e quando sair, vá com cuidado: dói demais escutar o barulho dos meus sapatos azuis indo embora com os teus pés dentro.
apocalypse now, please Sei que não foram sacerdotes mesopotâmicos que adivinharam esse meu destino até agora pouco surpreendente. É claro que quando se debruçavam sobre o fogo eles estavam mais ocupados em ver dilúvios, pragas, tremores de terra e colunas de templos a desabar sobre o mar. Civilizações inteiras desaparecendo no cosmos, e as próprias estrelas se modificando lentamente em espetáculos mais sublimes e terríveis que o meu despertar comer dormir numa cidade que ainda não viu catástrofes bíblicas. A única coisa que me remete a essas estrelas é uma certa lentidão evolutiva. Mas não me interessa a evolução física dos homens. Se todos nós ainda temos resquícios de rabo, é das coisas muito particulares que falo; coisas cujas estruturas, se é que existem, me parecem mais complexas e imutáveis do que a matéria que forma os organismos vivos. Hoje vemos o átomo. Queria poder ver os sonhos, os pensamentos, as fantasias. Seria bom poder entender porque me sinto mais eu pela minha vontade de sorriso do que pela visão do meu rosto sorrindo, porque quando eu
choro eu sou mais o meu desconsolo do que uma cara patética a se contorcer e uma voz entrecortada tentando verbalizar o indizível da dor. É fácil demais ser patético através do choro, e o ridículo camufla a beleza que existe nas lágrimas, que é uma beleza que não se pode enxergar. Queria ver como são belas, às vezes, as vontades de choro. Queria saber o nome de um sentimento que me nasceu um dia e ficou até hoje. Descobrir se ele se parece remotamente com alguma coisa chamada amor ou vontade de amor, ou amargura de amor, ou ódio. Uma mão tem cinco dedos, e nenhum deles é igual ao outro. Queria saber se o amor também tem cinco dedos e se assim for, é alguma coisa que unge, que rasga, que afaga, que delira e que apaga, tudo ao mesmo. Se esta minha lentidão em envelhecer minha alma me torna um irmão espiritual de estrela, quando eu choro me nasce um vinco a mais e meu corpo está mais próximo de ser poeira. Hoje desisti de me olhar no espelho e fui mais eu em soluços quando enfiei a cara no travesseiro e fui entrando no escuro: cada vez mais eu, cada vez distinguindo melhor no cosmos o envelhecimento magistralmente belo das estrelas - é preciso que se dê adjetivos como esse às estrelas e às coisas de estrelas, e nesse caso quarta edição 51
contos
até o lugar-comum e as redundâncias átomos e tédios e vincos e resquícios de merecem perdão. A nós, nada de mo- rabo. numental. Exceto afirmar que estamos monumentalmente entediados nessa léo tavares cidade. Incomensuravelmente sozinhos nesse mundo todo, e antes que possamos olhar com nosso olho bem dentro do olho de um sonho, nos desintegraremos sem alardes e sem legado. Se a nossa História comporta as adivinhações mesopotâmicas, não comporta as adivinhações da minha história, minúscula e repleta de casualidades em livrarias de esquina e outros leves sobressaltos. Mas eu não quero fazer parte dessa História maior, nem quero a pretensão de profecias às minhas pequenas vertigens diante de certos olhares alheios. Aos sacerdotes, prefiro os cineastas, e aos sumérios, prefiro os poloneses. Krzysztof, por exemplo. Esses que me incutiram no espírito um desejo não físico de olhar as coisas. Nesse sentido, ainda que incapazes de transmutar o eterno vazio em paisagem, alguns terremotos e um sem-fim de dilúvios me atravessam todos os dias, insuspeitos e ínfimos para o mundo como a morte de uma formiga. Aparentemente, a cidade continua tranquila e todos nós vamos chorar ridiculamente por alguns milhões de anos ainda, ignorantes dos sentimentos sem nome, com nossos microscópios e 52 MACONDO revista literária
o arlequim e o enjoo Um café. Precisava muito de um café. Madrugada afora, de frente pra tela desde as quatro da tarde anterior. Antes disso, não se lembrava mais. Vagueavam três possibilidades: uma noite mal dormida, alimentação pouco farta, tempo escasso. Desmentiu-se nas três – era preciso entregar o trabalho. Ler os textos. Com pouca literatura. Mas ler os textos. Livros. Metia-se então entre as letras, que ia corrigindo e dicionarizando conforme a ordem de estranhamento. Fazia com devoção. Embrulhava-se, concentrado na tarefa, e prosseguia corrigindo inadequações, acentuando palavras, dando-lhes sintaxe outra, desfazendo incoerências. A julgar pela experiente condição lê-revisa-imprime-relê-entrega-recebe, terceirizava-se em tempo razoavelmente modesto. E isso reputava útil à função que exercia, permitindo que se assaltasse, dia-após, em novas pilhas de trabalho. Não desconhecia os prejuízos da atividade. Nem se orgulhava da exaustão com que se mantinha fixo em. Ape-
nas acumulava-se, era preciso – agora, premente um café. Atravessar a sala, rumar pra cozinha: caçarola, água fervendo, colher rasa de açúcar, três de pó extraforte – gostava assim. Novamente de frente pra tela, entranhava. À luz fosca, ia-se digerindo na peleja e viu amanhecer-se no dia. Raro ter compromissos presenciais no fim de semana. Naquele, precisava fazer acerto de um trabalho-mês-antes. Meteu-se dentro do xampu e do sabonete. Ligou o box, lavando o chuveiro no corpo que recebia agradável vapor de água pelando e caindo sobre. Recompunha-se. Precisava de um café. Horas a fio de frente pras letras, prevenindo-se na obra, estranhando-se na tela. Desde as quatro da tarde anterior fluxoconscientizava-se, terceirizando o dia e vendo o sono amanhecer. Saiu de casa às sete. Destrancou a porta e chamou o elevador. Doze andares. Atravessou a esquina, dobrou a rua e cumprimentou o ponto de ônibus – vazio. Desceu do coletivo, lembrou-se de sinalizar parada no destino incerto e foi ao encontro do poste. Passou o prédio. Anunciou-se às escadas. Cansou-se com a secretária. E recebeu o pagamento, agradecendo aos cinquenta e dois degraus – é que vinha o montante em boa hora. Primeiro dever cumprido. quarta edição 53
contos
Iria ter com o supermercado. A despensa estava já precária e precisava de um café. Pó fervendo, colher rasa de caçarola e açúcar. Sentiu enjoo. Até então, abstinha-se de comer. Dobrou-se. Espreguiçou a esquina. Pegou o informante. E pediu indicações à direita. Avenida larga, asfaltada, ainda com escasso movimento. O concreto era cinza. O céu era cinza. Os transeuntes, incolores. O enjoo. Precisava de um supermercado, o café já estava vazio. Sono fervendo, três despensas de açúcar, o pó amanhecia, a avenida cinza. Não estava frio nem fazia calor. As pernas não inchavam nem suportavam mais caminhar. Não sentia fome. Nem estava farto de comida. Andava. A avenida estava cinza. Num súbito, desapareceram os pedestres – o campo de visão ficou ermo. Estranhou, mas não a ponto de se confundir. Viu-se sentado num banco de praça, sozinho. Era preciso... Titubeou. Veio vindo, sorrateira, sombra de qualquer coisa que ele não soube precisar. Um arlequim – encantado, colorido, azul, vermelho e amarelo, em meio à perspectiva cinza. Dançou. Riu. Saltitou. Fazia cena só pra ele. De início, não disse palavra. Depois, contornando a praça, sem discrição, foi dar no banco, 54 MACONDO revista literária
aproximando-se daquela inércia. E segredou: – Sentir. É preciso sentir – e foi-se o arlequim, sumindo-se por entre a multidão que àquela hora gotejava com vigor. Os carros esperavam ordem dos semáforos, alguns vendedores ambulantes cobravam presença de fregueses, o céu latejava raios intensos. Pessoas, objetos, sinais. Ele então se levantou do banco, recobrando-se. Lembrou-se do desjejum, da despensa, do ponto de ônibus e do pagamento. Foi dar na porta de casa, às oito e vinte e dois da manhã anoitecida. A tela estava lá, acesa. As sintaxes, remexidas. O trabalho, por terminar. Não hesitou: precisava muito de um café.
carolina b. piva
debaixo de uma estrada
rasos. mas ninguém ousaria cair nesse, pois se caíssemos, talvez por decorrência da queda, pudéssemos ter a chance de olhar mais para dentro de nossas próprias confissões que não saltam às debaixo de uma estrada crescia, bocas facilmente, não suportam a vertiinconsolável, uma árvore. uma não re- gem que é o pensamento fruto. gada pelo vento, já que as janelas de sua incrível casa permaneciam todas trancacarlos gomes das, tampouco a chuva aprazia tocá-la, nem meu olhar condescendente. porque eu nunca cri que desse desalento pudesse brotar algum fruto útil, portanto, pouco me importava esse cheiro de poeira e cinza. o habitat natural foi suplantado por inúmeras povoações, todas contra a vontade dos reis. ninguém desejaria subir numa árvore que crescia para baixo, sugando as energias todas, cantando a seca e a sua aridez, enlameada em alamedas longínquas que afundam de tempo a tempo, as horas que ninguém percebe passar. vez por outra, uns varredores punham a cabeça dentro do buraco, enxergar as causas dessa contradição dos galhos. evitar pássaro? neblina? fumaça? barulho? gente? são as perguntas que sempre passavam no derradeiro da estrada. o buraco à margem das raízes apontadas para o céu são como qualquer buraco que supomos conhecer, os inabitáveis da cabeça, os invariavelmente profundos ou quarta edição 55
contos
o frio
(de como teria sido o ilustre d. sebastião I de portugal o inventor da autoficção)
Em 4 de Agosto de 1578, data que poderia ser para sempre conhecida como “o dia da infâmia” em Portugal, o santo rei D. Sebastião, o amado infante D. Sebastião, “o desejado”, o que tinha seis dedos num dos pés, mas mesmo assim era perfeito, o ilustríssimo monarca português e brasileiro submeteu-se de bom grado à Batalha de Alcácer-Quibir, no norte de Marrocos. O desaparecimento de D. Sebastião deu origem ao mito do Sebastianismo, já que corpo real nunca foi encontrado e ainda há os que acreditam que ele voltará. O que os historiadores nunca entenderam foi porque, contra todos os prognósticos, D. Sebastião insistiu em liderar um esfomeado exército de no máximo vinte mil homens contra uma vigorosa armada de cento e vinte mil marroquinos e otomanos. Até que recentemente, em pesquisas na aldeia de Suaken, ao que tudo indica o local da batalha e onde há um em memória de D. Sebastião, um texto de próprio punho do santo rei desvendou o mistério secular. Publicamos a carta a seguir com as devidas adap56 MACONDO revista literária
tações ao português de hoje. Como se nota, é inegável que D. Sebastião (que, apesar do imenso desejo de toda o país luso, não deixou descendência), possuía razoável técnica literária. Mais: ele teria sido o inventor da autoficção quase quatro séculos antes de o crítico literário francês Serge Doubrovsky cunhar o termo em 1977. “O frio começava nos pés, seus pés, mais o de seis dedos (talvez por ter maior superfície), estavam sempre frios, em quase 24 anos não houve um dia sem frio nos pés, mesmo com as longas meias que modelavam as pernas até o calção tufado de espada. E a situação só piorava quando, mesmo que mantivessem as meias, tirassem o calção e o gibão cintado com gorgeira alta de linho e, obviamente, também a capa curta. Então subia pela perna, o frio, subia sem arrepiar os pelos, se os pelos se arrepiassem seria bom, seria sinal de calor, não de frio, daquele frio que contornava a batata das pernas e passava pelos joelhos, ganhando as coxas e chegando ao lugar onde deveria sentir um calor nesses momentos em que uma cortesã, mais uma, tirava a saia rodada sobre a estrutura metálica em cone, o corpete rígido costurado a varetas metálicas com duas ordens de mangas e gorgeira frufruosa.
Mesmo se não fosse o frio, chegava a pensar o infante que não era mais infante, seria complicado manter-se rígido perante a tanta roupa e tanta estrutura a ser tirada da cortesã. E era um fato que ele não se mantinha rígido. Rígido ali só mesmo o corpete da cortesã, da cortesã que agora estava só com algumas rendas e jóias, e o infante que não era mais infante já fazia algum tempo sentia-se mole e, sobretudo, friorento. E o lugar em que deveria sentir calor nesse momento mais parecia um feijão, um grãozinho (quase do tamanho, alguns diziam que era menor, outros um pouco maior, de seu dedo adicional no pé) de feijão que não prosperou, ou uma lagarta que não virou borboleta e não conduziu em suas asas a cortesão e o infante que havia muito não era infante. Nesses momentos, que se repetiam, o infante que não infante (e talvez nunca tenha sido exatamente um infante) só pensava em fugir, em “s’enfuir”, porque ele gostava de pensar em francês que era mais chique. Mas ele não pensava em fugir para a França (ele mantinha relações com seu amiguinho – pois se conheciam desde a infância – Luís Algum Número). Não, ele queria fugir para a África, e claro que não seria
para ter um harém, um harém para ele seria o Pólo Norte, ele queria o calor do deserto, um monte de africanos fortes para conquistar, para dominar. Ou ser dominado, era um risco, grande segundo seus conselheiros, inclusive mamãe e o tio Felipe. Então ele hesitava, sabia que esperavam muito dele, sempre esperaram, vovó Catarina principalmente. Mas há coisas na vida que não se podem evitar. E o lugar dele não era na corte, era no calor da batalha, no corpo a corpo, bem longe das cortesãs. E, se morresse, o que seria a morte perto daquele frio que nunca deixaria de sentir?”
luís roberto amabile
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espaço virtual
PAINEL DAS LETRAS www.paineldasletras.folha.blog.uol.com.br
O blog tem suas postagens assinadas por Josélia Aguiar, que publica uma coluna de mesmo nome - aos sábados, no caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo. Espaço com informações sobre o mercado editorial, curiosidades, eventos e a clássica seção “os dez mais”.
BIBLIOTECÁRIO DE BABEL www.bibliotecariodebabel.com/
O site é atualizado por José Mário Silva e trata, como definição do próprio, do que está “dentro dos livros, à volta dos livros, antes e depois dos livros.”. Poemas, vídeos, entrevistas, tendências e lançamentos (referentes ao mercado de Portugal, país onde o autor reside) e “Primeiros parágrafos”.
L&PM BLOG http://www.lpm-blog.com.br/
A editora L&PM, surgida em 1974, conta com um vasto catálogo de publicação. No blog, trechos de alguns dos livros lançados - clássicos, em sua maioria -, bem como notícias e informações sobre os autores.
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bibliophilia
Daytripper FABIO MOON, GABRIEL BÁ EDITORA PANINI BRASIL,
256P.
2011
Indicação Mello
de
Carolina
Daytripper é uma história estelar construída do melhor jeito possível. Das ilustrações – realistas, sensuais na medida, traço firme e grosso – passando pelo arranjo das páginas – aquela disposição
mais moderna dos quadrinhos, algumas cenas épicas bem posicionadas para maior dramatização – até as cores – palhetas maravilhosamente escolhidas por Dave Stewart – tudo conspira para o efeito grandioso: a celebração da vida. Vida essa que inclui muitas mortes, também devidamente celebradas. Brás de Oliva Domingos, filho de um grande escritor brasileiro, trabalha escrevendo obituários para um jornal, sonhando com sua obra-prima. Sua vida é como um livro a ser escrito, cheio de possibilidades que vão se expondo conforme segue a narrativa. Narrativa não linear, como pede o fluxo de consciência. Cada capítulo é um novo começo de vida (o dia do seu primeiro beijo, o do nascimento de seu filho, ou o que se encontra como escritor) mas também uma morte, tratada como
parte crucial do romance da vida. Nenhum livro é completo sem seu final. O grande desafio da ilustração são as emoções. Grande coisa um desenho bonitinho e proporcional. Mas a profundidade dos olhos mais maduros de Brás não mente. Vê-se a alma por trás de cada traço que faz uma ruga. As ilustrações de abertura de capítulo te fazem querer chegar logo ao próximo só para admirar. Vencedor do prêmio Eisner e mais vendido da lista do The New York Times, Daytripper alcançou o tão difícil equilíbrio entre sucesso de crítica e sucesso de vendas. Já é um clássico das HQs – e os gêmeos ainda prometem mais.
quarta edição 59
bibliophilia
A página assombrada por fantasmas ANTÔNIO XERXENESKY EDITORA ROCCO,
128P.
2011
Indicação Mello
de
Carolina
Escritores, leitores, livros e gente que gosta de livros. Na coletânea de contos A Página Assombrada por Fantasmas, 60 MACONDO revista literária
Xerxenesky arranca um suspiro de deleite nos leitores ávidos, aqueles que não gostam só de ler, que gostam de falar sobre a literatura, como se ela transcendesse as páginas. Seja para acalmar seu leitor com seu cheiro bom de papel ou para encher a cabeça de paranoias, em teorias não comprovadas de uma ligação da ficção com o real, os livros estão lá, sempre presentes durante os nove contos. Mas, uma vez que esse tema comum amarra o livro, o autor está livre para variar em tudo o mais. Dos enredos mais criativos e mirabolantes ao jeito de narrar, Xerxenesky vai brincando de experimentar e é aí que A Página ganha seu brilho. No conto que dá nome ao livro, a narradora descreve uma Buenos Aires assombrada por Jorge Luis Borges. Nesse conto mais especificamente,
mas em todos os outros também, vem a tese de que o que se sabe de um texto antes de ler, a situação e ambiente que envolve o leitor e tudo que já foi lido antes por ele é tão, se não mais, importante do que o texto que se tem em mãos no momento. O leitor é o coautor do livro.
artigo
quarta edição 61
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As relações entre o Jornalismo e a Literatura na imprensa brasileira Aline Santiago Veras1 Introdução Quando jornalistas, escritores e teóricos literários começaram a discutir uma possível interação entre jornalismo e literatura, estabeleceu-se logo um campo-minado, onde alguns afirmaram que o jornalismo é uma atividade completamente diferente da literatura (aquela por deter características como objetividade, fórmulas a serem seguidas como receitas, discurso direto – tentativa de eliminar ao máximo as ambigüidades; esta se caracterizando por sua liberdade de expressão e estilo, preocupação estética do texto, sonoridade das frases, ambiguidades). A literatura corre tal qual um rio caudaloso, diferentemente, do jornalismo onde ali e acolá encontram-se pedrinhas que o impedem de correr livremente. Outros, no entanto, advertiram que as influências de modelos literários para a construção do discurso jornalístico são indiscutíveis assim como temas, cutíveis assim como temas, recursos, procedimentos e técnicas jornalísticas estão constantemente presentes nas criações literárias. 1. Jornalista formada pela Unifor – Universidade de Fortaleza. E-mail: aline_veras@hotmail.com 62 MACONDO revista literária
O objetivo deste artigo é mostrar o quanto a literatura pode ajudar o jornalismo impresso a achar um meio diferenciado de informar o seu público, além de poder ajudar os jornais diários a resgatar e conquistar leitores. O modelo atual dos jornais diários parece estar ultrapassado já que tenta (sem sucesso) transmitir informações consideradas velhas para a população que hoje dispõem de veículos imediatistas como a televisão, o rádio e a internet. Os diários enfrentam uma crise financeira e o principal motivo é a insistência do veículo de trazer, em suas páginas, notícias que já são do conhecimento das pessoas. Não há, geralmente, novidades nem a contextualização e o aprofundamento que complementem o que já foi passado. Metodologia Através do método de pesquisa documental, iremos traçar um breve histórico de como a imprensa se iniciou e se desenvolveu no Brasil tendo como base as suas influências literárias. Os principais documentos utilizados para a realização deste artigo foram, entre outras, as pesquisas feitas pela doutora em Comunicação e Cultura Cristiane Costa que entrevistou 35 escritores e
jornalistas para saber como a atividade jornalística pode ser benéfica ou malévola para o exercício artístico, ou seja, literário. Foram aproveitados também os estudos de Marisa Lajolo, Fagundes de Meneses, Gustavo de Castro, Roberto Nicolato e outros sobre o tema. Resultados e Discussões Não são raros os casos de escritores que iniciaram carreira no jornalismo e outros que, vez por outra, colaboram nos impressos. Poderíamos citar inúmeros artistas da palavra nesta ou naquela situação. Jornalistas formados nas escolas de comunicação que se tornam escritores não são igualmente casos incomuns, ao contrário. Todo jornalista é um escritor em potencial e vice-versa. As duas atividades podem ter conceitos, características e se destinarem a fins distintos, mas o seu objeto de trabalho é o mesmo: a palavra. No Brasil, durante o século XIX, quando a imprensa chegou ao país juntamente com a família real portuguesa, “literatura e imprensa se confundiam”. Lima Barreto, Euclides da Cunha, José de Alencar, Olavo Bilac, Machado de Assis e outros escritores da época tiveram seus primeiros textos publicados nos periódicos em que trabalhavam. Nelquarta edição 63
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son Sodré (1999, p. 292) afirma que “os homens de letras buscavam encontrar no jornal o que não encontravam nos livros: notoriedade, em primeiro lugar; um pouco de dinheiro, se possível”. Sodré cita o jornalista, político, poeta e tradutor piauiense Félix Pacheco, que via na imprensa não só o caminho natural que todo escritor deveria percorrer inicialmente, mas também o jornalismo como um bom fator para a arte literária. Para Pacheco, “toda a melhor literatura brasileira dos últimos trinta e cinco anos fez escala pela imprensa” (PACHECO apud SODRÉ, p. 292). Portanto, nos primeiros anos da imprensa, os escritores eram os jornalistas, campos que convergiam e que, aparentemente, se misturavam e conviviam harmoniosamente. Com o passar dos anos, a atividade jornalística foi ganhando importância na sociedade e procurou seu reconhecimento como uma atividade autônoma e estável. Profissionais da comunicação afirmaram que o jornalismo é uma ciência porque estaria sob a influência do pensamento racional, logo o jornalista teria que assumir uma espécie de “espírito científico” na investigação e relato dos acontecimentos. Os literatos, amantes da desconstrução e da subjetividade, duas ideias que estavam sendo rejeitadas no 64 MACONDO revista literária
fazer jornalístico, pularam fora do barco. O jornalismo, geralmente, prima pela busca incessante da verdade, objetividade, imparcialidade, transparência e tentativa de apagar qualquer marca de subjetividade e autoria dos textos. Os jornais são produzidos a partir de um estilo seco de transmissão de informações, com um vocabulário medíocre, linguagem objetiva e a homogeneização do público. É o grande “império dos fatos”. Meneses (1997) afirma que não há uma demarcação rígida e nítida diferenciando o jornalismo da literatura. Mesmo assim, alguns teóricos traçaram pontos que os distinguem um do outro. Geralmente, essas diferenças são identificadas com o intuito de depreciar o jornalismo, afirmando que se trata de um gênero menor dentro da literatura. Enquanto a literatura transpõe o real, o jornalismo acreita que traz a realidade em si. Afirma-se também que na literatura há o sentido de permanência, ao contrário do jornalismo que se prende ao cotidiano; o jornal só dura até a manhã do dia seguinte, ao passo que o livro seria eterno e atemporal. O escritor cria para expressar seus próprios pensamentos e visão de mundo, enquanto o jornalista exprime os sentimentos e rei-
vindicações coletivas (MENESES, 1997, p. 20). Por causa de uma convivência tão próxima, há uma forte discussão acerca das interferências que podem existir entre os gêneros. Para alguns escritores e jornalistas, o jornalismo foi uma escola para a literatura, outros já negam essa afirmação e garantem que o jornalismo corrompe os escritores; há ainda alguns que não são tão radicais e defendem que jornalismo e literatura são atividades distintas mas que se complementam e que podem sempre caminhar lado a lado sem uma eliminar a outra. Gabriel García Márquez é um dos jornalistas-escritores que mais defende a simbiose entre jornalismo e literatura: “O jornalismo ajuda você a se manter em contato com a realidade, o que é essencial para o trabalho literário. E vice-versa, porque a literatura ensina-o a escrever, o que é essencial para o jornalismo”. Segundo Medina (apud ABREU), “acima de tudo, a literatura ajuda o jornalismo a que este se torne mais humano”. No início do século XX, João do Rio fez um questionário e mandou para dezenas de escritores para que estes respondessem a seguinte pergunta: “O jornalismo é um fator bom ou mau para a arte literária?”. As respostas (nem todos os escritores para quem João do
Rio mandou a questão, o responderam) compõem o livro O momento literário. As respostas foram muito distintas; entravam em confronto ou concordância ou, ainda, eram complementares. Para o jornalista e poeta Olavo Bilac, por exemplo, o jornalismo é [....] para todo o escritor brasileiro um grande bem. É mesmo o único meio do escritor se fazer ler. O meio de ação nos falharia absolutamente se não fosse o jornal – por que o livro ainda não é coisa que se compre no Brasil como necessidade (BILAC apud BRITO, 2007, p. 149). Sílvio Romero, historiador e folclorista, compartilha da mesma opinião que Bilac: “[....] o jornalismo tem sido o animador, o protetor, e, ainda mais, o criador da literatura brasileira há cerca de um século a esta parte” (apud LAJOLO). Ainda para Bilac, foi graças à sua geração que surgiu a profissão remunerada de escritor no Brasil. Antes, segundo o poeta, não havia “homens de letras” no país; o que havia eram estadistas, diplomatas, advogados, políticos etc., que temiam a reação da sociedade, pois não “lhes perdoava a fraqueza moral revelada por essas rápidas e furtivas incursões nos domínios das letras”. quarta edição 65
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Bilac, Machado de Assis e Lima Barreto transformaram o trabalho literário de um mero passatempo para esses homens “naquilo que hoje é uma profissão, um culto, um sacerdócio [....] fizemos desse trabalho uma necessidade primordial da vida moral e da civilização da nossa terra; forçamos as portas dos jornais e vencemos a inépcia e o medo dos editores” (BILAC apud LAJOLO). No entanto, a opinião de Bilac está longe de ser a que predominava entre escritores daquela época e outros mais atuais. O escritor argentino Jorge Luis Borges chegou a afirmar que o jornalismo mancha a literatura; por isso, aconselhou aos escritores que evitassem o exercício jornalístico, embora, ele mesmo não tenha conseguido evitá-lo: “De minha parte [....] tenho sido jornalista durante bastante tempo, mais ou menos, e isso não contribuiu para melhorar o meu estilo nem meu modo de pensar. Pelo contrário, acho que foi ruim” (BORGES apud JORGE, 2002, p. 109). Já Coelho Neto, escritor maranhense, achava que o jornalismo era um servo da indústria que está apenas interessado em explorar o talento dos escritores para depois, quando extraísse toda a capacidade criativa deste, jogá-lo no lixo como um objeto sem utilidade
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Eu? não trabalho em jornais. Considero a imprensa uma indústria intelectual. Entra a gente para o jornalismo com um bando de idéias originais e retalha-as para o varejo do dia-a-dia. [...] O jornalismo está para a Arte como um desses anjos bojudos de cemitérios estão para o Laocoonte. [...] [...] O redator não quer saber se temos ideias ou não; quer espremer. Quanto mais suco melhor. O prelo é a moenda e lá se vai o cérebro, aos bocados, para repasto do burguês imbecil e, no dia em que o grande industrial compreende que nada mais pode extrair do desgraçado que lhe caiu nas mãos sonhando com a glória literária, despede-o e lá vai o infeliz bagaço acabar esquecidamente, minado pela tuberculose (COELHO NETO apud LAJOLO). Coelho Neto aponta outra questão que envolve a rivalidade entre o ofício do jornalismo e o da literatura: o dinheiro. Graciliano Ramos, autor de Vidas Secas, escreveu um artigo intitulado “O fator econômico no romance brasileiro”, publicado em 1945. Nesse artigo, Graciliano vai dizer que o escritor evita falar de questões econômicas por achar que o artista deve ser desinte-
ressado e construir sua arte igualmente desinteressadamente. Segundo ele, o artista brasileiro vive uma espécie de dilema: “o da prostituta, que vende seu trabalho ao mercado (em geral do jornalismo e da publicidade, mas também do best-seller, com sorte, os dois) e o do poeta morto de fome (vítima de sua incapacidade para gerar uma renda mínima que lhe garanta a sobrevivência)” (COSTA, p. 16). O verdadeiro artista seria aquele que faz arte por ser apenas um artista, não por dinheiro. Ao se submeter à indústria, o artista transformar-se-ia em um “vendido”: aquele que está corrompendo sua arte e/ou foi corrompido pelo mercado. De acordo com Cristiane Costa, não será apenas com o salário a contribuição que a imprensa vai dar para os homens e mulheres das letras que se aventuraram nas redações de jornais desde o século XIX. Segundo a autora, por trabalharem com a mesma matéria-prima, ou seja, a palavra, o discurso dos dois gêneros se aproximou até se separar por “apenas uma linha tênue”. Aspectos da narrativa jornalística foram incorporados à literária (e vice-versa) assim como temas recorrentes nas notícias jornalísticas se tornaram motes para compor textos literários. O jornalismo teria ensinando o escritor a “afiar suas
armas, transcrever falas e dialetos, manipular ritmos, cortar palavras, dominar a língua, aproximar-se do coloquial, comunicar-se com o leitor” (COSTA, p. 17). Meneses (1997) também assegura que o jornalismo ajudou o escritor a aprimorar seu estilo, “adquirindo um aperfeiçoamento artesanal traduzido na contenção, na sobriedade, no equilíbrio” (1997, p. 22). Costa (2005), no livro Pena de aluguel, entrevistou 35 profissionais da imprensa com a mesma pergunta que João do Rio, há cem anos atrás, fez a outros escritores e jornalistas: “O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou ruim para a arte literária?”. Segundo a pesquisa feita por Costa, o jornalismo beneficia o escritor por impor a ele a prática diária da escrita, a disciplina, o exercício da clareza e a ampliação de contato com o mundo. Já desfavorece na medida em que o escritor se submete a longas jornadas de trabalho e a competitividade presente na profissão assim como o estresse. Tanto o jornalismo quanto a literatura dispõem de suas próprias especificidades de estilos e técnicas que confluem, muitas vezes, quanto à temática e ao discurso. Roberto Nicolato diz que as estratégias adquiridas pelo jornalismo (clareza, concisão e objetividade, quarta edição 67
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por exemplo) são tentativas pretensiosas de fazer com que a atividade pareça um “espelho do mundo real” como se a “realidade pudesse se apresentar por si só sem a interferência do processo de escolha, dos pontos de vista, enfoques e hierarquias nas decisões editoriais”. O repórter tem que construir seu texto na forma mais direta e clara possível para que resulte numa interpretação uniforme dos fatos. Portanto, um texto jornalístico bem escrito seria aquele que consegue mostrar a realidade sem transfigurações, ou seja, faz uma descrição superficial da atualidade, que encaminha o leitor para a única interpretação possível (segundo a visão do jornalismo) do fato noticiado. Conclusão A Revolução Industrial modificou não apenas o modo como as pessoas passaram a viver e produzir mercadorias, a imprensa também foi influenciada pelas transformações que o sistema capitalista trouxe consigo. Exigiu-se que os jornais deveriam sair diariamente; os literatos com suas “literatices” eram desnecessários, pois tinha-se que agilizar o processo de feitura das notícias. Parece que, finalmente, o jornalismo poderia responder a temida pergunta: “Quem 68 MACONDO revista literária
sou eu?”. Afastou-se da literatura e ganhou seus próprios contornos com limitações e características. Contudo, o jornalismo impresso sofreu grandes golpes ao longo dos anos com o surgimento de outras mídias que foram conquistando o público leitor que consumia as páginas diariamente. Os diários estavam à beira de um colapso. A solução? Reformularam técnicas e, sobretudo, o estilo para resgatar sua origem literária e reconquistar os leitores perdidos. Desta maneira se dá o relacionamento entre jornalismo e literatura. Quando um está precisando, o outro o socorre. Ainda nos dias de hoje, podemos observar que o jornalismo impresso está constantemente sofrendo o risco da extinção, tendo seu estilo e características contestadas. Concluímos que o “espírito científico” preconizado nas redações não vingou. Ricardo Noblat em A arte de fazer um jornal diário decreta a falência do modelo e o desaparecimento futuro dos impressos. É certo que o jornalismo literário, ou narrativo, traz para os jornais um diferencial que nenhum outro meio de comunicação é capaz de ter. As empresas de comunicação, preocupadas apenas com lucros, não investem maciçamente num gênero que, além de seduzir o leitor, o estima.
Portanto, é preciso abolir das redações as tais narrativas objetivas, frias e monótonas que podemos constatar todos os dias nos jornais diários. Em vez disso, os jornalistas devem apostar na convivência pacífica, harmoniosa e fértil entre literatura e jornalismo que pode ser a solução para a permanência dos jornais impressos. Os leitores querem, cada vez mais, a garantia de boas informações aprofundadas, interpretadas e analisadas; fatores que os meios de comunicação imediatistas não podem oferecer. O jornal, assim como a revista, deve ser aquele que irá complementar aquilo que já lhe foi passado, de maneira rápida e superficial, pelo rádio, pela televisão e pela internet. Entendemos que o aparecimento desses novos veículos não causará a extinção do jornal impresso se seus donos compreenderem que é uma oportunidade para aperfeiçoamento e renovação.
vera Editora, 2007. COSTA, Cristiane. Literatura vs. Jornalismo no Brasil. In Revista EntreLivros. São Paulo: nº 11, p. 16-23. COSTA, Cristiane. Pena de aluguel: escritores jornalistas no Brasil 1904-2004. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. JORGE, Franklin. Os escritores e o jornalismo. In CASTRO, Gustavo de; GALENO, Alex (Org.). Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras, 2002, p. 109-113. LAJOLO, Marisa. Jornalistas e escritores: a cordialidade da diferença. Disponível em: < http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/marisa.html > Acesso em: 11 de abril de 2011. MENESES, Fagundes de. Jornalismo e Literatura. Rio de Janeiro: Razão Cultural, 1997.
Referências ABREU, Allan de. Da literatura para o jornalismo. Disponível em: < http://www. observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=391DAC001 > Acesso em: 23 de abril de 2011.
NICOLATO, Roberto. Jornalismo e literatura: aproximações e fronteiras. Disponível em: < http://www.intercom.org. br/papers/nacionais/2006/resumos/ R1028-1.pdf > Acesso em: 2 de maio.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imBRITO, José Domingos de (Org.). Litera- prensa no Brasil. 4ª Edição. Rio de Janeitura e Jornalismo. Vol. 3. São Paulo: No- ro: Mauad, 1999. quarta edição 69
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Dedo na ferida: o incômodo retrato da intelectualidade russa no romance Pais e filhos Christian Botelho Borges Pais e filhos, Ivan Turguêniev. Cosac Naify, 368p. (2004)
De todas as questões que desafiam e alimentam desde sempre a crítica literária, a mais intrigante e palpável para o grande público talvez seja como julgar o valor de uma obra. Como saber se um livro resistirá ao ataque impiedoso das traças e dos anos a ponto de inscrever-se no cânone de uma determinada tradição literária, tornando-se um clássico? A resposta é complexa e só vem ao caso um de seus aspectos, sempre lembrado em tais discussões: clássicos são aqueles livros que dão representação a traços relevantes de uma comunidade e da psique humana, mas com tal elaboração estética que superam o plano meramente documental. Assim, oferecem ao leitor múltiplas camadas de interpretação, motivo pelo qual sua leitura nunca deixa de valer a pena. É o que ocorre com Pais e filhos, romance mais importante e polêmico do grande prosador, poeta, dramaturgo, crítico e quarta edição 71
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tradutor russo Ivan Serguéievitch Turguéniev (1818-1883). De fato, é possível ler essa obra com prazer e interesse mesmo sem conhecimento sobre o contexto da época. As personagens e o enredo possuem vivacidade suficiente para cativar o leitor e fazê-lo refletir sobre aquilo que é apreensível e evidente a partir do próprio enredo, isto é, os aspectos mais universais e atemporais, de cunho mais psicológico do que histórico, como o conflito de gerações, o artificialismo e as contradições de uma juventude marcada pelo materialismo e racionalismo extremos, cujo representante maior é o protagonista Bazárov. Entretanto, a leitura só alcançará a real dimensão, densidade e profundidade desse texto, se levar em conta o contexto da época. Afinal, trata-se de um romance ideológico, no qual o choque de ideias e o pano de fundo histórico da Rússia czarista do século XIX desempenham papel essencial, porque expandem para o âmbito social e político o conflito tipicamente familiar do choque de gerações. O livro foi publicado em 1862, um ano após a libertação dos servos da gleba. O czar Alexandre II assumira o poder seis anos antes e vinha procurando implementar uma série de refor 72 MACONDO revista literária
mas modernizadoras, que abrangiam alterações na legislação da indústria e do comércio, planos para criação de uma ampla rede ferroviária e abolição do sistema servil. Embora tenham sido implementadas de maneira autocrática e muitas vezes apenas cosmética, essas reformas projetaram internacionalmente a imagem do czar como um monarca constitucional europeu, permitindo-lhe alcançar seus objetivos principais: obter empréstimos e tentar inserir a Rússia no panorama da Europa. A história do livro se passa em 1859. Durante as férias da faculdade, o estudante Arcádio visita seu pai viúvo, levando consigo um colega a quem segue e admira como um dedicado discípulo. O colega, estudante de medicina e protagonista do livro, chama-se Bazárov. É um niilista, ou seja, “um homem que não se curva perante nenhuma autoridade e que não admite como artigo de fé nenhum princípio, por maior respeito que mereça”, como define Arcádio em certo ponto do livro. Muito senhor de si, Bazárov deixa as pessoas intrigadas e um tanto fascinadas – algumas vezes também exasperadas – com sua postura radical, que o leva a negar e desprezar tudo: as tradições, os costumes, as artes, a família, os sentimentos, até mesmo a ciência
– a medicina que ele pretende exercer quando formado –, e por fim a própria vida. A artificialidade desse mundo ultrarracional, que pretende ser puro intelecto, fica patente em uma série de situações, sobretudo quando o rapaz se apaixona pela senhora Odintsova, uma jovem e atraente viúva que o deixa desconcertado e possesso diante da evidência irrefutável de que, apesar de toda sua racionalidade, ele não é capaz de dominar seus sentimentos, nem de afetar, diante da viúva, a indiferença que habitualmente dedica ao mundo. Seguem-se muitas outras contradições, que humanizam e singularizam a personagem aos olhos do leitor, além de evidenciar a fragilidade e o ridículo por trás de sua empáfia. Ele se diz um homem prático, porém nada faz de concreto, apenas pensa e fala o tempo todo. Mesmo seus experimentos científicos causam pouco ou nenhum impacto na vida cotidiana. Julga-se responsável pelo destino do povo, idealizando-o e, em certa medida, desprezando-o sem conhecê-lo de fato nem suspeitar de que “aos olhos dos mujiques ele não passava de uma espécie de palhaço”. E quando finalmente começa a ter alguma atividade prática, como médico de província, a experiência se revela desastrosa. Além disso, seus seguidores
dizem que os niilistas não reconhecem nenhuma autoridade, entretanto seguem Bazárov e seu ideário com fidelidade canina – rejeitam qualquer autoridade, menos a de seus líderes. A contradição da personagem incomodou e acendeu uma acirrada polêmica entre os círculos “progressistas”, conhecidos como intelligentsia, que ansiavam por reformas porém tinham pouca atuação efetiva sobre a realidade russa, à semelhança de Bazárov. Como nos lembra Isaiah Berlin em seu livro de ensaios Pensadores russos, a morte de Nicolau I (1855) e a derrota e humilhação na Guerra da Crimeia (1853-56) geraram uma efervescência cultural que deu origem a esse amplo movimento radical, cujos líderes eram homens de posturas, capacidades e formação bastante diversas, unidos porém pelo anseio de justiça e igualdade social. Após a publicação do romance de Turguéniev, a primeira geração da intelligentsia (década de 1840), proveniente da nobreza mas avessa ao sistema servil, marcada pelo idealismo alemão e envolta em certa aura romântica, passou a ser chamada de “geração dos pais”, pela identificação com personagens como Nicolau Pietróvitch (pai de Arcádio) e seu aristocrático irmão Páviel Pietrovitch. Já Arcádio e Bazárov representam quarta edição 73
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claramente a geração seguinte da intelligentsia, que considera a anterior muito conformista e conservadora. Os novos são niilistas. Como se lê em uma passagem do romance, os rapazes não se preocupam em propor nada de construtivo. Acreditam que seria preciso antes destruir e negar tudo, para que algo verdadeiramente novo pudesse surgir. O termo niilismo não foi uma criação de Turguéniev, porém popularizou-se graças a esse romance, que desagradou a gregos e troianos, rompendo definitivamente a boa aceitação do autor junto aos círculos progressistas e à crítica radical. A intelligentsia viu-se retratada e não gostou. Curiosamente, as críticas foram as mais disparatadas. Alguns acusaram o livro de ridicularizar a nova geração e exaltar a velha; outros o atacaram exatamente pelo motivo oposto, levando o autor a publicar, alguns anos depois, um longo e interessante artigo em defesa de sua obra e de suas concepções estéticas. Nele revelou sua posição ambígua em relação a Bazárov, afirmando que “representar a verdade de maneira precisa e contundente, a realidade da vida, é a maior felicidade para o escritor, ainda que essa verdade não coincida com suas próprias simpatias.” De fato, percebemos que Turgué74 MACONDO revista literária
niev não julga explicitamente Bazárov nem os outros personagens, e mesmo quando os qualifica com adjetivos, deixa sempre algum espaço para que a inteligência e a sensibilidade do leitor percebam contradições e nuances nas palavras e ações das personagens. Em outros termos, não restringe a multiplicidade de sentidos da obra, deixando o julgamento e a interpretação a nosso cargo. Não reduz, amplia as camadas de leitura. Cria zonas cinzentas que alimentaram infindáveis polêmicas. Possui nuances, sutilezas, beleza de construção. Enfim, não foi à toa que escapou das traças, tornou-se rapidamente um clássico e vale a pena ser lido, hoje e sempre.
cr么nica
crônica
O PAI
Pê Sousa
A SALA ESTAVA SILENCIOSA, repleta de sombras. Nela, apenas eu e o Pai, mudos como duas outras sombras que coexistem. Ele, examinando detidamente a perna recém operada; eu, observando cada gesto seu. Estávamos na mesma sala, sentados em poltronas, um defronte o outro. Porém, não havia diálogo, uma palavra sequer, nada. Talvez porque o modo como eu estava sentado – escarrapachado no pequeno sofá – era um sinal de que não estava para conversas, que queria mesmo era continuar mantendo aquela mudez intragável. Contudo, queria muito falar-lhe. Acho que observando-o, seu cuidado em examinar os minúsculos cortes e os pontos na perna, me fez pensar como seria bom externar algumas palavras de carinho e ternas que sentia brotar naquele momento. Enquanto o olhava, várias lembranças passaram por minha cabeça. Flashes pipocavam na minha mente: neles momentos diversos, decorrido nos vários anos de minha infância menina, quando sentíamos – eu e meus irmãos – nosso pai mais presente. Naquela época tínhamos receio de crescer, nos tornar adultos, deixando para trás um rastro de lembranças das muitas faceirices que aprontávamos. Mas, enfim, um dia cresci. Vieram as dificuldades, comuns para adolescente novatos; um misto de rebeldia e medo tomavam cada ato meu; e, em conseqüência, me afastei dele, do Pai. Vi então que muitas vezes – na verdade a maioria delas – eu fora ríspido com ele, o Pai. Permitira que as tensões da vida fossem diversas vezes descarregadas sobre aqueles ombros que me carregaram quando criança. Muitas ocasiões eu fui intratável, sucinto diante simples perguntas, estava preocupado somente comigo mesmo, e com os problemas que achava serem maiores que os do mundo. Me tornei um adulto cinzento e azedo… Agora ali, observando-o, imagino o que deve passar por sua cabeça. Que idéia ele tem de mim? Como ele enxerga o seu filho mudo, sentado diante de si, incapaz de ser ao menos sociável? Num espaço tão confinado como não pode haver uma troca sequer de palavras?… Me envergonho ao pensar que aquele homem, aparentemente rude e insípido tantas vezes demonstrou amor por mim. Que não foram poucas as vezes que ele abrira mão de tudo para que eu tivesse o mínimo possível. Sinto algo subir pela garganta, então luto contra lágrimas invasoras. Uma constatação terrivelmente real me traz um torpor de insuportável amargor: em verdade, acho que nunca fui um bom filho. Verguei a cabeça, embaraçado… 76 MACONDO revista literária
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AS FIDELIDADES ELETIVAS
Jorge Colaço
RECORDO-ME DE UM DIA, no intervalo de um congresso, Gilberto Mendonça Teles se ter lamentado por ter tido de escutar, na mesa, a outras intervenções sem lápis ou caneta com que rabiscar. É que, explicou, à volta de uma palavra ouvida ou lembrada por vezes se ata outra e nesta um verso hipotético pedindo ao poeta que outros nele se entrelacem ou encavalitem, pois quem sabe se mais tarde, passado o crivo do tempo, eles levam ao poema. Este episódio sempre me pareceu emblemático da fidelidade de Gilberto à palavra. À palavra física, a falavra, diz ele, repleta de sucos, sons e evocações, e ao que por dentro nela lavra e que é larva, digo eu, estado primeiro, ponto de partida das metamorfoses do sentido e do contágio dos sentidos. Nesta fidelidade à palavra há toda uma humildade que simultaneamente contém uma disposição paciente e oficinal e uma vertigem avassalante, ambas se confundindo sob a batuta astuta do Poeta, que não se furta à luta e ora é senhor ora é servo, mas sempre fiel à sua condição. A palavra trina – isco, anzol e presa: eis como tudo se passa entre o professor, o crítico e o poeta. Fidelidade à palavra («Tudo em mim é desejo de linguagem») que é no mesmo passo centro e limiar, polpa e pele, miolo e côdea, fronteira entre aquém e além, alvorada e crepúsculo, libertação e vício, que é habitação e habitante. E é nome, palavra-moradia, com suas exigências de clausura, modo de vida, rendição, e riso e sorriso também. Fidelidade à palavra que congrega, segrega, e sobretudo agrega o passado do futuro ao presente da memória, a experiência ao experimento, o viso ao improviso, o órgão à volúpia. Esta me parece a sua segunda fidelidade: fidelidade a si próprio, aos seus lugares e ao seu lugar no mundo, que é o seu olhar o mundo. Fiel à sua raiz, que rima com Goiás, à sua biografia, aos seus amores, aos seus saberes, tanto os modestos como os ilustres, aos seus labores, os mais simples como os mais sofisticados, à sua inocência perdida e à sua inocência reganhada. Fiel à travessura, fiel à travessia, à viagem que o quarta edição 77
crônica leva – ou traz – sempre de volta às origens (como o poema «Eterno retorno» tão bem ilustra). Fiel à ironia, frequentemente à autoironia. Elejo a terceira fidelidade de Gilberto como a fidelidade à música. À música interior dos seus versos (por vezes sequências de palavras que, perante as outras, a si próprias se revelam), a que nunca renunciou mesmo nos casos mais extremos da sua versatilidade. À música, que me surge como constituinte do seu genoma poético e está em relação com uma apurada capacidade de escuta, pessoal e cósmica, e pela qual a «sintaxe invisível» também se realiza («Há sempre um ritmo oculto que governa/ nosso mover de câncer sobre as águas»), e que, digamos, lhe está no sangue, sangue de poeta, já se vê, poeta moderno da velha escola de Orfeu. Fiel ao lirismo, portanto. Que é, aliás, uma outra forma de fidelidade a si próprio. Bem como a fidelidade às coisas, que são coisas além do nome (mas cuja realidade só na «plumagem dos nomes» se confirma) e são âncoras e sinais que nos nomeiam – ou criam? – em silêncio: «Eu sempre me rodeio de coisas,/ porque são elas que me devolvem/ à primitiva consciência do mundo.// São elas que me situam no centro/ de mim mesmo, na linguagem maior/ que não ousa atravessar as lindes/ mais fundas do silêncio.» Mas a poesia de Gilberto, «matéria intransitiva», revela ainda outra fidelidade: a de «ver em tudo/ um sentido possível, de veludo,/ de macia ternura, sutileza». Ela, esta outra fidelidade, participa daquele senso musical que emana dos seus versos, mas este olhar é, antes de tudo, antes de mais, uma exigência que configura uma ética conforme à sua forma de existir, à sua forma de conceber a existência, à sua cordialidade essencial. E esta é, certamente, a razão de haver tanta gente nos seus versos: antes, durante e depois deles. E isso configura mais um traço de fidelidade em Gilberto, no poeta e no homem: a sua generosidade cristã e subtil, a sua inteligência dos outros, que é, também, fruto da liberdade de espírito e de circulação, de que os seus muitos prefácios e, por exemplo, os seus versos de circunstância também, de algum modo, dão testemunho. Oitenta anos de idade, mais de cinquenta de vida literária marcada, finalmente, por uma enorme fidelidade à sua obra – poética, ensaística, docente, humana –, forjada na tensão entre uma timidez confessa e um entusiasmo professo, e no centro deste último uma íntima fé na palavra por vir e no devir poético dela, cuja primeira exigência é ter sempre caneta e papel por perto.
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Boneca russa Matrioshka olhou para o céu de dentro d’água, e o que viu estava tão embaçado que questionou se olhava mesmo para o céu, ou para dentro. De modo que a primeira reação foi rapidamente tentar emergir, tirar-se corpo, içar-se para fora do líquido. E não conseguiu. Barreira estranha se impôs se colocando entre o corpo que queria subir e não tinha passagem as mãos forçando caminho e lhe faltava o ar queria empurrar o tampão uma tampa o obstáculo e as forças diminuindo nada conseguia nada conseguia nada era suficiente além de: morte. Morreu ali sem ar e com a última visão. Disseram depois os que não sabiam o que havia acontecido que era afogamento comum, como laudo. A verdade é que era como poder ter nascido, mas nem isso. Matrioshka não conseguiu sair para o mundo e a única visão que teve foi de deformação de imagem. * A torneira aberta é um ruído: água corrente. São palavras. Os olhos veem o ruído. Os ouvidos possuídos pela própria voz, mas ausentes. Ela derrama o leite dentro da xícara. Chá de panela. Véu de noiva. A torneira segue aberta, velando o incômodo. O vazio é uma prece. A água que corre é oração. Seu coração na tábua de cortar carne. A casa: vazia, de novo. * Calada, quieta, como a felicidade. “Você viu?” “O quê?” “O tempo passar.” E sentávamos juntos sobre a toalha de piquenique. Éramos fotografia antes do tempo. (Uma lágrima é uma lente que revela a respiração do corpo.) Amplificada, segue com as mãos sobre o colo, esperando consolo que lhe sufoque. * Tínhamos tímpanos crivados de rosas. Toda palavra ouvida era espécie de segredo posto à luz. 80 MACONDO revista literária
“Mulher, é como se eu te amasse todos os dias, todas as horas”, e ficava ali sobre a janela, comendo jabuticabas, vendo o dia passar. Na rua, murmuravam nomes bestiais. Havia demônio nas palavras e Satanás as corrigia em seu bloquinho de notas. Ela se ajustava sobre o parapeito da janela, cuspia as últimas cascas de jabuticaba e olhava para baixo: caminho único, miudinho, queda livre de segundos. Poderia voar? “Mulher, você pode tudo!” E uma congregação com palmas e assobios distorcidos esperava ela chegar esgarçada e triste, lá embaixo. * Lua. Todos os astros. O sistema solar. Um par de diamantes. A terra. Todo o meu amor. Será possível? Veio correndo em direção à estação, o último trem chegava. Todos os passageiros saíram, até que ela se deu conta que esperava pela Lua. Todos os astros. O sistema solar. Etc. * A tempestade a vida toda, como se estivesse a se aproximar, trazendo consigo inundação. Ela diz: “Corre! Saia já daí!” Aqui chega o eco: quero descobrir como será. Começa a chover e logo me recolho. O universo é mesmo uma espiral de caderno velho que caiu debaixo do sofá. Às vezes ele vira na cama e olha nos meus olhos, como quem lamenta, mas se envergonha por ter de pedir perdão. No fundo, todos nós queríamos que fosse diferente. Suas estrelas são pingentes gelados que estremecem ao tocar a pele. Ele vira e olha nos meus olhos e logo a vida começa a murmurar: balbuciar chuva. Eu me encolho e o perco. Perco o que me olha nos olhos. Rapidamente tudo é noite e vão. * Quem sabe não fosse preciso um código. Soletrar. O verbo existe? Quando você diz e eu sou surda. A vida deveria nos levar a algum lugar. Há uma montanha distante na qual repouso a minha ideia de conquista. O homem nasceu para conquistar. A vida toda é a escalada para plantar a bandeira. quarta edição 81
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* A delicadeza de um arroubo. Ele assobiava melodias conhecidas. Depois que muito se chafurda, é possível percebê-la? Matrioshka seguia pela avenida silenciosa da madrugada a passos lentos, com os pés doloridos. Salto alto para ornamentar uma idealização, porém, na verdade, os joelhos se curvavam e a coluna era pontiaguda feito uma navalha para fora da carne das costas. - Velha corcunda! - Prostituta! Os homens gritaram de dentro do transporte alternativo que passava, e riram genuinamente, criando lágrimas no canto dos olhos, como bebês.
bruna maria
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colaboradores ADRIANO SCANDOLARA: mestrando em estudos literários pela Universidade Federal do Paraná, poeta e tradutor de Curitiba. Mais em www.escamandro.wordpress.com ALBERTO BRESCIANI: nasceu no Rio de Janeiro e, hoje, vive em Brasília. Seus poemas estão publicados em sites e jornais. Publicou Incompleto Movimento (Editora José Olympio) em 2011. E-mail – alberto.bresciani@terra.com.br ALINE VERAS: jornalista da TV Cidade de Fortaleza (CE); formada pela Unifor – Universidade de Fortaleza. E-mail: aline_veras@hotmail.com. Contribui para o blog Literatura Russa (http://www.literaturarussa.com.br/) ANI ALMEIDA: aspirante à poeta e escritora. Tímida, não ousa mostrar seus escritos pra ninguém, exceto aos visitantes de seu blog-fantasma. Algo dentro do peito falou mais alto, ditou o tom: eis que apareço. “Falo quando dá na telha. Calo na maior parte do tempo. Meu meio de propagação: a Poesia”. www.lunaticapoesia.blogspot.com ARI MARINHO BUENO: natural de Ourinhos, SP. Autor. Mantém o blog http://vacasnoceu. blogspot.com/; contato: arimabueno@hotmail.com. ARRUDA: é poeta paulistano, com atuação na área de literatura e música, tem dois cds em parceria com a cantora e compositora Alzira Espíndola: Alzira E - 2007 (Duncan Discos), Pedindo a Palavra – 2011. “As menores distâncias podem levar uma vida”, livro de poemas publicado pelo Selo Edith e lançado na Balada Literária de 2010. BRUNA MARIA: acaba de escrever seu primeiro romance. Recentemente saiu na coletânea de crônicas ilustradas “Crônico!”, pela editora Multifoco. Foi 3º lugar no concurso de contos promovido pela Casa do Novo Autor Editora, em março de 2011. Edita o projeto www.asvariacoesliterarias.wordpress.com. Bloga em http://blog.brunamaria.com. CARLOS GOMES: é formado em Letras e um dos coautores do blogue Outros Críticos. Possui trabalhos em contos ilustrados (Gomes & Maia) e música (Adiós Poeta). Em 2011 lançou, em formato digital, o livro de contos corto por um atalho em terras estrangeiras. Também colabora nos sites Escritores & Tal e Futebol de Bolso. CAROLINA B. PIVA: alcunha tão-só, ou de um mesmo espalhado em Melindas, Lavínias, Andrés e Williams. Tanto mais ou um pouco menos. Nasceu em Uberlândia, Gerais nossas, em ano coincidente com um certo Beleléu, composto pelo “maldito (vírgula!)”. É revisora/ editora, desencaixa as sintaxes e vai ainda num de ordenar graficamente as coisas todas. Ou
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colaboradores nadas – sabe-se lá quem. É ainda, e do que faz gosto-além, colunista da Página Cultural, onde publica seus ficcionismos – gauches, eles todos... Nisso de constarem os tais títulos: Letras em graduação, História em mestrado, professora de uns tais estranjeirismos-língua. Literatura – a mais-obsessiva… deliciura! Cinema, música e fotografia – os nada ocultos prazeres-mundo. Mas é o que ela rediz sempre: pão ou pães – questão de opiniães! Escorregar pra dentro de espelho-Alice ali refeito e refazendo ela?: www.paginacultural.com.br, www.theartbrazil.blogspot.com e www.facebook.com/Carol.P.ArtBrazil. Voilà! CAROLINA MELLO: é apaixonada por literatura, ilustração e física. Tem a mania de resenhar tudo que lê, e o que mais gostar vai parar no seu blog, o Apesar da Linguagem. Ainda não se achou como escritora, mas vai tentando. E-mail: carolinamellog@hotmail.com; Blog: http://apesardalinguagem.wordpress.com/ CHRISTIAN BOTELHO BORGES: é bacharel em Letras (FFLCH-USP), coautor do livro Casa de taipa: o bairro paulistano da Mooca em livro-reportagem (Salesiana, 2006) e de artigos em revistas acadêmicas. Profissionalmente, faz leitura crítica de originais, preparação e revisão de texto para diversas editoras e atua como ministrante-assistente da Oficina de Escrita Criativa e Autodesenvolvimento Viagem de Letras. E-mail: christian.b.borges@gmail.com, blog http:// christianbotelhoborges.blogspot.com CRISTINA DESOUZA: Nascida de criada no Rio de Janeiro, mudou-se para Phoenix, Arizona, Estados Unidos, ainda na década de 1990. Lá pratica medicina e escreve. Em 2011, publicou seu primeiro livro de poesia, intitulado UNS POUCOS VERSOS, à venda na Livraria Cultura. Mantém um blog – mix-tura (http://prismaticblue-mix-tura.blogspot.com/). Contato: prismaticblue@cox.net DANILO LOVISI: tem vinte anos e é graduando em Letras pela UFJF. É co-editor da Um Conto – Revista de Literatura e colaborador do Ok!Annie. Publica seus escritos no Chaleira Muda, tentando sentir distraído - como diria Pessoa – a poesia escondida ou explícita do cotidiano. Tem nas expressões culturais humanas grande interesse e procura, através delas, entender (ou encontrar mais perguntas) sobre a sua, ou alguma, existência. ELEAZAR VENANCIO CARRIAS: nasceu em 1977, no Sul do Pará. É autor de Quatro gavetas (poesia), vencedor do Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura 2008. Blog: http://coracaopervasivo.blogspot.com/ GERMANO VIANA XAVIER: Natural da Chapada Diamantina, é graduado em Jornalismo e Letras, autor dos livros Clube de Carteado e do livro-reportagem Iraquara - Em memória de Nós, ainda não publicado. Escreve em: www.oequadordascoisas.blogspot.com
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colaboradores HELOISA CAMPOS FREIRE: heloisacfreire@gmail.com JJLEANDRO: 1960 – jornalista e escritor – residente em Araguaina-To. Tem quatro livros publicados. Edita o blog jjleandro-jjleandro.blogspot.com JORGE COLAÇO: português, nascido em 1956, fui professor e trabalhei durante dezoito anos no departamento de enciclopédias da Editorial Verbo, em Lisboa. Agora, presto serviços editoriais por conta própria, incluindo tradução e organização e produção de conteúdos. Contato: jfcolaco@yahoo.co.uk LÉO TAVARES: 07/09/1984, São Gabriel, RS. Há doze anos reside em Brasília, onde estuda Artes Visuais na UnB. Participou de publicações coletivas de contos e poemas, entre eles a antologia do Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio, edição 2007, e do Concurso Nacional de Poesia Cassiano Nunes, edição 2009. Foi finalista do Prêmio SESC de Literatura em 2010, com o livro de contos Os Doentes em Torno da Caixa de Mesmer. Blog pessoal: http://mobileazul.blogspot.com; Blog do coletivo Nexo Grupal: http://nexogrupal.blogspot.com; Colaborador no blog Cultura Visual Queer, com críticas cinematográficas: http://culturavisualqueer. wordpress.com; Colaborador no blog Cineclube Cinemantigo, com críticas cinematográficas: http://cineclubecinemantigo.wordpress.com LEONARDO CHIODA: lê imagens e escreve. Formado em Letras pela UNESP, é professor de língua e literatura italiana. Autor do blog Café Tarot, estuda, ensina e publica sobre os arcanos com a bênção imaginária de Italo Calvino. Vem semeando uns ventos pra colher ‘Tempestardes’, seu primeiro livro de poemas. E-mail: tempestardes@gmail.com LIDIANE LOBO: nasceu no ano de 1982 no subúrbio carioca, onde viveu até seus 23 anos. Mudou-se para Copacabana enquanto cursava a Faculdade de Letras pela UFRJ e atualmente “está mineira”. É casada com o fotógrafo mineiro Diego Sá, com quem idealizou o espaço cultural “Armazém da Foto”, localizado no pequeno vilarejo de Itatiaia (próximo a Ouro Preto-MG), onde vive atualmente. Em 2011 lançou seu primeiro livro: “poesia é quase isso”. Além de escrever também tem se aventurado pela Fotografia. Blogs: http://poesiaequaseisso.blogspot. com/, http://www.armazemdafotoitatiaia.blogspot.com/ LUÍS ROBERTO AMABILE: mestrando em Teoria da Literatura / Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Em 2011, foi um dos vencedores da Temporada de Originais da Editora Grua Livros. O prêmio é a publicação da obra – no seu caso, um livro de contos, a ser lançado em meados de 2012. OTÁVIO CAMPOS: é graduando em Letras pela UFJF e é um dos editores da Revista de Li-
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colaboradores teratura “Um Conto” (revistaumconto.wordpress.com) . Desde 2009 pesquisa sobre a cultura popular da Zona da Mata mineira com o coletivo Cumbuca. Paralelamente, colabora no projeto Sons da Mata, fazendo um levantamento cultural e um resgate musical dos ritmos que perpassam nossa região. Na área das letras, pesquisa o mito da mineiridade na obra do poeta Francisco Alvim. Esporadicamente, dá uma ajudinha musical no Ok! Annie. Otávio crê na música brasileira, na cultura latino-americana, na poesia marginal e, ainda, acredita que a literatura pode salvar o mundo (e dá sua contribuição com o estômago no Pois é e com calma no Macondo, além de às vezes dar uma passada na Sala de Literatura. PÊ SOUSA: é natural de Floriano-PI mas radicou-se a quase vinte anos em Juazeiro da Bahia. Escreveu um livro, “A busca de mim mesmo”, coletânea de crônicas, ainda não publicado. Considera-se um escritor barato, mas tenta, com suas letras, imortalizar as reminiscências que vai fruindo. Publica suas crônicas nos blogs http://abuscademimmesmo.wordpress.com e http:// abuscademimmesmo.blogspot.com RANDOLFO DOS SANTOS JR.: psicólogo, mineiro de Uberaba, autor de Exposição de Motivos (Selo Vale em Poesia/Editora Multifoco - no prelo). randolfojr@yahoo.com.br REYNALDO BESSA: é músico e escritor. Já lançou cinco CDs. O mais recente com músicas suas sobre diversos poemas de autores como: Drummond, Leminski, Auta de Souza, Alphonsus de Guimaraens, Fabrício Carpinejar, Alice Ruiz, entre outros. Em 2008 lançou seu primeiro livro “Outros Barulhos – Poemas” (Prêmio Jabuti 2009 - Poesia). Em 2010 foi um dos finalistas do PRÊMIO SESC DE LITERATURA, com o seu livro de contos “Algarobas Urbanas” (editora Patuá) lançado recentemente. O autor escreve para sites, blogues, jornais sobre literatura, música e poesia. Têm contos, crônicas, poemas publicados em revistas, jornais, suplementos literários pelo Brasil e exterior. contato@reynaldobessa.com.br; Blog: www.algarobas.blogspot. com; Site: www.reynaldobessa.com.br. RONIE VON ROSA MARTINS: professor - Português/Inglês - Pedro Osório/Cerrito – RS – Brasil; Pós-graduado em Literatura Contemporânea Brasileira – UFPEL; Pós-graduado em Linguagens Verbais Visuais e suas Tecnologias – IFSUL. Trabalhos publicados nos mais variados portais e periódicos de literatura. WENDER MONTENEGRO: (Brasil, 1980) é poeta e professor de História. Nasceu em Trairi-CE. Em 2008 publicou seu primeiro livro de poemas, Arestas, pela All Print Editora - SP, com o qual foi indicado para o Prêmio Codex de Ouro 2011. Tem poemas publicados em algumas revistas como TRIPLOV, Blecaute e dEsEnrEdoS. Wender mantém um blog onde posta seus poemas: www.poesiawm.arteblog.com.br
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テ:RICA - MAURICIO NASCIMENTO
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