81 minute read

Purim e o Jejum de Esther

Next Article
antissemitismo

antissemitismo

O Jejum de Esther (Taanit Esther) é realizado no dia 13 do mês hebraico de Adar. termina ao anoitecer, quando um novo dia se inicia, 14 de Adar, inaugurando a festa de Purim – uma das datas mais felizes do ano judaico. Ao contrário dos jejuns de Yom Kipur e Tishá b’Av, nos quais jejuamos por mais de 24 horas, taanit Esther é o que se conhece como um meio-jejum: inicia-se antes do nascer do sol e se encerra ao pôr do sol. É costume quebrar o jejum somente após ouvir a leitura da Meguilá, na noite de Purim.

neste ano judaico de 5783, o Jejum de Esther será realizado no dia 6 de março de 2023 – segunda-feira. A festa de Purim será celebrada ao anoitecer e no dia seguinte, 7 de março. Normalmente, observa-se Taanit Esther no dia 13 de Adar, mas quando Purim cai na noite de sábado e no dia de domingo, o jejum é antecipado: é movido do Shabat (quando é proibido jejuar, exceto em Yom Kipur) para a quinta-feira anterior.

Advertisement

Há quatro meios-jejuns no calendário judaico. Três deles – o jejum de Guedaliá, realizado em 3 de Tishrei, o de 10 de Tevet e o de 17 de Tamuz – comemoram eventos difíceis na história do Povo de Israel. O Jejum de Esther é o único meiojejum que celebra um evento feliz: o fracasso dos planos genocidas de Haman e o subsequente triunfo do Povo Judeu sobre seus inimigos, em uma batalha travada em 13 de Adar. Ao contrário de todos os outros, o Jejum de Esther não foi ordenado pela Torá ou pelos Profetas. Portanto, sua observância é mais branda, principalmente quando se trata de mulheres grávidas ou lactantes e de pessoas doentes que passariam muito mal se jejuassem. Um resumo da história de Purim

Para entendermos o motivo do Jejum de Esther, é necessário relembrar os principais eventos da história de Purim.

A história narrada no Livro de Esther (Meguilat Esther) ocorreu na antiga Pérsia, atual Irã, no século 4 a.E.C. O Templo Sagrado de Jerusalém havia sido destruído há mais de 50 anos, e os judeus eram súditos do poderoso e extenso Império Persa.

Três anos após o rei Achashverosh ter ascendido ao trono persa, ele promove uma grande festa para todos os seus súditos. Durante as festividades, Achashverosh ordena que sua esposa Vashti apareça nua diante de todos os homens: o rei desejava mostrar a todos a beleza de sua rainha. Vashti se recusa a fazê-lo e, a conselho de um de seus assessores, Achashverosh ordena que ela seja executada.

Quando a ira do rei se dissipa, ele se sente solitário. Seus servos sugerem que se organizasse um concurso de beleza: oficiais de todas as terras do rei trariam belas moças para Achashverosh e a que achasse graça aos olhos dele seria a nova rainha.

Esther e Mordechai. Aert de Gelder, 1675

O líder dos judeus à época, Mordechai, residente da capital persa de Shushan, tinha uma sobrinha, Esther, que ele havia criado como filha. Embora não desejasse ser rainha, Esther é levada à força para o harém do rei para participar do concurso de beleza. Enquanto todas as outras concorrentes, que almejavam tornar-se a nova rainha do Império Persa, embelezavam-se com perfumes e loções, Esther nada fazia para atrair a atenção do rei. Mas D’us tinha Seus planos. E quando ela aparece diante do rei, ele imediatamente gosta de Esther e a torna sua nova esposa. Mesmo após se tornar rainha, ela não revela a sua identidade judaica para o rei Achashverosh.

Pouco depois de Esther se tornar rainha, Mordechai toma conhecimento de um plano para assassinar o rei. Mordechai transmite essa informação a Esther, que passa a

Rainha Esther. Andrea del Castagno. Itália, C. 1450 informação adiante. Assim, a vida de Achashverosh é salva graças a Mordechai.

Enquanto isso, Haman, um dos ministros do rei Achashverosh, é promovido ao cargo de primeiro-ministro. Haman era a personificação do antissemitismo – um descendente do povo de Amalek – nação arqui-inimiga dos Filhos de Israel. Imediatamente após Haman se tornar primeiroministro da Pérsia, o rei emite um decreto: todas as pessoas do império teriam de se curvar perante Haman. Mas como esse notório antissemita andava com um ídolo pendurado em uma corrente em seu pescoço, Mordechai se recusava a se curvar diante dele. Isso serve de pretexto para que Haman orquestrasse um plano diabólico: o extermínio de todo o Povo de Israel. Haman faz

um jogo da sorte para determinar o dia em que implementaria seu plano. A sorte caiu no dia 13 do mês hebraico de Adar.

Haman oferece ao rei Achashverosh 10 mil moedas de prata para obter permissão para exterminar todos os judeus. Achashverosh, que também não era amigo do Povo de Israel, diz a Haman: “Guarde seu dinheiro, e faça com essa nação o que bem entender”.

Haman envia proclamações a todas as terras sob o reinado de Achashverosh. Seladas com o anel do rei, ordenavam que todos se levantassem contra os judeus e exterminassem a todos – homens, mulheres e crianças – no dia 13 de Adar.

Quando Mordechai toma conhecimento do decreto nefasto de Haman, ele envia uma mensagem a Esther pedindo-lhe que interceda perante o rei para que este poupe o Povo de Israel do extermínio. Esther responde a Mordechai que qualquer pessoa que entrasse na presença do rei sem ter sido convocada seria morta, a menos que o rei estendesse a essa pessoa seu cetro de ouro. “E eu”, disse Esther, “já não sou convocada pelo rei há 30 dias!”

Mordechai então envia outra mensagem à rainha Esther: “Não pense que você escapará do destino de todos os judeus por estar no palácio do rei. Pois se você permanecer calada neste momento, alívio e salvação virão para os judeus de outra fonte, e você e a casa de seus pais perecerão. E quem sabe se não foi com essa finalidade que você alcançou esta posição real” (Esther, 5:14).

Esther concorda em se aproximar do rei mesmo sem ter sido convocada. Pede a Mordechai que reúna todos os judeus em Shushan e que todos jejuem por três dias e três noites. Esther também participaria desse jejum, após o que ela arriscaria sua vida aproximando-se do rei mesmo sem ter sido convocada.

Mordechai atende ao pedido de Esther. Ele reúne os judeus de Shushan e todos jejuam durante três dias e três noites.

Após o término do jejum, Esther veste trajes reais e adentra os aposentos de Achashverosh. Imediatamente, o rei estende seu cetro e pergunta a Esther o que ela desejava. Esther responde ao rei que deseja convidá-lo, bem como a Haman, para um pequeno banquete que ela havia preparado.

O rei Achashverosh e Haman juntam-se a Esther para participar do banquete por ela organizado. Durante a refeição, o rei pergunta novamente a Esther se ela tinha algo a pedir. “Sim”,

Rainha Esther fala com o Rei Achashverosh (Esther 8: 3-12). Londres, biblioteca britânica respondeu Esther. “Eu gostaria que amanhã, novamente, o rei e Haman se juntassem a mim para um banquete. E então revelarei ao rei o meu pedido”.

Haman deixa a festa sentindose feliz e orgulhoso por ter sido homenageado pela rainha. Mas ele se depara com Mordechai que, mais uma vez, se recusa a se curvar diante dele. Quando Haman volta a seus aposentos, sua esposa e seus conselheiros o aconselham a erguer uma forca e pedir permissão ao rei para enforcar Mordechai. Haman segue o conselho.

Naquela noite, o rei Achashverosh não consegue dormir. E então pede a seus servos para ler para ele as Crônicas Reais. Eles abrem em uma página que descrevia como Mordechai havia salvado a vida do rei ao revelar que dois de seus camareiros haviam planejado matá-lo.

Achashverosh pergunta a eles: “Ele foi recompensado por este belo ato?” E eles respondem que Mordechai não havia sido recompensado de nenhuma forma por ter salvado a vida do rei.

Naquele mesmo momento, Haman chega no palácio real para pedir ao rei permissão para enforcar Mordechai. Antes de Haman informar o motivo de sua visita, o rei dirige-se a ele e pergunta: “Na sua opinião, o que deve ser feito a uma pessoa a quem o rei deseja honrar?”

Haman, que tinha certeza de que o rei se referia a ele,

responde: “Tragam-lhe roupas reais e um cavalo real. E que um dos nobres do rei vista o homem e o conduza a cavalo pelas ruas da cidade, proclamando diante dele: ‘Assim é feito para o homem a quem o rei deseja honrar!’”

“Uma ótima ideia”, responde Achashverosh. “Agora vá pegar as roupas e o cavalo e faça isso para Mordechai”.

Haman não tem escolha a não ser obedecer. No dia seguinte, ele honra Mordechai como o rei havia ordenado, e, logo depois, corre para se juntar ao rei e a Esther para o segundo banquete. Durante a refeição, o rei pede para que Esther finalmente revele seu pedido.

“Se achei graça aos teus olhos, ó rei”, implora Esther, “e se for do teu agrado, que minha vida me seja concedida pelo meu pedido, bem como a vida do meu povo, pelo meu pedido. Pois meu povo e eu fomos vendidos para sermos aniquilados, mortos e destruídos!”. Esther então identifica Haman como o vilão que desejava cometer essa atrocidade.

O rei se enche de ódio contra Haman. E quando lhe é informado que ele havia construído uma forca para Mordechai, o rei ordena que a mesma seja utilizada para enforcar o próprio Haman. Naquele mesmo dia, o rei Achashverosh nomeia Mordechai primeiro-ministro da Pérsia.

Haman estava morto, mas seu decreto nefasto ainda permanecia em vigor. De acordo com a lei persa da época, um decreto real não podia ser revogado. O que o rei Achashverosh fez então foi dar permissão a Mordechai e Esther para que redigissem um decreto que

MEGUILAT ESTHER. envoltório em PRATA E PEDRAS PRECIOSAS. C. 1920

“e se for do seu agrado, que minha vida me seja concedida pelo meu pedido, bem como a vida do meu povo, pelo meu pedido...”

autorizasse os judeus a se defender contra seus inimigos. Já que àquela altura todos sabiam que a rainha e o recém-nomeado primeiro-ministro eram judeus, ninguém impediria os judeus de se defenderem. Assim, no dia 13 de Adar daquele ano, os judeus prevaleceram sobre os inimigos que, a mando de Haman, levantaram-se para matá-los.

A rainha Esther também pede permissão ao rei para que fosse dado aos judeus de Shushan, capital da Pérsia, o direito de lutar contra seus inimigos por mais um dia. Achashverosh atendeu seu pedido. Naquele dia, 14 de Adar, enquanto o Povo de Israel comemorava a vitória do dia anterior, os judeus de Shushan continuaram a lutar – mataram um número ainda maior de seus inimigos e enforcaram os 10 filhos de Haman. Os judeus de Shushan então descansaram e comemoraram a vitória no dia 15 de Adar. Mordechai e Esther estabeleceram a festa de Purim para comemorar esses eventos extraordinários.

PURIM - LITOGRAFIA COLORIDA, MOSHEH SHAH MIZRAHI, JERUSALÉM. INÍCIO DO SÉC. 20. COLEÇÃO DA FAMÍLIA GROSS, TEL AVIV

Judeus em todo o mundo comemoram Purim no dia 14 de Adar, enquanto os moradores de cidades muradas em Israel – hoje, apenas Jerusalém – comemoram a data no dia 15 de Adar, assim como fizeram os judeus de Shushan. Purim é considerada uma das datas mais alegres do calendário judaico.

Por que foi instituído o Jejum de Esther?

Maimônides (o Rambam) escreve: “Todo o Povo Judeu segue o costume de jejuar... no dia 13 de Adar, em comemoração ao jejum realizado na época de Haman, como está escrito: “Para estabelecer para si mesmos o assunto dos jejuns e seus clamores” (Esther, 10:31). Ao explicar o motivo do Jejum de Esther, Maimônides cita um verso do Livro de Esther em que a palavra “jejum” está no plural: “o assunto dos jejuns”. Vários comentaristas clássicos da Torá deduzem que ao citar um versículo da Meguilá que menciona “jejuns”, Maimônides sustenta a opinião de que o Jejum de Esther é realizado em lembrança aos três dias e três noites de jejum consecutivos observados pelo Povo Judeu. Como vimos acima no resumo da história de Purim, Mordechai, o líder do Povo de Israel à época, pediu à sua sobrinha, a rainha Esther, que intercedesse junto ao rei Achashverosh para que este revogasse o decreto de genocídio de Haman. Esther responde a Mordechai que qualquer pessoa que se aproximasse do rei sem ter sido convocada seria morta, a menos que o rei estendesse a essa pessoa seu cetro de ouro. Esther concordou em arriscar sua vida com a condição de que todo o Povo Judeu jejuasse por três dias e três noites.

Mas a opinião do Rambam sobre o motivo pelo qual jejuamos na véspera de Purim não é unânime. O Rabino David Avudraham, uma das maiores autoridades sobre a liturgia judaica, diverge de Maimônides. Ele escreve: “Até mesmo HaYarchi [o Rabino Avraham ben Nathan, que viveu na Provença, sul da

França, durante o século 12] escreve que esses jejuns não são uma comemoração dos jejuns de Esther, pois não jejuamos por três dias consecutivos, dia e noite, [como Esther o fez]. Além disso, esses jejuns (de três dias e três noites) foram realizados em Pessach... Em vez disso, (o jejum do dia 13 de Adar foi instituído) por causa do versículo: ‘E os judeus ... reuniram-se no dia 13 (de Adar)’; [esta reunião] foi com o propósito de jejuarem [juntos]”.

De acordo com Avudraham, o Jejum de Esther é realizado no dia 13 de Adar porque, na história de Purim, o Povo Judeu jejuou nessa data – o dia da batalha contra seus inimigos – visando a despertar a misericórdia Divina. Como explicado acima, a revogação do decreto de Haman

significou que o rei Achashverosh concedera aos judeus o direito de autodefesa. O dia 13 de Adar foi o dia em que os judeus travaram batalhas e derrotaram aqueles que, galvanizados por Haman, se levantaram para aniquilá-los. Os judeus jejuaram no dia 13 de Adar porque reconheceram que precisavam da ajuda de D’us para derrotar seus inimigos. De fato, há precedentes para isso na história judaica: quando Yehoshua liderou os Filhos de Israel na batalha contra Amalek, Moshé e seu irmão Aharon e o sobrinho deles, Chur – filho de Miriam – jejuaram.

Quem está correto? O Rambam ou o Avudraham, que cita a opinião de HaYarchi? Por um lado, é possível refutar os desafios apresentados por HaYarchi que contestam a opinião do Rambam. Pode-se argumentar, por exemplo, que embora Taanit Esther comemore os três dias e três noites de jejum observados sob ordens da rainha Esther, observamos apenas um curto jejum no dia 13 de Adar porque nossos Sábios não quiseram impor sobre o Povo Judeu um jejum extremamente longo e difícil. Também pode-se argumentar que a razão do Jejum de Esther ser realizado no dia anterior a Purim, e não em Pessach – como foram os três jejuns consecutivos solicitados pela rainha Esther – é que faz sentido comemorar os jejuns que levaram à nossa salvação em Purim na véspera desta festa – e não no mês seguinte, Nissan, que é quando celebramos Pessach. Além disso, o mês de Nissan celebra a liberdade e a redenção do Povo Judeu. Nissan foi também o mês da inauguração do Mishkan – o Tabernáculo. Jejuar em Nissan para comemorar os jejuns que concernem a festa de Purim seria, portanto, inapropriado. Finalmente, o próprio nome do jejum – Taanit Esther – constitui um forte indicativo de que comemora os jejuns solicitados pela rainha Esther. Pois se esse jejum comemorasse aquele realizado pelo Povo Judeu em 13 de Adar – o dia da batalha contra seus inimigos – por que seria chamado de Jejum de Esther?

Vale ressaltar, porém, que mesmo esse último argumento - o fato de se chamar Taanit Esther o jejum da véspera de Purim – não A rainha Esther, por outro lado, passou o dia 13 de Adar no palácio real – ela não se juntou aos judeus no campo de batalha – e, portanto, jejuou nesse dia. De acordo com HaYarchi, o jejum realizado na véspera de Purim é chamado de Taanit Esther porque a rainha Esther foi a única pessoa a jejuar no dia 13 de Adar como forma de atrair a misericórdia Divina sobre os judeus que estavam lutando contra aqueles que desejavam exterminá-los.

Livro de Esther, escrito em um pergaminho (meguilá) para ser lido na festa de Purim. Alsácia (?), século 18

constitui uma refutação clara da posição de HaYarchi. Esse Sábio poderia argumentar o seguinte: Em princípio, os judeus decidiram jejuar no dia 13 de Adar para despertar a misericórdia Divina.

O objetivo desse jejum seria pedir a D’us que os ajudasse na batalha contra seus inimigos. No entanto, os judeus não chegaram a jejuar no próprio dia 13 de Adar porque isso comprometeria sua força física durante as batalhas. Portanto, o Povo Judeu se comprometeu a jejuar em uma data posterior. Qual a finalidade de um jejum, de acordo com o Judaísmo?

A disputa entre as posições de Rambam e Avudraham, que cita a opinião de HaYarchi, lembra as discussões talmúdicas, em que grandes Sábios têm opiniões diferentes, até mesmo opostas. A verdade é que todas são válidas porque ensinam diferentes pontos de vista e importantes lições. Como afirma o Talmud sobre as discussões entre a Escola de Hillel e a de Shammai: “Estas e aquelas,

meguilat esther ricamente ilustrada. amsterdã, c. 1701

ambas são as palavras do D’us Vivo”. De fato, as posições do Rambam e de Avudraham são válidas e podem nos orientar em nosso relacionamento com D’us. A Torá afirma que “D’us o abençoará em tudo o que você fizer” (Deuteronômio 15:18). Esse versículo da Torá nos ensina que todo sucesso se deve a dois elementos: “tudo o que você fizer” (os esforços do ser humano neste mundo material) e a bênção de D’us. Na história de Purim, os jejuns realizados pelo Povo Judeu tiveram o propósito de despertar a bênção de D’us para anular o decreto de Haman e trazer sucesso aos seus esforços físicos na luta contra aqueles que desejavam aniquilá-los.

De acordo com a visão de Avudraham, o Jejum de Esther destaca a importância de buscar as bênçãos de D’us mesmo sob circunstâncias favoráveis. Vale lembrar que depois de a rainha Esther ter intercedido com sucesso junto ao rei Achashverosh, todos os oficiais do reino estavam apoiando os judeus na batalha, e “ninguém podia resistir a eles, porque o medo [dos judeus] havia caído sobre todos os povos” (Esther 9:2-3). Apesar de se encontrarem em uma posição muito favorável, os judeus se comprometeram a jejuar pois reconheceram que precisariam da ajuda de D’us no campo de batalha.

De acordo com a visão do Rambam, o Jejum de Esther nos ensina que podemos despertar ilimitadas bênçãos Divinas e transformar até as circunstâncias mais adversas e desfavoráveis. O plano de Haman para aniquilar o Povo de Israel parecia ser irrevogável, pois o próprio rei o havia aprovado. No entanto, apesar da situação desesperadora em que se encontravam os judeus, a rainha Esther percebeu que, se ela e todo o Povo de Israel jejuassem por três dias e três noites, seria possível atrair a misericórdia Divina e, assim, reverter a situação. Foi exatamente o que ocorreu. No final da história de Purim, não apenas o decreto genocida de Haman é frustrado, mas Mordechai toma seu lugar como primeiro-ministro e “para os judeus houve luz, felicidade, alegria e glória” (Esther 9:16). As mulheres e a Redenção

Seja qual for a razão pela qual jejuamos em Taanit Esther, o próprio nome do jejum destaca o papel das mulheres na dinâmica da redenção. Nossos Sábios (Talmud Bavli, Sotá 11b) ensinam que “pelo mérito das mulheres justas, os judeus foram redimidos do Egito”, e, de fato, de exílios posteriores também. Foi-nos prometido “Como nos dias do seu Êxodo do Egito, Eu lhes mostrarei maravilhas” (Miquéias 7:15). Rabi Yitzhak Luria, o Arizal – o maior Cabalista de todos os tempos – ensinou que os judeus que presenciarão a redenção final constituem a reencarnação daqueles que foram libertados no Êxodo do Egito. Isso significa que a futura redenção refletirá a redenção arquetípica, a do Egito, e assim, podemos supor que ela também virá como resultado do mérito de mulheres justas.

Taanit Esther e a história de Purim como um todo nos lembram que foi por mérito de uma mulher, Esther, que o Povo Judeu sobreviveu àqueles que tentaram aniquilá-lo. Foi por mérito das mulheres judias que nosso povo foi libertado do Egito, tornando-se uma nação – o povo a quem D’us deu a Sua Torá. Foi por mérito de uma mulher, Esther, que nosso povo existe até hoje e, se D’us quiser, existirá eternamente.

Bibliografia The Basic Purim Story - A Brief Retelling of the Book of Esther (Megillah), artigo publicado no site https://www.chabad.org/ holidays/purim The Fast of Esther, adaptado da obra Likkutei Sichot - An Anthology of talks by the Lubavitcher Rebbe, Rabbi Menachem Mendel Schneerson, publicado no site https://www.chabad.org/therebbe

Dois anos dos Acordos de Abraão

Por JAIME SPITZCOVSKY

Iniciativa diplomática no Oriente Médio mais impactante em décadas, os Acordos de Abraão, assinados entre Israel e quatro países árabes (Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão) apresentam significativos resultados dois anos após sua assinatura. Os tratados pavimentaram o caminho para laços comerciais em franca expansão, cooperação em áreas científicas e até militares, implementação de rotas turísticas e o florescimento de vida judaica, por exemplo, em Dubai e Abu Dhabi.

Em 14 de setembro, o Hilton Abu Dhabi Yas Island recebeu mais de 1,5 mil convidados para o casamento de Levi Duchman e Lea Hadad. A festa virou reportagem do The New York Times, e um vídeo viralizou no Instagram, ao mostrar judeus e muçulmanos dançando entusiasticamente ao som de música chassídica.

Rabinos como Levi Duchman e Elie Abadie trabalham junto a uma comunidade em acelerada expansão, desde 2020. Estimativas oficiais registram cerca de 700 judeus vivendo nos Emirados, entre israelenses e oriundos de outros países. No entanto, há quem fale em cerca de 2 mil cidadãos de Israel com domicílio no país do Golfo Pérsico.

O meteórico ressurgimento de vida judaica em um cenário árabe, assim como o desenvolvimento de laços diplomáticos e comerciais, se deve aos Acordos de Abraão, assinados a 15 de setembro de 2020, em Washington. A cerimônia histórica reuniu o presidente Donald Trump, o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, e os chanceleres emiradense Abdullah bin Zayed Al-Nahyan e barenita Abdullatif bin Rashid Al -Zayani. Posteriormente, Marrocos e Sudão aderiram à caravana diplomática. Com papel preponderante na concepção e articulação de Jared Kushner, genro de Trump, os Acordos de Abraão na realidade trouxeram à luz um processo de contatos e diálogos discretos que vinham ocorrendo havia anos. Essencialmente, dois fatores levaram à gênese e consolidação de uma iniciativa responsável por levar Israel a saltar de dois para seis os países árabes com os quais assinou tratados de paz, com os passos pioneiros dados com o Egito (1979) e com Jordânia (1994).

Um elemento a levar à inédita aproximação diplomática chama-se ameaça iraniana. O regime de Teerã, no poder após a derrubada do regime pró-Ocidente do xá Reza Pahlevi, em 1979, rejeita os valores democráticos de EUA e de Israel e anuncia os dois países como seus principais inimigos.

País de maioria persa e xiita, o Irã também rivaliza, em busca de supremacia regional, com vizinhos de população majoritariamente árabe e sunita, como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, entre outros.

Nos últimos anos, o regime iraniano investiu pesadamente no avanço de seu programa nuclear, clara ameaça à

estabilidade regional e global. O desafio emanado de Teerã levou Israel e países árabes do Golfo Pérsico, vizinhos ao Irã, a entabularem um diálogo a fim de arquitetar estratégias voltadas a conter o expansionismo do governo persa.

Também o redesenho da geopolítica global contribuiu para a aproximação. construção de uma nova arquitetura de segurança, mais regional e menos dependente do apoio oferecido pelos Estados Unidos.

A chamada era pós-petróleo corresponde a mais um fator a aproximar antigos adversários. Com economias historicamente dependentes da riqueza petrolífera,

Yair Lapid cumprimenta Sheikh Abdullah bin Zayed Al-Nahyan (EAU) na “Cúpula do NegUev”. Março 2022, Sde Boker, Israel

Desde o governo Barack Obama, iniciado em 2009, os EUA implementam a política denominada “pivô para a Ásia”, que consiste em assumir a ascensão da China como principal desafio à liderança norte-americana no século 21. Uma consequência dessa opção é a diminuição da presença militar norte-americana no Oriente Médio, com a retirada, por exemplo, de tropas do Iraque e da Síria, a fim de concentrar mais recursos em fronteiras asiáticas.

A diminuição do foco da Casa Branca no cenário médio-oriental, para ampliar na região do Indo-Pacífico, também contribuiu para israelenses e lideranças árabes sunitas buscarem a países do Golfo Pérsico perceberam a inevitável perda de relevância do produto, devido à busca por fontes de energia limpas e renováveis.

A partir dessa premissa, sobretudo as monarquias conservadoras do Golfo Pérsico, lideradas pela Arábia Saudita, embarcaram num ambicioso processo de diversificação do modelo econômico, a fim de abrir novas fontes de recursos e compensar eventuais perdas de receitas da atividade petrolífera. Emirados Árabes Unidos, Qatar e Bahrein, por exemplo, mergulharam com mais intensidade nesse processo do que os vizinhos sauditas, dono de um ambiente social, político e econômico mais conservador. Em outras palavras, monarquias do Golfo Pérsico menores em território e em população passaram a ser uma espécie de laboratório na estratégia regional de substituir a economia profundamente dependente do petróleo por cenário de desenvolvimento baseado também na expansão do setor de serviços, com atividades como turismo, tecnologia, finanças e passando a serem motores fundamentais da atividade econômica.

Dubai se transformou num importante centro de finanças e de negócios, além de um entroncamento aéreo, com um dos aeroportos mais movimentados do planeta. Voos da Qatar Airways passaram a se espalhar globalmente, enquanto Bahrein passou, por exemplo, a receber uma corrida internacional de Fórmula Um.

Exemplos proliferam desse redesenho da economia. De olho num pragmatismo que contribua para a manutenção no poder de seus regimes monárquicos, países do Golfo Pérsico decidiram ampliar a interação com Israel, antes limitada ao enfrentamento da ameaça iraniana, para uma parceria também em áreas como tecnologia e investimentos, ingredientes valiosos para a renovação de modelos econômicos historicamente baseados no petróleo.

Israel e Emirados Árabes Unidos já assinaram um acordo de livre comércio, com objetivo de atingir a marca de 10 bilhões de dólares em cinco anos. Em 2021, a balança comercial atingiu 1,2 bilhão de dólares e, para este ano, a estimativa é chegar a 2 bilhões de dólares. Os dois países firmaram diversos tratados de cooperação em áreas como investimentos, medicina,

O então ministro das Relações Exteriores de Israel, Yair Lapid, na abertura da Cúpula do Neguev, com o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, e os Ministros de Relações Exteriores dos EAU, Sheikh Abdullah bin Zayed Al-Nahyan; do Marrocos, Nasser Bourita; do Egito, Sameh Shoukry; e do Bahrain, Abdullatif bin Rashid Al-Zayani. Março 2022, Sde Boker, Israel

energia renovável. “Nem raspamos ainda a superfície do potencial de cooperação em todas as áreas”, declarou o primeiro-ministro Yair Lapid, ao receber em Jerusalém, a 15 de setembro, o chanceler emiradense Abdullah bin Zayed Al-Nahyan, no segundo aniversário da assinatura dos Acordos de Abraão. O visitante também conheceu o Yad Vashem.

Em março, o ministro Al-Nahyan havia aterrissado em Israel para um encontro com seus colegas de Israel, Bahrein, Marrocos, Egito e Estados Unidos, numa ação diplomática a escancarar o rearranjo provocado pelos Acordos de Abraão. E a reunião ocorreu num cenário simbólico: kibutz Sde Boker, onde morou David Ben-Gurion, pai da independência israelense.

Representações diplomáticas de Israel se estabeleceram em países signatários do histórico tratado. Voos diretos chegam a solo israelense oriundos de Abu Dhabi, Manama (Bahrein), Casablanca e Marrakesh (Marrocos). Visitas ministeriais acompanham o fluxo turístico e, em novembro de 2021, em Rabat, capital marroquina, reuniram-se os ministros da Defesa Benny Gantz e Abdellatif Loudiyi.

Mais um reflexo dos novos ventos se registrou em junho, com a primeira reunião de cúpula do bloco econômico I2U2, nome formado a partir das iniciais em inglês dos quatro integrantes: Israel, Índia, Estados Unidos e Emirados Árabes Unidos

O encontro inaugural ocorreu quando da visita de Joe Biden a Israel. O presidente norte-americano e o anfitrião Lapid se reuniram num hotel em Jerusalém, para dialogar, por videoconferência, com os líderes indiano e emiradense. A lógica envolvida corresponde a priorizar projetos em áreas como segurança alimentar, com EUA e Israel aportando tecnologia; a Índia oferecendo seu vasto mercado consumidor, enquanto os Emirados contribuem essencialmente com os recursos financeiros.

E, no campo dos projetos, destaca-se a ideia de criar uma ligação terrestre entre Israel e países do Golfo Pérsico, pois o comércio atual depende sobretudo de laços aéreos. Rodovias nesse trajeto também poderiam facilitar o fluxo de mercadorias entre Europa e nações médio-orientais, ampliando horizontes de negócios.

Históricos, os Acordos de Abraão alteraram algumas dinâmicas do Oriente Médio. O esforço agora se concentra em, além de aprofundar suas consequências, atrair outros países do mundo árabe e muçulmano para aderirem à caravana diplomática responsável por uma das maiores mudanças do cenário geopolítico do século 21.

Jaime Spitzcovsky COLUNISTA DA FOLHA DE S.PAULO, FOI CORRESPONDENTE DO JORNAL EM MOSCOU E EM PEQUIM.

O êxodo esquecido dos países árabes

por Lyn Julius

Os judeus do Líbano, Síria e Egito são os principais componentes da comunidade sefardita do Brasil. Mas como e por que eles chegaram nesse país é um mistério para a maioria dos brasileiros – e também para muitos judeus.

Praticamente a primeira coisa que os visitantes veem no aeroporto de São Paulo é uma filial do Banco Safra, fundado por uma família judaica libanesa de Beirute. Nas décadas de 1950 e 60, muitos judeus se reassentaram em São Paulo, vindos da Síria e da cidade libanesa de Saida (Sidon).

Os judeus do Egito fugiram para o Brasil após o ano de 1956. Eles somavam oito mil pessoas em uma comunidade basicamente ashquenazi de 100 mil pessoas. Eles mereceram apenas um parágrafo de explicação no Museu Judaico de São Paulo. Assim sendo, eles decidiram contar sua própria história.

A exposição Judeus do Egito – 70 Anos, composta por fotografias, documentos e objetos, foi exibida na Hebraica em junho e julho deste ano de 2022 e transferida para a sinagoga da comunidade egípcia Ohel Yaacov em setembro. Seu ponto de partida são os 70 anos desde o Golpe dos Oficiais Livres que depôs o Rei Farouk. Enquanto esteve sendo exibida na Hebraica, tive o privilégio de ser convidada por Nessim Hamaoui para viajar da Inglaterra para o Brasil, conhecer a encantadora comunidade judaico-egípcia e falar sobre meu livro Desenraizados. Em 1952, o futuro da comunidade judaica local de 80 mil membros era iminente: após a partida de 20 mil judeus na esteira da Guerra da Independência de Israel, em 1948, outros 25 mil foram expulsos após a crise do Suez. Hoje são menos de dez os judeus que ainda vivem no Egito.

Na década de 1950, o Brasil buscava atrair imigrantes. Funcionários judeus de multinacionais americanas conseguiram transferir seus empregos para São Paulo, a capital comercial do país. Outros foram assistidos pela agência de assistência aos refugiados, HIAS (Hebrew Immigrant Aid Agency, a Agência Judaica de Auxílio a Imigrantes), que nunca exigiu devolução do apoio financeiro prestado a judeus refugiados. Algumas crianças foram contempladas com bolsas gratuitas nas escolas judaicas.

A metade do contingente de judeus egípcios chegara ao Brasil como apátridas. Um deles emigrou da França, na década de 1950, mas antes atirou seu passaporte francês no rio Sena ao ser convocado pelo exército para lutar na guerra na Argélia. Conseguiu comprar um passaporte iraniano e partiu para o Brasil.

interior da Sinagoga Ben Ezra. Cairo, Egito. 2017

Os refugiados não tinham permissão de sair do Egito com mais de 20 dinares1. A solução foi encher caixotes de madeira com roupas e, em sua base, esconder suas joias. Também levavam itens estranhos como uma máquina de moer café, um aparato para cortar legumes e ervas para fazer a tradicional sopa molocheya e até um manual da polícia de Primeiros Socorros.

Esses caixotes eram depois usados para dormir até que os refugiados tivessem meios de comprar um sofá-cama numa negociação de troca com algum de seus bens. Mais de 99% dos judeus expatriados fugiram do mundo árabe nos últimos 60 anos. Cerca de 650 mil deles foram para Israel, dobrando, da noite para o dia, a população judaica do país; 200 mil fugiram para o Ocidente, inclusive o Brasil. E hoje, não chega a quatro mil o número de judeus que vivem nos países árabes.

1 O dinar é a moeda nacional de vários países, a maioria deles árabes, ex-integrantes do extinto Império

Otomano. A palavra “dinar” em árabe é derivada do denário, uma moeda romana. A história dos judeus exilados do Egito é parte de uma história maior – a epopeia da extinção das comunidades judaicas do mundo árabe. E esta tem sido chamada de a maior história que nunca foi contada...

LYN JULIUS EXIBE SEU LIVRO, UPROOTED (DESENRAIZADOS) Seu êxodo ocorreu de duas maneiras. Os melhor equipados, que detinham passaportes estrangeiros e conexões no exterior via de regra organizaram de forma independente a sua partida, principalmente para a Europa, Austrália ou as Américas. Ainda que a Diáspora continue sendo majoritariamente ashquenazita, mais de 50% dos judeus de Israel, hoje, são refugiados mizrahim ou sefaradim de países árabes e muçulmanos, ou são seus descendentes. E isso tem sérias

implicações para o entendimento do conflito do Oriente Médio, a paz e a reconciliação.

Tais judeus provêm de comunidades que eram efetivamente naturais do Oriente Médio e Norte da África. São anteriores à conquista árabe e ao Islã por cerca de mil anos ou mais, e fizeram enormes e importantes contribuições intelectuais ao Judaísmo. Por exemplo, o Talmud Bavli foi elaborado nas academias judaicas que existiam na então Babilônia, na região que hoje é Iraque, no período anterior à chegada do Islã.

Os deslocamentos em massa de refugiados têm sido uma característica de conflitos na primeira metade do século 20: mais de 52 milhões de pessoas foram desalojadas. O conflito entre árabes e israelenses não é exceção. As trocas de população foram comuns no século 20 – praticamente números iguais de judeus do Oriente Médio e Norte da África e árabes palestinos trocaram de lugar. (Houve, também, troca de refugiados entre Grécia e Turquia, Índia e Paquistão, bem como entre os cipriotas gregos e os cipriotas turcos, sem nos esquecermos da migração em massa dos alemães étnicos e outros na esteira da 2a Guerra Mundial). Ainda assim, há muitos que acreditam que Israel foi criado em resposta ao Holocausto e que os refugiados palestinos foram deslocados para dar lugar aos judeus vindos da Europa.

Há também um mito de que judeus e muçulmanos coexistiram pacificamente durante 13 séculos até que a criação do Estado de Israel arruinasse tal relacionamento. Existia uma simbiose cultural, mas os judeus tinham uma vida precária e

interior da Sinagoga Ben Ezra. Cairo, Egito INTERIOR DA SINAGOGA ashquenazi. Cairo, Egito 1994

1. Casamento na Sinagoga de Ismailia, Cairo, Egito, 1949 2. Casamento em Alexandria, Egito,1950

um status de dhimmis, de cidadãos inferiores, sob o Islã. Na ausência de direitos, eles eram obrigados a pagar para obter “favorecimentos”. Viviam à mercê – ou sob a “proteção” – do governante da vez, fosse ele benevolente ou malvado com eles.

Essas condições melhoraram durante o período colonial e os judeus puderam se beneficiar de instrução ocidental e maior segurança. E assim, deixaram em seu caminho importantes contribuições à sociedade. Foram grandes mercadores e empresários, proeminentes músicos e atores, chegando mesmo ao cargo de ministros.

No entanto, na década de 1930, o crescente nacionalismo não deixou espaço para ninguém que não fosse árabe ou muçulmano. Os judeus foram marginalizados até serem expulsos. Violentos motins e massacres eclodiram antes ainda da criação de Israel, fazendo os judeus perceberem que não tinham futuro em países árabes.

Após 1948, o movimento sionista underground e o American

1. 2.

Joint Distribution Committee, determinados, após o Holocausto, a nunca mais abandonar os judeus da Diáspora à sua sorte, resgataram dezenas de milhares de refugiados em algumas das maiores ponteaéreas da história. Quando a pressão pela emigração se tornou insuportável, o Iêmen e o Iraque fizeram um acordo como o Mossad israelense para permitir que os judeus partissem.

Os judeus que permaneceram nesses países muito frequentemente se tornaram prisioneiros em seus países de nascimento, onde vigoravam proibições discriminatórias de viagem.

Apesar de que duas populações de refugiados tivessem trocado de lugar, as circunstâncias de seus deslocamentos foram muito diferentes. Os refugiados árabes palestinos se viram em meio a uma zona de guerra, em 1948. Muitos optaram por fugir, mas ocorreram também expulsões, como em Ramle e Lydda. O fato de que 160 mil árabes, dentre um total de cerca de 870 mil, na então Palestina Ocidental, tivessem optado por lá permanecer é uma clara indicação de que o recém-proclamado Estado de Israel não possuía nenhuma política sistemática de “limpeza étnica”.

Enquanto as populações refugiadas do século 20 foram absorvidas em seus novos países, de acordo com a ONU somente os árabes palestinos continuam sendo considerados como refugiados, sendo-lhes permitido passar seu status a sucessivas gerações, ad infinitum. Suas lideranças mantêm constantemente acesa a vã esperança de um “Direito de Retorno” à Palestina, ainda que a maioria deles lá não tenham nascido e outros tantos não

AVIÃO REPLETO DE JUDEUS IRAQUIANOS AO CHEGAR AO ENTÃO AEROPORTO DE LOD, TEL AVIV, 1951

viveram lá por mais de dois anos. Provavelmente, esses refugiados foram deliberadamente privados de direitos civis nos países que adotaram de modo a permanecer como uma permanente reprovação a Israel e uma arma na luta árabe e muçulmana de décadas contra o Estado Judeu.

Por outro lado, quase um milhão de judeus do Oriente Médio e Norte da África, centenas ou milhares de quilômetros distantes do teatro de guerra, foram escolhidos para serem perseguidos e destituídos

IMIGRANTES IEMENITAS NO ACAMPAMENTO DE KISALON. AGOSTO DE 1950, ISRAEL simplesmente pelo fato de serem judeus. Os governos da Liga Árabe adotaram leis fazendo de seus cidadãos judeus bodes expiatórios como “a minoria judaica do estado da Palestina”. O Sionismo virou crime: os pretextos mais frágeis poderiam ser invocados para prender, julgar e, por que não, executar os judeus.

Enquanto os refugiados palestinos foram deslocados internamente apenas alguns quilômetros, ou realocados em países que, em sua grande maioria, eram muçulmanos sunitas de língua árabe, os judeus foram forçados a abandonar sua antiga herança, seu idioma e sua cultura para de novo começar – do zero.

Em 29 de novembro de 1947, as Nações Unidas aprovaram a resolução 181 de sua Assembleia Geral, aprovando a Partilha da Palestina em um Estado Judeu e um Estado Árabe. Os árabes orgulhosamente rejeitaram o plano, sendo que tumultos antijudaicos explodiram na Síria, Bahrein e Aden, e posteriormente no Egito, Líbia e Marrocos. Os cinco países da Liga Árabe – Síria, Líbano, Egito, Iraque e Jordânia – que haviam

deslanchado a guerra de 1948 contra Israel (o Iêmen e a Arabia Saudita enviaram forças expedicionárias) declararam uma segunda guerra contra seus próprios cidadãos judeus, não-combatentes. Todos esses países criminalizaram o Sionismo, expondo suas minorias judias a acusações de constituírem uma 5ª Coluna.

Os países árabes perderam a guerra contra Israel, mas decididamente venceram a guerra contra seus

próprios judeus. Exceto quando Jacob E. Safra, La Corniche, Beirute, Líbano, 1942

SINAGOGA MAGUEN ABRAHAM. Beirute, LIBANO

eram tratados como reféns e proibidos de deixar o país, não lhes sobrava outra alternativa a não ser partir. Enquanto os judeus que conseguiam fugir da Alemanha Nazista encontravam os portões da maioria dos países fechados para eles, Israel ofereceu aos mais pobres, enfermos e vulneráveis um porto seguro onde aportar.

Na década de 1950, o Marrocos, lar da maior população judaica no mundo árabe, bem como a Líbia e a Tunísia, se filiaram à Liga Árabe, implementando a política de arabização. Apesar de viverem nesses países há dois milênios, os judeus já não se sentiam em casa.

Motins antijudaicos, que atingiam o seu máximo em tempos de guerra com Israel, tiveram um tremendo impacto psicológico: os judeus passaram a se questionar se teriam um futuro em vista da alternativa em Israel. O Estado Judeu prontamente aceitou essas massas espoliadas e destituídas, que se amontoavam, incondicionalmente – como judeus. E lhes ofereceu um porto seguro e a capacidade política de se defenderem, coisa que as minorias nos países árabes desconheciam.

A libertação dos refugiados judeus foi alcançada com altas somas em dinheiro vivo. Israel pagou um resgate por cada um dos judeus, além de custear seu transporte para fora do país. As autoridades iraquianas tiveram que ser subornadas em montantes várias vezes mais altos que seus salários mensais. Custou £12 para transportar cada um dos passageiros para a segurança. Quando foi extinta uma proibição que vigorara durante cinco anos à emigração de famílias judias marroquinas, as indenizações que tiveram que ser pagas às autoridades do Marrocos chegaram a somas inacreditáveis, entre 5-20 milhões de dólares.

Os cerca de 120 mil judeus que abandonavam o Iraque foram destituídos, por decreto, de sua cidadania em 1950, e, posteriormente de suas propriedades, mediante uma lei parlamentar aprovada em sessão secreta. Tinham permissão de partir levando, cada um, no máximo 50 dinares ($80 hoje), um terno, uma aliança de casamento, uma pulseira, um relógio e uma maleta. Não havia garantia de que tais malas fossem chegar a seu destino. Os judeus que partiam queixavam-se de que funcionários desonestos na Alfândega confiscavam a última joia que encontrassem, vasculhavam suas bagagens ou arruinavam seus pertences.

O governo iraquiano concordou em libertar os judeus por julgar que os milhares de judeus destituídos que chegavam a Israel, com pouco mais do que a roupa do corpo, levariam a um colapso econômico. E, enquanto isso, os países árabes e seus

cidadãos colhiam uma bonança de curto prazo com os ativos judaicos confiscados e com as propriedades que eles consideravam que tinham sido abandonadas ou vendidas por tostões. Os custos de longo prazo para a economia e cultura dos países árabes são inquantificáveis.

Os judeus do Iêmen fizeram uma caminhada, longa e arriscada, a pé, até alcançar Aden, colônia da Coroa Britânica: emissários britânicos pagavam a vários chefes tribais iemenitas um imposto per capita para permitirem que os refugiados judeus atravessassem o país. Eles chegavam quase mortos de fome e muito necessitados e passavam longas semanas em acampamentos improvisados, em meio ao calor e à poeira. Cerca de 150 deles morreram no caminho, enquanto outros 700 não resistiram aos campos. Acima de 90% dos 38 mil judeus da Líbia partiram para Israel. Muitos já tinham ficado desabrigados por distúrbios mortais, em 1945, e vinham sendo abrigados nas sinagogas. Praticamente 30 mil judeus da Síria fugiram dos violentos distúrbios em 1947.

Família passeando. Beirute, Líbano, 1954

subsistência. Era questão de tempo sua inevitável partida.

No Iraque, as condições desesperadoras exigiam medidas desesperadoras e, após 1970, seguindo-se aos horrendos enforcamentos de nove judeus na praça principal de Bagdá e o desaparecimento de outras tantas dezenas, a maioria dos remanescentes foram contrabandeados através do Curdistão, com a cumplicidade das autoridades israelenses. Os judeus sírios foram feitos virtuais prisioneiros até a década de 1990, tendo suas atividades restritas e sendo cada um de seus movimentos seguidos pela polícia secreta. Aqueles que podiam, arriscavam-se pelas perigosas rotas de contrabandistas em direção a Israel.

Os 25 mil judeus egípcios, principalmente da classe média, foram sumariamente expulsos após 1956, sendo-lhes concedidas apenas poucas horas para partir,

Os judeus que lá ainda se encontravam, geralmente os mais ricos, e que permaneceram em países árabes, se felicitaram por não se haver juntado ao maciço êxodo. Por um curto período eles continuaram a viver calma e confortavelmente. Porém, piores dias de tormento e terror os aguardavam: os judeus do Egito foram brutalmente expulsos do país após 1956; os poucos milhares dos que permaneciam no Iraque e na Síria, que eram obrigados a portar cartões de identidade especiais, com sua religião, foram destituídos de

seus direitos de cidadão e de sua Joseph Safra e amigos, Beirute, Líbano, 1958

com um limitado montante em dinheiro nos bolsos. Outros foram demitidos de seus empregos e passaram meses na cadeia antes de serem expulsos de vez do Egito.

Muitos dos refugiados ficaram marcados para toda a vida pelo trauma de sua erradicação da terra que julgavam sua. Chefes de família viram, de uma hora para outra, suas licenças de trabalho rescindidas. Esses judeus egípcios continuaram sendo perseguidos pelas abusivas ou obscenas ligações telefônicas que recebiam, ou ligações em que o outro lado da linha permanecia mudo, aterrorizando-os; as ameaças por escrito que recebiam, os subornos que lhes eram exigidos, as sinistras batidas à porta às 3 da manhã; o choque de se deparar com homens armados à porta de suas casas; parentes do sexo masculino sendo presos sem a menor explicação. Os planos de partida tinham que ser feitos em segredo, sem as costumeiras despedidas, especialmente se o destino final era Israel – que alguns dos judeus egípcios chamavam de ‘chez nous’. Quando chegava a hora de sua apressada partida, os judeus do Egito tinham seus passaportes confiscados e substituídos por um laissez-passer marcado com as palavras: ‘uma ida – sem volta”.

Uma vez em segurança, os refugiados enfrentavam o desafio de erguer sua vida, tudo de novo. O custo mental e físico era incalculável.

Há provas empíricas de que um número impressionante deles morreu logo após esse deslocamento e essa destituição, incapazes de lidar com o trauma de serem arrancados de sua terra de nascença e o estresse de ter que buscar sustento para sua família.

Em especial os homens, chefes de família, subitamente viram sua autoridade erodida em uma sociedade menos patriarcal do que a sua de origem. Comerciantes ou administradores em seu país de nascença, despiram os seus ternos e se juntaram aos que trabalhavam nas construções. As mulheres puseram-se a trabalhar, fora de casa, pela primeira vez na vida – e eram, com frequência, mais resilientes à enorme mudança.

Amigos em Alepo, Síria, 1944

Passaporte sírio de um judeu, 1947

Colunas e arcos do pátio de Beit Mourad Farhi, hoje Beit Dahdah. Damasco, Síria.

Os relacionamentos viraram de cabeça para baixo, com os filhos, muitas vezes, assumindo a responsabilidade por seus pais, desorientados. As famílias de refugiados viram-se explodidas e seus membros dispersos através do globo terrestre.

Eram pouco encorajadoras as duras condições que aguardavam os 650 mil judeus que partiram para Israel – as malcheirosas ma’abarot (acampamentos de trânsito), a escassez de alimentos e de empregos, e o idioma e cultura estranhos. Israel se esforçava para lidar com o afluxo de refugiados da Europa e os sobreviventes do Holocausto. E esses acampamentos foram, aos poucos, se transformando em vilarejos e cidades permanentes.

Apesar das dificuldades e do sofrimento dos primeiros anos, esses judeus haviam escapado de motins antijudaicos, sinagogas incendiadas, sequestros, internações e execuções. Hoje, os judeus dos países árabes e muçulmanos estão bem integrados e representados em

Família judia. Damasco, Síria

Amigas em Alepo, Síria, 1937 todas as áreas de atividade em Israel, em seu governo e seu exército.

Muitos conseguiram se sair muito bem. Conta-se a história do judeu egípcio que insistia em visitar o túmulo de Nasser e, ao fazê-lo, disse: “Obrigado Nasser, pois se você não me tivesse expulsado, eu não teria me tornado milionário”.

No final das contas, sua erradicação desses países foi uma libertação e uma bênção. Nenhum desses judeus deseja retornar: se eles houvessem permanecido nas áreas da Síria e

Grande Sinagoga de Alepo, Síria Trem de Alepo rumo à então Palestina, despedida das famílias. Alepo, síria 1944

SINAGOGA CONSTRUÍDA NO INÍCIO DO SÉC. 20. Marrakesh, MARROCOS

Iraque ocupadas pelo ISIS, o Estado Islâmico, e tivessem tido a mesma sorte que os Yazidis e os cristãos assírios, eles teriam sido executados, suas mulheres e filhos estuprados e vendidos como escravos. Ou, no mínimo, a exemplo de outras minorias, eles lá estariam, largados, vulneráveis a pogroms, lutando para alimentar seus filhos e privados de trabalho e de subsistência por discriminação sancionada pelo Estado.

Até a fuga em massa dos cristãos mediorientais após a invasão do Iraque, em 2003, o maior número de refugiados não-muçulmanos no Oriente Médio e Norte da África era composto por judeus. Eles eram em maior número que os refugiados árabes palestinos da região que hoje é Israel. A vasta maioria deles são inequivocamente gratos pelo fato de ter podido escapar e reconstruir sua vida no mundo livre. Referindo-se às autoridades egípcias, Maurice Mizrahi, judeu egípcio que se tornou engenheiro do Pentágono, nos Estados Unidos, afirmou: “Eles nos tiraram tudo; mas a única coisa que eles não podiam tirar estava dentro de nossa cabeça”. No entanto, muitos deles estão incrivelmente frustrados pelo fato de sua história ter sido negligenciada ou esquecida.

O mundo ignorou a história dos refugiados judeus e sua busca por justiça. Não apenas tiveram que lutar para serem reconhecidos como refugiados, mas eles nunca foram indenizados. Estima-se que as propriedades e ativos de judeus roubados ou abandonados em países árabes chegue a cerca

Imigrantes judeus marroquinos chegando em Israel, 1954 de $300 bilhões. As terras judaicas perdidas chegam a uma área do tamanho da Jordânia e Líbano, juntos.

Visando despertar a conscientização para tão grande injustiça, o Knesset, Parlamento de Israel, designou o dia 30 de novembro (dia seguinte à aprovação, pelas Nações Unidas, do plano de partilha) como o Dia de Comemoração da Partida e Êxodo dos judeus dos países árabes e do Irã. Anualmente, esse dia é celebrado em Israel e na Diáspora. Espera-se que também os judeus do Brasil – ashquenazim bem como sefaradim – juntem-se às demais comunidades e organizem suas próprias comemorações. Esse êxodo não é uma história exclusiva sefardita – é uma história judaica.

São muitas as pessoas que negam o antissemitismo e o preconceito árabe e muçulmano, a máquina de “limpeza étnica” que existe na região. Mais do que nunca essa história é relevante para que se entenda a luta árabe/islâmica contra Israel.

Se é que vamos, algum dia, chegar ao ponto de nos entendermos e até mesmo de nos reconciliarmos, é essencial restaurar a luta dos judeus dos países árabes no registro histórico de nosso povo, e derrubar os mitos que tiveram permissão de criar raízes durante décadas de silêncio.

Lyn Julius é Filha de refugiados judeus do Iraque. nascida na Grã-Bretanha, Lyn é jornalista e fundadora da Harif (a Associação de judeus do Oriente Médio e Norte da África). É autora da obra DESENRAIZADOS: Como, da noite para o dia, desapareceram 3.000 anos de civilização judaica no mundo árabe. (Conto Judaico, 2020)

A VÉSPERA DA SOBERANIA –75 anos da partilha

POR ZEVI GHIVELDER

O dia amanheceu gelado em Flushing Meadows, no bairro de Queens, Nova York. Era um dia comum de fim de semana para os americanos, mas especial para os judeus do mundo todo que celebravam o sábado, o Shabat, no qual um judeu observante se abstém de todo trabalho e renova sua devoção ao Criador. Pouco depois do anoitecer, a Assembleia Geral das Nações Unidas ali adotaria partilhar a Palestina sob Mandato Britânico prenunciando a criação do Estado de Israel.

Areunião da Assembleia deveria acontecer num dos pavilhões remanescentes da Feira Internacional de Nova York, que tinha mobilizado as atenções do mundo em 1939. O pavilhão tinha sido transformado em ringue de patinação e depois adaptado para receber os representantes dos países signatários da fundação das Nações Unidas. Alguns líderes sionistas presentes na ocasião pressentiam um mau agouro porque lhes trazia à lembrança o ano de 1939, um dos mais traumáticos na batalha pela criação de uma pátria judaica soberana na sua terra ancestral. Foi o ano em que o Império Britânico, mandatário na Palestina, editou o White Paper, um documento determinando que a continuação ilimitada da imigração judaica levaria a um desequilíbrio demográfico e ao domínio dos mandatários pela força, e que isso era contrário ao espírito da Liga das Nações.

Em artigo para esta revista (edição Nº 65), o historiador Reuven Faingold explicitou que o governo de Sua Majestade havia decidido estabelecer uma cota de 10 mil imigrantes judeus por ano, mais uma outra cota adicional de 25 mil refugiados. Depois de cinco anos teriam chegado à Palestina sob Mandato Britânico 75 mil judeus, e nenhuma outra imigração judaica seria permitida sem o consentimento árabe. A venda de terras para judeus ficava proibida de imediato. Na verdade, o conteúdo do White Paper (Livro Branco, em tradução livre) impedia o desenvolvimento do Lar Nacional judaico e fechava o território, com exceção de uma insignificante fração de refugiados.

O texto recusava a ideia de dividir o Mandato em dois estados, favorecendo uma Palestina independente governada em comum por árabes e judeus, com os primeiros a manter a maioria demográfica. Em setembro de 1939, quando a Alemanha nazista invadiu a Polônia, David Ben-Gurion fez uma declaração que ganhou dimensão histórica: “Nós combateremos na guerra como se não houvesse o White Paper e combateremos o White Paper como se não houvesse guerra”.

A rigor, a possibilidade da existência de dois estados, ou seja, partilhar a então Palestina, já tinha sido objeto da atenção inglesa, dois anos antes, quando foi formada em Londres a Comissão Peel. A dita Comissão foi chefiada por Lorde William Peel, importante político e empresário britânico. A Comissão chegou à Palestina sob Mandato Britânico em novembro, já ciente de um comunicado emitido pelo Mufti, líder dos árabes, segundo o qual

eles não prestariam à Comissão qualquer forma de colaboração. O Ishuv (comunidade judaica na então Palestina) e o movimento sionista tiveram uma reação oposta. Foi elaborado, para ser entregue à Comissão, um extenso relatório. Primeiro, uma dissertação de caráter histórico, evidenciando a presença judaica naquele território desde a antiguidade. A seguir, uma relação dos sucessos ali obtidos pelos judeus desde o início do século, sobretudo na criação dos kibutzim (colônias agrícolas coletivas) e na recuperação de pantanais e vastas áreas até então desertas.

Entre novembro de 1936 e fevereiro de 1937, David Ben-Gurion, Chaim Weizmann e Zeev Jabotinsky, os mais proeminentes líderes sionistas, prestaram depoimento perante a Comissão Peel e outras autoridades britânicas. Ben-Gurion foi o mais enfático: “Nossos direitos nesta terra não têm como origem o Mandato Britânico, nem a Declaração Balfour de 20 anos atrás. Nossos direitos decorrem da Bíblia que nós mesmos escrevemos, em nosso próprio idioma”. Em face da positiva repercussão internacional dos três depoimentos, Amin El Husseini, líder árabe radical conhecido como o Mufti de Jerusalém, reconsiderou sua obstrução. Emitiu, então, uma declaração: “Pretendem reconstruir o templo de Salomão em nossas sagradas propriedades. A Palestina está plenamente ocupada e nela não há lugar para dois povos”.

Mapa do Plano de Partilha da Palestina em novembro de 1947

MEMBROS DA COMISSÃO PEEL EM VISITA À PALESTINA Esta sua posição já era conhecida e até mesmo mais violenta. Uns anos antes da intervenção da Comissão, o jornalista e escritor holandês Pierre Van Passen, autor de um excelente livro sobre a participação da Brigada Judaica na 2ª Guerra Mundial, entrevistou o Mufti em Jerusalém. Este lhe declarou com absoluta tranquilidade: “Nós vamos exterminar os judeus que ocuparam nossas terras”. De fato, a intenção de extermínio tinha tudo a ver com o Mufti, que jamais escondeu seu apoio a Hitler. O ditador nazista o havia recepcionado calorosamente durante a 2ª Guerra e lhe proporcionado um “passeio” por campos de extermínio e de concentração.

No dia 7 de julho de 1937, a Comissão Peel divulgou seu relatório constante de 435 páginas. Este relatório causou espanto ao afirmar que o maior problema não eram os ataques dos árabes contra os judeus, mas dos árabes contra setores árabes que se opunham à tirania do Mufti. Ao fim de tudo, apesar das obviedades que favoreciam o Ishuv, a Comissão Peel apresentou uma proposta desprovida de um mínimo de bom senso no tocante a uma sugerida divisão do território: aos árabes competiria 80% do território, aos judeus 13% e o restante caberia à Inglaterra. Ben-Gurion chegou a cogitar uma aceitação dos 13%, mas foi dissuadido por Weizmann e dez anos transcorreriam até que a partilha voltasse a ser considerada em âmbito internacional.

Após a 2a Guerra Mundial, os ingleses escolheram um novo primeiro-ministro, preterindo Winston Churchill, o grande

ApÓs a partilha ser aprovada pela ONU, Moshe Sharett, Abba Eban e David Hacohen HASTEIAM, NA SEDE DAS NAÇÕES UNIDOS, A BANDEIRA QUE IRIA REPRESENTAR O ESTADO DE ISRAEL. N.Y., 29/11/1947

Chaim Weizmann e David Ben-Gurion, Suíça, 1945

vencedor do conflito. O eleito foi Clement Atlee, do Partido Trabalhista. Em Jerusalém, os líderes da Agência Judaica, em grande parte socialistas, ficaram otimistas. Julgavam que os entendimentos com os novos governantes em Londres, também socialistas, se tornariam mais flexíveis ou, pelo menos, mais cordiais. Sofreram uma contundente decepção. Além das implicações políticas que consistiam em aceitar as exigências dos árabes, era flagrante que o chanceler britânico, Ernest Bevin, não gostava dos judeus e era hostil à causa sionista. Por sua inspiração e ordens, a Marinha de Guerra inglesa empenhou-se sem cessar na tarefa de interceptar e confiscar, com inusitada ferocidade, os navios que conduziam judeus.

De 63 embarcações clandestinas transportando refugiados, somente cinco conseguiram furar o bloqueio. Os apreendidos foram confinados em acampamentos rudimentares na ilha de Chipre. Embora não sofressem violências, o arame farpado à sua volta, os guardas de fuzis nos portões dos acampamentos, em tudo faziam lembrar os campos de concentração nazistas. Questionado sobre as condições de vida dos judeus ali instalados à força, um oficial inglês declarou: “Está bom demais para eles”.

O White Paper encampado pelo Partido Trabalhista britânico impediu a expansão dos kibutzim implantados pelos pioneiros judeus. Indiferentes à sua condição de esquerda, os socialistas ingleses não se deram conta de que os kibutzim representavam uma forma de vida igualitária, levada com sucesso da teoria para a prática.

No fim de 1946, a Inglaterra se encontrava numa situação insustentável no território sob seu mandato. A organização clandestina Irgun, chefiada por Menachem Begin, era incansável em sua luta contra o Mandato Britânico. Os atentados da Irgun contra alvos militares britânicos

haviam se sucedido de forma incessante, culminando com um atentado ao Hotel King David, em Jerusalém, que servia como sede para o alto comando inglês. A bomba fora escondida num latão de leite colocado no porão do hotel. Antes da explosão do petardo, a Irgun telefonou para o King David, advertindo que seus ocupantes deveriam evacuar o prédio. Ao ser informado, o comandante britânico assim reagiu: “Eu não recebo ordens de judeus”. A explosão matou 92 pessoas, entre militares, civis e funcionários do hotel.

Os próprios líderes da Agência Judaica repudiaram o atentado porque se empenhavam em atingir somente por vias pacíficas a implementação de um lar nacional judaico na Terra de Israel.

Na verdade, os ingleses estavam perplexos em face do novo tipo de judeu que deviam combater. Assim como os demais europeus ocidentais, estavam habituados à passividade judaica estendida ao longo de aldeias e pequenas cidades da Rússia e da Polônia. Eram judeus que dificilmente reagiam a sangrentos ataques e perseguições. Agora, o poder militar britânico enfrentava uma nova geração de judeus, nascidos na Palestina nas duas primeiras décadas do Século 20. Eram jovens audaciosos e determinados, dispostos a emancipar a terra onde haviam nascido. Muitos recorreram às vias pacíficas. Outros acreditavam na luta armada, tal como a adotada pelo Irgun.

Em 1947, teve início em Londres uma série de conversações entre árabes e judeus, ouvidos separadamente pelas autoridades britânicas. Mas não houve consenso face à proposta britânica de

CHAIM WEIZMANN (E) DURANTE sua audiência perante a UNSCOP, JERUSALÉM

prorrogar o Mandato Britânico por mais quatro anos, depois dos quais seria discutida a divisão da Palestina. Durante esse tempo permaneceria a proibição da entrada de novos imigrantes judeus, uma desumanidade principalmente com os 250 mil sobreviventes do Holocausto que não tinham para onde ir e esperavam uma solução enquanto viviam presos nos campos de pessoas deslocadas na Europa. Diante do fracasso das negociações, Ernest Bevin decidiu entregar às Nações Unidas a

Moradores de Tel Aviv, aglomeram-se em torno de automóveis de membros da Unscop, em 25 de junho de 1947 solução do problema da então Palestina. Sugeriu a criação de uma comissão, à semelhança da Comissão Peel.

A nova comissão, nominada Unscop, relativa à sigla de United Nations Special Committee on Palestine, apresentaria suas conclusões à Assembleia Geral. Bevin acreditava que poderia manipular o texto final em favor dos árabes e assim se livrar da pressão exercida pelo presidente americano, Harry Truman, que demandava a concessão de 100 mil vistos para os judeus refugiados na Europa. O pavor britânico era que a entrada daqueles 100 mil novos imigrantes, sob bandeira inglesa, arruinasse sua posição geopolítica no Oriente Médio, na qual a adesão dos árabes avultava como o foco central.

A delegação da Agência Judaica incumbida de acompanhar os acontecimentos na ONU, em Flushing Meadows, foi chefiada por Moshe Sharett, que tinha o economista David Horowitz como braço direito. Este mandou chamar em Londres um militante

Soldados britânicos deportando judeus do navio Haganá. Haifa, 16 de novembro de 1947

da Agência chamado Audrey Sachs, 32 anos, cuja competente qualidade diplomática ganharia reconhecimento internacional nos anos seguintes com o selo de Abba Eban. Ele escreve em sua autobiografia que, antes de partir para os Estados Unidos, constatou em Londres um enraizado ambiente contrário à causa sionista, a ponto de Bevin ter recusado receber Chaim Weizmann em audiência.

Eban e Horowitz se debruçaram sobre os nomes dos 11 membros da Unscop, comandada por Emil Sandstrom, magistrado da Corte Suprema da Suécia, conhecido por suas ações em causas humanitárias. No âmbito latino havia componentes do Peru, Uruguai e Guatemala. A Unscop chegou à Palestina sob Mandato Britânico em junho, poucas semanas depois de um acontecimento que fez exultar a delegação judaica nas Nações Unidas: um inesperado discurso de Andrei Gromyko, jovem representante da União Soviética.

Gromyko começou com uma crítica violenta à Inglaterra, acentuando que sua incumbência como mandatária havia resultado num enorme fracasso pela incapacidade de obter um mínimo de entendimento entre árabes e judeus. Referiu-se ao horror sofrido pelos judeus no Holocausto e enfatizou que era “hora de o mundo ajudar este povo, não com palavras, mas com iniciativas concretas”.

No final do discurso, ressaltou que os judeus tinham pleno direito à autodeterminação através da divisão da Palestina em dois estados, um árabe e outro judeu. Suas palavras tiveram ampla repercussão internacional e evidenciaram a posição de Stalin. O ditador soviético não tinha especial simpatia a que estavam submetidos seus passageiros, homens, mulheres e crianças sobreviventes do Holocausto. No cais, bastava ver a aparência destroçada do Exodus para que se tivesse uma ideia do que havia acontecido. Os refugiados foram descendo sob a mira de fuzis e levados para três navios de guerra britânicos. Apenas uma jornalista, a americana Ruth Gruber, teve permissão de subir ao navio enquanto estava ancorado. Anos mais tarde ela escreveu em seu livro O navio que fundou uma nação: “Centenas e centenas de pessoas seminuas pareciam ter sido jogadas no fundo de um canil. Por um momento, cheguei a ter a horrível impressão de que estavam latindo. Todos gritavam na minha direção nos mais diversos idiomas, vozes cobrindo vozes. Uma jovem mãe aproximou-se de mim e disse: ‘Minha vida acabou’. Respondi-lhe: ‘Não fale assim, você já passou pelo pior’. Ela disse: ‘Tem razão, eu sei que vou acabar chegando à minha terra, eu sei que vou viver’”.

As reportagens escritas por Ruth Gruber e as dramáticas fotografias que tirou correram o mundo e mobilizaram dezenas de opiniões públicas em favor da causa judaica. Numa atitude de incrível

David Ben-Gurion e Moshe Sharett, Jerusalém, 1947

pelos judeus, muito pelo contrário, mas julgava que a existência de um Estado Judeu, mesmo em parte do território até então sob Mandato Britânico, seria importante fator para diminuir a influência e a presença da Grã-Bretanha no Oriente Médio.

No dia 19 de julho, enquanto percorria a então Palestina, a Unscop chegou a Haifa e, no porto da cidade, se deparou com um espetáculo deprimente: a apreensão pelas forças britânicas do navio Exodus e a humilhação

ABBA EBAN

“Exodus” chega a haifa, julho 1947

insensibilidade, os passageiros do Exodus não foram conduzidos para Chipre, mas para a França, seu ponto de partida. Eles se recusaram a desembarcar e foram levados numa ação de imperdoável crueldade para campos de pessoas deslocadas justamente na Alemanha, a origem de seus carrascos. Um porta-voz do almirantado britânico declarou que aquilo tinha sido feito para “dar um exemplo e dissuadir outros navios que tivessem a audácia de tentar furar o bloqueio”.

Longe de ter sido um fator determinante, não resta dúvida de que o drama do Exodus sensibilizou de forma significativa os componentes da Unscop em favor da implantação de um Estado Judeu.

Semanas depois, em Genebra, a Comissão Especial apresentou seu relatório final do qual constava um mapa com o traçado da Partilha da Palestina com dois países independentes, um abrigando 1 milhão e 250 mil árabes, outro com 570 mil judeus, cabendo a Jerusalém tutela internacional. Aos árabes também competiria a maior parte do território. Este era o relatório que seria levado à apreciação da Assembleia Geral da ONU. Sharett, Horowitz e os demais integrantes da delegação trabalhavam de forma incessante. Disparavam telegramas e telefonemas para os quatro cantos do mundo. Alguém conhecia alguém que conhecia o governante de determinado país? Como apurar qual seria o importante voto da França? Pedir ao diplomata Garcia Granados, embaixador da Guatemala, conhecido apoiador do Sionismo, que influenciasse os representantes de outros países. Abba Eban escreveu em suas memórias: “Nós tínhamos bons aliados. O presidente da Assembleia, Oswaldo Aranha, do Brasil, estava religiosamente devotado ao direito da existência de um estado judaico”.

Nos bastidores da ONU movimentavam-se em favor da partilha líderes judeus da estatura de Nahum Goldman, Moshe Sharett e o Rabi Abba Hillel Silver. Nessa atmosfera foi relembrado, com grandes esperanças, o nome do judeu Eddie Jacobson, com quem Truman tinha afetuosa amizade. Amigo de juventude, haviam servido juntos durante a 1ª Guerra no exército americano. Após o conflito, os dois montaram um negócio chamado Truman & Jacobson Gents’ Furnishing. Jacobson não era sionista, mas mudou de opinião depois do Holocausto.

Quando Truman assumiu a Casa Branca, Jacobson ficou famoso. Centenas de pessoas passaram a procurá-lo, pedindo que ele intermediasse isso ou aquilo com o novo presidente. Ele jamais atendeu quem quer que fosse. O general Marshall, então secretário de Estado, opunha-se à partilha e recomendava que

Eddie Jacobson com Harry Truman, que se tornaria presidente dos EUA

as Nações Unidas instituíssem uma espécie de tutela na então Palestina. Contudo, a decisão de Truman estava assumida: não havia outra solução a não ser a partilha e esta foi a sua ordem expressa ao Departamento de Estado. Mas como tudo estava sendo tratado a portas fechadas, aumentava a pressão externa para que Truman aprovasse o relatório do Unscop.

Truman recebeu, naqueles dias, uma carta de seu velho amigo, Eddie Jacobson: “Faço-lhe um apelo em nome do meu povo. O futuro de um milhão e meio de judeus refugiados na Europa depende do que será aprovado nas Nações Unidas. O inverno está chegando e é preciso aliviar o sofrimento daquela gente. De que maneira eles poderão sobreviver no frio, vai além da minha imaginação. Só há um lugar neste mundo para onde possam ir: a Palestina. Eu e você sabemos disso muito bem. Talvez eu seja um dos poucos americanos que realmente sabe avaliar o enorme peso que agora recai sobre seus ombros. Portanto, eu deveria ser o último a fazê-lo pesar ainda mais. Mas sinto que você me perdoará porque a vida de mais de um milhão de pessoas depende da sua palavra e do seu coração. Harry, meu povo precisa de socorro e eu apelo para que você o ajude”.

Pedindo para guardar confidencialidade, Truman foi conciso na resposta: “Como o assunto depende das Nações Unidas, não será adequado que eu intervenha no processo, mesmo porque são necessários dois terços dos votos da Assembleia para que a partilha seja aprovada. O caso está entregue a Marshall e espero que ao final tudo dê certo”. Dias depois, ainda por interferência de Jacobson, o presidente aceitou receber Chaim Weizmann em audiência.

No dia 19 de novembro, Eliahu Epstein, um dos elementos mais ativos da Agência Judaica, encontrou-se com Weizmann e o juiz Frankfurter no café da manhã. Juntos elaboraram um memorando que seria entregue ao presidente ao cabo da reunião. O documento enfatizava a absoluta necessidade de o deserto do Neguev estar dentro das futuras fronteiras do estado judeu, “porque somente através de Eilat e do Golfo de Akaba teremos acesso à navegação

Embaixadores árabes na onu. os árabes eram representados por cinco países

Oswaldo Aranha presidiu a Segunda Assembleia Geral da ONU, que votou o plano da partilha

HERSCHEL JOHNSON, REPRESENTANTE DOS EUA NAS NAÇÕES UNIDAS, ADVOGA A FAVOR DA PARTILHA DA PALESTINA, 1947

no Mar Vermelho”. O memorando acrescentava: “O próprio relatório do Unscop reconheceu a conexão histórica entre os judeus e aquele pequeno porto no Mar Vermelho”.

Weizmann foi recebido durante meia hora no Salão Oval da Casa Branca e, em vez de entregar o papel, resolveu tratar de tudo que era crucial em viva voz, estendendo um mapa na mesa do presidente. Referiu-se aos tempos de fazendeiro de Truman e, portanto, ele saberia compreender de que maneira os pioneiros judeus estavam fazendo verdadeiros milagres na agricultura, tornando férteis terras que estavam áridas por mais de cem anos. Na questão do acesso ao Mar Vermelho, explicou que se o Neguev não viesse a pertencer a Israel, continuaria relegado à condição de deserto. Weizmann escreveu em suas memórias: “Saí muito feliz daquela reunião. O presidente entendeu rapidamente o que eu lhe apontava no mapa e prometeu que levaria o assunto para a delegação americana nas Nações Unidas. De fato, Truman telefonou para Herschel Johnson, o embaixador americano na ONU, e deu-lhe ordens inamovíveis em favor de um Neguev israelense”.

No dia 27 de novembro, quando a Assembleia Geral se reuniu, Sharett e os demais companheiros estavam a ponto de perder a esperança. A contagem por intuição indicava que não seriam alcançados os 2/3 de votos necessários para a aprovação da partilha. A angustiante solução foi pedir aos embaixadores favoráveis à partilha que ocupassem a tribuna pelo maior tempo possível, fazendo com que a sessão tivesse que ser encerrada sem votação em função do esgotamento do horário. Assim, num gesto de boa vontade para os representantes judeus, Oswaldo Aranha suspendeu os trabalhos e marcou a retomada para dois dias depois, porque o dia seguinte era o do feriado americano de Ação de Graças. Moshe Sharett disse, anos depois, que aquelas 24 horas tinham sido cruciais para a obtenção dos votos ainda duvidosos.

COM O JORNAL “DER TOG”, EM IÍDICHE, ANUNCIANDO UM ESTADO JUDEU, ESSA FAMÍLIA AGUARDA PARA ENTRAR NA ARENA ST. NICHOLAS ONDE UMA MULTIDÃO CELEBRAVA A DECISÃO. N.YORK, 30 NOV 1947

Estados membros da ONU votaram a Resolução da partilha em 29 de novembro de 1947 No dia 29 de novembro, na abertura da sessão, o embaixador do Líbano, Camille Chamoun, propôs o adiamento da votação do relatório da Unscop. Foi obstado por Aranha: “Votar ou não votar, eis a questão”.

Judeus comemoram nas ruas de Tel Aviv a decisão da ONU, em 1947

Os países foram chamados para se manifestar por ordem alfabética e o voto favorável da França assegurou a proporção necessária para a aprovação da partilha, com o seguinte resultado final: 33 votos a favor, 13 contra, 10 abstenções e uma ausência.

Quando a partilha foi aprovada, o Times Square e arredores, em Nova York, tornaram-se um pandemônio. Milhares de pessoas cantavam e dançavam nas ruas enquanto eram pronunciados calorosos discursos dos líderes sionistas. Emanuel Neumann, um dos principais ativistas sionistas, falou no microfone: “Devemos essa decisão favorável das Nações Unidas em grande parte, talvez mesmo a maior de todas, aos esforços incansáveis do presidente Harry Truman”. Por causa do fuso horário, era madrugada na Terra de Israel. Milhares de pessoas saíram às ruas de Jerusalém, Tel Aviv, Haifa e outras cidades, onde celebraram até o amanhecer. Em Jerusalém, na sede da Agência Judaica, Ben-Gurion estava angustiado. Apesar da grande vitória, sabia que esta significava uma guerra desigual porque os árabes, fiéis ao comando do Mufti, jamais aceitariam a partilha, mesmo sendo contemplados com mais vantagem na sua metade de território.

Em Tel Aviv, um jovem corpulento e bem apessoado, saiu da multidão no centro da cidade e caminhou na direção da orla do Mediterrâneo. Olhou para aquele mar que já havia navegado. Era Iossi Harel, 28 anos, nascido em Jerusálem, comandante do Exodus. Ele sentia que uma pequena porção daquela festa, por menor que fosse, ia permanecer para sempre em sua vida.

Zevi Ghivelder é escritor e jornalista.

A VOTAÇÃO

Votação referente à Partilha da Palestina na Assembleia Geral das Nações Unidas, no dia 29 de novembro de 1947 A favor: 33 - África do Sul, Austrália, Bélgica, Bolívia, Brasil, Bielorrússia, Canadá, Checoslováquia, Costa Rica, Dinamarca, Equador, Estados Unidos, Filipinas, França, Guatemala, Haiti, Holanda, Islândia, Libéria, Luxemburgo, Nicarágua, Noruega, Nova Zelândia, Panamá, Paraguai, Peru, Polônia, República Dominicana, Suécia, Ucrânia, União Soviética, Uruguai e Venezuela. Contra: 13 - Afeganistão, Arábia Saudita, Cuba, Egito, Grécia, Iêmen, Índia, Irã, Iraque, Líbano, Paquistão, Síria e Turquia. Abstenções: 10 - Argentina, Chile, China, Colômbia, El Salvador, Etiópia, Honduras, Iugoslávia, México e Reino Unido. Ausência: 1 - Tailândia

Princesa Alice, uma Justa Entre as Nações

Avó paterna do Rei Charles III, novo monarca britânico, a Princesa Alice é recordada pelo povo judeu por ter salvado uma família judia em Atenas, durante a 2a guerra, escondendo-a dos nazistas. levou uma vida de altruísmo e dedicação a terceiros e, POR seu desejo EXPLÍCITO, foi enterrada aos pés do Monte das Oliveiras, em Jerusalém. Do palácio ao convento, A VIDA DA PRINCESA ALICE foi muito pouco convencional.

As páginas de sua vida em nada se parecem a um conto de fadas. Criada como princesa, já adulta ela renunciou à vida da realeza. A família a trancou em hospitais para saúde mental onde os psiquiatras, entre os quais Sigmund Freud, a submeteram a tratamentos experimentais. Com grande força de vontade, Alice superou uma deficiência auditiva, lutou contra a doença mental e acabou sendo uma inesperada heroína na 2a Guerra Mundial. Ainda que suas filhas se tivessem casado com nazistas, ela se arriscou e abrigou uma família judia durante o Holocausto. Por sua bravura, Alice de Battenberg foi condecorada por Yad Vashem como “Justa Entre as Nações”.

Sua vida foi notável. Apesar de seus pais serem mais alemães do que ingleses, Alice foi criada como uma princesa inglesa. Nasceu no Castelo de Windsor1, em 1885, recebendo o nome de Princesa Victoria Alice Elizabeth Julia Marie. Era filha do Príncipe Louis de Battenberg e da Princesa Victoria de Hesse. A bisavó de Alice foi a Rainha Victoria, da Grã-Bretanha2. Isso significa que seu filho, Philip, e a Rainha Elizabeth, com quem ele viria a se casar em 1947, eram primos de 3º grau. A Princesa Alice tinha vínculo familiar com a maioria das famílias reais europeias.

Desde pequena era diferente do restante de sua família. Diagnosticada, ainda menina, com uma surdez congênita, mesmo assim ela conseguiu aprender leitura labial em diferentes idiomas, falando fluentemente inglês e alemão.

1 O Castelo de Windsor é uma das residências da família real britânica. Lá viveu a Rainha Elizabeth II, recentemente falecida. 2 A Rainha Victoria reinou sobre o Reino Unido da Grã-

Bretanha e da Irlanda de 1837 até sua morte, em 1901. Em 9 de agosto de 1902, aos 17 anos de idade, Alice compareceu à coroação do Rei Eduardo VII, filho da Rainha Victoria, em Londres. Lá conheceu e se apaixonou perdidamente pelo Príncipe Andrew, da Grécia e Dinamarca, quarto filho do Rei George I da Grécia e de Olga Constantinovna, da Rússia. Alice e Andrew se casaram em uma cerimônia alemã pouco mais de um ano depois, em 6 de outubro de 1903. Alice e Andrew viveram na Grécia, onde tiveram cinco filhos, sendo quatro meninas e um menino – Philip, único varão e o mais novo dos cinco, que mais

PRINCESA Victoria Alice Elizabeth Julia Marie von Battenberg, também conhecida como princesa Alice de Battenberg

tarde se casaria com a Princesa Elizabeth, da Grã-Bretanha.

Entre 1905 e 1912, Alice levou uma vida despreocupada, viajando pela Europa e fazendo seu trabalho de caridade enquanto o marido, Príncipe Andrew, se dedicava à sua carreira militar, no exército grego. Quando irromperam as guerras nos Bálcãs, em 1912, a Princesa Alice não hesitou em partir para a linha de frente, organizando e trabalhando nos hospitais de campanha. Testemunhando os horrores da guerra, ela não hesitava em fazer curativos e aplicar bandagens nos inúmeros feridos. Por esse trabalho, foi condecorada com a Cruz Vermelha Real, em 1913.

Dois Exílios Reais

Em 1913, o cunhado de Alice, Constantino I, torna-se Rei da Grécia. Em 1917, durante a 1a Guerra Mundial, ocorre o primeiro dos vários exílios da realeza grega. O Rei Constantino é expulso da Grécia em virtude de suas várias alianças que favoreciam a Alemanha.

Alice no colo de sua mãe, ao lado da princesa Beatrice e da rainha Victoria A família real grega se exila na Suíça. Entre eles, Alice e sua família.

Em 1920, após o término da Guerra, o poder é restituído a Constantino I, que, juntamente com a família real, entre os quais seu irmão Andrew e Alice, retorna à Grécia. Sua permanência, no entanto, seria breve e, em 1922, ele e toda a família real novamente tiveram que fugir. A família da Princesa Alice refugia-se em Paris. O Príncipe Philip era apenas um bebê de colo. Esconderam-no numa cestinha de laranjas, fazendo as vezes de berço, e assim foi removido da Grécia, seu país natal – um fato repetidamente mencionado no seriado The Crown, da Netflix.

Terminava assim a vida real da Princesa Alice. Sua família perdera seu propósito e suas perspectivas de um futuro real. Esses eventos

tiveram enorme impacto em Alice, que se voltou à religião, como forma de consolo – ao ponto de que em 1928, com 43 anos de idade, ela anunciava uma súbita e inesperada conversão à Igreja Greco-Ortodoxa.

No final da década de 1920, sua família demonstrou grande preocupação com a saúde mental da Princesa. Relatando incessantes alucinações religiosas, Alice acaba tendo um colapso nervoso. Desesperada, a família recorre à nova ciência, muito falada, a Psiquiatria. Em fevereiro de 1930, Alice é internada na Clínica do Dr. Ernst Simmel, nos arredores de Berlim. Simmel, um dos primeiros colaboradores de Sigmund Freud, diagnosticou a princesa com esquizofrenia paranoide3 .

Consultado, o Dr. Freud prescreve o tratamento experimental a que Alice foi submetida. Um dos tratamentos era a aplicação de Raios-X em seus ovários, visando provocar uma menopausa antecipada como forma de “diminuir o nível de seus hormônios”.

Alice abandona o tratamento e retorna à sua família, autodeclarando-se curada. Sua mãe, no entanto, continua estranhando seu comportamento. Em 2 de maio de 1930, enquanto seu filho, o Príncipe Philip, então com oito anos, estava fora de casa, Alice é sedada, à força, e enviada para o Sanatório Bellevue, na Suíça.

Sua própria família a confinava à internação. Abandonada pelo marido e familiares, ela continuava convencida de sua sanidade mental e por isso fez repetidas tentativas de escapar de lá, todas em vão. E lá ela permaneceu, retida e afastada de tudo, por mais dois anos.

Durante sua estada em Bellevue suas quatro filhas desposam príncipes alemães sem que ela pudesse presenciar aqueles importantes eventos familiares. Para eles, Alice era motivo de embaraço e eles a mantinham escondida. Recebendo alta em setembro de 1932, Alice afastou-se do contato com a família e praticamente se tornou uma nômade, vagando pela Alemanha e morando em várias hospedarias modestas.

O marido vivia, na época, no Sul da França e, ainda que nunca tivessem formalizado o divórcio, os dois nunca voltaram a se relacionar. O Príncipe Andrew faleceria em 1944. Nesse ínterim, seu filho Philip crescia sem a mãe ao seu lado, internado nos melhores colégios e passando as férias de verão com os parentes.

Em 1937, Alice se reúne à família no enterro de sua filha Cecilie. Com o marido, ambos nazistas, Cecilie morrera em um acidente de avião, juntamente com três de seus filhos. Philip, então com 16 anos, fez parte do cortejo fúnebre na Alemanha Nazista. Em foto da ocasião, ele aparece rodeado por familiares e dignitários, muitos trajando uniformes nazistas, enquanto as multidões apinhadas no entorno faziam a saudação nazista.

3 Os principais sintomas desse tipo de esquizofrenia são as alucinações, delírios, sensação de perseguição e pensamentos sobre conspirações.

Princesa Alice de Battenberg

Princesa Alice e Príncipe Andrew 2ª Guerra Mundial

Quando irrompe a 2a Guerra Mundial, em 1939, Alice havia retornado à Grécia para trabalhar junto aos pobres e necessitados. Esse país foi uma das primeiras vítimas dos exércitos do Eixo. Em 28 de outubro de 1940, tropas italianas atacaram a Grécia, mas não conseguiram subjugar os gregos, encontrando forte resistência. Hitler viu-se, então, obrigado a enviar auxílio às tropas de Mussolini e, em 6 abril de 1941, os nazistas entraram no país. Até 2 de junho desse ano, toda a Grécia havia sido ocupada pelas forças do Eixo e dividida em três zonas: alemã, italiana e búlgara.

Alice viu-se sozinha na Grécia ocupada pelos nazistas, dedicando-se a uma vida de caridade. Trabalhava em cozinhas comunitárias para os necessitados até se esgotarem os alimentos. Sempre que a família conseguia enviar-lhe alimentos ou dinheiro, ela imediatamente os repassava para os carentes. Também servia de voluntária na Cruz Vermelha Suíça e Sueca. Nas palavras da Princesa Victoria, sua mãe, “Alice cuidava dos mais pobres”. Durante a guerra, não medindo esforços, ela tentava usar sua posição real para conseguir suprimentos médicos para quem o necessitasse.

Ligações familiares nazistas

Ainda que Alice tivesse um filho combatendo na Marinha Real Britânica, três de suas quatro filhas, irmãs de Philip, eram casadas com aristocratas alemães que ocupavam posições seniores no Partido Nazista.

Sua filha mais moça, a Princesa Sophie, era casada com o Príncipe Christoph de Hesse, oficial das SS, que teria dado a seu filho o nome de Adolf, em clara homenagem a Hitler. Em suas memórias, já em idade mais avançada, a Princesa Sophie contou ter conhecido Hitler pessoalmente, ficando muito impressionada com aquele “homem cativante, de aparência modesta, e com seus planos de mudar para melhor a situação da Alemanha”.

Holocausto na Grécia

No começo da guerra a população judaica da Grécia já atingia cerca de 80 mil pessoas. Em 1941, 55 mil judeus gregos ficaram sob o jugo direto dos alemães. Estes últimos prontamente começaram a perseguir

Alice e Andrew com suas filhas, Theodora e Margarita, dez. de 1922

e discriminar os judeus sob sua jurisdição, até que os deportaram, entre março e agosto de 1943.

O destino dos judeus de Salonica fora selado desde a entrada dos nazistas na cidade, em abril de 1941. Estima-se que 95% dos 46.091 judeus da cidade tenham morrido nas câmaras de gás.

Atenas permaneceu sob jugo italiano. Em toda a região por eles ocupada os judeus viveram bem até a chegada dos alemães. Assim que a Itália se rendeu aos aliados, em 8 de setembro de 1943, os nazistas passaram a controlar Atenas, iniciando-se então a perseguição e deportação dos judeus de Atenas para Auschwitz.

Em outubro de 1944, quando a Grécia foi libertada, 10 mil judeus ainda permaneciam no país. Entre 1941 e 1944, fora aniquilado mais de 87% do judaísmo grego, o que representa o maior percentual de mortes seguindo-se aos trágicos números da Polônia.

Tropas alemãs, em maio de 1941, Acrópole de Atenas.

A família Cohen

Os Cohen eram uma das famílias judaicas mais proeminentes do país, amigos de velha data da família real grega. Haimaki Cohen tinha sido parlamentar pelo estado de Tricala, no norte da Grécia. Na década de 1910, ele fora importante aliado do Rei George I, sogro de Alice.

Em 1941, quando da invasão da Alemanha à Grécia, a família Cohen fugira para Atenas – que ainda estava sob domínio italiano. No entanto, o período de relativa segurança somente duraria até setembro de 1943, quando os alemães ocuparam Atenas. Nessa época, por volta de 1943, Haimaki Cohen já havia falecido. Sua viúva, Rachel, juntamente com seus cinco filhos, necessitavam desesperadamente de proteção contra a perseguição nazista. Primeiro foram abrigados pela Irmã Chrisaki, de um convento nos arredores de Atenas, mas tiveram que fugir de lá por temerem ser denunciados pelos vizinhos.

Os quatro filhos dos Cohen queriam cruzar a fronteira para chegar ao Egito através da Turquia, juntando-se ao governo grego no exílio, sediado no Cairo. Mas viram que a viagem era muito arriscada para sua mãe, Rachel, e sua irmã, Tilde. Tomando conhecimento da situação desesperadora dessa família, a Princesa Alice ofereceu abrigo a Rachel e Tilde no palácio em que residia, pertencente à família real da Grécia, em Atenas. E as abrigou em um dos apartamentos, no 3º andar, da residência.

Os Cohen descrevem com incontida emoção o que lhes aconteceu a esse esconderijo, que, à parte do perigo que os rodeava, era muito confortável, e a maneira dedicada com que a Princesa se ocupava deles. Ademais, Alice conseguiu dois elementos de ligação, de sua confiança, Demosthene Foris e Simopoulou e, com a ajuda deles, os judeus que ela mantinha escondidos podiam manter comunicação com o mundo exterior. Dessa maneira, ficaram sabendo que um de seus quatro filhos fora forçado a retornar a Atenas – e este, também, recebeu a proteção e o abrigo da casa da Princesa.

Segundo relato dos Cohen, a Princesa Alice costumava ir ao 3o andar da residência para visitar Rachel, Tilde e o rapaz, às vezes demorando-se várias horas em sua interrogatórios nazistas usando sua surdez como desculpa e fingindo não entender seus questionamentos. O mais notável é que a Princesa teve que esconder a família Cohen de suas próprias filhas. Em determinado momento, suas filhas visitaram-na em Atenas com seus maridos, oficiais das SS, e algo os fez suspeitar de que a mãe lhes escondia algo sério. Apesar de fazer leitura labial com maestria, Alice usou o recurso da surdez, fingindo não entender suas insistentes perguntas e sustentando, categoricamente, que uma de suas ajudantes domésticas vivia no andar superior.

A família Cohen antes da guerra

companhia. Tomavam chá juntos e conversavam longamente sobre religião.

Durante a Guerra, a coragem da Princesa foi repetidamente posta à prova. Suas atividades, entre as quais se incluía o já citado trabalho para a Cruz Vermelha e o contrabando de suprimentos médicos para a Grécia, despertaram a suspeita das autoridades nazistas. Contase que Alice teria se livrado dos Em uma carta que escreveu ao filho Philip na última semana da libertação, a Princesa contou que não tinha nada mais o que comer, além de pão e manteiga; há meses que não comiam carne. Ao final da guerra, durante o combate pela libertação de Atenas, ela insistiu em andar pelas ruas, para o desespero das forças britânicas, em meio à troca de tiros, a fim de distribuir alimentos aos soldados e ao povo.

A família Cohen permaneceu na residência da Princesa Alice até a libertação da Grécia, em outubro de 1944. Sua disposição em se colocar em risco provavelmente ajudara a salvar a vida deles. Graças à Alice, eles escaparam do terrível destino de 54.533 judeus gregos despachados para Auschwitz, onde tragicamente perderam a vida.

Após a Guerra

Ao término da Guerra, Alice continuou vivendo para atender e ajudar os demais. Em 20 de novembro de 1947, seu filho, Príncipe Philip, casa-se com a Princesa Elizabeth, futura Rainha Elizabeth II da Inglaterra. Os diamantes de seu anel de noivado foram retirados de uma tiara pertencente à Princesa Alice. Ela a recebera como presente de casamento do Czar Nicholas II e da Czarina Alexandra da Rússia. Alice presencia o casamento, ao qual não haviam sido convidados nenhum dos membros alemães de sua família devido à sua filiação ao Nazismo.

Em 1948, vestindo um hábito monacal cinza, Alice “se retirou do mundo”, em suas próprias palavras. Ainda que formalmente nunca tivesse feito os votos para se tornar freira pela Igreja Greco-Ortodoxa, ela continuou a usar as vestimentas das religiosas pelo resto da vida. Em 1949, ela fundou a Irmandade Cristã de Martha e Maria, uma ordem de freiras dedicadas a cuidar dos doentes. Num subúrbio pobre de Atenas, ela construiu um convento e um orfanato, que estão em uso ainda hoje como centro comunitário. Abrindo mão de todas as suas posses, ela ainda vendeu o que lhe restava de suas joias reais para financiar esse projeto, para consternação e a contragosto de seus muito debilitada, Alice é levada para o Palácio de Buckingham, residência dos monarcas ingleses. Após uma vida inteira afastados por doença mental, guerras e política familiar, o Príncipe Philip e sua mãe finalmente estavam reunidos. Isso permite que ela volte a se conectar com seu filho único na tentativa de retomar seu relacionamento, quase sempre muito tenso.

A princesa era vista com frequência vagando pelos salões do palácio, vestida de freira, muitas vezes envolta na fumaça do cigarro que sempre levava na mão. Alice faleceu em 5 de dezembro de 1969, aos 84 anos de uma vida muito agitada. Suas únicas posses neste mundo eram três vestidos de baile.

A mãe do Príncipe Philip reservara uma última surpresa para sua família e para o mundo. Deixou o pedido que queria ser enterrada na Igreja Ortodoxa Russa de Santa Maria Magdalena, em Jerusalém, ao lado de sua tia, a Grã-Duquesa Elizabeth Fyodorovna. Mas seriam necessárias duas décadas até que o Príncipe Philip cumprisse o último desejo de

Princesa Elizabeth II com Philip no dia DE SEU casamento, 1947

familiares. Ainda no mencionado seriado da Netflix, The Crown, a princesa é retratada em seus últimos anos como uma fumante inveterada em busca de fundos para os pobres. Na coroação da Rainha Elizabeth II, em 1953, a Princesa Alice usava seu tradicional hábito monacal.

Em 1967, a história se repete. A família real da Grécia é novamente expulsa de Atenas por um golpe militar. Foi necessário que o Príncipe Philip enviasse um avião, com um pedido especial da Rainha Elizabeth, para trazer Alice de volta à Inglaterra. Já com a saúde

PRINCESA ALICE COM SEUS NETOS, PRINCESA ANNE E PRÍNCIPE Charles, 1955

PRINCESA ALICE COM SEU NETOS, PRÍNCIPE CHARLES E PRINCESA ANNE. Atenas, 1964

Príncipe Philip plantando uma árvore, em homenagem à sua mãe, ALICE DE BATTENBERG. YAD VASHEM, 1994

sua mãe. Em 1988, após anos de negociações entre as autoridades eclesiásticas, o caixão da Princesa Alice foi transportado, de avião, para Jerusalém, e enterrado na Igreja Ortodoxa no Monte das Oliveiras.

Yad Vashem

Após a morte da Princesa Alice, o neto de Rachel Cohen, Alfred Cohen, deu início às tramitações para que a Princesa fosse homenageada pelo Museu do Holocausto Yad Vashem, em Jerusalém, com o título de “Justos Entre as Nações”, atribuído a nãojudeus que salvaram nossos irmãos durante o Holocausto.

Como bem o afirmou na ocasião Philippe Cohen, um dos descendentes da família, “Todos nós devemos nossa existência à coragem da Princesa Alice”.

Hugo Vickers, biógrafo da Princesa, escreveu que anos depois, ao receber o agradecimento de um membro da família, “Alice respondera bruscamente que apenas fizera o que julgava ser sua obrigação”. Em 1993 Yad Vashem concede o título de “Justa Entre as Nações” à Princesa Alice de Battenberg. No ações fossem especiais, de alguma forma. Ela era uma pessoa que tinha profunda fé religiosa e certamente julgava ser uma ação extremamente humanitária socorrer outros seres humanos em dificuldades”.

Em 2018, o Príncipe William, filho da Princesa Diana e do hoje Rei Charles III, fez uma viagem real ao Oriente Médio, que incluiu uma parada em Jerusalém. Na ocasião, depositou flores no túmulo de sua bisavó. Nessa viagem, William se encontrou com Philippe Cohen, um dos descendentes da família que ela salvara. O Príncipe já havia manifestado publicamente sua admiração pela Princesa Alice. E quando de sua homenagem como “Justa Entre as Nações” por ter salvado uma família judia, os Cohen, ele declarou: “A história de minha bisavó é motivo de grande orgulho para toda a minha família”.

Em novembro de 2021, o Presidente de Israel Isaac Herzog anunciou a criação de uma bolsa de estudos em Enfermagem, na Universidade Hebraica de Jerusalém, levando o nome da Princesa Alice de Battenberg. O Gabinete do Presidente informou que a bolsa “rende tributo à compaixão e profunda espiritualidade da Princesa, e sua imensa perseverança em ajudar os necessitados”.

ano seguinte, 1994, o Príncipe Philip fez uma peregrinação a seu túmulo e plantou uma árvore no bosque de Yad Vashem em homenagem à sua mãe. Era a primeira vez que um membro da família real inglesa punha os pés no Estado de Israel. Philip, no entanto, viajava em caráter privado, não-oficial. Na cerimônia, o Príncipe fez um discurso forte. Contou que sua mãe nunca mencionara os Cohen.

E contou sobre ela: “Desconfio que nunca ocorreu à minha mãe que suas

BIBLIOGRAFIA How Princess Alice saved an entire family from the Nazis, artigo publicado em 1 de dezembro de 2019 pelo jornal The Guardian, https://www.theguardian.com/uk Rescue in the Royal Palace, artigo publicado no site https://www.yadvashem.org/ righteous.html The Crown: Princess Alice of Battenberg’s Life Was More Dramatic Than the Show Depicts, artigo publicado em 9 de abril de 2021 por Delia Paunescu no site https://www.elle.com

This article is from: