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Sucot: as Quatro Espécies e a bênção sobre o Lulav

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Sucot, festa de sete dias que se inicia no 15o dia do mês judaico de Tishrei, é conhecida por seus dois mandamentos, constantes na Torá: habitar na Sucá, uma cabana construída de modo a oferecer sombra, e ter nas mãos as Arbaat HaMinim – as Quatro Espécies: o Lulav – a folhagem fechada da tamareira; o Etrog – uma cidra amarela; o Hadás – um ramo da árvore da murta; e a Aravá – um ramo folhoso do salgueiro.

Ter-se em mãos as Quatro Espécies em Sucot é um dos mandamentos da Torá que nem todos entendem. Mas, esse fato não é o mais importante. O essencial é cumprir o mandamento de forma correta, de acordo com as leis da Torá. No entanto, a Torá nos estimula a entender o significado de seus mandamentos, pois o Judaísmo não espera que cumpramos cegamente suas leis. São inúmeras as lições que podemos depreender de cada um de seus versículos e de cada um de seus mandamentos. E justamente o das Quatro Espécies não só constitui uma mitzvá – isto é, um mandamento Divino que devemos cumprir pela simples razão de ser a Vontade de D’us – mas transborda de significado que transmite lições eternas para o Povo Judeu.

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O Midrash (Vayicrá Rabá 30:12) comenta que as Quatro Espécies indicam quatro tipos diferentes de judeus. O Lulav – a folhagem longa e fechada da tamareira – representa os judeus que dedicam a vida unicamente ao estudo da Torá. Como passam a maior parte de seu tempo mergulhados em seus ensinamentos, eles não têm o tempo, energia ou recursos para praticar muitos atos de bondade. O Hadás – o ramo de murta – representa a antítese, o contrário do Lulav: simboliza os judeus que são tão ocupados realizando atos de bondade que não têm tempo de estudar muito a Torá. O Etrog – o fruto da cidreira – personifica aqueles dentre nós que têm o melhor dos dois mundos: estudam a Torá e realizam atos de bondade. E, por fim, a quarta espécie, a Aravá – o ramo do salgueiro, que representa os judeus que nem estudam a Torá nem se dedicam muito a realizar atos de bondade.

Em cada um dos dias da festa de Sucot – exceto no Shabat – cumprimos o mandamento de ter em mãos as Quatro Espécies, formado por um Lulav, um Etrog, três Hadassim e duas Aravot. Na falta de uma das Quatro Espécies, ainda que seja a Aravá, estamos impossibilitados de cumprir esta mitzvá. Antes de cumpri-la, dizemos uma bênção, uma berachá, como é comum fazer antes de realizar uma mitzvá. Mas, como menciona o Talmud, há algo que chama a atenção sobre a bênção dita antes de ter em mãos as Arbaat HaMinim: a berachá termina com a frase al netilat Lulav (“ao ter em mãos o Lulav”). Perguntamos: qual a razão para a bênção apenas mencionar esta espécie? Por que não termina com … al netilat Arbaat HaMinim (“ao ter em mãos as Quatro Espécies”)? E se, por alguma razão, a berachá

tivesse que mencionar apenas uma das espécies, qual a razão para ser escolhido o Lulav?

Uma razão dada pelo Talmud é que o Lulav é o mais alto dentre as quatro espécies (Talmud Bavli, Sucá 37b). No entanto, o Midrash indica que o Etrog é a espécie preferida entre as quatro pelo fato de se referir a judeus que tanto estudam a Torá quanto realizam atos de bondade. Esse fruto da cidreira reúne as virtudes única espécie mencionada na bênção das Arbaat HaMinim, primeiro é preciso entender que o Judaísmo possui duas vertentes principais: Talmud Torá (o estudo da Torá) e Mitzvot (mandamentos Divinos). Ainda que o estudo da Torá seja um de nossos mandamentos – segundo uma opinião no Talmud, é o mais importante dos mandamentos do Judaísmo – há diferenças significativas entre o estudo da Torá e o cumprimento das mitzvot.

PINTURA A ÓLEO SOBRE MADEIRA. COLEÇÃO ISRAEL MUSEUM

do Lulav e também as do Hadás. Dentre as Arbaat HaMinim, o Etrog constitui o único que não tem falha alguma.

Sendo assim, repetimos nossa pergunta: por que a bênção das Quatro Espécies termina com as palavras al netilat Lulav, em vez de al netilat Arbaat HaMinim, ou ainda, al netilat Etrog?

A Superioridade do Estudo da Torá face às Mitzvot

Para responder com propriedade à pergunta do porquê de o Lulav ser a

INSCRIÇÃO: “EM CABANAS HABITAREIS POR SETE DIAS; TODO NATURAL DE ISRAEL HABITARÁ EM CABANAS” (LEVÍTICO 23, 42) Um aspecto singular do Judaísmo é a importância suprema que atribui ao estudo de seus textos sagrados. Não se trata de uma religião que se baseia na fé, senão no fato. Não se restringe à crença em certas coisas, mas ao conhecimento das coisas. Judaísmo é a busca por D’us – e como D’us é a Verdade, o estudo da Torá é a busca pela Verdade.

De forma sucinta, o estudo da Torá é primordial para o Judaísmo, pois apenas se estudarmos suas leis poderemos cumpri-las. Mas esta não é a única razão para estudarmos nossos livros sagrados. Grande parte do que se estuda na Torá não pode ser praticado. Por exemplo, vários tratados do Talmud discutem em grande detalhe os serviços realizados no Templo Sagrado de Jerusalém. E nós seguimos estudando tais tratados, apesar de que o Templo não existe há quase dois mil anos. Se o único propósito do estudo da Torá fosse aprender a cumprir seus mandamentos, esse estudo estaria limitado aos livros da Lei Judaica – e unicamente aos assuntos relevantes à época em que vivemos.

A principal razão para estudarmos Torá é para podermos nos conectar com seu Autor - Aquele que nos deu esses livros sagrados. A Autoria Divina da Torá – a Divindade inerente em obras como o Tanach, o Talmud e o Midrash tornamna sagrada e única. Em nossas orações matinais e a cada vez que recebemos uma Aliyá dizemos a Birkat HaTorá – a bênção sobre a Torá. Um dos propósitos dessa bênção – na qual agradecemos a D’us por nos dar a Sua Torá – é nos fazer lembrar de sua Autoria Divina e diferenciar seu estudo de qualquer outro campo do saber e do conhecimento.

FESTA DOS TABERNÁCULOS. JAN LUYKEN, PIETER MORTIER, 1705

Mas, de que maneira o estudo da Torá forja a conexão entre o homem e D’us? Uma das respostas a essa pergunta é que sempre que o leitor mergulha nos textos de um escritor sério – especialmente quando este autor se entregou de corpo e alma a seu trabalho – o leitor vislumbra a alma do escritor. Forma-se uma conexão especial entre autor e leitor. Na maioria das vezes, aprende-se mais sobre um autor lendo suas obras do que analisando seus dados biográficos. E esse conceito se aplica tanto a autores humanos quanto ao Autor Supremo, que

1 Tanya, obra fundamental do Misticismo

Judaico, foi escrito pelo Rabi Shneur

Zalman de Liadi, fundador e primeiro

Rebe do Movimento Chabad-

Lubavitch. escreveu a Torá. O Talmud nos ensina que D’us metaforicamente pôs Sua Alma na Torá. Quem deseja ter algum entendimento sobre D’us – que é o máximo a que nós, seres finitos, podemos aspirar acerca do Infinito – precisa estudar o livro escrito pelo Autor Divino – a Torá.

Uma das razões pelas quais o estudo de nossos textos sagrados nos conecta com D’us é o fato de que a Torá constitui a Sabedoria e Vontade Divinas. Como D’us é indivisível, Ele e Sua Sabedoria são unificados. Portanto, se alguém estuda a Torá - a Sabedoria Divina - e depreende algo sobre a mesma, capta o Divino em sua mente. Como ensinou o Rabi Shneur Zalman de Liadi, o Ba’al HaTanya1, o autor do livro sagrado Tanya, sempre que um judeu assimila algum conceito da Torá, ocorre uma fusão celestial entre a sua mente e a Mente Divina. E como a mais elevada faculdade humana é a mente – principal morada de sua alma – quando ele estuda a Torá, ele emprega seu atributo mais elevado para se conectar com D’us.

Assim sendo, o estudo da Torá é a ponte que nos leva a D’us. Nada neste mundo pode nos levar ainda mais próximos a D’us. Nenhum outro mandamento do Judaísmo tem o mesmo efeito. Ainda que cada mitzvá constitua uma conexão entre o homem e D’us, o estudo da Torá se coloca acima de qualquer outro mandamento que leve o ser humano a um lugar mais próximo do Altíssimo.

Outra maneira na qual o estudo da Torá é superior ao cumprimento dos mandamentos reside no fato de o conhecimento ser permanente enquanto as ações serem transitórias.

Quando aprendemos algo, levamos esse conhecimento conosco para o resto de nossa vida, guardando-o em algum canto de nossa memória. Mesmo se o esquecermos, um dia poderemos recuperá-lo – ou, no mínimo, será mais fácil o aprendermos uma segunda vez. Por outro lado, nossas ações – mesmo se tiverem efeito duradouro em nós ou nos outros – não se tornam parte de quem somos. A palavra mitzvá vem do hebraico tzivui – um mandamento – mas também tem relação com a palavra, em aramaico, tzavta, que significa “conectar” ou “unir”. Uma mitzvá une a pessoa ao Ser Supremo, D’us, criando um relacionamento e vínculo especial entre eles. No entanto, a conexão apenas existe enquanto a mitzvá está sendo realizada. Por exemplo, um dos mandamentos centrais no Judaísmo é a mitzvá de se colocar Tefilin. Quando os colocamos, nos conectamos com D’us. Mas quando os retiramos, ainda que o mérito de ter cumprido esse mandamento seja eterno, a conexão se interrompe. Os Tefilin nos unem a D’us, mas não se tornam parte intrínseca a nós, como o conhecimento sobre a Torá.

Como explicam nossos Sábios, o estudo da Torá se compara com a ingestão de alimento e bebida, que são assimilados por nosso corpo, ao passo que o cumprimento das mitzvot é semelhante a fragrâncias agradáveis – que não se tornam parte de nosso organismo e acabam por se dissipar.

Isso não significa que o estudo da Torá possa substituir o cumprimento dos mandamentos. Um não exclui o outro. Nada seria mais desrespeitoso perante D’us do que o estudo de Sua Torá, que nos ordena cumprir Seus mandamentos, se ignorarmos esses mandamentos. A Torá não apenas é a Sabedoria Divina, mas também a Sua Vontade. O estudo da Torá deve levar a pessoa mais perto de D’us: isso significa não apenas uma fusão entre a sabedoria humana e a Sabedoria Divina, mas também uma sujeição da vontade humana à Vontade Divina. Portanto, é erro interpretar o Lulav como sendo o judeu que estuda a Torá, mas não cumpre seus mandamentos. Um erro grave. O que o Midrash subentende ao dizer que o Lulav representa os judeus que têm Torá, mas não as mitzvot?

O que representam o Lulav e o HADÁS

Qual a razão para que o Midrash associe o Lulav a judeus que estudam muito a Torá; o Hadás àqueles que cumprem muitas mitzvot; o Etrog às pessoas que estudam a Torá e cumprem muitas mitzvot; e a Aravá a judeus que não fazem nenhum dos dois?

O Midrash aponta que o Lulav está associado ao sabor, pois é a folhagem da tamareira, mas não tem odor. O Hadás (a murta) tem odor agradável, mas não tem sabor, por ser uma planta que não dá frutos. Como vimos acima, nossos Sábios comparam o conhecimento da Torá ao alimento e os mandamentos a fragrâncias. Assim sendo, eles associam o Lulav ao estudo da Torá e o Hadás ao cumprimento das

Sucot (a Festa dos Tabernáculos) - Moritz Daniel Oppenheim, 1867

mitzvot. O Etrog (a cidra) tem sabor e odor, portanto representa os judeus que estudam a Torá e cumprem suas mitzvot. E a Aravá (o ramo do salgueiro), que não tem nem sabor nem odor, simboliza os judeus despidos do conhecimento sobre a Torá e que não cumprem mitzvot.

Quando o Midrash menciona que o Lulav representa o judeu que é rico em conhecimentos sobre a Torá, mas despido de mitzvot, não está se referindo aos mandamentos que todo judeu deve cumprir. Aquele que estuda muito a Torá sem cumprir seus mandamentos, não é um estudioso da Torá, mas um blasfemador. Portanto, ao falar sobre as Quatro Espécies, o Midrash usa a palavra mitzvot de modo figurado para se referir a boas ações. E, de fato, quando o Talmud Yerushalmi (o Talmud de Jerusalém) usa o termo mitzvá sem determinar um mandamento específico, está-se referindo à Tzedacá. A definição de mitzvot como sendo boas ações esclarece o ensinamento do Midrash sobre os tipos de judeus representados pelo Lulav e pelo Hadás.

O Lulav simboliza o estudioso de Torá que passa a maior parte de seu tempo imerso em seus estudos. Ele obviamente coloca os Tefilin, ora três vezes ao dia e cumpre os demais mandamentos. Mas dedica seu tempo, sua energia e sua capacidade ao estudo da Torá. Os judeus simbolizados pelo Lulav passam seus dias nas yeshivot e nas sinagogas. São alunos e professores – não líderes, ativistas, filantropos ou pessoas que passam o dia realizando boas ações, como alimentar os pobres ou visitar doentes. Têm uma única ocupação e missão em sua vida – estudar e disseminar o conhecimento da Torá. O Hadás fica no espectro oposto do Lulav. O ramo de murta representa os judeus que cumprem muitas mitzvot – muitas boas ações – mas dedicam pouco tempo ao estudo da Torá. Em claro contraste com os judeus representados pelo Lulav, os representados pelo Hadás estão muito ocupados ajudando outros seres humanos e não têm muito tempo para dedicar ao estudo da Torá. Por exemplo, a maioria dos filantropos estão sempre extremamente ocupados – empenhados em ganhar dinheiro para doá-lo a causas nobres – e não dispõem de tempo ou energia para passar horas a fio estudando a Torá. Pode-se dizer que seria um erro grave – quem sabe, um sério pecado – tentar fazer com que um judeu que é um Hadás se transformasse em um Lulav. A pessoa não tem o direito de deixar seu trabalho e devotar sua vida ao estudo da Torá se a vida de outras pessoas depende dela.

Lulav e Hadás representam dois tipos de judeus que têm missões diferentes, talvez mesmo contrárias na vida. O que um possui falta ao outro. Mas se o Etrog – o bonito fruto – representa o melhor dos dois mundos – o estudo da Torá e as mitzvot – por que razão a bênção das Quatro Espécies menciona o Lulav, e não o Etrog?

Etrog na árvore

O Etrog

Os judeus simbolizados pelo Etrog são aqueles que estudam a Torá e têm uma profissão que contribui

CAIXA EM PRATA PARA ETROG. ALEMANHA OU ÁUSTRIA

para a sociedade. São os médicos, advogados, engenheiros, cientistas, comerciantes, empresários e financistas, entre vários outros profissionais, que equilibram sua vida religiosa com a profissional. O Etrog – a linda cidra – simboliza as pessoas que têm uma vida harmoniosa, assim demonstrando que é possível ser um judeu que estuda a Torá, observa as mitzvot e contribui para a sociedade.

Lulav e Hadás representam os dois extremos do espectro. Um possui o que falta ao outro. Já ao Etrog, de forma oposta, não falta nada. No entanto, sua força também é sua fraqueza. O fato de que os judeus simbolizados pelo Etrog têm uma vida equilibrada – estudam a Torá, contribuem à sociedade com seu trabalho e realizam atos de bondade – indica que não conseguem dedicar-se inteiramente ao estudo da Torá e ao cumprimento das mitzvot. O judeu que é um Etrog não estuda tanto a Torá como o que é um Lulav, nem se dedica integralmente a ajudar os demais, como faz o Hadás. O Etrog é um indivíduo harmonioso que não domina a Torá nem é líder ou ativista que trabalha dia e noite em prol de alguma causa nobre.

Por que razão o Lulav é a espécie superior?

Podemos, agora, entender por que razão a bênção das Quatro Espécies menciona apenas o Lulav. Se concluísse com as palavras al netilat Arbaat HaMinim (“ao se ter nas mãos as Quatro Espécies”), estaria indicando que não há diferença entre essas quatro espécies. Essa premissa seria errada, pois são grandes as diferenças entre cada uma delas.

É importante ressaltar que não se pode cumprir a mitzvá das Arbaat HaMinim se alguma das quatro espécies estiver faltando. Pode-se ter o Etrog mais lindo do mundo, mas mesmo se estiver faltando a simples Aravá – a de menor importância dentre as espécies – a pessoa não pode cumprir o mandamento das Quatro Espécies. A exigência de que nenhuma das quatro espécies pode estar faltando nos ensina que o Povo Judeu não está completo se um único judeu estiver alienado ou ausente. Contudo, ainda que cada uma das quatro espécies tenha um papel imprescindível no mandamento, elas não têm igual importância. O Lulav – aqueles judeus representados por esta espécie têm um papel central, e é por esta razão que a bênção termina com as palavras al netilat Lulav.

O Lulav tem um papel central entre as outras três espécies pois, quando não se estuda a Torá, o Judaísmo não é Judaísmo, mas sim Humanismo. É errado acreditar que ser judeu significa, apenas, ser um bom ser humano, pois para tanto não é necessário ser judeu. O mundo está cheio de boas pessoas – de todas as religiões, raças, nacionalidades e etnias. É bem verdade que a contribuição do Povo Judeu à humanidade é grandemente desproporcional a seu número. Contudo, apesar de todas as teorias conspiratórias antissemitas sobre os judeus, seu poder e suas posses, a verdade é que as nações e pessoas mais ricas e poderosas do mundo não são judias.

Um judeu que pratica muitas boas ações mas não estuda a Torá nem cumpre seus mandamentos pode ser um excelente ser humano, mas não é um excelente judeu. Se o propósito Divino ao nos dar a Torá fosse apenas fazer dos judeus pessoas ótimas, praticantes da bondade, D’us não nos teria dado tantas leis que nada têm com as relações interpessoais. Se cada um de nós, judeus, fôssemos um Hadás – se o nosso povo apenas praticasse a bondade, mas não estudasse a Torá – não tardaria para o Judaísmo ser negligenciado e se perder, e para os judeus deixarem de existir.

Uma das razões para a bênção das Quatro Espécies mencionar o Lulav e não o Etrog é que a infinita profundidade da Torá, sua abrangência e complexidade requerem que as melhores cabeças

judias a estudem e transmitam, continuamente. O judeu que é um Etrog – que divide seu tempo de modo a estudar a porção semanal da Torá ou uma página ou duas do Talmud, diariamente – não adquirirá conhecimento suficiente para dominar, esclarecer e disseminar a Torá entre nosso povo. O estudo de algumas horas de Torá por dia não faz desse judeu um legislador. Assim como um ótimo atleta, ganhador de medalhas olímpicas, necessita treinar todos os dias, incessantemente, também um mestre em Torá precisa estudar o tempo todo e dedicar-se inteiramente a isso. Necessita canalizar sua energia física, mental e espiritual exclusivamente ao estudo da Torá.

A escolha do Lulav para ser a única espécie mencionada na bênção das Arbaat HaMinim é controversa – razão pela qual o Talmud e o Midrash a discutem em detalhe. Mas a História Judaica torna evidente a razão para a superioridade do Lulav. Os maiores heróis do Povo Judeu são os nossos Profetas e nossos Sábios. As figuras mais reverenciadas em nossa história são e sempre serão os mestres em Torá. Através dos séculos tivemos incontáveis judeus que deram contribuições extraordinárias ao nosso povo e à humanidade: cientistas, médicos, filantropos, escritores, artistas e pensadores. Mas costumamos dar aos nossos filhos o nome dos heróis e heroínas da Torá ou dos Sábios do Talmud. O Judaísmo existe por causa de nossos grandes Sábios e Mestres que se dedicaram inteiramente à Torá – visando a preservar sua integridade e garantir sua perpetuidade. Os judeus representados pela Aravá, pelo Hadás e mesmo pelo Etrog continuam a existir graças aos judeus simbolizados pelo Lulav. muitas mitzvot – que realizam coisas extraordinárias e fazem contribuições inestimáveis à humanidade. E, ao fazê-lo, glorificam nosso povo. No entanto, o conhecimento da Torá é fundamental para a preservação da identidade judaica da pessoa. E para isso, não há substituto para o estudo da Torá.

O Lulav também nos ensina a reverenciar nossos Sábios. Essa espécie representa os judeus que se sacrificam pela Torá – não os que a usam em benefício próprio. Ser um Lulav é ser humilde, pois nossos Sábios nos ensinam que D’us concede a dádiva da Torá aos humildes. Uma pessoa que é um Lulav não se considera melhor do que outra, mas precisa ter consciência de que desempenha um papel primordial em assegurar a perpetuidade do Judaísmo e de seu povo, o Povo Judeu.

Nem todo judeu nasceu para ser um Lulav e essa é uma das razões para mais três outras espécies comporem, juntas, as Arbaat HaMinim. Todo ser humano tem uma missão na vida. E, como vimos acima, pode ser perigoso que uma

SINAGOGA PORTUGUESA DE AMSTERDÃ DURANTE HOSHANA RABÁ, GRAVURA DE BERNARD PICART, 1725

COM AS QUATRO ESPÉCIES NAS MÃOS, NAS ORAÇÕES DE SUCOT DIANTE DO KOTEL HAMAARAVI

Todos os judeus podem ser um Lulav

O fato da bênção das Quatro Espécies mencionar apenas o Lulav nos ensina que o estudo da Torá tem importância capital. É o alicerce do Judaísmo e a ponte que conduz o Povo Judeu até D’us. Há muitos judeus que cumprem

examinando o lulav. óleo sobre tela. leopold pilichowski,1894/95

pessoa escolha um caminho que não é o seu. Mas cada judeu pode ser, temporariamente, um Lulav desde que se entregue profundamente ao estudo da Torá. Mesmo a pessoa mais ocupada pode dedicar algum tempo, em sua vida diária, para isso. E, ao fazê-lo, deve se entregar inteiramente a isso. Ao se envolver nessa união com a Torá e seu Autor, essa pessoa não deve distrair-se com nada mais.

O mandamento das Quatro Espécies nos ensina acerca da união entre o Povo de Israel, indicando o quanto cada um dos judeus é indispensável à nação. Mas o fato de que a bênção das Quatro Espécies apenas menciona o Lulav obriga cada um de nós a reexaminar seu comprometimento com o Judaísmo. O Pirkei Avot – tratado da Mishná que ensina a sabedoria e a Ética Judaica – afirma que mesmo que somente um de nós, judeus, se envolva no estudo da Torá, a Shechiná – a Presença Divina explícita neste mundo – está ao lado dessa pessoa. Quando um único judeu estuda a Torá, ele ajuda a disseminar a Luz Divina no mundo, fortalece sua alma e a alma de cada um de nós, judeus – mesmo a daqueles que já se foram deste plano terrestre – e ajuda a trazer bênçãos e paz a toda a humanidade.

BIBLIOGRAFIA Schneerson, Rabbi Menachem Mendel, - Likkutei Sichot, volume 4, pg. 1159-1165 Chassidic Perspectives - a festival anthology: Discourses by Rabbi Menachem Mendel Schneerson, the Lubavitcher Rebbe. Translated and Adapted by Rabbi Alter B. Metzger. Kehot Publication Society.

Sucot no Kotel

A vitória de Israel contra isolamento diplomático

Por JAIME SPITZCOVSKY

Nos últimos anos, Israel venceu importante batalha: a da diplomacia, ao superar tentativas de isolamento, ampliar a presença no cenário internacional e implementar ativa e multidirecional política externa.

Aestratégia, a atravessar os últimos governos israelenses, logrou assinar os históricos Acordos de Abraão, com países árabes, manter os laços prioritários com os EUA, implementar vínculos com China e Índia e intensificar a presença israelense em nações africanas, asiáticas e latino-americanas.

A realidade diplomática contrasta sobretudo com os esforços de isolar o Estado Judeu implementados desde a independência, em 1948, mas impulsionados com mais sucesso a partir das guerras dos Seis Dias, em 1967, e do Yom Kipur, em 1973. E os boicotes estiveram longe de cessar na era pós-Guerra Fria e no século 21, mas a política externa israelense driblou iniciativas para mantê-la cercada por barreiras. A escolha por ações mais intensas no cenário internacional começa a se verificar nos anos de poder de Binyamin Netanyahu, de 2009 a 2021, e continua nos recentes governos de Naftali Bennett e de Yair Lapid, numa demonstração de um posicionamento acima das diferenças ideológicas. Israel, conhecido por suas preocupações no campo de segurança, assumiu a importância de também investir recursos na construção de uma presença cada vez mais visível em âmbito global. A mudança ocorre principalmente a partir da crise financeira internacional de 2008, a atingir num primeiro momento EUA e seus aliados europeus. A recessão nos países industrializados evidenciou a crescente importância dos chamados países emergentes, liderados por China e Índia, responsáveis por contribuir, graças a suas reformas e dinamismo, à manutenção de crescimento econômico em escala global.

Netanyahu, ao chegar ao poder em 2009, percebeu o novo desenho geoeconômico e apostou numa ampliação do leque diplomático, tradicionalmente dominado, em particular a partir de 1967, pelas relações com os EUA. A nova estratégia, no entanto, contempla a manutenção dos laços prioritários com Washington.

Outro fator fundamental no redesenho diplomático corresponde a consequências das ambições nucleares do Irã, responsáveis pela aproximação entre Israel e países árabes sunitas, rivais históricos de Teerã por influência no Oriente Médio. Ao longo dos anos, de forma discreta, autoridades israelenses criaram canais de comunicação com interlocutores da Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Omã, entre outras nações localizadas principalmente na região do Golfo Pérsico.

Os vizinhos médio-orientais também se interessaram na aproximação com Israel por razões econômicas, além da preocupação em comum relacionada à ameaça iraniana. De olho na chamada era pós-petróleo, caracterizada pela perda de importância do produto e pela busca por fontes de energia renováveis e menos poluentes, países como Emirados Árabes Unidos e Bahrein embarcaram na busca pela modernização e diversificação de suas economias e encontram em Israel um importante parceiro em áreas como tecnologia e segurança. Enquanto o conflito regional e a questão palestina dominavam debates diplomáticos envolvendo Israel 20 anos atrás, atualmente verifica-se uma impressionante diversificação da agenda, com a inclusão de temas como cooperação econômica e inovações tecnológicas. E, claro, a busca pela ampliação de tratados de paz, como o assinado na Casa Branca em 2020 com Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão. Os Acordos de Abraão abriram um novo e relevante capítulo na história da diplomacia israelense. Deslancharam uma série de iniciativas registradas nos últimos meses, como em março, quando Israel recebeu os chanceleres de Bahrein, Egito, Marrocos, Emirados Árabes Unidos e Estados Unidos, na chamada “Cúpula do Neguev”, pois a reunião ocorreu no Kibutz Sde Boker, no sul do país.

Ministros israelenses, incluindo o da Defesa, Benny Gantz, passaram a ser vistos em desembarques nos aeroportos das capitais Abu Dhabi (Emirados), Manama (Bahrein) e Rabat (Marrocos). O presidente Itzhak Herzog chegou a Ancara, numa visita inédita nos últimos anos, devido às turbulências na relação com o presidente turco, Recep Erdogan, e o então ministro Yair Lapid esteve em Chipre, rival regional da Turquia.

Foto: Freddie Everett

Anthony J. Blinken, Secret. de Estado americano, na Cúpula do Neguev, com os Ministros de Relações Exteriores de Israel Yair Lapid; do Bahrain, Abdullatif bin Rashid Al Zayani; do Egito, Sameh Shoukry; do Marrocos, Nasser Bourita; e dos EAU, Sheikh Abdullah bin Zayed Al Nahyan. Em 28/3/2022, Sde Boker, Israel O presidente Herzog também foi a Amã, para reunião com o rei Abdullah e, em setembro do ano passado, recebeu um telefonema do general Abdel al-Sisi, presidente egípcio, para abordarem temas regionais. Egito e Jordânia assinaram acordos de paz com Israel em 1979 e 1994, respectivamente. A ampliação do radar diplomático israelense ultrapassa as fronteiras do Oriente Médio. Netanyahu visitou China, Índia, Rússia, países africanos e latino-americanos. O caso da África é particularmente emblemático, pois representou uma área de grande importância para Israel nos anos iniciais após a independência, como simbolizou o tour da então chanceler Golda Meir, em 1958, por Gana, Libéria, Nigéria e Senegal.

À época, a diplomacia israelense levava ajuda técnica a países africanos e investia na criação de alianças diplomáticas, em meio a um cenário moldado pelas tentativas de boicote lideradas pela Liga Árabe. Quando Israel ingressou na ONU, em 1949, 42 dos 89 integrantes da entidade se recusavam a reconhecer o direito à existência do Estado Judeu.

Na votação da resolução 181, da Partilha da Palestina, nas Nações Unidas em 1947, houve 33 países a favor, 13 contra e 10 abstenções. A independência de Israel e a criação de dois Estados obteve o apoio das superpotências EUA e URSS, protagonistas da Guerra Fria, então em seus primórdios.

O Kremlin imaginava poder colocar o governo socialista de David BenGurion em sua esfera de influência. Porém, acabou optando pela aliança com países árabes e, com a Guerra dos Seis Dias, em 1967, rompeu relações diplomáticas com Jerusalém e passou a patrocinar uma ofensiva

O PRESIDENTE AMERICANO JOE BIDEN CONVERSA COM O MINISTRO DA DEFESA DE ISRaEL, BENNY GANTZ, À ESQ., E O PRIMEIRO-MINISTRO YAIR LAPID, À DIR., DURANTE A VISITA PARA CONHECER OS SISTEMAS ISRAELENSES DE DEFESA AÉREA, NO AEROPORTO BEN-GURION. 13 DE JULHO DE 2022. TEL AVIV

de isolamento de Israel, arrastando para a iniciativa aliados do chamado Terceiro Mundo, como países africanos e asiáticos.

Em 1975, registrou-se um dos momentos mais nefastos da estratégia anti-israelense, com a aprovação, na Assembleia Geral da ONU, da resolução 3379, equiparando Sionismo a racismo. Registraram-se 72 votos a favor, 35 contra e 32 abstenções, numa demonstração da força diplomática da aliança entre URSS e países “terceiromundistas”.

Em 1991, após o fim da Guerra Fria, a Assembleia Geral da ONU revogou a resolução, com 111 votos a favor. Naquele mesmo ano, Moscou restabeleceu relações diplomáticas com Jerusalém, e, em 1992, coube a Pequim normalizar seus laços com o Estado Judeu.

O fim do maniqueísmo diplomático da Guerra Fria pavimentou o caminho para o retorno da diplomacia israelense a países africanos e asiáticos, antes alinhados ao bloco soviético. Em 2016, durante reunião da Assembleia Geral da ONU, Netanyahu se reuniu com 15 chefes de Estado e embaixadores africanos e, no mesmo ano, visitou Uganda, Quênia, Ruanda e Etiópia. A bússola da diplomacia israelense, embora aponte para mais direções, não deixa de destacar Washington como a prioridade em suas relações, assim como a importância de laços com aliados europeus, a exemplo da Alemanha, em particular nos tempos da chanceler Angela Merkel, no governo entre 2005 e 2021. E, no cardápio das relações com os EUA, recentemente surgiu o desenho de aliança impensável anos atrás.

Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, desembarcou em Israel em julho, num giro pelo Oriente Médio a incluir também visitas a lideranças palestinas e sauditas. E, em Jerusalém, participou da primeira reunião de cúpula do I2U2, grupo formado por Israel, Índia, EUA e Emirados Árabes Unidos. A iniciativa carrega a sigla das letras iniciais de seus integrantes, em inglês. E testemunhou, em Jerusalém, Biden e Yair Lapid conversarem, por videoconferência, com os líderes indiano e emiradense, numa agenda dominada por temas de cooperação econômica, em clara resposta da Casa Branca ao aumento de influência da China no Oriente Médio e na região do Indo-Pacífico.

Nos tempos da Guerra Fria, a Índia se aliava prioritariamente ao Kremlin. Até os Acordos de Abraão, não havia alianças formais entre Israel e países árabes do Golfo Pérsico. Agora, no cenário cada vez mais complexo da diplomacia no século 21, surgem conexões antes consideradas improváveis, e Israel, com uma diplomacia renovada, supera isolamentos e amplia sua presença e peso no cenário global.

Jaime Spitzcovsky COLUNISTA DA FOLHA DE S.PAULO, FOI CORRESPONDENTE DO JORNAL EM MOSCOU E EM PEQUIM.

OS RESILIENTES JUDEUS DE ODESSA

POR ZEVI GHIVELDER

DENTRE AS MILHARES DE CIDADES NAS QUAIS OS JUDEUS VIVEM E VIVERAM NA DIÁSPORA NENHUMA TEM UMA HISTÓRIA TÃO SINGULAR E ENVOLVENTE COMO ODESSA, NA CRIMeIA, ILEGALMENTE ANEXADA PELA RÚSSIA OITO ANOS ATRÁS. NESTE EFERVESCENTE POLO JUDAICO UCRANIANO DE ALMA RUSSA FLORESCERAM ALGUNS DOS MAIORES EXPOENTES INTELECTUAIS DO POVO DE ISRAEL.

Ao longo de 200 anos os judeus de Odessa viveram numa literal montanha russa com ascensões fugazes e quedas impactantes. Desde o início do século 19 e sobretudo a partir de sua segunda metade, Odessa se tornou uma cidade atraente para milhares de habitantes do Império Russo e também para milhares de judeus das shtetls (aldeias), em função de uma generosa e enganosa permissão para se radicarem nas maiores concentrações urbanas da Rússia, Polônia, Romênia e estendida até a Lituânia, um polo de intensa irradiação religiosa e de inesgotáveis estudos teológicos.

Um dos pioneiros de Odessa e seu severo mandatário foi um francês, o Duque de Richelieu, indicado pela imperatriz Catarina II, a Grande (1729-1796), como reconhecimento pelo auxílio da França à Rússia na guerra de 1786 contra a Turquia. Catarina II era apaixonada pela França a ponto de ter como um de seus mentores intelectuais o filósofo francês Denis Diderot, com o qual manteve frequente troca de ideias. Esse engajamento, compartilhado pela maior parte da corte imperial, com os valores artísticos e culturais oriundos de Paris, se refletiu em Odessa, contribuindo para que a cidade se revestisse de um sofisticado cunho cosmopolita tal como foi descrita por Alexander Pushkin, até hoje o mais celebrado poeta russo que ali viveu dois anos, banido de Moscou sob a acusação de atividades subversivas. Nas cartas que então escreveu, Pushkin disse que “Odessa é a mais europeia das cidades russas” e enfatizou em outra carta: “Este aqui é um lugar com cheiro de Europa. Aqui se fala francês e há livros de escritores franceses para se ler”.

Por tudo isso, Odessa passou a exibir um estilo arquitetônico com características francesas e italianas ornadas por incursões mediterrâneas. A rigor, a cidade teve a sorte de contar com competentes sucessores do nobre francês, muitos deles contratados no exterior. Esses governantes, dotados de apurada visão da economia e das demandas sociais, foram responsáveis pela modernização dos portos, pela abertura de largas avenidas e instalações de parques recreativos, tudo ornado com belos canteiros de acácias, a par da construção de uma maravilhosa casa de espetáculos erguida à feição da Ópera de Paris. A beleza da cidade foi alvo de tanta visibilidade e deslumbramento que passou a ser chamada de “Pérola do Mar Negro”.

VISTA AÉREA DE ODESSA, DESTACANDO-SE O BELO EDIFÍCIO DA ÓPERA

Na verdade, a existência de dois grandes portos em Odessa foi essencial para o perfil cosmopolita da cidade, abrigando levas de viajantes, importadores, exportadores e comerciantes.

Foi a agitação existente àquela altura do século 19 que concorreu para atrair grande quantidade de judeus, a ponto de Odessa ser apontada como a mais judaica das cidades do Império Russo, somando 40 mil almas que correspondiam a 30 por cento do total da cidade. Os novos habitantes se integraram aos poucos judeus que lá viviam desde o final do século 18 e lograram formar uma comunidade solidamente estruturada. Contava com uma sinagoga subsidiada pela prefeitura, cemitério próprio, um abrigo para os pobres e uma escola com o nome de Talmud Torah, que, por muitos anos, foi dirigida pelo escritor Mendele Mocher Sforim, considerado o patriarca da literatura iídiche.

A comunidade se orgulhava da criação da sua Sociedade para a Promoção da Cultura, que, no final do século 19, contava com cerca

Coroa da Torá em prata, Odessa de 1500 membros. Este local era a sede do grupo Chovevei Zion (Amantes de Tsion), precursor do Sionismo, seguidor entusiasta do livro de Leon Pinsker (1821-1891), Autoemancipação, sobre o qual Herzl assim se referiu: “Se eu tivesse lido esse livro a tempo, não precisaria ter escrito O Estado Judeu”. A mesma Sociedade abrigava o grupo Bilu, constituído por famílias judaicas determinadas a emigrar para a ancestral Eretz Israel (Terra de Israel), conforme a denominavam. Foram os chamados biluim de Odessa que, em 1882, lá aportaram e plantaram as sementes do pioneirismo, antes ainda da existência do movimento sionista.

O ambiente favorável vigente em Odessa permitiu que jovens judeus se dedicassem ao estudo de profissões liberais, sendo que, em

1881, metade dos médicos locais eram judeus, além de dezenas de dentistas e farmacêuticos.

O mais importante, porém, foi a presença judaica na imprensa russa: três dos maiores jornais diários com conteúdo liberal tinham proprietários judeus, com destaque para o mais popular e de maior circulação, o Odeskie Novosti, em cujo quadro editorial despontavam como colaboradores jornalistas de formação ideológica nacionalista, como Vladimir (depois Zeev) Jabotinsky (1880-1940), e Ahad Ha’am (1856-1927), cujos artigos eram avidamente consumidos por judeus e inclusive por não-judeus.

No comércio, milhares de lojas com as mais variadas espécies de produtos pertenciam a judeus que, no final do século 19 empregavam 26 mil funcionários e balconistas, inclusive mulheres que já se recusavam à restrição de apenas cumprir tarefas domésticas.

Porém, nem tudo foi tranquilo para os judeus de Odessa. A primeira matança em forma de pogrom ali foi desferida em 1821, como consequência da luta pela independência da Grécia. (Alguns historiadores discordam dessa denominação porque a palavra pogrom só integrou o vocabulário czarista muitos anos depois). Naquela oportunidade os gregos ficaram convencidos de que os judeus haviam apoiado os otomanos autores do assassinato do patriarca grego de Istambul, ainda chamada de Constantinopla pelos europeus, uma presunção que não correspondia à verdade.

Trinta anos depois, a comunidade grega, que era a maior dentre as estrangeiras radicadas em Odessa, aproveitou-se de uma rixa entre comerciantes gregos e judeus para promover nova chacina de judeus.

ODESSA EM 1850, A MAIOR CIDADE NO LITORAL DO MAR NEGRO. UCRÂNIA

Outros pogroms se seguiram em 1871, 1881 e 1876. O mais letal de todos aconteceu em 1905. Entre os dias 18 e 22 de outubro, inconformados com o apoio judaico ao Japão na guerra contra a Rússia (vencida pelo Japão), russos, gregos e ucranianos mataram 400 judeus, número contestado por alguns historiadores que estimam em mais de mil o número de vítimas fatais e cinco mil feridos, além de destruição de 1.400 estabelecimentos comerciais e três mil residências, deixando famílias em total desabrigo e perfazendo prejuízos da ordem de cerca de 800 mil rublos, imensa fortuna naquela época. A rigor, foi uma chacina anunciada.

Nos anos anteriores, jovens judeus e russos se enfrentavam nas ruas de Odessa, o que resultava em grande número de escoriações nos dois lados dos conflitos. Esses combates se prolongaram durante seis meses, nos quais Odessa viveu um pavoroso caos. Os hospitais que tratavam de

ESCRITORES JUDEUS DE ODESSA, EM 1810: DA ESQ. PARA DIR., MENDELE MOCHER SFORIM, SHOLEM ALEICHEM, BEN-AMI E cHAIM NACHMAN BIALIK

1. 2.

3. 1. LEO PINSKER 2. DA ESQ. PARA A DIR., OS ESCRITORES BEN-AMI E MENDELE MOCHER SFORIM 3. Ahad Ha’am e Chaim Nachman Bialik

um a dois casos de esfaqueamentos por semana passaram a tratar de igual número por dia. Nesses mesmos dias, o cônsul britânico em Odessa escreveu, horrorizado, um documento para sua chancelaria, relatando a ocorrência de roubos e assassinatos à luz do dia, sucessivos vandalismos e infinidades de saques. Tal anarquia e insegurança fizeram com que milhares de judeus partissem da Ucrânia, em geral, e de Odessa, em particular, para os Estados Unidos, enquanto outros seguiram as iniciativas dos biluim e rumaram para a Palestina Otomana. Apesar de tantos infortúnios, Odessa sempre conservou sua condição de centro de irradiação da literatura com temática judaica, em três idiomas: russo, iídiche e hebraico. Odessa era de tal forma atraente por sua estatura literária e postulados ideológicos que para lá afluíram dezenas de escritores e intelectuais judeus de diversos países da Europa. Estes, em função de suas consistentes bagagens culturais e demonstrações de talento, passaram a ser chamados de “Os Sábios de Odessa”. O escritor mais reverenciado era Mendele Mocher Sforim (1836-1917), pseudônimo de

Zeev Jabotinsky (1880-1940), NO CENTRO, COM OS SOLDADOS DA LEGIÃO JUDAICA, OUTONO DE 1918 Sholem Yankev Abramovitch, que, assim como outros autores, adotou uma firme postura nacionalista e de adesão à Haskalah, o iluminismo judaico. Visto hoje em perspectiva histórica, os “Sábios” demonstravam um ardor nacionalista que pode ser considerado como um vigoroso préSionismo, tendo em Leon Pinsker um de seus mentores mais ativos e líder do movimento Chovevei Zion até seu último dia de vida. Os passos de Pinsker se cruzaram com os de escritores e pensadores como Ahad Ha’am, pseudônimo de Asher Ginsburg, o historiador Shimon Dubnow, o romancista Moshe Leib Lilienblum, o poeta Chaim Nachman Bialik e muitos outros talentos.

Os trabalhos desses “Sábios de Odessa” tiveram ampla repercussão nos círculos literários judaicos da Polônia e da Rússia tendo sido rotulados pelos críticos como “o estilo de Odessa”, porque a própria cidade servia como fonte de inspiração para suas produções e permanecia impregnada em seus sentimentos mesmo quando, por algum motivo, dela se ausentavam. Certa ocasião, estando em Varsóvia, Ahad Ha’am escreveu: “A falta que sinto de Odessa e de tudo que nela

“APÓS O POGROM”, ÓLEO DE MAURYCY MINKOWSKI, 1910. The Jewish Museum, Nova York

existe e que tanto amo, é uma falta muito maior do que eu seria capaz de imaginar”.

Zeev Jabotinsky, nascido em Odessa e um viajante que, no transcurso da vida, percorreu continentes, sempre encontrava uma pausa para regressar à sua cidade, sobre a qual escreveu um romance em que um personagem, em certas passagens, descreve a cidade em comoventes tons poéticos. Entretanto, a poesia não era o forte de Jabotinsky. Seus textos em favor da criação de uma pátria judaica, abrangendo desde o rio Jordão até a costa do Mediterrâneo,

JUDEU DE ODESSA. FOTOESTÚDIO J.X.RAOULT, 1870

RUÍNAS DE UMA SINAGOGA CONSTRUÍDA NA DÉCADA DE 1740 eram flamejantes, mobilizadores de consciências e chamativos para apoiadores. Jabotinsky foi uma das maiores personalidades que emergiram no Povo Judeu nas primeiras quatro décadas do século 20. Seu perfil foi criteriosamente sumarizado nesta revista (edição 107), conforme exposto a seguir.

Carismático, Jabotinsky possuía muitas facetas e um extraordinário magnetismo pessoal. Intelectual brilhante, de invejável cultura, era escritor, poeta, jornalista e poliglota – dominava 12 idiomas, entre eles o hebraico. Filósofo, o epicentro de sua filosofia sociopolítica era estabelecer um Estado Judeu soberano. Um dos melhores oradores de sua época, ele magnetizava as plateias. Era dirigente político e lutou como soldado portando a farda do primeiro Exército Judeu dos tempos modernos, após dois mil anos de exílio, organizado por ele mesmo.

Inúmeras lendas foram criadas em torno de sua pessoa, e seu pensamento foi deturpado por seguidores e opositores. Hoje, sua figura e suas ideias estão sendo resgatadas tanto dentro de Israel quanto na Diáspora. Acusado por seus opositores de ter ideias fascistas, Jabotinsky se declarava um adepto do liberalismo; rejeitava qualquer pensamento dogmático e via no coletivismo uma nova forma de escravização. Ele enfatizava a primazia do indivíduo e de suas liberdades sobre o coletivo. Foi sua ferrenha oposição às teorias socialistas – tão defendidas por Ben-Gurion e pelos adeptos do Sionismo Trabalhista – o que provocou profunda animosidade entre os dois líderes e seus seguidores.

Desde jovem, Jabotinsky escolheu não ser apenas um intelectual. Após

abraçar o Sionismo, organizou na Rússia e em Eretz Israel grupos de autodefesa judaica. Foi o responsável pela criação de organizações de autodefesa judaica na Rússia e em Eretz Israel: como a Legião Judaica, o movimento juvenil sionista Betar e o grupo paramilitar clandestino Irgun Tzvaí Leumi, que se manteve coeso após sua morte, em 1940, e se levantou com armas contra o poder mandatário britânico, sob a liderança de Menachem Begin.

Seu ideário político é até hoje debatido em Israel e permanece agregado às propostas de diferentes partidos, em sucessivas campanhas eleitorais. No aspecto estritamente literário o legado de Jabotinsky se resume ao romance Os Cinco: A Vida Judaica na Passagem do Século em Odessa. O livro enfoca múltiplos aspectos das vidas de uma família de judeus daquela época, com personagens que percorrem o Sionismo, a assimilação, a propensão à conversão, devoções e alienações religiosas e eloquente oposição às ideias socialistas. A cidade de Odessa está presente em cada capítulo, tratada sem nostalgia e como um lugar destinado a propiciar um entendimento construtivo entre os seres humanos.

Os atuais estudiosos da literatura russa incluem a obra de Isaac Babel (1894-1940) no mesmo patamar dos grandes autores clássicos russos, compreendendo desde Tolstoi até Gorki, passando por Dostoievsky e Tchekov. Profícuo na produção de contos com acentuada raiz jornalística, sua coletânea intitulada A Cavalaria Vermelha é considerada uma definitiva obra-prima. Oriundo do pobre subúrbio de Moldavanka, distrito de Odessa, o judeu Babel teve uma vida tão fascinante quanto sua obra. Com 21 anos de idade se engajou aos bolcheviques vitoriosos na Revolução Russa de 1917, revoltado com os pogroms dos anos anteriores. Como soldado, participou de uma incursão militar soviética mal sucedida na Polônia, destinada a implantar o Comunismo. Essa experiência o elevou à condição de correspondente de guerra junto às tropas bolcheviques constituídas em sua maioria por cossacos. Babel ficou impressionado com a violência e o antissemitismo desses cossacos. Para se proteger, adotou o nome russo de Karil Vassilievitch Lyutov e foi protegido por esse disfarce que acompanhou as agressões dos cossacos contra os judeus que encontravam nos avanços das tropas. Estas foram justamente as paisagens físicas e os contraditórios das almas humanas que resultaram em seus relatos contidos em A Cavalaria Vermelha.

Isaac Babel sempre foi uma pessoa extravagante e indiferente a quaisquer convenções sociais. Teve três filhos com três mulheres diferentes, por conta de suas frequentes viagens através de diversos países da Europa, enquanto mantinha uma espécie de residência oficial em Moscou. Por motivos ignorados e decerto acrescidos por antissemitismo, Babel passou a ser perseguido por Laurenti Beria, chefe da NKVD, antecessora da KGB. De acordo com as praxes dos expurgos soviéticos, foi acusado de cosmopolitismo e de ter atuado como espião a serviço da França e da Áustria. Foi preso e submetido a interrogatórios durante oito meses, levado a um julgamento com a duração de vinte minutos e fuzilado no dia 27 de janeiro de 1940. Suas últimas palavras foram: “Jamais agi como espião contra o regime soviético. Eu só queria ter mais tempo para terminar minha obra”.

ISAAC BABEL

TEATRO ESTATAL IÍDICHE DE ODESSA. CENA DE “VIOLINISTA NO TELHADO”, DE SHOLEM ALEICHEM, 1939

JUDEUS DE ODESSA, PRESOS. 1941

Essa obra inacabada, mas consagrada, ficou para a posteridade como a mais crítica, afetuosa e apaixonada pela cidade de Odessa, sobretudo pelo percurso em seu tortuoso submundo recheado de malandros e trapaceiros. Há também uma descrição do bairro judeu de Odessa, exposta com enorme ternura, na qual ressalta o peso da tradição apontada como hostil a qualquer tentativa de mudança na sua rotina. Por isso, em outra passagem de sua obra escreve: “É muito difícil desviar os judeus de seus costumes antigos. Mudar eles não vão”. Relembrando sua infância assinala: “Meus passos de casa até a escola eram cheios de devaneios. Eu conhecia cada pedra do caminho, cada casa, cada vitrine, com a certeza de que estava desvendando tudo que havia de misterioso, aquilo que os adultos chamavam de essência das coisas”. Na mesma época, diz ele ter recebido um conselho da avó que lhe serviria de guia no decorrer da vida inteira: “Você deve saber tudo”. No conto O Rebe, diz um personagem ancião: “Tudo é mortal. Mas apenas a mãe é destinada a uma vida imortal. E quando ela já não está entre os vivos, deixa uma memória que ninguém ousa contaminar. particular, como se nenhuma outra tivesse sido capaz de existir.

Ausente de Odessa por ter aderido à Revolução Bolchevique, Babel não testemunhou a convulsão que esta infligiu na comunidade judaica. A maior parte aderiu à revolução porque pelo menos um terço dos líderes bolcheviques e anarquistas eram judeus. Ao mesmo tempo, os judeus ortodoxos e os mais observantes se opuseram ao movimento empenhado em derrubar o Império Russo por considerar seus seguidores desprovidos de fé religiosa e por discordar de suas ações violentas. Os revolucionários judeus procuram mobilizar as massas judaicas e evidenciar a obrigação de combater de forma radical o antissemitismo vigente, há séculos, e que os bolcheviques haviam prometido erradicar. Na ocasião, um rabino de Moscou observou: “São os trotskys que estão fazendo a revolução, mas são os bronsteins que vão pagar o preço”. (Bronstein era o verdadeiro sobrenome de Leon Trotsky, parte do tripé com Lenin e Stalin que comandava a insurreição).

A memória da mãe nos inunda de compaixão como se fosse um oceano, um oceano sem limites que alimenta rios dissecando o universo”.

Isaac Babel alcançou inusitada proeza literária, uma audaciosa jornada empreendida em sentido inverso: transformou a ficção numa irretocável e insubstituível realidade. Por causa dele, o mundo passou a observar a trajetória de Odessa através da sua visão

Sinagoga antiga, Odessa

O dito rabino estava coberto de razão. Assim que o Exército Vermelho entrou em Odessa, seu comandante convocou milhares de camponeses para lhes dizer que estava em curso uma rebelião com essência antiburguesa. E quem eram os mais autênticos burgueses? Claro que eram os judeus.

Pelos próximos anos, o entranhado antissemitismo russo encontrou uma área fértil em Odessa, onde os judeus tentaram resistir às socializações e ao confisco de suas propriedades. No entanto, depois do abandono da Yevsetskia, o burocrático departamento soviético supostamente encarregado das questões judaicas, o poder centralizado em Moscou foi desdobrado em Odessa, já tendo o antissemitismo como uma política oficial do estado.

As mesmas restrições e infundadas acusações de traição ao regime impostas na capital singraram as águas do Mar Negro e se reproduziram a partir da segunda década do século 20 naquela cidade que havia sido uma fortaleza da cultura judaica desde o fim do século anterior.

Assim como aconteceu em outras cidades e capitais europeias, a vida em Odessa mudou por completo nos dois anos que se seguiram ao início da 2ª Guerra Mundial.

MONUMENTO EM MEMÓRIA DO ASSASSINATO EM MASSA DO POVO JUDEU NESSA CIDADE, NO OUTONO DE 1941. ODESSA, UCRÂNIA

O marco mais tenebroso dessas transformações foi a invasão da então União Soviética pela Alemanha nazista, no dia 22 de junho de 1941. Em agosto daquele ano, tropas romenas aliadas ao Nazismo cercaram Odessa. A cidade se rendeu em outubro, mas cerca de 80 mil judeus se aproveitaram desse interregno para escapar e se juntar às hordas de refugiados errantes nos campos e estradas da Europa.

EDIFÍCIO DA SINAGOGA E CENTRO COMUNITÁRIO JUDAICO TIKVÁ. ODESSA, UCRÂNIA

IMIGRANTES JUDEUS DA UCRÂNIA DESEMBARCAM EM ISRAEl

GAROTO UCRANIANO, AJUDADO POR UM ISRAELENSE, AO CHEGAR EM ISRAEL APÓS A INVASÃO RUSSA NA UCRÂNIA

Outros 90 mil judeus decidiram permanecer em Odessa, que foi submetida ao comando central romeno instalado na Transnistria, atual Moldova e antiga Bessarábia.

Os judeus que ficaram em Odessa muitas vezes se insurgiram contra a ocupação. No dia 22 de outubro fizeram explodir uma bomba na sede do quartel-general romeno, matando 167 militares, inclusive o comandante romeno, 16 oficiais de alta patente, e quatro oficiais da marinha nazista. Como retaliação, os romenos transportaram 19 mil judeus para uma praça em frente ao porto e os metralharam. Quando a munição acabou, jogaram gasolina sobre os sobreviventes e os queimaram vivos. Na semana seguinte, os romenos levaram 20 mil judeus para Dalnik, uma aldeia próxima e colocaram todos em celeiros que foram incendiados. Em novembro, cerca de 35 mil judeus foram instalados em dois guetos, nas localidades de Dalnik e Slodboka, onde muitos morreram de fome e doenças. Em janeiro e fevereiro, cerca de 20 mil judeus foram levados para campos de concentração na Transnistria e libertados por tropas soviéticas em abril de 1944, um ano antes do fim do conflito.

Desde então, a Ucrânia voltou a ser parte da então União Soviética e se tornou oficialmente independente como nação, em 1991. Odessa, situada na península da Crimeia, ao sul, integrava o novo país e abrigava uma população de 40 mil judeus. Contudo, sua condição ucraniana só durou até 2014, quando a Crimeia foi anexada pela Rússia, uma agressão territorial inexistente na Europa desde a 2a Guerra Mundial. Foi uma expansão indevida e consumada para atender às ambições imperiais do ditador russo Vladimir Putin.

Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 24 de fevereiro desse ano de 2022, embora teoricamente Odessa pertença à parte agressora, a contingência da guerra, que já incluiu o bombardeio do porto de Odessa, vem contribuindo para deteriorar as condições da comunidade judaica local. Cerca de 20 por cento dos judeus já deixaram a cidade, parte deles resgatados para Israel. Uma sobrevivente do Holocausto, com 97 anos de idade, chamada Valerye Bendersky, esteve entre os novos imigrantes que, ao ser acolhida pelo filho residente em Tel Aviv, apenas balbuciou ao ser cercada pelos microfones da imprensa: “Agora eu estou em casa”.

BIBLIOGRAFIA Babel, Isaac, Red Cavalry, W. Morton&Comp., EUA, 2003 Sylvester, Roshannah, Tales of Odessa, Northern Illinois University, EUA, 2005. King, Charles, Odessa: Genius and Death in a City of Dreams, W. Morton&comp., EUA, 2012.

Zevi Ghivelder é escritor e jornalista.

A Difícil Jornada das Pessoas Deslocadas pelo Holocausto

Por mendy tal

Em seu avanço para retomar as nações europeias conquistadas pelo Terceiro Reich, tropas aliadas libertaram campos de concentração nazistas e encontraram judeus sobreviventes. Outros milhares deles ainda estavam milagrosamente vivos, escondidos nos guetos em ruínas, nas florestas e nas cidades. Duas perguntas assombravam os sobreviventes: alguém mais se salvara? Como iriam reconstruir suas vidas?

Estima-se que na Europa tenham sido encontrados, no final da guerra, 500 mil judeus, dos quais um grande número estava in extremis, tanto em termos físicos como psicológicos. Eles não sabiam que suas provações não estavam terminadas, que os esperavam mais desilusões e sofrimentos.

Ao libertar os campos de concentração nazistas os soldados aliados ficaram assombrados, não conseguindo, muitas vezes, distinguir os judeus vivos dos moribundos e dos já falecidos. O socorro foi prestado imediatamente, mas, por maiores que fossem os esforços e a dedicação dos que tentaram salvá-los, dezenas de milhares de judeus morreram nos primeiros meses após a libertação. Em Bergen-Belsen, um dos infames campos de concentração, houve mais de 23 mil mortes em três meses após a libertação, 90% das quais eram judeus.

Acabada a guerra, os judeus remanescentes da catástrofe tentaram retornar a suas casas e imediatamente começaram a procurar desesperadamente por suas famílias, para saber se alguém sobrevivera. Para esse fim, foi criado o Central Tracing Bureau que os ajudava a localizar parentes, e as transmissões de rádio e jornais públicos continham infindáveis listas de sobreviventes e seu paradeiro.

As Pessoas Deslocadas

Antes mesmo do término da guerra, as Forças Aliadas previam que haveria na Europa uma crise de refugiados, sendo então elaborados planos para repatriar os milhões de deslocados de guerra (DP - Displaced People). Após a derrota da Alemanha, os Aliados – norteamericanos, britânicos, soviéticos e franceses – cada um deles ocupando um diferente setor geográfico na Alemanha e na Áustria – incumbiram a seus exércitos a tarefa de facilitar o rápido retorno dos DPs à sua respectiva terra natal.

Em seu avanço pela Europa, os exércitos aliados encontraram entre sete a nove milhões de pessoas deslocadas pela guerra vivendo em países que não eram os seus. Apesar da caótica situação da Europa no pós-guerra, os Aliados acreditavam que a repatriação duraria por volta de seis meses. E, de fato, entre os meses de maio e dezembro de 1945, os militares e a UNRRA – United Nations Relief and Rehabilitation Administration – repatriaram mais de seis milhões de

JUDEUS SOBREVIVENTES DOS CAMPOS NAZISTAS DE CONCENTRAÇÃO, EM UM CAMINHÃO A CAMINHO DE PRAGA. VIENA, JUNHO 1945

DPs. Mas dentre estes, os judeus oriundos da Europa Oriental eram um problema à parte, cuja solução provou ser difícil e demorada.

Apesar das imensas dificuldades, os judeus da Europa Ocidental conseguiram voltar para seus lugares de origens. Mas os da Europa Oriental não tardaram em perceber que não tinham para onde ir. Suas famílias, amigos, vilarejos e cidades inteiras haviam deixado de existir. Suas casas e seus bens haviam sido confiscados, e ninguém pretendia devolvê-los. Muitos dos que retornaram passaram a temer por sua vida, constatando que o mesmo antissemitismo arraigado que existia antes da guerra ainda estava vivo e forte. Na Polônia, por exemplo, os habitantes locais iniciaram vários pogroms violentos. O pior foi o de Kielce, em 1946, no qual 42 judeus, todos sobreviventes do Holocausto, foram mortos. Esses pogroms levaram a um segundo movimento significativo de refugiados judeus da Polônia para o oeste.

Campos para DPs

O Exército norte-americano, buscando solucionar os problemas mais prementes, organizou, em sua respectiva zona de ocupação, campos para pessoas deslocadas onde lhes era garantido abrigo, alimentação, segurança. Durante os primeiros meses os rabinos do Exército norte-americano serviram como representantes dos DPs judeus, cuidando de sua correspondência e de suas solicitações.

Mas as forças aliadas não estavam preparadas para lidar com a situação encontrada nos campos, tampouco com um contingente tão grande de pessoas. No pós-guerra não havia recursos suficientes, nem locais onde podiam ser abrigados, e a terrível solução foi abrigá-los nos campos

DR. JOSEPH SCHWARTZ (À ESQ.) E EARL HARRISON (À DIR.). ALEMANHA, 20 JUL.1945 de concentração nazistas renovados. Bergen-Belsen foi um dos campos de concentração que acabou sendo transformado em campo de pessoas deslocadas.

Mesmo renovados, os campos não estavam preparados de forma alguma para acolher a avalanche de pessoas que, fugindo, das zonas sob o domínio da União Soviética, procuravam refúgio na Zona Norteamericana a partir de 1945.

Meses após a libertação muitos judeus – que haviam escapado por pouco da morte quando da libertação pelas forças aliadas dos campos de concentração e trabalho forçado – ainda permaneciam nesses mesmos campos que, apesar de livres, ainda estavam por trás de arame farpado. O drama da subnutrição, tifo, piolhos e graves traumas psicológicos ainda afligiam essas pessoas.

As condições nesses locais eram muitas vezes insalubres devido à severa superlotação e à falta de suprimentos no período pós-guerra. Inicialmente, todos os deslocados (que incluíam militares alemães, guardas nazistas, sobreviventes de campos de concentração, prisioneiros de guerra e trabalhadores escravos) foram agrupados nos campos de acordo com a nacionalidade. Isso significava que, nesses campos, alguns sobreviventes judeus se encontravam lado a lado com seus antigos algozes simplesmente por serem oriundos do mesmo país.

Enquanto os soldados utilizavam médicos, remédios, alimentos das forças armadas, o mesmo não se aplicava ao vestuário. A falta de roupas civis para todos os DPs significava que, num primeiro momento, muitos judeus continuavam a se vestir com seus

PESSOAS DESLOCADAS RECEBENDO SUPRIMENTOS VINDOS EM UM AMBULÂNCIA. REGIÃO DE SALZGITTER, ALEMANHA, 1946

míseros uniformes dos campos ou as roupas dos soldados alemães. Os sobreviventes, que se referiam a si mesmos como she’erit hapletah (o remanescente sobrevivente), um termo bíblico de Ezra 9:14 e Crônicas I 4:43, desejavam deixar o que consideravam o solo amaldiçoado da Alemanha e da Europa o mais rápido possível. Mas os portões da Terra de Israel e de outros destinos permaneciam fechados e, em muitos casos, sua condição física e psicológica impossibilitava qualquer movimento imediato.

Com o passar dos meses as relações entre os DPs judeus e o Exército norte-americano se deterioraram. À medida que o número de deslocados aumentava, os militares norte-americanos, quem sabe com que tipo de autojustificativa, passaram a impedir sua saída dos campos a não ser que tivessem uma destinação definitiva. Era uma perversidade inimaginável: os judeus atrás de arame farpado, sob a mira de guardas armados, enquanto a maioria Harrison, reitor da Faculdade de Direito da Universidade da Pensilvânia e recém-nomeado delegado norte-americano ao Comitê Intergovernamental sobre Refugiados, que, na qualidade de seu enviado pessoal, preparasse um relatório sobre a situação dos judeus deslocados na Europa. Harrison fez uma visita de inspeção de três semanas aos

dos criminosos de guerra nazistas viviam em suas casas, moviam-se em liberdade e continuavam a odiar as vítimas cuja destruição não conseguiram alcançar.

A situação só mudou por ordem direta do então presidente Harry Truman, dos Estados Unidos. Em 22 de junho de 1945, o presidente solicitou a Earl G.

UM GAROTINHO AGUARDANDO PARA DEIXAR O DP DE DEGGENDORF, 1947 JARDIM DE INFÂNCIA EM UM CAMPO DE PESSOAS DESLOCADAS. SALZBURGO, ÁUSTRIA

BRIT MILÁ DE JOSEF LICHTENSZTEIN, PRIMEIRA CRIANÇA NASCIDA NO CAMPO DE PESSOAS DESLOCADAS EM HEIDENHEIM, ALEMANHA, 1946

campos de DP, acompanhado pelo Dr. Joseph Schwartz, um representante do Comitê Judaico Americano de Distribuição Conjunta (o conhecido Joint, responsável pela vinda de tantos de nossos leitores ao Brasil).

Harrison ficou chocado com o que viu nos campos e não mediu palavras em seu relatório ao presidente Truman. O relato foi uma condenação contundente da forma como os DPs judeus estavam sendo tratados, e a denúncia visava provocar uma ação rápida dos Estados Unidos.

“Como as coisas estão agora, parece que estamos tratando os judeus da mesma forma como os nazistas o fizeram, exceto que não os exterminamos. Em grande número, eles estão em campos de concentração, sob nossa guarda militar, em lugar das tropas das SS.”

Entretanto, independente das agruras, milhares destes judeus procuravam ansiosamente retornar à vida. A tentativa de reagrupar as famílias acompanhou a criação de novas; houve muitos casamentos e muitos nascimentos nos campos de Pessoas Deslocadas. Grande parte destas pessoas eram homens e mulheres jovens, que se apaixonaram, casaram e criaram novas famílias. Os recém-nascidos representavam a grande vingança contra o extermínio do Povo Judeu. As crescentes taxas de gestações e nascimentos expressavam uma profunda necessidade judaica; era como se uma criança fosse a contribuição pessoal de cada sobrevivente para a existência continuada do Povo Judeu.

Durante sua vigência, entre 1946 e 1950, os campos de DP como Feldafing, Fohrenwald, Landsberg e Pocking – localizados perto de pequenas cidades que nunca haviam abrigado uma comunidade judaica – tornaram-se, por um curto período, centros de uma vibrante vida cultural judaica.

Juntamente com o auxílio de muitas organizações, como o Joint, a Cruz Vermelha, a Organization for Rehabilitation through Training (ORT) e a UNRRA, as estruturas autônomas criadas nos campos auxiliaram esses sobreviventes, “pessoas deslocadas”, a recuperar sua dignidade.

Uma de suas principais carências era o contato humano. Haviam perdido sua família e estavam sozinhos no mundo. Assim, a vida foi desabrochando entre eles. Estabeleceram atividades educacionais, treinamentos vocacionais, atividades culturais, entre outras.

Em muitos campos de DP, os judeus libertados elegiam representantes quase que imediatamente após sua libertação. Em Bergen-Belsen, já em 18 de abril de 1945, formaram um comitê representativo, até a criação do primeiro Congresso de Judeus Libertados na Zona Britânica, convocado em setembro daquele ano. Na Zona Norte-americana, foi constituído o Comitê de Judeus Libertados na Baviera (mais tarde expandido para o Comitê de Judeus Libertados na Zona Norteamericana), em uma reunião em 1º de julho de 1945 no campo DP de Feldafing. Em dezembro de 1947, a pequena comunidade de DPs judeus na Zona Francesa elegeria um comitê central semelhante. Os dois principais líderes políticos eleitos pelos DPs

BEN-GURION VISITA O CAMPO DP EM BERGEN-BELSEN. ALEMANHA, OUT. 1945

em 1945 foram Josef Rosensaft, empresário da cidade polonesa de Bedzin, na Zona Britânica, e Zalman Grinberg, médico da cidade lituana de Kovno, na Zona Norte-americana. A maioria dos partidos judeus do pré-guerra na Europa Oriental participaram das eleições, incluindo os socialistas do Bund e os ortodoxos do Partido Agudat Israel.

No entanto, ao contrário da Europa do pré-guerra, os sionistas de todos os matizes claramente passaram a dominar o espectro político. A linha oficial de todas as organizações que representavam o She’erit Hapletah era sionista. Eles repetidamente pediram ao governo britânico que abrisse a emigração para a Palestina sob Mandato Britânico, e a visita de David BenGurion aos campos de DP, em outubro de 1945, ajudou a ampliar o entusiasmo pela causa sionista. Os sobreviventes ansiavam por criar raízes em outros países. A maioria sonhava em ir para Eretz Israel e lá restabelecer o Estado Judeu, mas os britânicos, que governavam a região, proibiram sua entrada à terra que, há milênios, lhes pertencia. As leis de cotas de imigração dos Estados Unidos e de outras nações, como o Brasil, tampouco facilitaram o restabelecimento geográfico destas pessoas deslocadas.

A Agência Judaica comprou barcos para levar os judeus de volta à sua Terra Sagrada, mesmo que ilegalmente, mas quando essas embarcações eram interceptadas, os britânicos impediam sua entrada e os enviam de volta à Europa e ao campo de detenção, em Chipre. Com isso, a imagem do Reino Unido no mundo ficou extremamente arranhada. À medida que a crise escalava, o governo britânico decidiu submeter o problema da Palestina às Nações Unidas (ONU). Em uma sessão especial, em 29 de novembro de 1947, a Assembleia Geral da ONU votou pela divisão da Palestina em dois novos estados, um judeu e outro árabe, recomendação esta que os líderes judeus aceitaram e os árabes rejeitaram.

Com a retirada pelos ingleses de suas forças militares da Terra de Israel, no início de abril de 1948, os líderes sionistas se mobilizaram para estabelecer um Estado Judeu moderno.

Em 14 de maio de 1948, David Ben-Gurion, presidente da Agência Judaica para a Palestina, anunciou a formação do Estado de Israel, declarando:

“O Holocausto nazista, que engoliu milhões de judeus na Europa, provou novamente a urgência do restabelecimento do Estado Judeu, que resolveria o problema da falta de moradia judaica, abrindo suas portas para todos os judeus e elevando o Povo Judeu à igualdade entre as nações”.

Os sobreviventes do Holocausto, dos campos de deslocados na Europa e dos campos de detenção em Chipre foram recebidos alegremente em Eretz Israel, a ansiada terra judaica.

Enfim, o judeu estava de volta a seu Lar ancestral.

Sobreviventes do campo de concentração a caminho da Terra de Israel, 15 DE JUL. 1945

Mendy Tal é Cientista Político e Ativista Comunitário

David Ben-Gurion, ladeado pelos membros de seu governo provisório, lÊ a Declaração de Independência. 14 de maio de 1948. Museu Municipal de Tel Aviv

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