NOZ # 1 agosto 2007 R$ 10,00 www. revistanoz.com
CONTRAPONTO: REVITALIZAÇÃO
SIMMEL A METRÓPOLE E A GRANDE CIDADE
ANARQUITETURA ALGUMA COISA ESTÁ FORA DA ORDEM
LUIZ CARLOS TOLEDO PROJETO DE URBANIZAÇÃO DA ROCINHA
revista de estudantes de arquitetura da PUC-Rio
PATROCÍNIO
à Projeto Design - Edição 328
cidade do Rio de Janeiro.” Alfredo Britto em entrevista
lhar com esse museu vivo de arquitetura que é a
Janeiro. Fazer uma escola de arquitetura é traba-
dentro da PUC e a PUC iria para dentro do Rio de
escola de arquitetura, o Rio de Janeiro iria para
colaboradores@revistanoz.com
reunião, que, no dia em que a PUC fizesse uma
colaborações:
ver com o Rio de Janeiro. Eu disse então, naquela
NOZ está recebendo
“A PUC é uma ilha de saber, mas que nada tinha a
Editorial #1 Encadernar anseios, questionamentos, críticas, divagações. Para nós, a iniciativa de fazer uma revista de arquitetura pareceu, mais do que uma saída, uma necessidade. Muitas vezes privilegiados pela vitalidade do começar, muitas vezes atingidos pelos deslizes da imaturidade. É, sem dúvida, especial sermos alunos dessa nova escola. Sob medida para um curso com pouca história e muitas expectativas, criamos um espaço capaz de registrar a produção de professores e alunos e, sobretudo, de absorver discussões ainda sem lugar no programa formalizado, buscando contato com profissionais que pudessem enriquecer esse discussão. A revista seria para nós, acima de tudo, um exercício constante de reflexão e posicionamento crítico. Nessa primeira edição, adotamos como ponto de partida quatro grandes sessões: anarquitetura debate a questão imobiliária e suas conseqüências; zoom propõe uma discussão a partir de um recorte geográfico da cidade; ruídos trata da subjetividade que envolve a vida citadina; retrovisor abrange os limites da intervenção do arquiteto e a relação com o preexistente.
AGRADECIMENTOS
Ronaldo Porto
Carolina Martinez
Clarice Goulart
Consuelo da Silva Carvalho
Ernani Freire
Graziela Peregrino
Guilherme Lozinsky
Hermano Freitas
João Calafate
Jonas Suassuna
Juliana Ceschini
Letícia Corrêa
Luiza Chamma
Maria Cristina Cabral
Piedade Grinberg
Ricardo Piquet
Tiago Vianna
Amélia Reynaldo
Andréa Borde
Antonio Pedro Coutinho
Carlos Vainer
Fernando Betim
Jorge Mario Jáuregui
Larissa de Aguiar
Luiz Carlos Toledo
Luiz Felipe Machado
Maria Fernanda Lemos
Maria Isabel Palmeiro
Os Sete Novos
Renato Cordeiro Gomes
Ricardo Benzaquen
Silvio Zancheti
Verônica Rodrigues
ENDEREÇO Vila dos diretórios – Casa 1 /Escritório Modelo de Arquitetura e Design PUC-Rio contato@revistanoz.com
Nina Paim /p. 70 Pedro Veríssimo /p. 7, 9-11, 20 Tiago Vianna p. 2
Miguel Nóbrega /p. 1, 39-41, 44-45 Rua Marquês de São Vicente 225 – CEP 22453-900
Marina Piquet /p. 60
Mariana Maltoni /p. 4-6, 13
Márcio Campos /p. 75-77
ISSN - em tramitação
Gráfica e Editora GOL
Luisa Fosco /p. 52-55
IMPRESSÃO
Juliana Sicuro /p. 52-55
1000 exemplares
TIRAGEM
Eugenio Barbosa
PRODUÇÃO GRÁFICA
no meio do CAU PUC-Rio.
qual se firma como espaço de debate
por membros do corpo docente, o
Guilherme Lozinsky /p. 62, 63
Camilo Folly /p. 42
IMAGENS
Carlos Eduardo Lima Rodrigues
REVISÃO DE TEXTO
WEB
Branca Bronstein
Juliana Ceschini
Amanda Miranda
Ana Dias Alencar
Adriano Carneiro de Mendonça Ana Paula Pontes
COLABORADORES
Otavio Leonídio
LOGOTIPO
Nina Paim
João Masao Kamita
Miguel Nóbrega
Andrés Passaro
DESIGN GRÁFICO
CONSELHO EDITORIAL
Vitor Garcez
Marina Piquet
Juliana Sicuro
Caio Calafate
EDITORIA
lançado o periódico FRESTA, editado
da cidade. Na mesma ocasião, foi
incisivo do curso com os problemas
demanda por um envolvimento mais
tetura e urbanismo, resposta a uma
URBANO, primeira semana de arqui-
centro acadêmico realizaram o SER
Em setembro de 2006, os alunos do
www.revistanoz.com
projeto do curso.
incorporada efetivamente como
parte desse processo e espera ser
e fora da instituição. A revista é
continuar ganhando força dentro
adaptar-se a essa nova condição e
de reavaliação estrutural, para
terá de passar por um processo
Consolidado, naturalmente,
2006, formou sua primeira turma.
artes e design e história. Em
departamentos de engenharia,
nasce da intersecção entre os
no primeiro semestre de 2002,
nismo da Puc-Rio, que teve início
O Curso de Arquitetura e Urba-
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ANARQUITETURA 04
Alguma coisa está fora da ordem Verônica Rodrigues
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Arquitetura dos Irmãos Roberto Luiz Felipe Machado
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Arquitetura versus Edificação Jorge Mario Jáuregui
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ANARQUITETURA
NOZ
Alguma coisa está fora da ordem Verônica Rodrigues Arquiteta e Urbanista, Professora do CAU-PUC-Rio A música Carta ao Tom 1974, composta por Vinicius de Moraes e Toquinho, se refere com tristeza a um Rio de Janeiro que se modifica. Nos nostálgicos versos, os poetas lamentam que... Nossa famosa garota nem sabia/ a que ponto a cidade turvaria este Rio de amor que se perdeu/... e lembram com saudades dos tempos em que... se via da janela / Um cantinho de céu e o Redentor... Três anos depois, com um humor tipicamente carioca, Toquinho, Tom Jobim e Chico Buarque lançam como resposta a Carta do Tom, uma paródia que, carregada de ironia, dá forma, humor e volume à sensação de vago mal estar – desse Rio turvado – citado por Vinicius.
A letra, ao fazer claras referências à especulação imobiliária e suas conseqüências para a cidade, deixa claro que a música popular, além ser uma manifestação artística de grande penetração, é capaz de registrar fatos comuns e importantes do cotidiano urbano. O tom jocoso, de quem ri da própria desgraça, oferece cumplicidade ao ouvinte e, ao mesmo tempo, cria formas lúdicas alternativas de fazer pensar, de despertar – no monótono repertório do dia-a-dia - a capacidade de observação e crítica à própria cidade e aos modos de viver e/ou sobreviver a ela. O olhar preciso dos poetas faz das três pequenas estrofes
uma exata crônica do Rio de Janeiro, como se vê na imagem da maratona necessária para escapar do pivete e chegar ao elevador, e no desconforto de quem vê pela janela o Cristo Redentor substituído pela imagem da especulação imobiliária onipresente, deificada e personificada na figura de Sergio Dourado. Sergio Dourado foi o responsável por uma das maiores empresas imobiliárias do Rio de Janeiro. Famosa nos anos 70/80, esta firma foi uma das que contribuiu para transformar a cidade em uma galeria de tapumes de obra, ornamentados por gigantescas placas iluminadas, onde as iniciais
SD surgiam em letras brancas sobre um fundo verde bandeira. A presença desta marca bastava para sinalizar que mais uma casa estava condenada à demolição para dar lugar ao progresso da cidade. Por trás destes tapumes erguiam-se os edifícios apoiados sobre os novos embasamentos para garagem, coroados pelos puc (pavimentos de uso comum). As unidades residenciais, por sua vez, começavam, discretamente, a minguar: os pés direitos baixavam enquanto as áreas úteis diminuíam. Em contrapartida, os apartamentos ganhavam as varandas, isto é: uma profusão de sacadas (projetadas da lâmina do prédio por um pequeno balanço permitido por lei), onde mal cabia um vaso de plantas. Para divulgação dos empreendimentos, as equipes de propaganda criavam slogans que deslocavam a atenção
para as fachadas em mármore, as esquadrias em alumínio e para o playground. Hoje, trinta anos depois da música citada, os tapumes escondem espetáculos imobiliários. Respaldados e encabeçados por campanhas publicitárias maciças e competentes, estes complexos empreendimentos vendem pacotes de felicidade embrulhados com uma parafernália de bens imateriais tais como: segurança com liberdade, lazer, conforto, serviços e comodidades. Estes são os novos clubes – residências. Fachadas faraônicas e pretensiosas abrigam os exíguos apartamentos cujas plantas apresentam distribuições rígidas, e os interiores denunciam a falta de percepção de que a diversidade de realidades e situações vividas nos dias de hoje exigem projetos flexíveis. Os espaços criados não acompanham as mudanças freqüentes que
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É, meu amigo/ Só resta uma certeza/ É preciso acabar com a natureza/ É melhor lotear o nosso amor
ANARQUITETURA
Minha janela não passa de um quadrado/ A gente só vê Sergio Dourado/ Onde antes se via o Redentor
Rua Nascimento Silva, 107/ Eu saio correndo do pivete/ Tentando alcançar o elevador
Carta do Tom
NOZ
ocorrem nas estruturas familiares. Novos perfis familiares surgem e determinam respostas às diversificadas demandas, como o convívio de filhos de uniões anteriores (muitos presentes somente nos finais de semana) e filhos em comum, ou fase da adolescência que se estende, etc. Como acomodar essas necessidades aos espaços reais? Como garantir um mínimo de privacidade, conforto e bem-estar? Por outro lado, a mídia e as exposições que exploram o espaço habitado, além de apresentarem, com freqüência, ambientes totalmente fora da realidade e de escala, confundem, muitas vezes, interiores com decoração e lançam diariamente no mercado vários materiais de acabamento, equipamentos e complementos que parecem fazer parte do univer-
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ANARQUITETURA
so de uma outra sociedade. Como conseqüência, tem-se quilômetros de cenografias e novas necessidades que seduzem com glamour e preços altos e convidam a um viver conceitual... Mas quem mora no conceito? Como se vive num espaço conceitual ou se senta numa cadeira conceitual? É como se o marketing avançasse sobre as pranchetas; os folders dos recentes lançamentos de edifícios residenciais sequer apresentam as plantas baixas dos apartamentos e, no entanto, se esmeram na apresentação das perspectivas das áreas de lazer repletas de piscinas, jardins babilônicos, saunas e churrasqueiras, brinquedotecas, lan houses, salas de jogos, etc. Estas são as conhecidas estratégias para desviar a atenção dos espaços privados cada vez menores em metragem quadrada e – principalmente – em espírito. A justificativa é de que as áreas de uso comum promovem uma maior socialização na interação com os vizinhos, mas o outro lado da moeda mostra que este convívio exclui as diferenças, que estes contatos intramuros, feitos entre pessoas com padrões socioculturais semelhantes, são privados dos contrastes necessários para a aquisição de referências fundamentais para as relações humanas. Não há troca e a única certeza é de que já vimos este filme e, portanto, conhecemos os guetos de onde saem as novas gerações de pitbulls da classe média. Todas estas questões se desdobram num sem fim de outras, mas algumas ficam suspensas no ar: por que o cliente quer assim? O que falta à arquitetura contemporânea para que o público prefira, em geral, ambientes cenográficos, falsos? Seria o excesso de bibelôs - presente desde o vestuário até a cidade - uma reação à assepsia imposta? Necessidade de pertencimento? Símbolo de status? O que houve, ou por que é ou ficou assim?
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Será que nós, arquitetos, esquecemos que também somos cidadãos, andamos nas ruas e moramos em casas? Perdemos a capacidade de observação e escuta? Iñaki Abalos, no prefácio do livro A boa-vida, diz:(...) [quando] o arquiteto torna-se usuário, passa a olhar através dos olhos do habitante, e assim adota uma atitude mais próxima à de uma pessoa qualquer, perdendo essa couraça que o domínio de uma disciplina cria, (...). Será que o pensar e o agir sobre a arquitetura e o urbanismo não estão se bastando a seu próprio meio, aos profissionais e teóricos da área, e deixando de se enriquecer com a troca ou a contraposição das diferenças? Será que estamos fechados entre as grades de um único (con)domínio do saber? Citando novamente Abalos: (...) só a partir da desprofissionalização do olhar podemos aprender a enxergar com os nossos próprios olhos, e a mirar aquilo que realmente desejamos ver. Parece que, se não conseguimos respostas ou soluções satisfatórias, Alguma coisa está fora da ordem, como diz Caetano Veloso. Se estamos cientes de que um projeto de arquitetura só pode ser aprovado e executado através da necessária assinatura de um arquiteto, fica claro que de alguma forma nós, arquitetos, somos coniventes e, talvez, até por omissão, co-autores desses empreendimentos e dos novos conceitos do viver no ambiente urbano contemporâneo. Minha janela não passa de um quadrado. Todo esse panorama faz pensar na genialidade deste verso que aponta para o vazio gerado pela perda de dimensões: a janela privada de tridimensionalidade e de poesia não passa de um plano geométrico, é uma alegoria da banalidade do olhar quando este perde a profundidade e se acomoda a um mundo chato, achatado de idéias.
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Jorge Mario Jáuregui Arquiteto e Urbanista, coordenador do Centro de Estudos Arquitetônico-Urbanísticos do Rio de Janeiro, investigador associado ao Laboratório de Morfologia (SICyT-FADU/UBA), Universidade de Buenos Aires, membro do cartel “Arte e Psicanálise” – Instituição psicanalítica “Letra Freudiana“ – RJ
arquitetura versus edificação Segundo o psicanalista francês Jacques Lacan, o que diferencia a arquitetura do edifício é a potência lógica que ordena além do que o edifício suporta de possível utilização. Assim, nenhum edifício, salvo que se reduza a um casebre, poderá prescindir desta ordem que o torna parente do discurso. E esta ordem não é, na arte da construção, um fato somente eventual, diz ele. Esta potência lógica ordenadora de que fala Lacan é justamente o “bem escasso” que vem depredando a cidade e a arquitetura no Rio nas ultimas décadas. Desde sempre a cidade tem sido, além do lugar material que habitamos, a grande máquina da produção cultural humana. Sobre a cidade contemporânea, nesta sorte de Big-Bang furioso desencadeado pelas lógicas do capitalismo na sua face global, paira uma ameaça. A da dissolução simbólica e material de uma
cidade que nos pertença. E hoje, muito freqüentemente, sentimos que habitamos pedaços de realidade, que não só não constituem uma opção vital, mas são meros refúgios. Trata-se de uma cidade de hostilidades e de riscos, uma cidade de mundos distantes; uma cidade partida entre as áreas da especulação imobiliária formal e as de extrema pobreza. Existe o acordo, pelo menos no aspecto discursivo, de que territorialmente a cidade deve sarar suas feridas, suas fraturas e desigualdades. Ocorre que estas fraturas e desigualdades se verificam também no nível do cultural e do simbólico. Ingentes quantidades de metros cúbicos de construção sepultam bairros como Botafogo, Flamengo, Laranjeiras, Ipanema, Leblon e Gávea, com pura edificação. Sem nenhuma criatividade. Apenas o mais banal mau gosto e a recusa a pensar.
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É como se as empresas construtoras que operam nesses bairros, e na Barra da Tijuca, se movessem segundo o indicador da mais baixa qualidade possível. Negando-se a pensar fora da área econômica. Tudo reduzido a uma mera questão de lucratividade, sem mais nada a levar em conta. Nem a cidade, nem o meio ambiente, nem a arquitetura, nem a urbanidade, nem sequer o bom gosto. Apenas construtos, lugares onde se depositar gente, constituindo enclaves que em pleno tecido de bairro fraturam a continuidade urbana. Consideremos uma destas “peças” que pulam por toda parte e que ofendem a cidade e sua rica cultura arquitetônico-urbanística acumulada até a modernidade. Normalmente com um pavimento térreo enjaulado (grades para a suposta defesa da segurança dos moradores), a continuidade público-privado é obstaculizada e a relação do passante com o edifício é inamistosa da parte do edificado, pois não permite qualquer empatia. Isto quando não aparece aquele “rodapé” brutal dos pavimentos dos estacionamentos que são uma verda-
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deira afronta à relação edifício-cidadepedestre de maneira civilizada. A continuação, a repetição dos pavimentos-tipo, feita da maneira mais banal possível, sem a menor criatividade, apenas empilhando o mesmo pavimento até onde a legislação permitir, impõem a presença dessas verdadeiras piadas que vão do kitsch ao neo-clássico e do arremedo tecno aos ridículos envidraçados espelhados, sem nenhuma graça por sinal. O “arremate” é sempre uma peça de terror. Não há arremate. Normalmente, um final abrupto sem nenhuma elaboração, bem ao longe da quinta fachada de que falava Le Corbusier com toda pertinência. Os amontoados de caixas-d’água, casasde-máquina, equipamentos de ar condicionado, etc, configuram uma verdadeira cena de mau gosto, olhada desde cima. Mas a culpa não é só das “construtoras” (deveríamos dizer com mais propriedade, predadoras) senão do comprador fundamentalmente. Ele, inculto arquitetônica e urbanisticamente, compra literalmente qualquer coisa, e aceita qualquer entorno
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resultante. Não tem nenhum nível de exigência. O que lhe põe na frente ele compra. Seja lá o ridículo que for. E isto em grande parte devido à falta de crítica, de informação circulante disponível nos meios de comunicação, especialmente jornais e televisão. O “videota” ou leitor médio não tem ao seu alcance nenhuma forma de educação nestas áreas, ficando absolutamente vulnerável, pois não faz a menor idéia nem dispõe de qualquer informação qualificada sobre o que seja arquitetura (haja visto o que compra) e um espaço urbano rico, capaz de favorecer a identificação do cidadão com seu entorno físico e cultural. A pobreza de informações específicas vinculadas nos meios principais é tamanha, que surpreende qualquer visitante estrangeiro pelo contraste com o volume de construções. Há muita quantidade de construção sem nenhuma qualidade. E isto torna o bairro e a cidade cada vez mais desagradáveis, inóspitos e autistas. A indiferença ao espaço público, a ocupação monofuncional, com baixíssimo nível de elaboração estética
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(para não dizer nenhum), tornam a cidade, o ambiente e a vida em sociedade, cada vez mais pobres. A autonomia do pensamento, o convite a ampliar os marcos de saberes e linguagens específicos articulando enfoques de vários campos de saber, a integração da imagem e da palavra, e a confrontação de experiências de vários países podem ser pontos de partida úteis para se pensar estratégias e políticas redirecionadoras do nosso devir urbano. Portanto, é toda uma forma de pensar, agir e valorar o que deve ser submetido à revisão crítica profunda, promovendo o debate público sobre esta questão fundamental para a qualidade de vida em sociedade. Não adianta se esconder dentro de bairros fechados, torres countries ou ruas com guaritas privadas, verdadeiros espaços-lixo, pois tudo isso só aumenta o isolamento, a indiferença, a mesquinharia e resulta na chatice do entorno construído. Somos nós cidadãos que devemos exigir mais, pensando generosamente sobre a cidade e a sociedade da qual fazemos parte.
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ANARQUITETURA do lat. an-architectu-ra s.f. 1. Ato ou efeito do meramente construído; 2. Ausência de intenção ideológica no ato arquitetônico; 3. Denota privação ou negação do ato arquitetônico.
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A produção dos irmãos Roberto entre 1935 e 1996 compõe-se de programas de naturezas diversas, nas áreas da arquitetura e do urbanismo. Do total das 181 ocorrências registradas, 136 referem-se à área de edificações, sendo as demais relacionadas com os denominados planos urbanísticos e turísticos. Das 181 ocorrências, 52, ou seja, 29% referem-se aos programas residenciais, 30 dos quais coletivos, correspondendo a 22% do total das 136 ocorrências edílicas recenseadas. Os 30 edifícios residenciais coletivos realizados pelos Roberto foram projetados entre 1941 e 1982, 25 dos quais entre 1941 e 1964, durante o auge produtivo de MMM Roberto. Desses 30 edifícios, 21 foram construídos na Zona
Arquiteto e Urbanista, Professor da Universidade Estácio de Sá, Coordenador do Núcleo de Projeto, Doutor em Arquitetura pela Sorbornne.
Luiz Felipe Machado
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Arquitetura dos irmãos Roberto
a contribuição dos irmãos Roberto para a habitação coletiva no Rio de Janeiro
Sul do Rio de Janeiro, entre 1945 e 1969. Este conjunto merece atenção especial por suas qualidades intrínsecas, construtiva, funcional e expressiva, e também pelo fato de representar, para a nossa cidade, um conjunto genuíno de uma época, devendo ser então considerado como um bem cultural e ser, consequentemente, valorizado. Destinados ao mercado imobiliário, os edifícios da referida coleção representam a época de um entendimento próprio do fazer arquitetura quando os profissionais buscavam o benefício para os moradores e também para os habitantes do bairro. A obra constituia-se então em uma melhoria para a própria cidade. O estudo da habitação coletiva dos irmãos Roberto é pertinente nos dias de hoje. Analisando-se os atuais empreendimentos, parece não haver preocupação com o bem estar dos moradores e dos habitantes do bairro, não resultando a obra, necessariamente, em um benefício para a cidade. Ademais, parece não haver entendimento coerente do significado cultural do fazer arquitetura, por parte dos agentes da construção.
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Edifício Dona Fátima e Finúsia
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pavimento tipo 1
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A coerência encontrada na obra dos irmãos Roberto, e especialmente no conjunto estudado, pode ser compreendida como o resultado de uma rotina de trabalho entre o escritório e o canteiro, na qual a observância às aspirações dos clientes e aos limites programáticos e orçamentários estavam sempre presentes. Não havia possibilidade, desde a concepção inicial do projeto à realização da obra, para o devaneio ou perda de tempo. Depois das primeiras vitórias em concursos, MMM Roberto contou com uma clientela crescente e diversificada da iniciativa públi-
ca e privada, através da qual cresceu econômica e profissionalmente, impulsionado por um ritmo acelerado e contínuo de atividades internas. Além disso, o Rio de Janeiro, sendo a capital da República, recebia os maiores investimentos por parte do poder público em obras de melhoramentos concentradas entre o Centro e a Zona Sul da cidade. No início da década de 1930, os chamados bairros oceânicos da Zona Sul carioca, Leme, Copacabana, Ipanema e certa parte do Leblon, já dispunham da rede necessária de serviços para garantir segurança e
conforto para os futuros habitantes. A partir da década de 1940, iniciase por Copacabana um processo de ocupação intenso desses bairros, os vazios sendo ocupados e as casas sendo substituídas por edifícios de até doze pavimentos de altura, criando muitas oportunidades de trabalho para os arquitetos, e também para os Roberto. Morar em um edifício de apartamentos à beira mar representava, para parcela da sociedade pertencente a uma classe economicamente privilegiada, a realização de um sonho. A iniciativa privada exigia maior rigor na
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térreo
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alocação dos recursos, sendo o empreendimento considerado um sucesso na medida que o resultado da operação financeira fosse positivo. Os mecanismos de controle dos resultados, por parte da clientela e por parte dos parceiros profissionais, principalmente os engenheiros, eram mais eficientes do que nos contratos com as instituições do poder público. Nessas circunstâncias, clientes e especialistas eram considerados pelos Roberto como parceiros, aliados na luta pela realização de lucros e de um ideal maior, a construção de uma espacialidade visando a
melhoria das condições de vida de todos através do emprego das técnicas construtivas mais eficazes e modernas. Um duplo compromisso surge dessa realidade: a busca por uma arquitetura contida nos limites financeiros e programáticos ao mesmo tempo que instigada pela superação dos paradigmas de qualidades construtiva, funcional e expressiva. Tal tarefa exigia uma intensa organização e uma enorme quantidade de informações representadas nos desenhos. Em Resumo de uma Teoria (1937), Marcelo Roberto afirmava que a boa arquitetura exigia
tanto a habilidade do arquiteto como a boa execução da obra. Para ele, sendo o programa somente um dado concreto, os espaços é que deveriam responder às necessidades constantes e variáveis do homem. De outra forma, era preciso atender às determinações do programa e transcender na criação dos espaços, na inventividade e na qualidade construtiva. Os conceitos de funcionalidade e de qualidade construtiva relacionamse na medida em que ambos contribuem para a eficiência do projeto. Embora sejam noções relativas, a funciona-
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lidade, aos hábitos, e a qualidade construtiva, aos recursos financeiros e tecnológicos, a eficiência pode ser medida pela relação custo-benefício do volume produzido em função dos meios empregados. A qualidade construtiva demanda a escolha adequada de sistemas e de materiais de acabamento, objetivando economia, durabilidade e expressão do edifício. No conjunto estudado, verificam-se evoluções no sistema estrutural, o intercolúnio crescente e a busca pela esbeltez das peças do sistema em concreto armado. Em relação aos materiais de acabamento, há pesquisa de elementos mais apropriados para o emprego no programa específico, destinado às classes de maior poder aquisitivo, nos quesitos manutenção, durabilidade e expressividade. Os sistemas de proteção solar e as esquadrias têm um significado crucial na obra dos Roberto, pela evolução de seus desenhos na busca pela maior eficiência, e pelo emprego de materiais tecnologicamente evoluídos, introduzindo um novo repertório de formas e cores vivas. O conforto térmico resul-
ta da orientação correta dos compartimentos e da criação de mecanismos de proteção instalados nas fachadas, com o propósito de amenizar, no interior dos apartamentos, os efeitos das elevadas tempreraturas externas. O conforto visual interno é obtido pelo cuidado em posicionar com esmero as aberturas para a melhor iluminação dos compartimentos e para a melhor visibilidade do morador em direção ao exterior. O conforto funcional no conjunto estudado resulta de uma evolução do desenho das plantas, pela criação de circulações agradáveis, e pela justa disposição e bom dimensionamento dos ambientes. Por outro lado, a busca constante por soluções diversificadas, a enorme variedade de modelos de unidades em um mesmo edifício, e a grande quantidade de apartamentos duplex (1/3 do total de 964 unidades do conjunto), indicam o empenho, com bons resultados, dos arquitetos pela criação de espaços dinâmicos e inventivos. Relativamente à expressividade dos edifícios, observa-se a filiação dos arquitetos às noções
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clássicas de composição, pelo uso de sequências numéricas de proporção áurea na determinação dos traçados das plantas e das fachadas. O já referido uso de cores vivas, com combinações não usuais, desperta curiosidade no conjunto estudado. O pavimento de acesso desse conjunto deve ser considerado com atenção especial. Concebido como o prolongamento da rua, o então denominado pilotis caracterizase pela transparência de seus ambientes de passagem e de estar. O pilotis configura-se pela organização de elementos de forma, de cor e de textura de beleza instigante, como painéis, lagos, jardins e pilares, elementos que faziam parte de uma cidade que muito se transformou.
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O edifício Dona Fátima e Finúsia (1951) marca o início de novas pesquisas da expressão arquitetural na carreira dos irmãos Roberto. Contemporâneo ao edifício Marquês do Herval (1952), suas fachadas compõem-se de planos descontínuos, cujas angulações conferemlhes leituras dinâmicas. A transparência e a noção de continuidade encontradas em seus pilotis fazem parte de um mesmo motivo, o da integração entre os espaços externos e internos, pela continuidade espacial, pela conquista, na época, de uma nova realidade urbana. A alteração sistemática das características dos edifícios que compõem esse ambiente urbano, cujas qualidades arqui-
tetônicas merecem ser preservardas, precisa ser combatida. O edifício Dona Fátima e Finúsia adquire importância especial, pela proximidade da morte de Mílton Roberto, em 1953. Ele é um dos últimos exemplares desenhado pelos três irmãos, em um escritório recém inaugurado na rua do Ouvidor, onde uma das novidades eram as grandes pranchetas horizontais, baixas e equipadas com réguas T, em substituição às antigas pranchetas de inclinação regulável e equipadas com tecnígrafos. Os habitos profissionais modificam-se, como os sociais, podendo ser guardados em documentos de memória. Valores permanentes, como as qualidades de
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uma arquitetura bem proporcionada, precisam ser preservados de fato. As datas 1935 e 1996 referem-se respectivamente à primeira associação entre Marcelo Roberto (1908-1964) e Milton Roberto (1914-1953), e a morte de Maurício Roberto (1921-1996). MMM Roberto foi a sigla criada pelos irmãos quando do ingresso de Maurício, ainda estudante, na sociedade. A sigla MMM Roberto, substituta de MM Roberto, foi mantida por Marcelo e Maurício mesmo após a morte prematura de Mílton, em 1953, sendo substituída, a partir de 1964, ano da morte de Marcelo, por M Roberto Arquitetos. São estes edifícios: MMM Roberto (1945), Júlio Barros Barreto (1947),
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Piancó (1949), Mamanguape (1950), Guarabira (1950), D. Fátima e Finúsia (1951), João Mendes Magalhães (1951), Sadock de Sá (1952), Almirante Sadock de Sá (1953), Sambaíba (1953), Angel Ramirez (1954), Panorama (1955), Parque (1956), Dalton (1957), Barão de São Clemente (1959), São Joaquim (1959), Guarapes (1959), Bela Vista (1962), Salvador (1962), Verlaine (1966) e Gold Blue (1969). Os concursos da ABI (1935) e do aeroporto Santos Dumont (1937) tiveram grande importância na carreira dos Roberto por serem iniciais. Dois grandes projetos sucessivos conquistados por dois arquitetos ainda muito jovens, em um escritório montado para participarem do primeiro concurso.
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L. C. Toledo fala sobre o projeto de urbanização da Rocinha
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Uma conversa no Centro de educação e cultura lúdica A. Mendonça, A. Coutinho, M. Palmeiro
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Participação M. Fernanda Lemos, Fernando Betim
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Anotações Larissa de Aguiar
uma entrevista com Luiz Carlos Toledo
Projeto de urbanização da Rocinha
Vencedor do concurso de idéias para a urbanização da Rocinha, Luiz Carlos Toledo afirma: “nenhuma edificação será derrubada na Rocinha sem que, primeiramente, outra seja construída em seu lugar”. Arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura da UFRJ, em 1966, professor da disciplina de Urbanismo na Faculdade de Engenharia da UERJ e professor visitante da Faculdade de Arquitetura da UFBA, Toledo é sócio da M&T- Mayerhofer & Toledo Arquitetura Planejamento Consultoria, contratado para desenvolver o Plano Diretor da Rocinha. Para participar do concurso, organizado pelo IAB-RJ, a pedido da SEMADUR-Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano, então dirigida pelo arquiteto e vice-governador Luiz Paulo Conde, o escritório mobilizou uma equipe interdisciplinar formada por urbanistas, arquitetos, paisagistas, engenheiros, sociólogos, estagiários de arquitetura e por dois moradores da Rocinha, num total de trinta e dois membros. A metodologia adotada pela equipe fundamentou-se na participação, atendendo às diretrizes do Estatuto da Cidade (Lei Federal N° 10.257 de 10 de Julho de 2001), que visa garantir a participação da sociedade na elaboração do Plano Diretor. Para Toledo a formulação de um modelo participativo foi sem dúvida o grande trunfo de sua equipe nesse concurso. O modelo adotado previa a formação de oito comissões de acompanhamento do plano, representando as oito áreas de planejamento em que a Rocinha foi dividida. Estas comissões seriam formadas por moradores, comerciantes, representantes de ONGs e lideranças locais. Para a discussão de temas que envolvessem toda a comunidade, foi proposta a constituição de um fórum permanente, do qual participariam, além dos membros das oitos comissões, representantes dos Governos Federal, Estadual e Municipal, do MP e das Associações de Moradores da Rocinha, Gávea e São Conrado. A Rocinha ocupa uma área de aproximadamente 810.100m2 e possui uma população que segundo estimativa da LIGHT já ultrapassava a casa dos 100.000 habitantes em 1996. Os principais temas abordados pela equipe durante o concurso referiam-se ao impacto da comunidade na estrutura urbana e no meio ambiente, ao sistema viário e aos transportes, com ênfase na acessibilidade, à questão habitacional, ao saneamento básico, à saúde, educação, cultura, às atividades econômicas e ao seu potencial de desenvolvimento. Com a posse do novo Governo Estadual, o trabalho finalmente iniciou-se com a apresentação, em março deste ano, do projeto vencedor, na quadra da Escola de Samba Unidos da Rocinha, em evento que reuniu centenas de moradores. O Plano Diretor participativo deverá ser elaborado em 10 meses, paralelamente à execução de um conjunto de projetos, considerados prioritários, entre os quais 400 unidades habitacionais, uma unidade pré-hospitalar, duas creches, um centro cultural e uma área esportiva, entre outros. Desta forma, as primeiras obras na Rocinha já poderão ser iniciadas a partir do segundo semestre deste ano com recursos garantidos pelos Governos Federal e Estadual. Já se iniciaram os primeiros levantamentos topográficos e a instalação de um escritório local onde ficarão os técnicos da EMOPE, Empresa Estadual de Obras Públicas, responsável pela contratação e fiscalização das obras e a equipe de elaboração do Plano Diretor. Cientes das dificuldades de transformar as idéias do concurso em intervenções efetivas na comunidade, moradores da Rocinha e, é claro, a equipe da M&T torcem para que as propostas sejam implantadas em sua totalidade, resistindo à troca de governos que muitas vezes afeta sua continuidade.
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NOZ: O concurso de idéias para a Rocinha, do qual você foi vencedor, é um assunto bastante atual e merece ser discutido de forma ampla por nós estudantes de arquitetura. O que despertou seu interesse em participar desse concurso? Luis Carlos Toledo: Se a comunidade escolhida não fosse a Rocinha, possivelmente eu não teria participado do concurso. Meu interesse pela Rocinha, assim como o de outros membros de nossa equipe, é bastante antigo. No meu caso iniciou-se a mais de 10 anos, quando projetei a Vila Olímpica da Rocinha, projeto que infelizmente não foi implantado. Este projeto consistia em três grandes lajes dispostas em seqüência, suspensas sobre a Lagoa Barra, numa espécie de prolongamento natural do túnel Zuzu Angel. Formavam, em conjunto, uma superfície retangular de 200 metros de comprimento por 30 metros de largura, que se estendia da saída do túnel até a atual passarela. A idéia da laje, espaço criado para abrigar as atividades esportivas de que a Rocinha tanto necessita, surgiu durante as inúmeras vezes que subi a Rocinha para projetar, a pedido da associação de moradores, algumas pequenas intervenções urbanísticas na comunidade. Eu sempre me admirava da forma como os moradores aproveitavam as lajes de suas moradias para desenvolver diversas atividades, inclusive as de lazer. A idéia da Vila Olímpica surgiu desta forma, como uma extensão do engenho e do saber local. A laje não se limitava a oferecer os espaços necessários às atividades esportivas, culturais e de lazer, permitia ainda que a transposição da Estrada Lagoa Barra pudesse ser feita com mais segurança, através de escadas, rampas e até mesmo por elevadores hidráulicos, projetados para atender aos portadores de necessidades especiais. As obras da Vila Olímpica chegaram a ser licitadas
Vila Olímpica da Rocinha
no final da gestão do prefeito Luiz Paulo Conde, mas com a posse do prefeito César Maia o projeto foi abandonado. Minha experiência em planejar em parceria com a população da Rocinha vem desta época, pois, se a idéia inicial da laje foi minha, seu desenho e principalmente as atividades que nela iriam se realizar foram amplamente discutidos com a comunidade durante quatro meses em que nos reuníamos semanalmente na sede da Região Administrativa, na Estrada da Gávea, então dirigida por Jorge Mamão, recentemente falecido. Quando soube do concurso, me senti na obrigação de participar, pois nunca me conformei do projeto não ter ido adiante. Certamente nós da M&T não somos especialistas em projetos para comunidades carentes, apesar de termos em nosso currículo a elaboração dos projetos de Favela-Bairro da Vila Mangueiral, do Pavão Pavãozinho e do Cantagalo, além de um projeto “Bairrinho”, feito para uma pequena comunidade de Irajá, vizinha à área onde foi implan-
tado o Rio Cidade, que também foi de nossa autoria. Nossa participação no concurso, portanto, se deveu ao desejo de aplicarmos uma metodologia que fosse capaz de integrar de forma definitiva a Rocinha ao resto da Cidade. Uma metodologia de planejamento baseada na participação e que nos permitisse ir além dos projetos de caráter pontual que, tradicionalmente, vem sendo implementados pelo programa Favela-Bairro. Contavamos, neste sentido, com uma experiência recente, que foi a elaboração, durante 2005 e 2006, de onze planos diretores participativos, coordenados pela M&T, na Região Serrana do Espírito Santo. Nossa idéia era construir um plano diretor que pudesse envolver efetivamente a população organizada da Rocinha, trabalhando com eles e não para eles.
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Uma questão relativa ao concurso propriamente dito é sobre sua metodologia. Essa metodologia foi o diferencial de seu projeto? Acho que sim. Acredito que para se ter êxito, em qualquer concurso, é preciso criar o que eu chamo, parodiando Louis Kahn, uma idéia força. No concurso da Rocinha, essa idéia foi, sem dúvida alguma, a participação. Um outro ponto que contribuiu para nossa vitória foi um grande cuidado na composição da equipe, formada não só por profissionais com grande experiência em projetos semelhantes, mas também por arquitetos e engenheiros que já tinham trabalhado na Rocinha e que com ela tinham uma forte relação profissional e emocional. Sem conhecimento prévio e muita paixão, é muito difícil ter sucesso em um concurso como foi o da Rocinha, no qual concorreram excelentes profissionais.
O que veio a se mostrar ainda mais importante foi o fato de termos convidado para participar da equipe dois moradores da Rocinha, o Paulo César Valério, mais conhecido como PC e o Ediglê. A contribuição destes companheiros, durante todo o tempo que durou o concurso, foi fundamental para o resultado que alcançamos. Um outro ponto importante para nossa vitória foi a escolha que fizemos de uma área exemplar, onde pudemos aprofundar nossas propostas. O edital do concurso solicitava claramente que as equipes definissem uma área exemplar e, inacreditavelmente, se não estou enganado, nossa equipe foi a única a fazê-lo.
diagrama da participação
comunidade da rocinha
IDEAL
equipe técnica
PORVIR
CONTRATOS
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contrato opinião
idéias registro
proposta
proposta leitura técnica
aquecimento
dramatização
CENAS
ação
oferta
4 compartilhar RELATOS
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processamento
emoção
papeis conflitos contradições soluções interesse filmar mensagem
propostas leitura técnica
emoção
demandas
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relato processo
REAL PRETÉRITO
prancha “x”participação
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estacionamento proposta de ampliação
conjunto de edificações indicação para tombamento fábrica de pré-moldados
regularização da Rua 4
condomínio residencial indicação para tombamento Baia
blocos residenciais ligados por passarelas
núcleo de habitações provisórias Projeto Semente
área exemplar
unidade pré-hospitalar Creche Referência espaços para aeração e insolação urbanização no talvegue
mirante
Como foi feita a escolha dessa área exemplar?
Procuramos uma área típica da comunidade, na qual os problemas de adensamento excessivo, topografia desfavorável à urbanização, falta de acessibilidade, ocupação de talvegues e condições de saúde precárias, entre outros, fossem evidentes. Na escolha desta área, a presença do PC e do Ediglê na equipe foi fundamental, dado o grande conhecimento que tinham da Rocinha. A área, finalmente escolhida, localizase no centro da comunidade e tem como limites a Estrada da
Gávea e a Rua 4. Nesta área, num trabalho que envolveu toda a equipe, fizemos um levantamento bastante preciso do uso do solo efetivo e do número de pavimento das edificações. Outro fator que nos levou a apontar esta área como exemplar foi o fato de que nela se encontra a maior parte das áreas planas disponíveis na comunidade, hoje ocupadas por garagens de ônibus e que, com o início do Plano Diretor, começam a ser desapropriadas pelo Governo do Estado.
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Um ponto que gera muita discussão no projeto é a criação de um anel viário em torno da Rocinha. O que seria esse anel? Existe um consenso não só em toda a cidade, mas principalmente na própria comunidade que a Rocinha precisa parar de crescer. Somente quem passa por suas travessas, algumas vezes verdadeiros túneis sem iluminação e ventilação, como no caso da Rua 4, se dá conta da total necessidade de contermos o crescimento da favela, que hoje já possui dezenas de prédios com mais de oito pavimentos. Tão grave como a recente verticalização da comunidade é sua expansão horizontal praticada em direção às áreas de risco ou de interesse ambiental.
Acreditamos que a verticalização crescente das edificações da Rocinha, assim como seu crescimento horizontal só poderão ser contidos a partir do estabelecimento de um pacto social entre a sua população e os poderes públicos, pacto construído a partir da permanente presença dos três níveis de governo na comunidade. Presença que se daria pela aplicação de políticas públicas de regularização fundiária, educação, saúde, saneamento, segurança, entre outras, e através do permanente acompanhamento e fiscalização das
construções, obrigação do Governo Municipal, o que só será possível após a criação de uma legislação urbanística para a Rocinha. É nesse contexto que propomos a implantação de um anel viário que, contornando a comunidade, além de facilitar a comunicação entre os diferentes sub-bairros da Rocinha funcionará como seu limite natural. Além dele, envolvendo toda a comunidade, propomos um grande programa de reflorestamento que devolva à cidade parte da cobertura vegetal perdida e um programa de hortas comunitárias.
Espaço de Integração: Via Ápia/Zuzu Angel
O anel viário é um espaço de integração entre a cidade formal e a cidade informal? O anel viário foi proposto tendo como objetivo criar melhores condições de acessibilidade entre os sub-bairros e funcionar como um delimitador do crescimento horizontal da Rocinha. No entanto, se pensarmos nas ações de reflorestamento e implantação de hortas previstas para as áreas fora do anel, o papel simbólico desta proposta deverá ser bastante ampliado, na medida em que toda a cidade possa acompanhar a parceria entre Estado e Comunidade na recuperação paisagística das encostas que envolvem a Rocinha.
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Então, quais os espaços de integração criados pelo projeto com a área de São Conrado e da Gávea, que são bairros de classe média alta? As diferenças urbanísticas e edilícias de comunidades como a Rocinha se evidenciam em seus espaços fronteiriços, limites virtuais entre a favela e a cidade dita formal. Sempre nos preocupamos em dotar essas áreas de equipamentos que possam ser usados em conjunto pelos moradores destes dois mundos, que, não podemos nunca nos esquecer, pertencem à mesma cidade! Assim, na Gávea, onde funciona a Escola Americana, que está de mudança para a Barra, propusemos criar uma escola técnica, a primeira da Zona Sul, que certamente terá como alunos não só os jovens da Rocinha como também de toda a cidade e, em especial, os jovens da Zona Sul do Rio. Do lado de São Conrado, previmos a implantação de um mercado do produtor, um centro cultural, uma creche e uma grande área de lazer entre o CIEP Ayrton Senna e a escola de samba. Sob esta área será construído um estacionamento e serão ampliadas as atuais instalações de uma cooperativa de reciclagem.
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Existem na Rocinha, como você disse, áreas mais pobres e áreas mais ricas. Você acha que especialmente para as áreas mais pobres ocorreria um aumento no custo de vida após a implantação do projeto? Isso é verdade, pois grande parte dos moradores da Rocinha passarão a arcar com despesas como taxas e impostos que remuneram os serviços que passarão a dispor. Por outro lado, as obras de reestruturação viária, de saneamento, iluminaVocê estava falando dessa relação com os moração e os novos equidores e nos veio a questão do tráfico. Como você pamentos urbanos acha que o tráfico de drogas da Rocinha pode e habitações que reagir à intervenção? serão implantados Os traficantes terão que apren- valorizarão as atuais proprieder a lidar com situações novas, dades, principalmente após todas elas voltadas para a me- sua regularização fundiária. Muitos moradores deselhoria das condições de vida da comunidade a qual pertencem. jarão realizar lucros e vendeNão temos nenhum especialista rão suas residências, podenem segurança em nossa equipe, do permanecer ou mudar da além do que não entendemos Rocinha. Só o tempo dirá, o nada de tráfico nem de violên- processo de transformação da cia. Tendo ao nosso lado toda Rocinha só se completará em a comunidade da Rocinha, não médio prazo, já que, como diz estamos preocupados, pelo me- um de seus moradores, não nos até o momento, com uma será apenas uma transformação urbanística e sim uma “ureventual reação negativa. banização de mentes”.
Espaço de Integração : Praça, Mercadão e Centro Cultural
Espaço de Integração: Creche Referência e Centro Esportivo
Qual o tempo de obra estimado para a implantação do projeto?
Esse concurso para Rocinha foi um concurso de idéias patrocinado pelo Governo do Estado. O fato de a Rocinha ser na Zona Sul, ter uma visibilidade grande e um potencial turístico para a cidade foram fatores estimuladores para se ter escolhido a Rocinha e não a Favela da Maré, por exemplo? Acho que sim. Mas não podemos minimizar o papel da população da Rocinha nesta decisão. Um fato pouco divulgado é que a proposta de se elaborar o Plano Diretor da Rocinha surgiu num fórum organizado pelo Governo do Estado do qual participaram associações de moradores não só da Rocinha como de São Conrado e da Gávea. O fórum, que funcionou durante quase um ano, tinha várias câmaras técnicas, sendo que a de urbanismo estabeleceu, como uma de suas diretrizes, a realização do Plano Diretor.
Existe uma primeira etapa prevista para os próximos quatro anos, mas, para que todas as ações já previstas e as que deverão surgir após o processo participativo sejam implantadas, acho que será preciso pelo menos uma década.
Por fim, dado o início da elaboração do projeto básico e do levantamento topográfico da Rocinha, quais as suas expectativas em relação a completa implantação do projeto? As melhores possíveis, não obstante as dificuldades naturais de implantação de uma proposta como esta. Sinto um esforço muito grande do Governo do Estado neste sentido e não podemos esquecer que o Rio de Janeiro há muitos anos não vive uma situação tão favorável no que se refere à harmonia entre os Governos Federal, Estadual e Municipal.
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Proposta geral do projeto
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Maria Fernanda Lemos Arquiteta e Urbanista, Professora de projeto do CAU-PUC-Rio, Mestre em Urbanismo pela UFRJ Fernando Betim Arquiteto e Urbanista, Artista Plástico, Professor de Projeto do CAU-PUC-Rio, Mestre em Design pela PUC-Rio
O termo participação se tornou tão usual que naturalmente podemos nos remeter a ambientes de discursos sociais, políticos e até econômicos. Para não corrermos o risco de banalizarmos o seu emprego, e sob o prisma da prática da construção dos espaços e dos objetos, gostaríamos de propor nesse artigo o questionamento do significado desse termo e as implicações da sua utilização. Vamos refletir, então, sobre os desafios e obstáculos que essa prática participativa encontra na sua aplicação. O primeiro desafio é a própria construção do acordo e do entendimento coletivo sobre o termo. O segundo é a barreira – a ser rompida – provocada pela urgência produtiva contemporânea, que acaba por banir de seu processo produtivo os diferentes saberes e a pluralidade cultural, o que é, em si, contrário à idéia de coletividade e inclusão, própria do conceito de participação.
Participação? Quem quer que participemos?
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Quem participa? Do quê? Como? À reprodução indiscriminada do termo participação nas últimas décadas – sob bandeiras como da sustentabilidade do planeta e da gestão democrática das cidades – somou-se um movimento de crítica e repulsa às apropriações pouco comprometidas com o significado e com os objetivos reais da palavra. Hoje, além do uso recorrente, muitas vezes indevido, e das já castigadas críticas que continuam se reproduzindo, chega o tempo em que não é mais possível fugir da consciência dessa forma de produção do espaço que se insere em uma forma de produção política e social. Seria bem mais simples se não precisássemos assistir a solicitações e convocações exploratórias que imploram adesão para ações de interesse nem sempre coletivo. Na primeira definição, aquela que trata do significado da palavra no contexto exclusivo da língua, participação significa o ato de participar, ou de ter parte em algo. Indaguemos então: quem toma parte em quê?.
Se colocarmos, agora, a nossa investigação no contexto do já referido urbanismo democrático, podemos supor que quem toma parte são todos os agentes envolvidos numa determinada decisão que lhes afeta pessoalmente e coletivamente. Se pensarmos na gestão da cidade, na gestão das verbas de uma cidade, no plano para a ocupação de uma determinada área de expansão da cidade, ou mesmo no projeto de um equipamento de uso coletivo, a participação seria, então, a tomada de decisões relativas a cada uma dessas ações, por todos os agentes envolvidos: cidadãos, gestores, instituições, organizações, empresários, investidores, etc. Observamos também a idéia de construção coletiva e, conseqüentemente, de comunhão nas ações construtivas, mas para que haja esta comunhão é necessário que haja respeito das diferenças e aceitação do outro. Estamos diante do caminho conflituoso da inclusão. Por fim, será necessário entender participação como um processo de ges-
tão, planejamento, projeto e construção. Essa forma de gestão, planejamento, projeto e construção, talvez não seja nova, mas as mudanças que ela promove em relação a processos utilizados anteriormente estariam de acordo com a capacidade de as diferentes pessoas participantes acompanharem? O que determina o sucesso de um processo participativo além de: construção de um acordo, inclusão e aceitação de diferenças e pluralidade?
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Velocidade e criação Nesse contexto, há uma incoerência entre a velocidade própria dos nossos tempos – ainda modernos? – e o ritmo próprio da construção coletiva a que a idéia de participação nos remete. Um dos aspectos fundamentais desse tema é a possibilidade, ou não, da prática da construção participativa dos espaços em que vivemos poder acompanhar o ritmo desenfreado das urgências e das demandas de hoje. Temos muita pressa, e esta pode ter algumas de suas raízes no modelo industrial adotado pelas nações competitivas do planeta. Em 1914, na Reunião Anual do Deutsche Werkbund em Colônia, Henry Muthesius e Henry Van de Velde estabeleceram uma confrontação de fundamentos conceituais que historicamente determinaram uma ruptura do processo artesanal em relação à produção industrial padronizada. Estas questões repercutem até hoje, quando nos envolvemos com uma questão maior, que é o equilíbrio ambiental a partir da sustentabilidade do planeta e de seus habitantes nem sempre incluídos. Neste confronto de idéias, Muthesius estabelece abertamente a defesa da urgente padronização
e racionalização da arte para a produção de bens, como estratégia de sobrevivência nacional. Já Van de Velde contra-argumenta com a necessidade de inclusão dos artistas neste processo, de tal modo que haveria que se considerar o tempo natural advindo do ciclo criação e realização artísticos necessário para consolidar esta nova estética padronizada. Desta dualidade ganharam peso manifestos (semana de 22) de apelo ao progresso advindo da máquina e da estética subtraída desta. Apelo à velocidade e à reconstrução de valores estéticos e culturais. Incutimos ao longo deste período modernista uma série de conceitos que vieram aos poucos alterando o ritmo de nossas vidas e o próprio espaço que habitamos. Arquitetos produzem espaços como máquinas de morar, e também desenvolvem objetos e mobiliários com este novo pensamento. A velocidade se impõe na produção, no uso e na substituição não só de objetos como também de valores sociais. Alteraram-se o ritmo de aprendizado, o ritmo de criação e o ritmo de produção. Construíram-se cidades com este pensamento, produziram-se veículos de
locomoção, desenvolveramse tecnologias para produção de objetos e vestuários que permitissem agilizar o tempo de atividades e otimizar este tempo para produzir ainda mais. Ainda vivemos sob clima de insegurança. Surgem e terminam guerras que nos relembram a necessidade de competitividade proposta por Muthesius. O consumo desenfreado de matérias-primas e o uso de energias não-renováveis desencadearam um descompasso com a capacidade da natureza para prover material e recuperar suas condições de equilíbrio. Se somamos a este quadro a eficiência tecnológica proporcionada pelos princípios de aceleração produtiva e de competitividade, teremos um quadro ainda mais preocupante. No entanto, encontramos hoje uma série de casos exemplares de como setores produtivos têm percebido o valor de associar atividades artesanais a seus processos produtivos. A incorporação dos saberes culturais e conhecimentos artesanais num planejamento maior de políticas econômicas talvez surpreenda pela quantidade de possibilidades e de abertura de novas frentes de pesquisa, tanto para ob-
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tenção de novos produtos como para o aprimoramento resultante desta massa de criadores incorporados ao sistema produtivo. O ritmo de produção, embora mais lento, provavelmente é mais adequado às recomposições necessárias do ambiente produtivo, e com bom planejamento obtém-se muito menor gasto de energia contabilizada, tanto no produto final quanto no ciclo de vida útil do produto. O arquiteto Hassan Fathy já havia percebido uma alteração cultural na práxis construtiva dos egípcios em 1942, e relata a transformação dos métodos construtivos com a implementação do planejamento racionalista e industrializante nos projetos arquitetônicos. A introdução da linguagem técnica no processo construtivo carregou consigo todo um modelo construtivo apoiado nos materiais pré-fabricados e comercializáveis. Este fator marginalizou não só os mestres, com seu conhecimento secular, como também o aprendizado transmitido por estes aos mais novos. A agonia de uma tradição construtiva baseada na participação comunitária. O empregador antes também participante deste processo se viu frente a um novo interlocutor: o arquiteto, senhor das ações e decisões construtivas e detentor do conhecimento desta nova linguagem técnica apresentada às comunidades. A decadência artesanal foi acompanhada diretamente da má qualidade
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construtiva e inadequação ambiental dos espaços onde vivemos. Quando tratamos o conhecimento do passado, corremos sempre o risco de abordá-lo segundo os conhecimentos do presente, introduzindo juízos de valor inoportunos. Nestes casos de incorporação de saberes tradicionais por outros saberes, nossa percepção é de que devemos estar principalmente reflexivos sobre o possível dano que pode provocar ao ambiente e seus ocupantes, e mesmo sobre os prejuízos às informações que podem se perder, em detrimento da própria ciência.
Inclusão de saberes e inclusão de pessoas! Participação, então, significa inclusão: inclusão de pessoas e inclusão de saberes. Inclusão e saberes que a modernidade rejeita no processo produtivo caracterizado pela urgência, conflitante com o processo de construção coletiva. A posição dos biólogos H. Maturana e F. Varela sobre o conhecimento é de que trazemos uma herança biológica comum, que carrega os fundamentos de um mundo comum. Das heranças lingüísticas diferentes surgem todas as diferenças de mundos culturais, que como homens podemos viver dentro de nossos próprios limites biológicos. Todo conhecer humano pertence a um desses mundos, e, neste contexto, é sempre vivido dentro de uma tradição cultural. Mostram ainda que vivemos num ambiente de autonomia e interdependência, e que como seres humanos só temos o mundo que criamos com os outros, e isto é fundamental para a manutenção dos organismos vivos. O ser humano, como parte de um corpo vivo maior, não pode ignorar a necessidade de incluir em qualquer processo produtivo seus semelhantes, pois estes obrigatoriamente interagem no mesmo espaço em que convivem.
V. Papanek, por sua vez, apresenta uma grande preocupação com o crescimento desgovernado do consumo de bens associado ao aumento populacional. Para tal propõe a participação das pessoas nas decisões produtivas. Propõe também o saber da arquitetura e do design tratado de forma mais ampla, desde o ensino básico, como uma aprendizagem vital ao ser humano. Um ritmo de produção que se reduz com a participação do saber tradicional e de sua produção artística permite também a recomposição do ambiente natural para uma economia equilibrada. O futuro se torna uma quimera ao revisitarmos a história e observarmos a velocidade com que transformamos o planeta. Uma revisão no comportamento da sociedade, de seus modelos de desenvolvimento, da real necessidade de possuir bens se faz necessária. Uma visão sustentada pela proposta de não adquirirmos bens, mas alugarmos ou criá-los. E quem sabe, se, por um sonho, combinarmos todos de desacelerarmos nossa atividade produtiva, poderemos responder objetivamente ao verdadeiro risco de sobrevivência um dia levantado por Muthesius. Com certeza mal não faria.
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Para reflexão... Gostaríamos de deixar em aberto o tema para reflexão. Se nós, designers, arquitetos e urbanistas, projetamos para o nosso tempo e se o projeto de arquitetura e urbanismo for tratado como uma reflexão teórica e produção de conhecimento, talvez devêssemos cuidar da construção e apropriação dos conceitos e ideais que são próprios do nosso tempo, assim como assumir
a responsabilidade pela propagação destes. Para terminar, e para instigá-los, vamos lembrar um dos diversos slogans divulgados por estudantes franceses em 68, que ilustra ironicamente o risco do uso inconseqüente do termo participação. Diziam os estudantes: ...eu participo; tu participas; ele participa; nós participamos; vós participais; eles decidem...
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Uma conversa no
“Centro de educação e cultura lúdica” da ASPA, Rocinha Adriano Mendonça Antonio Pedro Coutinho Maria Isabel Palmeiro Alunos do CAU/PUC-Rio
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A EXPERIÊNCIA A conversa surgiu a partir do convite de um amigo, parceiro do ponto de cultura. O número do lugar, localizado no Largo do Boiadeiro, na Rocinha, nunca soubemos, porque, na primeira vez, subimos acompanhados. Depois, já sabíamos o caminho, que sempre fizemos sem muitas paradas ou desvios de percurso. O ponto de cultura funciona como fomentador de atividades educativas e lúdicas, espalhadas por diferentes espaços da comunidade, inclusive escolas. A pequena sala, de 50 m², deveria passar a ser o seu centro de referência, espaço de concentração e registro de suas atividades. O coordenador, Firmino, foi nosso principal interlocutor.
Na primeira conversa, falamos com o Firmino sobre o projeto e conhecemos alguns meninos que participam de atividades do ponto. Não tinha um briefing. Fomos descobrindo o que é o ponto de cultura ao longo das conversas, e até hoje não temos noção de tudo o que ele representa na favela. Nossa expectativa de fazer um projeto em uma favela girava em torno de algumas fantasias e alguns fantasmas teóricos. Aos poucos, a experiência foi se tornando mais palpável, mais concreta, mas ainda muito distante de uma compreensão da situação real. Em algumas situações, estivemos diante de sinais de violência e sentimo-nos talvez mais vulneráveis por nos vermos como estranhos. O agir naturalmente, nada
natural, pareceu ser o único procedimento. Nossa participação aconteceu em uma série de conversas. Sempre que alguma coisa ia ser feita ou que surgia alguma necessidade, o Firmino nos chamava, e íamos conversar. Foi assim que tudo foi executado. Tivemos um único encontro com os executores, dois pedreiros da Rocinha mesmo, tendo a planta baixa e as perspectivas como única base. Nos rendemos à sua lógica construtiva, que se impôs como o jeito que aqui se faz. Uma lógica que descarta o planejamento e o desenho, em nome do jeitinho viciado do desperdício e da gambiarra. Talvez nosso maior erro. Tivemos total liberdade, respeito por nossas idéias. O canal foi mantido sempre
aberto e direto. O espaço tem algo de muito contagiante, que permeou nosso trabalho de ânimo. E a favela, a despeito de todos os problemas, sempre provoca o desejo pela beleza. Uma beleza que é resultado de uma ação, de um movimento de vida. O ponto ainda não está pronto. A sala já está sendo utilizada, as aulas já voltaram a acontecer, mesmo sem todo o mobiliário, que está ainda só em desenho, sem as fachadas verdes planejadas, ou o kit-multimídia prometido. É um projeto em andamento. E pra nós sempre estará em aberto. Agradecimentos a Natércia, Firmino, Vicente, pela oportunidade, pela confiança, e pela conversa.
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O PROJETO Com pequenas janelas, a sala era pouco iluminada e ventilada pelo alto. Uma das janelas, tal o desnível do entorno, quase coincidia com a calçada. O programa proposto previa uma saleta multi-uso, banheiros para crianças e adultos, e máxima flexibilidade de uso no ambiente principal. Havia uma forte ênfase em questões de segurança e privacidade. A nossa proposta se pautou por três princípios: máxima flexibilidade de usos, economia de recursos e conforto térmico e lumínico. Para isso, propusemos: Eliminação de elementos fixos no ambiente principal, com mobiliário móvel
planta baixa
e um sistema de cortinas e varais aliados à estrutura existente, para possível separação de ambientes e disposição de materiais. A saleta multiuso foi agrupada e nivelada com a área de banheiros, concentrando, de um só lado, na cota 0,20, os espaços fixos. Para a divisão dos banheiros e saleta, foi utilizado um único material: uma placa reciclada de material plástico aluminado; leves, de baixo custo e propriedades térmicas favoráveis. Os pisos e paredes foram mantidos da forma como estavam. Para ventilar e iluminar naturalmente o espaço, propusemos a ampliação
das janelas e da porta, que se tornaria um grande portão de abertura da sala para a comunidade. Outra foi o uso de plantas na fachada, que atuariam como peneiras verdes e contribuiriam para amenizar a aridez da paisagem. O primeiro item a ser negociado foi a fartura de aberturas. A segurança do esperado kit multimídia era prioridade. A fantasiada abertura para a comunidade é bastante controlada, um pouco desconfiada. O segundo, o acesso a deficientes aos banheiros. Não importava todos os inconvenientes que impossibilitariam sua chegada, a sala deveria estar apta ao
seu deslocamento, se referenciar tal medida. O material demolido foi utilizado para elevar o piso da sala multi-mídia, acertando-o com o banheiro. As divisórias foram estruturadas em “metalon”. Um desentendimento entre os faz-tudo contribuiu para o mau acabamento na aplicação dos painéis. As esquadrias foram todas reutilizadas, ajustadas às novas medidas. O mobiliário proposto aproveita os nichos existentes, a saliência das vigas (usadas como suporte das cortinas) e a localização central do pilar (torna-se mastro dos cabos dos varais e outros penduráveis).
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anotações Larissa de Aguiar Barbosa Aluna do CAU/PUC-Rio
É cada vez mais aparente a informalidade nas relações humanas, negócios, no mundo da música, entre outras atividades. A arquitetura e o urbanismo não poderiam estar excluídas desse panorama. Na verdade, para os arquitetos a informalidade é tão antiga quanto a própria arquitetura, já que, ao lado da vontade primeira do abrigo e do querer arquitetônico, está a informalidade técnica, a artística que, posteriormente desenvolvida e culturalmente estabelecida, traz regras e formalidades. Mesmo assim o tema favela parece muito recente. A denominação foi trazida pelos soldados vindos da Guerra de Canudos, que assim chamavam o morro que usavam como ponto estratégico no sertão. Popularizou-se o termo, assim como foi popularizada essa tipologia de traçado e construção. E somente no século 20 é que a questão torna-se polêmica, quando as favelas começaram a incomodar os acadêmicos e políticos de discurso higienista, devido ao crescimento da autoconstrução informal no Rio de Janeiro. Atualmente, as favelas são encontradas no Brasil inteiro, sendo
Recife a cidade com maior porcentagem de habitantes favelizados, seguida de Belo Horizonte e Porto Alegre. Estima-se que esse tipo de construção, não preocupado com o traçado urbano e espontâneo por natureza, é o que mais ocorre no mundo, tornando a aproximação dos arquitetos a essa realidade imprescindível. Um século foi gasto na tentativa de dizimá-las. E para muitos leigos a perspectiva ainda é essa, murar e destruir. É claro que muitas vezes desaparecer com o problema pode parecer muito fácil para alguns, principalmente quando se vê como por uma vitrine, distanciado pelos elevados e pela velocidade, conformando apenas manchas na visão. O distanciamento não apenas social ocorre desde o ensino acadêmico, o qual muitas vezes, não aproxima o aluno desse tema e, o que é mais grave, relega a prática da técnica construtiva aos estágios e trabalhos complementares. Estabelece-se, assim, um relacionamento problemático entre os profissionais e os clientes em potencial, no qual os primeiros detêm a técnica teó-
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rica, e os últimos, a prática empírica. Após a graduação, ainda é mais difícil o aprofundamento nessas questões por desconhecimento e/ou pela aparente irrelevância do assunto. O sistema é agravado quando a principal característica da arquitetura informal esbarra no cerne arquitetônico: o controle, o planejamento e o querer artístico. Como fazer-nos úteis a esse mercado que, certamente, tem capacidade de comprar materiais de construção, tem um relativo domínio da técnica e necessidade urgente de moradia? O que podemos depreender dessa realidade? Em Estética da Ginga, Paola Berestein coloca em discussão um novo profissional, assim como a necessidade do arquiteto em controlar o processo criativo e o produto acabado – o que será construído. A autora propõe um articulador, amparando com seus conhecimentos técnicos as vontades e necessidades construtivas. trabalhando mais por influência do que como definidor do projeto e do produto final. Obviamente que, para isso acontecer, é necessário ampliar o diálogo com os novos clientes e melhorar o entendimento do que é morar na favela. E como entender isso sem o convívio? Faz-se impossível uma aproximação adequada se o que orienta nossos conceitos são as novelas da televisão, as notícias nos jornais e, até mesmo, documentários superficiais sobre o assunto. Esses meios de comunicação são, em sua maioria, reconhecidamente homogeneizadores
e formadores de estereótipos. Padrões e estereótipos são necessários quando se faz preciso ler um espaço e seus códigos. Precisamos dessas referências para guiar-nos no espaço urbano. Em contrapartida, precisamos relativizar nossos preconceitos frente, principalmente, ao medo. Milhões de reais e dólares são gastos por ano pela indústria do medo. Tudo isso em um ciclo vicioso mantido pelo preconceito e o distanciamento. Como profissionais, temos que fugir do olhar comum. Indagar o que lemos e vemos. Para exemplificar, cito uma experiência narrada na primeira semana de arquitetura e urbanismo da Universidade PUC-Rio - Ser Urbano por Marisa Vassimon, do Canal Futura: em uma visita a uma favela carioca, vendo o fotógrafo, as crianças, que jogavam bola, perguntam se ele preferia que elas tirassem os sapatos e as camisas. O fotógrafo, surpreso, pergunta o porquê. As crianças responderam: é normal representantes da mídia pedirem para que a foto fique melhor. É preciso entrar nas vielas, conversar com os moradores, conviver com suas dificuldades. Perguntar e se propor a aprender um pouco dessa sabedoria construtiva da espontaneidade. Afinal de contas, temos de reconhecer que, na pior das circunstâncias, foram capazes de construir a cidade deles. Parece fantasia, mas já existem algumas iniciativas. Tomemos o exemplo da ONG Usina-Centro de trabalhos para o ambiente habitado em São Pau-
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lo, que, por meio de uma política de mutirões autogeridos e equipes multidisciplinares, propõe projetos baseados na participação e educação popular, por meio dos quais os futuros usuários participam da discussão sobre conceitos de urbanização, regras de vizinhança, legislação, entre outros. A elaboração do projeto é participativa, sempre levando em conta que serão construídos em mutirão, o que tem efeito direto na escolha do sistema construtivo, da implantação e do programa a ser seguido. Geralmente, as estruturas são autoportantes ou, em alguns projetos, metálica, como no caso da Associação Paulo Freire (2005). É uma forma de livrar a mão de obra por meio do uso de estruturas leves e de rápida execução, já que a maior parte da força de trabalho é feminina, diz Jade Percassi. Como ONG, o grupo trabalha junto às administrações municipais, às associações de moradores com recursos governamentais e privados. No Rio de Janeiro, ressalto não os grandes projetos de urbanização das favelas como o Favela-Bairro e até mesmo o Bairrinho, mas uma ação de prevenção e convívio. O Posto de Orientação Urbanística e Social – Pouso, que consiste em uma equipe de profissionais multidisciplinar que discute, nas comunidades, desde questões urbanísticas, de cidadania e problemas de construção, como infiltrações e problemas elétricos. São oferecidos também alguns cursos, como o de Capacitação de Trabalhadores da Construção Ci-
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vil, com os quais os alunos sempre se surpreendem, mesmo já tendo anos trabalhando na construção civil, como o caso do Sr. Sebastião, que diz nunca ter prestado atenção a detalhes como observar a metragem de uma janela e a parede onde ela deve ser aberta, para não confrontar com a casa do vizinho. Para a arquiteta Maria Helena Röhe Salomon, do POUSO de Vila Canoas, em São Conrado, o maior desafio é o controle e o acompanhamento do crescimento da comunidade. O arquiteto é desprovido de meios legais para demolição e transferência de famílias, especialmente aquelas que têm suas casas em área de risco (geralmente em decorrência de burocracias e falta de interesse político). É preciso muita paciência para convencer os moradores a não acrescentarem mais um andar em suas residências, ou mesmo a construção de uma nova. O que resulta é um relacionamento mais próximo entre os moradores e os arquitetos. A própria comunidade, no final das contas, reconhece a importância da assistência técnica e até pede por intervenções para o controle dela mesma. Frente a estes exemplos, fica evidente que a atuação de arquitetos junto às comunidades não é nenhuma utopia. É uma responsabilidade que temos, assim como médicos frente ao enfermo, de atuar, porque temos o conhecimento para, no mínimo, auxiliar àqueles que na medida do possível constroem seu próprio ambiente urbano.
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A cidade como texto Renato Gomes
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Simmel: A metrテウpole e a grande cidade Ricardo Benzaquen
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Relicテ。rio Juliana Sicuro
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Tabuleiro da rua Aos sete mares Os sete novos
A CIDADE COMO TEXTO coletivo, de seus símbolos.
tividade, de seu imaginário
bana tratando de sua subje-
enriquecer a experiência ur-
bém pretende transcrever e
Não só registra como tam-
vez, escreve essa cidade.
to viva. A literatura, por sua
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A cidade escreve-se enquan-
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experiência urbana.
nados à literatura, mídia e
trabalha com temas relacio-
da PUC-Rio. Atualmente
Comunicação Social e Letras
fessor do departamentos de
Letras pela PUC–Rio, pro-
mes, Mestre e Doutor em
camos Renato Cordeiro Go-
Para abordar o tema, bus-
de sua memória.
cidade e para a consolidação
construção da imagem da
sendo determinante para a
mento de escrita e leitura,
acaba atuando nesse movi-
Dessa forma, a literatura
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NOZ - Arquitetos procuram entender a cidade a partir de sua espacialidade. No seu livro Todas as cidades, as cidades, nos é apresentada uma definição de Calvino que trata a metrópole a partir da metáfora do “cristal e da chama”. De que modo você definiria a cidade?
Dar uma definição definitiva, globalizada, totalizante de cidade, hoje, é muito complicado. As definições recorrentes de oposição campo- cidade, ou a cidade em um sentido mais funcional, apesar de não estarem incorretas, não dão conta desse fenômeno muito complexo. Por isso, García Canclining vai mostrar que para dar conta de uma certa concepção de cidade tem-se de levar em consideração o que chama de multiculturalismo, ou seja, a cidade a partir da coexistência de culturas múltiplas. Quer dizer, desmembrando a cidade podemos identificar diversas camadas, não simplesmente sobrepostas, mas misturadas na própria superfície. Então, hoje, uma oposição campo - cidade não daria conta de uma megalópole, que se apresenta com vários sentidos: o sentido da produção, do consumo, do imaginário, da memória. A concepção de cidade do Calvino, que está no texto “As seis propostas para o próximo milênio”, vai descrever a cidade a partir de um símbolo complexo capaz de exprimir a tensão entre o traçado geométrico e o emaranhado de existências humanas. Existe então uma base traçada, geometrizada, racional, que se relaciona com o planejamento, com a realidade das estatísticas, mas há também as existências humanas agregadas a isso, ou seja, a vida das pessoas, os desejos, os medos, a memória. A cidade se faz dessa complexidade, que é uma tensão entre essas duas esferas. Há uma memória da cidade, seus arquivos, fotografias, o que foi registrado pela literatura, pelo cinema, pelos documentos, e há também a cidade da memória, que diz respeito às experiências vividas por cada um. A literatura ajuda muito a ver essa diversidade de impressões. Não é que a cidade não tenha um sentido objetivo; ela tem sua estrutura formal, becos, esquinas, largas avenidas. E esses elementos formais vão servir como base para a metaforização das diferentes
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cidades. Se compararmos o Rio de Janeiro de Pereira Passos, que tem como modelo Paris, vamos ver grandes diferenças para a Barra da Tijuca, cujo modelo é Miami. Ou comparar o Rio com Brasília, uma cidade que a princípio não teria sinal de trânsito nem esquina. Como disse Calvino: a cidade conta sua história nas grades, nos ângulos das esquinas, nos muros descascados. Ela tem marcas, e compete ao sujeito a leitura desses elementos. É aquilo que Roland Barthes vai dizer no texto “Urbanismo e semiologia”: nós lemos a cidade no momento em que a habitamos, a visitamos, a atravessamos. Lemos um discurso que tem um enunciado e uma enunciação, pressupõe um sujeito que lê a partir de uma percepção específica, levando em consideração suas memórias, seus desejos, seus medos, sua subjetividade. Por isso o Calvino fala da cidade como um símbolo complexo. As cidades invisíveis, na verdade, é um livro de teoria da cidade, uma suma dos modos de ler e escrever a cidade. As cidades que Marco Pólo descreve para Kublai Kahn são cidades de um império que o próprio imperador nós lemos a cidade no não conhece, são cidades momento em que a imaginárias. Ele trabalha habitamos, a visitamos, todo um imaginário desde a atravessamos. As mil e uma noites e as Lemos um discurso viagens de Marco Pólo até que tem um enunciado chegar ao imaginário da cie uma enunciação, dade moderna que seriam pressupõe um sujeito para ele cidades sem forque lê a partir de ma, como também daqueuma percepção las que só mudam de nome específica, levando no aeroporto. O livro fala em consideração suas das diversas possibilidades memórias, seus desejos, de leitura, tornando visível seus medos, sua aquilo que é invisível. subjetividade E cada uma dessas possibilidades que o livro levanta é também um tópico teórico para o entendimento urbano. E o próprio Calvino dá metáforas para a tensão complexa que descreve para ele a cidade: o cristal e a chama. O cristal, nesse caso representado pela rigidez do império, pela mente algebrizante de Kublai Kahn em tensão com a outra voz que é a imaginação do viajante, Marco Pólo.
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O imperador vai dizer: eu já sei o que você faz, você inverte, recombina elementos pra criar diferentes cidades. E se prestarmos atenção, o índice apresenta um jogo racional perfeito, como um programa que conduz leituras várias e possíveis; no fundo é uma combinatória, que implica um papel mais ativo do leitor, ao recombinar os elementos dados. Então concluindo, não existe uma cidade. Talvez essas múltiplas interpretações nos coloquem diante dessa complexidade, cuja leitura implica a interdisciplinaridade. Desse modo, nenhuma leitura dá conta da totalidade da cidade que se torna ilegível nesse sentido. As leituras se dão, cada vez mais, a partir de recortes, de uma fragmentação. Buscar um sentido da cidade seria proliferar essas leituras.
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Quais são, para você, os principais marcos na evolução do entendimento de cidade na literatura, mais especificamente de experiência urbana? Quais são os principais símbolos que emergem dessas leituras? O foco do meu trabalho está na cidade moderna e pós-moderna. Na verdade, a cidade grega, barroca, medieval me interessam apenas como resíduos na modernidade. Então vamos falar aqui, fazendo uma sistematização simplificada, de como que a literatura vai representar a cidade moderna. Pegando a literatura de Balzac ou Vitor Hugo, já temos retratos interessantes da cidade no séc XIX. Mas, talvez, o grande marco na leitura da cidade moderna seja Baudelaire, não só nos seus nenhuma leitura dá poemas, mas também nos conta da totalidade seus poemas em prosa. Ele da cidade que se é o primeiro que vai falar torna ilegível nesse da lírica da cidade. Na versentido. As leituras se dade não descreve Paris; dão, cada vez mais, a vai ler Paris pelas alegorias. partir de recortes, de Essa Paris de Baudelaire uma fragmentação. vai ser depois estudada por Buscar um sentido da Benjamin, que destaca as cidade seria proliferar figuras de Baudelaire, para essas leituras. ler, para representar essa cidade de um determinado ponto de vista, que deu origem também a uma representação da cidade, através de suas alegorias. Um outro marco na literatura nesse sentido vai ser Edgar Alan Poe, no final do século XIX, sobretudo com o texto fundamental “O homem da multidão”. Esse texto remete à questão do flâneur. A figura do flâneur surge no momento em que emerge a cultura da rua e o papel da multidão. Ele seria essa figura de transição para o mundo moderno. É primeiramente aquele que flana, que anda pela cidade com os sentidos aguçados, contracena com essa multidão. Interessa-se por tudo, mas não se identifica com nada. Essa figura, então, passa a ser uma alegoria da cidade moderna que vai ser usada nos estudos não só de Benjamin, mas também de outros autores. Com as inovações técnicas e materiais, o uso do ferro e do vidro na arquitetura, criam-se novos espaços, novas relações com espaço. As galerias envidraçadas de Paris, por exem-
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plo, propiciariam a atividade do flâneur. Essa figura é uma espécie de resistência às inovações da atividade fabril, pois o ritmo do flâneur não é o ritmo da produção (é importante lembrar que estamos aqui simplificando a complexidade de um personagem emblemático da cidade moderna). Simmel descreve em “A metrópole e a vida mental” a cidade moderna a partir da quantidade de estímulos simultâneos que ela proporciona, onde o homem urbano tem que se proteger. Essa proteção se confunde com uma atitude blasé, uma certa indiferença com o que está acontecendo. Não é que o flânuer seja indiferente, mas ele não se identifica com o ritmo da produção. O fl âneur redimensiona o ócio da aristocracia em oposição ao negócio. Mas esse ócio não vai encontrar espaço no mundo moderno, então ele tem que reverter esse ócio em alguma atividade, encontrar uma utilidade para sua flânerie. Vai se tornar ou o repórter ou o detetive. E é nesse momento que surge a novela policial. Essa figura de certa maneira vai sendo absorvida pela vida moderna. A condição do flâneur está diretamente associada à concepção da rua como lugar de viver. A cultura moderna vai transformar a rua em local de circulação. Temos aí uma matriz da interpretação de cidade que é o homem que anda nas ruas. Essa imagem é recorrente até os dias de hoje, por exemplo, na literatura de Rubem Fonseca, o conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, de 1992. A outra matriz viria de um conto do Holffman, “A janela de esquina do primo”, que seria o homem olhando da janela. Alguém vê a cena da cidade, uma cena movente, a partir de um enquadramento, de uma moldura para o que vai acontecendo na praça, como em um teatro. Um outro marco é o Ulisses, de James Joyce, de 1922. Se passa em um dia em Dublin. Seria uma viagem de Ulisses, seu deslocamento pela cidade e a leitura que vai fazendo dela. Há uma grande proliferação de textos sobre as cidades no decorrer dos séculos à medida que a realidade vai se tornando cada vez mais urbana. Fica complicado fazer um panorama tão sintético, pois esse movimento não é evolutivo, são acrescidas
ao longo da história da literatura diferentes abordagens e interpretações das várias representações do urbano. Um aspecto interessante, voltando ao conto de Poe, é como que se lê um fenômeno novo. Não tendo ainda uma linguagem específica para isso, então ele usa molduras antigas. Vai fazer toda uma relação com imagens da natureza, o mar de cabeças para falar da multidão; ou revela a cidade moderna como uma floresta perigosa, uma selva de pedra. Você precisa ter os sentidos mais aguçados. Benjamin disse em “A infância em Berlin em torno de 1900” que se orientar na cidade não significa muita coisa, o importante é você se perder na cidade, é ler a cidade com um olhar estrangeiro. E então você começa a estabelecer certos marcos de orientação. E orientar-se na cidade é dar um sentido, é tentar buscar sentidos. Acho muito interessante o processo de metaforização para representar a cidade. Metáforas do corpo humano, o coração da floresta, a circulação, a cabeça, o ventre; metáforas muitas vezes arcaicas para falar de um fenômeno novo. E surgem associações da cidade moderna relacionada à Babel, a Sodome e Gamone, que são mitos bíblicos, ou mesmo à imagem da cidade como um labirinto, que é a desorientação do sentido. Retoma-se o mito grego para se ler a cidade moderna, vendo também a multidão como um labirinto.
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Nosso conceito de cidade é construído a partir de narrativas, relatos, criações literárias que então contribuem para a formação de um imaginário coletivo. Em que medida a complexidade urbana do Rio de Janeiro é compreendida nos símbolos que essas narrativas nos apresentam? Em que medida o caos que caracteriza hoje o Rio de Janeiro compromete a própria noção primeira de cidade? A literatura no Brasil vai se tornando basicamente urbana, apesar de toda uma tradição do romance regional. O Rio de Janeiro, por exemplo, é lido sob determinadas matrizes, a partir de determinados mitos, o mito da cidade mulher, da cidade maravilhosa, a própria corrosão desse mito, a imagem do malandro, do samba, da praia. Ou seja, existe uma série de representações que podem nos ajudar a ler o Rio de Janeiro, a partir desses mitos e da desconstrução dos mesmos com toda a realidade da violência urbana, do caos a que vocês se referem. E o caos, de certa forma, já está pressuposto na própria noção de megalópole, apesar de haver especificidades no Rio de Janeiro. Eu uso como cor te É um excesso de histórico, para entender o tudo, talvez até da Rio de Janeiro hoje, a Reforlinguagem, que apela ma Pereira Passos que vai para a redundância, a transformar o Rio em uma indicar a banalização cidade moderna, digamos que afeta não só o assim. Essa cidade vai ser cotidiano de quem feita como uma tentativa vive na cidade, de fazer a Paris nos trócomo também a picos, que foi um projeto representação da político e não um projeto experiência urbana. social. Esse projeto é uma tentativa de apagar um passado colonial. A partir daquele momento uma cidade será européia e outra será africana, como disse Lima Barreto. Então as medidas que são tomadas pra isso, expulsar os pobres do centro da cidade, despejá-los dos cortiços, etc darão início ao que hoje chamamos de cidade partida. E hoje ela não se apresenta como bipartida simplesmente, mas estilhaçada. É nesse momento que vai se criar o mito da Cidade Maravilhosa, que, junto a outros, vão aos poucos minimizando as contradições. E esses mitos permanecem por muito tempo, até que começam a ser
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corroídos pela realidade, com suas contradições, com a violência urbana, pela exclusão social. E não é que não houvesse violência antes, podemos encontrar imagens que já relatam as contradições, as diferenças de classes, os contrastes. A tentativa de criar uma cidade moderna dá origem, também, ao mito do cosmopolitismo do Rio, representado, por exemplo, pelo porto. É como se Pereira Passos abrisse a cidade para o mundo. Há toda uma simbologia por trás disso, como se revela também no mito da avenida, concretizado na Avenida Central, simbolizando essa E como narrar hoje esse idéia de Paris nos trópicos. imaginário da violência? Por outro lado, hoje, o que Como representar o ocorre é, além de uma re- irrepresentável? Como funcionalização, uma res- ler o ilegível? Se você semantização dos espaços, não tem meios de ler, criando novos sentidos. Um não tem meios de exemplo claro disso seria representar aquilo que a Lapa hoje. A Lapa surgiu foge da capacidade de como bairro boêmio no final representação. dos anos 20. Já nos anos 70 esse cenário vai ser reescrito em decadência. Há uma cena muito bonita do livro Lábios que beijei, do Agnaldo Silva, que descreve a morte de uma prostituta. O personagem do livro assiste, num quarto decadente, a essa morte. Tem uma visão de dentro e de fora: dentro a prostituta está morrendo, e com ela está morrendo uma Lapa em nome da moral e dos bons costumes simbolizados na catedral. No final, com parte da Lapa rende demolida e um personagem vai dizer: a Lapa não morreu, ela não existiu, só existiu no nosso imaginário. E outros autores vão dizer isso, que essa é uma Lapa mítica criada por todo um imaginário. Voltando ao caos, o que está no nosso imaginário hoje é o medo, a bala perdida, que vai além da bala perdida propriamente dita, passa a haver todo um imaginário por trás disso. E como narrar hoje esse imaginário da violência? Como representar o irrepresentável? Como ler o ilegível? Se você não tem meios de ler, não tem meios de representar aquilo que foge da capacidade de representação. E como fazer para proliferar leituras da cidade? Existe uma expressão do Michel de Certeau que gosto muito de usar: “a cidade é o palco de uma guerra de relatos”. Há uma tensão constante
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entre os pequenos discursos cotidianos, a sar a cidade, mas é fascinante ao mesmo tempo. Hoje, para projetar um prédio ou captação do efêmero, do instante, coisa que a crônica, que o cinema vão fazer, revelando fazer uma intervenção urbana tem que se essa guerra discursiva. levar em conta esse imaginário. Tem de se O caos vem das condições sociais e levar em conta também o imaginário da políticas. No entanto, isso é um fenômeno cidade, seu patrimônio invisível, intangível. que marca a sociedade contemporânea. É relevante, nesse sentido, atravessar a Como ler, como lidar com isso? A quesmultiplicidade de discursos que constitui tão político-social existe: a ausência do a realidade urbana, mas sem deixar-se doestado, a ausência da cidadania, a vida minar pelo hábito, pelo já codificado, para precária; agora, como isso se dá nas reprenão correr o risco de não ver mais. Buscar sentações da literatura, da mídia? A cidade caminhos nesse emaranhado de discursos é aparece como o lugar da solidão, onde se construir sentidos, proliferar leituras. Nós, vive no mundo fechado dos apartamenhabitantes ou visitantes da cidade, somos, tos. Tem uma cena que não é no Rio, é necessariamente, seus leitores. em São Paulo, a última cena do livro Eles eram muitos cavalos, de Luij Ruffato, em que um Onde está a cidade perfeita? A casal está trancado den- idéia é buscar, e não eliminar a tro de casa, dominados tensão porque a tensão não se pelo medo, ouvindo ba- elimina, é a tensão constante rulhos da violência que de uma guerra de relatos. estaria arrebentando lá fora. Tal cena simboliza muito essa cultura do medo, como se vê na realidade mostrada pelos meios de comunicação, sempre em excesso. É um excesso de tudo, talvez até da linguagem, que apela para a redundância, a indicar a banalização que afeta não só o cotidiano de quem vive na cidade, como também a representação da experiência urbana. Nós estamos tentando ler a cidade. Proliferar essas representações e recuperar o imaginário são maneiras de entendermos melhor a cidade, já que ela se apresenta como várias, com sua multiculturalidade. Não se pode deixar de levar em consideração essas culturas múltiplas para entender a megalópole. A idéia de cidade múltipla desmente de certa maneira o sentido da utopia, que a modernidade prometia, a cidade perfeita. Seria, então, projetar pela nostalgia um ideal do passado ou projetar pela utopia um ideal do futuro? E Calvino vai dizer que não é uma coisa nem outra. Onde está a cidade perfeita? A idéia é buscar, e não eliminar a tensão porque a tensão não se elimina, é a tensão constante de uma guerra de relatos. Como diz Marco Pólo a Kublai Khan: o importante é descobrir quem e o que não é inferno no meio do inferno. Não é fácil pen-
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Francis Alys, The Collector
Edgar Alan Poe, O homem da multidão
“A rua, uma das principais artérias da cidade, estivera movimentadíssima durante o dia inteiro; mas, ao escurecer, a multidão crescia de momento a momento, e, quando as luzes estavam bem acessas, duas densas e continuas marés humanas precipitavam-se em frente à porta. Nesse particular instante da noite, nunca me havia encontrado, antes, em situação parecida; e, assim, o tumultuoso mar de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente nova.”
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relicรกrio Juliana Sicuro Aluna do CAU/PUC-Rio
“Cidades lendárias achadas no fundo do mar: arqueólogos anunciaram a descoberta de cidades faraônicas submergidas há 2,5 mil anos no litoral egípcio e cuja existência até agora só era conhecida por lendas e narrações antigas.” Certa vez, numa terra qualquer em dia inexato, uma enchente tomou conta da cidade onde viviam pessoas comuns, como
nós - você e eu. Num gesto impiedoso, arrancou dos que ali moravam pertences, bens, relíquias, quem sabe. Os moradores viam correr naquelas águas amarronzadas seu passado em forma de objetos desfigurados, cacos indistinguíveis, papéis esfacelados. Ouvindo o acontecido, logo pensei no desespero da falta de abrigo, nas marcas deixadas
nas paredes, escadas, livros, cartas. Esses objetos eram, sem dúvida, o invólucro de um tempo, os rastros da memória de um povo que por um instante corria o perigo de cair no esquecimento. “A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata... mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão” Ítalo Calvino As Cidades Invisíveis As fotografias. Para muitos faria falta o registro imagético daquilo que foi vivido. A importância desse registro estaria vinculada, talvez, ao valor atribuído à memória visual, sendo ela a forma mais concreta como se expressam nossas recordações. Confiamos a tal ponto nas imagens que contemos na memória, que sentimos necessidade de recordar para que os fatos sejam percebidos como reais. A fotografia pode ser entendida como a expressão mais concreta do desejo do homem de eternizar momentos. A vontade de guardar instantes em caixinhas de papel para poder revê-los a qualquer hora com toda a sua preciosidade. Guardaram as fotografias que encontraram mesmo manchadas e disformes. Afinal de contas, o que realmente importa naquele pedaço de papel tingido de memória é a capacidade de desencadear momentos já vividos a partir do olhar. Esse mecanismo permanece ativo independente da imagem propriamente dita. Fotografias sem imagem parecem ilustrar o que seria a distorção do tempo e das nossas próprias percepções a respeito do nosso próprio passado. Não há nada de mais instigante e intrigante que o conteúdo do
tempo. A vivência se transforma em conteúdo impalpável: memória. Volátil, flexível, mutante, conteúdo este sujeito, inevitavelmente, a distorções involuntárias, saudosismos, traumas ou até mesmo ao tão temido esquecimento. Antes disso, conteúdo que pressupõe a impressão imediata e a reinvenção constante à medida que um instante se distancia do presente e ganha com isso diversas conotações. Aquilo que vemos e vivemos fica marcado querendo ou não. Esquecidos, distorcidos, não importa, os fatos reais nos constituem e, portanto, sua influência nas ações futuras independe da recordação. E o que é falar de realidade, da concretude de fatos que tem como destino inevitável tal imprecisão. Calvino nos conta em As Cidades invisíveis a história de Zora, cidade que tem como propriedade permanecer na memória de seus visitantes. O olhar percorre suas casas, portas e janelas como lendo uma partitura musical, na qual a posição de cada elemento configura um conjunto harmônico, sem tirar nem pôr. “mas foi inútil a minha viagem para visitar a cidade: obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar a memorização, Zora definhou, desfez-se e sumiu. Foi esquecida pelo mundo.” Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis É uma necessidade do homem tornar concreto o que lhe parece fugir de controle pela sua subjetividade. Guardamos, fotografamos, filmamos, construímos. Tornamos memória concreto e tijolo, tornamos vivência literatura, fotografia, cinema. Aprisionamos em caixinhas, em porta-retratos, em quartos, salas, casas, cidades, que serão visitadas por outros que roubam um pouquinho desse passado para si. O viajante para Ítalo Calvino vê os lugares por onde passa como “espelhos em negativo”, pois a partir do contato com o espaço de outros reconhece o pouco que é seu, descobrindo o passado que não teve e não terá. “...e quem sabe, então o Rio será alguma cidade submersa. Os escafandristas virão explorar sua casa, seu quarto, suas coisas, sua alma, desvãos. Sábios em vão tentarão decifrar o eco de antigas palavras, fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos, vestígios de estranha civilização..” Chico Buarque
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“O primeiro monumento a ser declarado patrimônio no Japão é a ruína de um edifício que sobreviveu à bomba de Hiroshima. É a partir desse momento que os japoneses começaram a pensar sobre isso. Lá, todos os templos são refeitos de 200 em 200 anos, com outros materiais. Tóquio é a própria cidade sem memória, quase a representação contrária da cidade patrimonial. Isso está ligado ao fato de os japoneses viverem com a idéia de que, a qualquer momento, um terremoto é possível. Não há necessidade de conservar nenhum prédio porque o chão vai afundar. Ao mesmo tempo, os rituais são vividos diariamente, as tradições estão vivas e, por isso, não há uma necessidade de petrificá-las.” Henry-Pierre Jeudy em entrevista a Folha de São Paulo publicada originalmente em 06/06/05, www.folha.com.br.
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Como ver a cidade? Como falar do espaço urbano através dos diferentes sujeitos anônimos que o habitam?
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Simmel: A metrópole e a grande cidade Ricardo Benzaquen Historiador, Professor do Departamento de História da PUC-Rio, Professor Pesquisador IUPERJ,Doutor em Antropologia Social pela UFRJ.
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Transcrição de palestra realizada por Ricardo Benzaquen durante o evento SER URBANO, Semana de Arquitetura da PUC-Rio, em setembro de 2006.
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Apesar de não ter uma relação direta, sistemática, com o curso de arquitetura e pensando em que contribuição eu poderia trazer para o nosso debate, me pareceu que o mais indicado, o mais correto, talvez, fosse tentar chamar atenção para a obra de um filósofo, sociólogo da cultura, chamado Georg Simmel. Seria interessante falar de Simmel basicamente pelo seguinte: eu diria que, do ponto de vista da sociologia urbana e do tipo de reflexão histórica sobre as cidades, a obra dele muito provavelmente é aquela que mais contribuiu para o campo de debate ao menos desde os anos 50. Simmel viveu basicamente no final do século XIX, início do século XX. Era um berlinense, chegou até a ser professor universitário, mas na maior parte do tempo ele sobreviveu apenas como jornalista dando palestras e aulas particulares. Enfim, é uma figura da vida intelectual berlinense. Se formos pensar em termos da recepção da obra do Simmel no ocidente, temos dois grandes momentos: um primeiro momento por volta dos anos 50 (até um pouco antes, na verdade) e outro que eu diria que se iniciou entre 10 e 20 anos atrás. Os anos 50 foram o ponto culminante dessa primeira recepção do trabalho dele. Seu trabalho vai ser incorporado na chamada Sociologia de Chicago, importante escola sociológica norte-americana, dedicada a lidar com temas eminentemente urbanos e que faz uma leitura muito peculiar da reflexão do Simmel, com base em um certo conjunto de textos dele. Dentre eles, eu destacaria um artigo, que está inclusive traduzido pro português, que se chama A metrópole e a vida mental, publicado no livro O Fenômeno Urbano. Boa parte da reflexão da escola de Chicago se concentrava em examinar a cidade – a cidade como laboratório. Tinham uma enorme preocupação em dar conta não simplesmente das tradições, mas do conjunto de pequenas rupturas, novas sociabilidades associadas a todas as cidades, em particular da grande cidade, da metrópole. O segundo grande momento dessa recepção da reflexão de Simmel no ocidente, se iniciou há uns 10, 20 anos atrás, quando se percebe que, além dos textos
que haviam sido conhecidos, havia uma infinidade de outros trabalhos preocupados com um enorme leque de questões - Rembrant, Goethe, a relação entre os sexos, a religião, enfim, um imenso conjunto de questões, boa parte delas tendo como referência o mundo da metrópole moderna. Indo direto ao ponto, seria importante chamar atenção para o próprio título que eu dei para minha intervenção hoje aqui: Simmel, a metrópole e a grande cidade. De um lado, com muita freqüência essas categorias são vistas como sinônimos. A minha sensação é de que hoje em dia, mas já levando em conta esse segundo momento da recepção do trabalho do Simmel, já é possível separar uma coisa da outra. Vamos primeiro falar de metrópole que, afinal de contas, marcou todo o trabalho dele e foi efetivamente a responsável pela difusão da sua obra nos últimos cem anos. Chamo atenção para que nem toda grande cidade precisa ser submetida ao conceito de metrópole. Existem cidades enormes, tanto do ponto de vista espacial quanto inclusive no que se refere à sua profundidade histórica, que não se encaixariam precisamente na idéia de metrópole tal como ele vai desenvolver nesse artigo A Metrópole e a Vida Mental. Para pensar metrópole como um conceito na obra dele, é indispensável que tenhamos algum tipo de referência ao tipo de argumento que ele vai desenvolver acerca de um certo tipo de experiência sobre a subjetividade ao longo do século XIX. Um dos pontos para o qual eu vou chamar atenção é que a discussão não é simplesmente um exame sobre a experiência urbana tal como inclusive boa parte da história de Chicago imaginou ao longo dos últimos 40, 60 anos. O conceito de metrópole para Simmel vem associado a um certo tipo de indagação acerca da maneira pela qual a subjetividade foi experimentada nesta mesma metrópole, pelo menos a partir do século XIX. Se a gente quiser uma referência, só por comodidade, digamos assim, podemos pensar em Berlim. Ele vai usar Berlim em vários lugares, que para ele funcionava como uma grande metrópole. Outros autores iriam preferir Paris. Eu diria que Londres não se encaixa nesse modelo, nem Londres nem Roma, em particular. Mas o
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tipo de investigação na qual ele, antes de qualquer coisa, estava interessado só podia ser encontrado numa cidade como Berlim, do tipo de Berlim. Para poder entender a subjetividade típica da metrópole, é de certa forma inevitável voltar um pouco atrás, discutir muito rapidamente a questão da experiência subjetiva em comunidades mais tradicionais - para isso podemos usar o início do século XIX como referência. Nesse caso, talvez fosse importante chamar atenção para o fato de que a idéia de subjetividade vem associada e contrastada com a noção de objetividade. Simmel fala de uma cultura subjetiva que definiria o sujeito não simplesmente concebido como seres humanos, indivíduos quaisquer, mas eventualmente comunidades locais ou nacionais. A idéia de cultura subjetiva refere-se a um certo tipo de característica responsável pela identidade mais específica de qualquer tipo de entidade em exame. A discussão começa a ganhar força nesse ponto. Não é possível se ter um entendimento mais sofisticado de qualquer experiência subjetiva, quer ela passe pela noção de indivíduos, quer ela passe pela noção de identidade comunitária, nacional ou até mais amplas, sem que ao mesmo tempo se leve em consideração a maneira pela qual essa experiência vinha articulada com o que ele chama de cultura objetiva. Cultura objetiva, portanto, remete a toda aquela soma de informações, inovações, novidades intelectuais e materiais que eventualmente estivessem conectadas com um elemento capaz de garantir identidade - a isso que eu estou chamando de experiência subjetiva. Simmel insiste sobre o fato de que é fundamental que cada experiência subjetiva desenvolva um certo nexo com aquilo que lhe é exterior, ou seja, com aquilo que lhe é objetivo, aquilo que resiste ao desenvolvimento do sujeito. Exatamente para que esse sujeito, digamos que provocado, fertilizado, fecundado para aquilo que é diferente dele, tenha condições de atingir um resultado maior, mais sofisticado, tenha condições de se desenvolver de maneira mais complexa e mais sofisticada do que aquela com que ele teria se desenvolvido, se deixado simplesmente entregue a uma espécie de ampliação do seu núcleo interior. Evidente que isso diz respeito a todo um conjunto de debates ligados ao idealismo alemão. A idéia de cultivo é essencial para que se entenda essa conexão entre o subjetivo e o objetivo. O exemplo clássico é a própria atividade do jardineiro, metáfora típica do romantismo alemão, a idéia de que as árvores, entregues a seu estado natural - ele fala em pereiras
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- certamente poderiam produzir pêras comestíveis, gostosas, desde que elas fossem submetidas ao trabalho do jardineiro. Estas, entrando em contato com aquilo que lhe é externo, teriam condições de crescer ainda mais. Uma pêra silvestre não seria tão boa para se comer quanto a cultivada. Agora, tem um ponto que é essencial para que a gente possa entender o argumento que vem a seguir: o fato de que esse contato entre o interno e o externo só se realiza de maneira correta quando a intervenção daquilo que é externo, o trabalho do jardineiro, não ofende, não modifica essencialmente a natureza dessa experiência subjetiva. Uma coisa é transformar essa experiência no sentido de torná-la mais sofisticada, cultivá-la, aperfeiçoá-la, outra coisa é um tipo de intervenção que modifica completamente a sua natureza. É evidente que o contato entre interior e exterior, entre o subjetivo e o objetivo, traz as duas possibilidades ou pelo menos traz uma possibilidade e o risco de modificação daquilo que seja interno pelo contato com o externo. O argumento ganha aí outro significado. Nesse sentido, para Simmel, boa parte da experiência subjetiva, com a qual ele vai trabalhar, sobretudo aquela mais associada ao século XVIII e à primeira metade do século XIX, nos remete diretamente a esse tipo de articulação entre cultura subjetiva e cultura objetiva, na qual o crescimento do sujeito não é apenas uma expansão do seu núcleo mais interno, do seu ponto central, mas, ao contrário, é uma transformação desse núcleo. Ele se mantém num estado superior, crescentemente sofisticado, mais complexo, enfim, todo um conjunto de argumentos que podem caminhar na mesma direção. Por que seria importante discutir experiência subjetiva e objetiva, as suas relações com a metrópole? Exatamente porque ele insiste sobre o fato de que essa feliz articulação entre o interno e o externo teria caracterizado boa parte da história ocidental. Ele lida com esse argumento basicamente pensando em pequenas cidades ou nas grandes cidades antigas, dos séculos XVII e XVIII. O ponto dele é que essa feliz articulação de certa forma se rompe precisamente no início do século XX. Há todo um conjunto de argumentos que teriam que ser convocados para dar conta dessa ruptura. É como se, de repente, o que eles chamam de divisão social do trabalho ampliasse o mundo objetivo de tal maneira, que teria como resultado o surgimento do mundo das mercadorias. Isso se sucede de tal modo que se torna impossível ao sujeito uma relação articulada,
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integrada com o mundo objetivo. Ao contrário, o mundo objetivo ganha absoluta independência em relação ao sujeito. É impossível para qualquer portador de uma experiência subjetiva uma relação feliz, controlada, moderada com aquilo que lhe é externo, capaz de lhe dar condições de utilizar aquilo que é externo para auxiliar no seu aperfeiçoamento sem ao mesmo tempo desvirtuar o seu sentido mais específico. O que se dá é o oposto: é um sujeito que começa a ser bombardeado por um conjunto cada vez maior, mais variado, de elementos desse mundo objetivo que vão se produzindo numa quantidade e velocidade tão gigantesca que rigorosamente desnorteiam esse indivíduo. Esse portador de uma experiência subjetiva é colocado quase que em uma situação de receber os mais distintos e variados golpes a cada momento do dia. Então, um dos argumentos essenciais para a definição do que seria metrópole passa pela idéia de que aquele que vive na metrópole é submetido a um bombardeio incessante das mais variadas, súbitas e surpreendentes impressões, uma atrás da outra. Precisamente porque esse mundo objetivo desenvolveu-se a tal ponto, com a tal independência da experiência interior, que se torna impossível para os sujeitos uma conexão com aquilo que se passa à sua volta. O que vai caracterizar a metrópole é precisamente o que mais adiante, sobretudo a partir das reflexões do filósofo Walter Benjamim, passou a ser conhecido como experiência de choque. Veja que estou conectando experiência de choque com esse mundo objetivo completamente autonomizado, convertido numa espécie de sucessão de impactos fulminantes associados a inúmeras experiências que são agora impossíveis de serem resumidas ou até compreendidas por qualquer sujeito. Berlim, Paris, Londres, Nova York e, evidentemente, Roma, Rio de Janeiro, Buenos Aires talvez pudessem ser associadas a esse tipo de experiência, quase como se houvesse uma espécie de civilização metropolitana marcada precisamente por esse sujeito no limite melancólico. O homem das multidões, de Edgar Alan Poe, remete especificamente a esse tipo de experiência, o cidadão metropolitano atraído por um intenso, súbito e variado conjunto de estímulos indo de um lado a outro sempre a procura de movimento. Isso a tal ponto que inevitavelmente existem algumas conseqüências. Uma delas é uma espécie de ampliação intelectual desse ser metropolitano, como se o intelecto fosse uma parte mais superficial da psicologia de cada um, seguramente mais superficial que os senti-
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mentos. Daí a decorrente hipertrofia do habitante da metrópole, conseqüência do aumento da densidade do intelecto exatamente para poder suportar ou mesmo se adaptar a esse mundo de choques permanentes. O intelecto, por definição, retira a substância específica das coisas, estabelece conexões entre elas, conceitos, categorias, diminui o colorido peculiar de cada experiência. Por isso mesmo, funciona como o elemento que é capaz de pelo menos tentar amortecer o choque produzido por essa cultura objetiva. Não é só o intelecto que se desenvolve. Também a vida mercantil, a ação da economia monetária sobre todas as esferas da existência, provoca uma diminuição do colorido, do que há de singular em cada experiência, para tudo converter em objeto de cálculo, em precisão. Com esse encaminhamento é possível pensar aquele homem da metrópole como um ser eminentemente melancólico. Não se trata de pensar aqui na melancolia clássica, como foi examinada por Aristóteles, ou então como a que reaparece durante o Renascimento, mais adiante representada por Albert Durer. Não é exatamente a esse tipo a que me refiro. Essa melancolia clássica era quase que o preço que certos homens pagavam pela sua vocação propriamente intelectual. Sua imersão no mundo da reflexão tinha como resultado uma postura melancólica. A melancolia a qual tanto Simmel quanto Benjamim vão estar se referindo por intermédio desse homem das multidões não tem basicamente um caráter produtivo, ela não se refere a um ou outro grande autor. Baudelaire pode ainda ser associada a figura heróica de um artista que enfrenta de peito aberto esses choques para retirar daí algum tipo de ganho intelectual. Mas o melancólico associado ao homem das metrópoles tem um sentido completamente diferente. É exatamente esse ser desorientado, dirigido de fora para dentro, inconstante, porque são pequenas explosões, são diferentes focos de atenção que surgem ao mesmo tempo. É como assistir televisão mudando de canal para canal, vendo dois segundos e meio de cada programa: no final do dia você está com os nervos estirados, depois de ver tanta coisa, olhar sem ver, sem compreender, incorporar à sua experiência interior ao menos parte daquilo que desfilou a sua frente. Essa tem sido a leitura padrão da contribuição de George Simmel para tal discussão. O homem metropolitano seria este ser completamente bombardeado pelos mais diferentes choques e, no limite, encaminhandose para uma postura muito mais melancólica.
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Mais recentemente, nos últimos 10 anos, começaram a ser publicados alguns textos do Simmel sobre o tema das grandes cidades que sugerem um outro entendimento dessa questão. Não que ele estivesse se contradizendo, produzindo um argumento diferente desse que resumi acima. Simmel apenas vai chamar atenção para o fato de que existem cidades enormes, gigantescas, que não recaem sob o conceito de metrópole. Um dos ensaios mais interessantes é Roma, uma análise estética, no qual ela figura como a anti-metrópole por excelência, o avesso de Paris, o oposto de Berlim. E o que torna Roma tão diferente de uma metrópole? Nesse texto, o principal argumento de Simmel é o de que Roma deve ser entendida como uma obra de arte, num sentido muito preciso do termo. No que se refere à definição do espaço, Roma vai aparecer como uma localidade na qual os mais diferentes planos vão se combinar, sendo que essa diferença não chega a causar nenhum tipo de estranheza. As ruas de Roma, para o autor, são ruas que conhecem uma oposição entre o alto e o baixo ou se encaixam em planos diferentes. Experiências distintas vão se complementando, não somente experiências geográficas como temporalmente distintas. Roma é uma cidade muito grande do ponto de vista do espaço, é de uma profundidade histórica quase incomparável do ponto de vista da história do ocidente. Remete ao Império Romano, à Idade Média, aos papas e ao Vaticano, ao Renascimento, é claro; é uma cidade gigantesca em que as diferentes épocas históricas coexistem articuladas entre si. Na metrópole, as distinções são associadas a um mundo objetivo, às diferentes sensações, impulsos que vão chamando a atenção de cada um para as mais distintas experiências. Em Roma, ao contrário, tanto a variedade espacial quanto a gigantesca complexidade histórica teriam pouco a pouco se harmonizado, configurando uma beleza que implica a harmonia entre elementos opostos. Roma para ele tem essa estranha beleza, gigantesca, monumental. Salientando esse aspecto histórico, diferentes épocas vão se combinando, fornecendo uma imagem minimamente articulada; articulação, porém, que não faz desaparecer a enorme variedade contida em cada um entre os diversos elementos. O curioso é que nesse tipo de cidade o gigantismo, essa profundidade enorme, esse tamanho desmesurado, essa complexidade quase infinita, não pesa sobre aqueles que a visitam ou que lá moram. Simmel insiste muito sobre esse ponto: a idéia de que a grandiosidade romana não pesa sobre aqueles que entram
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em contato com ela. Ao contrário, ela tem um efeito muito peculiar: é como se esse tipo de grande cidade fizesse com que tudo aquilo que é menos importante na vida de cada um, tudo aquilo que é cotidiano, todo esse conjunto de mesquinharias que ocupam grande parte da experiência subjetiva parecesse perder a importância diante de uma grandiosidade, de uma experiência tão sublime como aquela que poderia ser encontrada num lugar como Roma. É como se cada um se despisse daquilo que é menos importante e que paradoxalmente costuma ocupar um lugar tão grande e se colocasse espiritualmente nu diante dessa grandeza romana. Diante ao sublime, corporificado em Roma, aquilo que há de mais sublime em cada um, que é essa identidade mais específica, essa capacidade de operar sobre a sua própria vontade, tem condições de também ganhar força e de certo modo de se fortalecer, se sofisticar com o contato, com a riqueza embutida na experiência romana. Vejam como que, de certo modo, a grande cidade pode, por um outro caminho, manter viva a relação entre sujeito e objeto que ele vai examinar ao longo do século XIX, com muita freqüência associada a essa discussão mais tipicamente alemã em torno da idéia de cultivo. Há outras maneiras de se restabelecer o nexo entre experiência subjetiva e mundo exterior, um nexo no qual o mundo exterior não funcione como o elemento que diminui a riqueza interior tal como nas metrópoles. Ao invés disso, teríamos em Roma uma experiência comparável a que ele vai identificar ao longo de boa parte do século XVIII e do século XIX, na qual aquilo que é externo contribui para a sofisticação de cada um. Cada um deixa de lado tudo aquilo que é menos importante em si ao entrar em contato com algo tão esmagador, tão impressionante quanto esse conjunto de diferentes experiências articuladas entre si. E, por isso mesmo, o contato com uma cidade desse tipo, ao invés de produzir desorientação no sujeito, produz o efeito oposto: faz com que ele se enriqueça sem perder, porém, a sua característica mais significativa. Eu tentei mostrar como que a partir da reflexão de Georg Simmel podemos não só lidar com a experiência metropolitana, que atualmente tem sido objeto da atenção da maior por parte dos cientistas sociais, mas também como modular o próprio entendimento acerca da cidade. Nem toda cidade moderna é uma metrópole. Esta não é uma categoria que tem um sentido descritivo, é um conceito que serve para dar conta de certas experiências e não de outras.
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tabuleiro da rua augusto de guimaraens cavalcanti para paul éluard
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o peixe da angústia, o mundo transparente. trago um belo pássaro por de trás do cabelo. os tigres na calçada, ruas sem cor, a tarde grávida de mim, a tarde grávida de mim. unhas me cravam a pele de delicado metal, dias de vento, o mesmo que nadar no céu. entre lama e estrelas, caminhar é ter falta de lugar. estou na minha avenida, eu vejo flores e choques elétricos. continuo me perdendo nas mesmas esquinas. palco iluminado. temos que nos recriar todos os dias.
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aos sete mares domingos guimarães
a cidade é um naufrágio e suas metálicas colorações cinzentas nos remetem aos encarcerados universos cravejados nestes edifícios que se erguem do oceano como mastros derruídos de uma nau sem esperanças a cidade é um naufrágio com suas torres destruídas atravessadas pelo ódio alado do impossível o esqueleto retorcido em ferro e fogo no desmanchar da tarde sob a cortina de fumaça a cidade é um naufrágio um naufrágio universal. um enorme monstro que sorve avidamente tal como animal sedento o intemporal líquido do fim a cidade é um naufrágio não há botes salva-vidas não há terra no horizonte a cidade é um naufrágio e nós o último e anônimo afogado suspiro inanimado...
www.ossetenovos.org
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publicidade@revistanoz.com
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TFG: Complexo Paneleiras Amanda Miranda
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Contraponto Carlos Vainer / Sílvio Zancheti
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Intervenção no bairro portuário do Recife Amélia Reynaldo
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Vazios Urbanos Andrea Borde
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AMANDA MIRANDA, arquiteta e urbanista, formada pelo CAU/PUC-Rio
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TFG Complexo Paneleiras A ARQUITETURA COMO AGENTE PERPETUADOR CULTURAL E TRANSFORMADOR URBANO.
O Espírito Santo, marcado pela famosa moqueca capixaba feita nas panelas de barro escuras, apresenta na cidade de Vitória, mais precisamente no bairro de Goiabeiras Velha, um grupo de mulheres que se reconhecem como Paneleiras de Goiabeiras, por ali morarem e trabalharem, e que vivem da produção artesanal dessas panelas. Este ofício, de característica familiar, segue uma tradição de cerca de 400 anos, seguindo os mesmos rituais de produção realizado outrora pelos índios Tupi-Guarani e
Una, que anteriormente habitavam a região. Em 1987, com o apoio da Prefeitura e da Lei Rubem Braga (lei municipal de incentivo à cultura), foi estabelecido o galpão da Associação das Paneleiras de Goiabeiras (APG), que é um ponto turístico da cidade e o local coletivo de produção e venda das panelas, mas que, atualmente, encontra-se com uma série de problemas estruturais e funcionais, além de não comportar mais o número de pessoas que trabalham no local. Para agravar ainda mais a situação, há o
projeto da Prefeitura da Rota Manguezal, que propõe a construção de uma nova via às margens do mangue, e que conseqüentemente, cortará o terreno do galpão, diminuindo ainda mais suas instalações. Em 2001, as paneleiras ganharam reconhecimento nacional ao obterem o primeiro registro como um bem imaterial, no livro dos saberes do IPHAN. Dentro deste quadro, proponho a criação de um novo local de trabalho para essas mulheres, que contará também com espaços de cultura e lazer e que
por isso será denominado de Complexo Paneleiras. O terreno selecionado é o do atual galpão, acrescido dos 4500m² do terreno à frente, pertencente a uma antiga fábrica desativada de pré-moldados. Mais do que ajudar na perpetuação dessa cultura, o Complexo Paneleiras estará viabilizando a manutenção do modo pelo qual estas mulheres se reconhecem como parte de um grupo, com características e local próprio, compondo assim sua identidade e fazendo com que suas vozes sejam ativas na sociedade.
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Este espaço é dedicado à publicação de Trabalhos Finais de Graduação (TFGs) produzidos no Curso. Pretendemos destacar sua importância, pois é a partir desta primeira leva de trabalhos finais que as previsões acerca do caráter da Escola começam a se concretizar. A multidisciplinaridade característica da formação em arquitetura, assim como a constante mutação do curso em formação, justificam a variedade dos trabalhos apresentados. Inauguramos esse espaço com o projeto de Amanda Miranda, o “Complexo Paneleiras”, que entendemos representar o processo desenvolvido ao longo do curso, por aliar abordagens urbanística, histórica, sociológica e patrimonial em um projeto de arquitetura, que busca aliar tradição e contemporaneidade, suscitando questões pertinentes quanto aos limites da atuação do arquiteto.
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implantação
cortes
planta de locação
casas paneleiras terrenos
contraponto: revitalização 70
Muito além da recuperação física de um imóvel histórico, há envolvida nos projetos de revitalização a necessidade de uma postura consciente perante os desdobramentos econômicos, políticos e sociais atrelados a um projeto dessa natureza. Também há a necessidade de discussão dos mecanismos artificiais de preservação da identidade e da expressão cultural ofuscados sob a preocupação com a arquitetura, o monumento, o patrimônio material, isoladamente. A ausência de uma reflexão critica e a abordagem geralmente superficial desses aspectos conduz a equívocos muitas vezes irreparáveis, que podem começar na aceitação passiva de lugares-comuns, como o do próprio conceito de revitalização. A questão se complexifica ainda mais ao nos referirmos à recuperação de centros históricos, associados a processos de reestruturação urbana. Distanciando-se dos planos das décadas de 1980 e 1990 (Bairro do Recife, Corredor Cultural do Centro do Rio, Pelourinho), as avaliações vão sendo feitas e duras criticas aos modelos adotados proliferam. De um modo geral, critica-se a desarticulação das ações e seus efeitos colaterais, mas entre os profissionais envolvidos no debate há perspectivas bastante distintas. Buscando conhecê-las, entrevistamos o professor da UFPE e fundador do CECI (Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada) Silvio Mendes Zancheti, que introduz sua avaliação da revitalização de áreas históricas como estratégia de desenvolvimento local. Entrevistamos também o professor da UFRJ, e um dos autores de A Cidade do Pensamento Único, Carlos Vainer, que adota uma postura crítica em relação aos processos de gentrificação e mercantilização da cultura, acarretados pelos projetos de revitalização, e que defende uma cidade mista.
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Qual seria o modelo ideal de relacionamento entre o poder público e a iniciativa privada? Como evitar que haja transferência de investimentos do primeiro para o segundo? NOZ: De que maneira a revitalização de centros históricos deve ser articulada, para deixar de ser um empreendimento isolado e passar a fazer parte de uma estratégia maior de desenvolvimento econômico local? Silvio Mendes Zancheti: A resposta está em adotar uma abordagem da conservação integrada (CI). Essa abordagem, formulada inicialmente nos anos 1970, na Itália e, formalizada nos documentos da Declaração e Manifesto de Amsterdã (1975) preconiza que os centros históricos devem fazer parte do planejamento da cidade como elementos que conferem valor para o desenvolvimento local e, também, devem ser interpretados como ativos culturais irreprodutíveis que, para conferirem valor ao processo de desenvolvimento, devem ser conservados considerando os aspectos de autenticidade. Os projetos de revitalização de centros históricos no Brasil têm pecado por considerarem a CI segundo abordagens específicas. Principalmente não têm sido elaborados dentro do bojo de um plano de desenvolvimento urbano da cidade (são projetos de desenvolvimento de uma pequena parte da cidade) e abandonaram as questões da autenticidade.
SMZ: Não existe um modelo ideal para esse relacionamento, pois depende de um grande número de fatores ligados, especialmente, ao quadro político/institucional, social e econômico do país ou da cidade onde ocorre o projeto. Entretanto, está cada vez mais claro que o poder público não tem a capacidade de conduzir um processo de revitalização de áreas urbanas de interesse cultural sem a parceria com os atores privados, especialmente os proprietários de imóveis e os investidores nas atividades locais. Para que qualquer projeto de revitalização possa ser bem sucedido será necessária, pelo menos, a aplicação de recursos públicos significativos na infra-estrutura urbana, na melhoria da qualidade dos espaços públicos e na formação de um sistema de gestão do projeto, eficiente e eficaz, que atuem por um longo período. Também, será necessário formar mecanismos de compensação para os grupos sociais que serão penalizados nos processos, como, por exemplo, os moradores mais pobres e os comerciantes de pequenos negócios. A valorização inevitável dos imóveis da área de projeto dispara mecanismos de gentrificação que não podem ser evitados, mas seus efeitos podem ser minimizados.
Como minimizar esses efeitos? SMZ: A gentrificação é uma conseqüência, quase que inevitável, de qualquer projeto de revitalização, devida aos efeitos de valorização do solo e dos imóveis urbanos. Na resposta acima já ressaltei as necessidades de formular mecanismos de compensação social, que são os únicos possíveis quando o projeto não é formulado tomandose em consideração as possibilidades de ocorrência dos processos de elitização e exclusão social. A única saída para resolver em parte, ou minimizar, o problema é realizar um projeto que: a) tenha uma ampla participação de todos os envolvidos com os efeitos (negativos e positivos) possíveis do projeto; b) que a participação tenha caráter normativo e não só consultivo; c) que se trabalhe com alternativas de projeto; d) que as alternativas de projetos sejam avaliadas quanto aos aspectos sociais, econômicos, ambientais e culturais e, finalmente, e) que seja criados instrumentos participativos de análise de custo e benefício de todas as alternativas.
Qual a sua avaliação dos projetos de revitalização de centros históricos no Brasil a partir do final da década de 1980? SMZ: Os projetos de revitalização foram muito importantes, por que colocaram as municipalidades como as principais instituições de promoção da conservação patrimonial urbana; fizeram com que as áreas históricas fossem, finalmente, interpretadas como ativos culturais capazes de gerar valor no interior do desenvolvimento local; foram projetos de desenvolvimento local.
Em meio a tantos fatores e agentes, o que compete ao arquiteto para o êxito de um projeto dessa natureza? SMZ: Cabe participar do processo multidisciplinar sabendo trabalhar com competência dentro do seu campo da arquitetura, da conservação de bens imóveis e da forma do espaço público. Infelizmente, as escolas de arquitetura não ensinam ao arquiteto a trabalhar com os bens construídos, especialmente, na escala urbana.
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NOZ: Você afirma que os debates sobre a revitalização de centros históricos geralmente incorrem no equívoco de considerar essas áreas carentes de vitalida de, enquanto a carência destas seria de outra ordem. Quais seriam as principais mudanças apresentadas nos projetos de intervenção a partir da revisão desse conceito? Carlos Vainer: Há um equívoco em olhar para o centro de Rio de Janeiro ou de São Paulo e dizer que estas áreas precisam ser re-vitalizadas. Na verdade, qualquer pessoa que circula pelo centro do Rio ou de São Paulo percebe a enorme vitalidade social e humana. A vida circula ali com enorme energia, só que, em alguns segmentos ou sub-áreas, é a vida dos destituídos, de setores mais pobres: camelôs, moradores de rua, mendigos, e uma infinidade de outros grupos sociais ocupam e atuam nessas áreas, conferindo-lhes um colorido e vida muito particulares. Certamente, não são os grupos mais ricos de nossas cidades, mas afinal de contas, quem foi que disse que só estes são dotados de vida? Certamente, não são os segmentos mais dinâmicos do capital nacional e internacional, mas quem foi que disse que apenas o grande capital é dotado de vida em nossa sociedade?
Com isso quero dizer que a expressão re-vitalização incorre no equívoco de esconder a vida real de muitos de nossos centros urbanos, como se houvesse uma única e autorizada forma de vida urbana: a das classes médias e altas. Também a expressão recuperação, embora normalmente pretenda designar os processos de resgate do patrimônio arquitetônico e urbanístico, expressa projetos de recuperação social, isto é, de retomada dos centros por determinados grupos sociais e usos. Os centros históricos, quase sempre, em outros momentos históricos de nossas cidades, foram ocupados pelos setores mais dinâmicos do capital e serviram como área de residência e/ou lazer dos grupos sociais privilegiados. Por uma série de razões, que variam de cidade para cidade, e que somente estudos de caso específicos podem elucidar, em muitas cidades os grupos dominantes foram se deslocando para outras áreas – novos centros (veja-se São Paulo, com o deslocamento do Centro Velho para a Avenida Paulista das sedes das grandes empresas, muitas das quais, agora, fazem novo deslocamento em direção à Avenida Faria Lima e áreas adjacentes). Ao abandonarem as velhas áreas centrais, ou ao redefinirem seus usos, abriram espaço para que grupos empobrecidos e outros usos ali se instalassem.
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Nos idos de 1905, para tomar o caso do Rio de Janeiro, as reformas de Pereira Passos viabilizaramse, graças a um acelerado e violento processo de expulsão dos pobres da área central da cidade, para a implantação da Avenida Rio Branco e o novo porto. Hoje, estas mesmas áreas, desertadas pelos usos então implantados e tomadas, ao menos em parte, por usos considerados pelo grande capital (inclusive imobiliário) e pelas camadas privilegiadas como pouco nobres, ou de pouca vitalidade, correm o risco de serem novamente expulsos. Assim, ao invés de revitalização ou recuperação de patrimônio imobiliário, o que assistimos, nos centros de muitas de nossas cidades, é a uma disputa social para definir por quem e como serão apropriados e usados nossos espaços centrais – com suas infra-estruturas e recursos imobiliários. Os investimentos em regeneração urbanística e imobiliária parecem justificáveis somente se estiverem precedidos de uma limpeza social. É como se nos dissessem: só vale a pena restaurar imóveis, resgatar o patrimônio, se pusermos para fora os pobres, com seus pobres usos. Na reforma do Pelourinho, na velha Salvador, e nos projetos que hoje estão em andamento no centro de São Paulo, se diz explicitamente que é necessário eliminar os usos existentes e deslocar seus usuários.
Quais os problemas decorrentes da parceria entre os setores público e privado nos projetos de revitalização no Brasil? CV: Como disse acima, assistimos a uma disputa pela apropriação e controle dos recursos – locacionais, imobiliários, culturais, de infra-estrutura – que constituem os centros urbanos. Quando se associa aos capitais privados, o estado se submete à lógica da valorização privada dos patrimônios. A valorização imobiliária passa a ser o objetivo mesmo dos projetos e empreendimentos. Para isso é necessário limpar a área, expulsar os usos considerados menos nobres. Trata-se de reproduzir nos centros, revitalizados e recuperados, a lógica mesma dos condomínios fechados, shopping centers e outros espaços marcados como exclusivos de determinadas classes ou segmentos de classe. A valorização imobiliária domina o processo de intervenção e a operação urbanística revela seu verdadeiro sentido de operação imobiliária. O projeto hoje existente na Prefeitura para a recuperação e revitalização da Área Portuária reproduz esta lógica. Ao final, o que veremos, são os investimentos públicos financiando operações de valorização imobiliária, que acabarão por transferir para grupos privilegiados os recursos urbanos
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disponíveis nos centros urbanos e os recursos públicos aí investidos. Tudo isso assume a forma de: homogeneização social dos espaços, especulação imobiliária, privatização dos espaços públicos. Estaremos assistindo a mais um processo do que a literatura especializada tem chamado de gentrification, que poderíamos chamar, em português, de enobrecimento ou, simplesmente, aburguesamento. Como a questão do turismo poderia ser introduzida de maneira menos nociva à espontaneidade das manifestações culturais locais? CV: O turismo não pode ser pensado separadamente de um projeto para a cidade como um todo. E este projeto tem que ter como ponto de partida os citadinos, os moradores da cidade. Submeter à cidade ao turismo é o mesmo que submeter à cidade à especulação: num caso e no outro a cidade é reduzida a espaço de valorização do capital. A cidade não pode ser pensada como uma mercadoria a ser vendida no mercado turístico. Ela tem que ser pensada a partir e para aqueles que a constroem e fazem viver. A idéia central a promover, a meu ver, é a da cidade mista. Senão vejamos. O que faz a riqueza de uma cidade? Ou melhor: o que faz de uma cidade uma verda-
deira cidade? Se tomamos a Escola de Chicago, que fundou, por assim dizer, a sociologia urbana, dois dos atributos essenciais da cidade são a heterogeneidade e a densidade. A cidade é o que é porque é densa e diversa. Ora, a que nos conduzem os condomínios fechados, as áreas comerciais exclusiva, os espaços urbanos exclusivos? A que nos conduzem as áreas turísticas separadas, onde o turista entra em contato com uma cidade destituída de urbanidade, posto que reduzida à mera paisagem, museificada e estereotipada? Eles instauram uma infinidade de cidadelas, que são a negação mesma da cidade. Nossas cidades estão sendo destruídas pela segmentação e fragmentação em uma infinidade de cidadelas. A urbanidade, a vida propriamente urbana desaparecem. A possibilidade da interação entre diferentes grupos se esvai, e com ela o essencial aprendizado, democrático e civil, cultural e civilizatório, que não nasce senão do contato e diálogo entre o diverso, heterogêneo. Eu tenho defendido, de maneira cada vez mais convicta, algo completamente diferente. Defendo uma CIDADE MISTA, que é a única forma de cidade digna deste nome. Há experiências, pelo mundo afora, sobretudo nos Estados Unidos e Canadá, de normas e diretrizes urbanísticas que impõem, a todo e qualquer projeto
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urbano de mais vastas dimensões, que assegurem a heterogeneidade – de usos, de grupos sociais, de formas de vida, etc. Assim, todo novo empreendimento, por exemplo, na Barra, deveria prever habitações de vários tipos para usuários de diferentes níveis de renda. Isso seria a morte de um padrão de urbanização fundado na especulação imobiliária e na destruição da cidade – entendida como espaço do heterogêneo denso – ou da densidade heterogênea. Se nos constituímos, enquanto uma cidade com espaços democráticos, onde o diverso tem encontro marcado, ela também está aberta ao turista. Não queremos espaços segregados, e não queremos segregar o turista em espaços turísticos – no sentido de espaços separados para turistas. Queremos um turismo que traga gente para participar de nossa vida urbana, e não turistas que venham visitar um cidade inexistente, feita especialmente para eles e de onde o nativo indesejável foi expulso. Ao invés de oferecer ao turista paisagens e espaços museificados, simulacros de vida urbana, vamos colocá-lo em contato com nossa cidade, no que ela tem de vital e rico. Não somos e não queremos ser cidades-resort, mas somos e queremos ser cidades vivas, acolhedoras, abertas ao contato e diálogo com outras culturas e experiências. Assim, ao invés de ser pensado simplesmente
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como mercadoria, o turismo, ele também, passa a ser concebido como experiência urbana, civilizatória, em que o citadino e o visitante se encontram, no meio de outros tantos encontros urbanos. E isso também gera uma intensa atividade econômica. Não é necessário tratar a cidade como mercadoria a ser empacotada para turistas para gerar atividade econômica, empregos e renda. O processo de “gentrificação” tem sido um dos aspectos mais criticados dos projetos que tiveram inicio na década de 90. Há avanços no modo de encarar esse assunto nas intervenções mais recentes, buscando atender os interesses dessa parcela desalojada da população, ou pouco mudou efetivamente na última década? Que desdobramentos devemos esperar do surgimento de empreendimentos imobiliários destinados à classe média na Lapa, por exemplo? CV: Infelizmente, ali onde surgem as chamadas PPP – parcerias público-privadas –, ali onde se experimentam as chamadas operações urbanas e os projetos de revitalização, assistimos à reprodução, quase inevitável, da lógica da apropriação e valorização privadas dos espaços, infra-estruturas, investimentos e patrimônios culturais públicos. Mas a Lapa fornece um admirável contra-exemplo. Há 10 anos atrás, a Lapa
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seria qualificada como necessitada de uma operação urbana de revitalização e recuperação por muitos destes urbanistas-planejadores de plantão, que invocam o culturalismo pós-moderno, mas praticam o puro pragmatismo da valorização imobiliária. Mas nada disso ocorreu. Nenhum grande projeto. Algumas pequenas intervenções e o dinamismo de alguns agentes locais, que geraram, com mínima intervenção do estado e do capital imobiliário, um processo que faz da Lapa um modelo de cidade. Modelo porque a Lapa que temos hoje, é, permanece, um extraordinário exemplo de mixidez, de heterogeneidade densa, isto é, de cidade. Sua vida é rica, diversa. Nas noites se observa uma convivência, quase sempre respeitosa, embora não livre de tensões, de jovens de classe média das Zonas Sul e Norte, velhos freqüentadores, amantes da MPB de várias idades, moradores do bairro, camelôs de todo tipo, profissionais do sexo de vários gêneros, artistas e tudo o mais que se pode desejar. Isso faz da Lapa um lugar maravilhoso, rico, expressão do que há de melhor em nossa cidade. Aqui vale lembrar que é por ser isso tudo que a Lapa se transformou, nos últimos anos, em um lugar quase obrigatório de visitação turística. O que nos ensina, se isso ainda é necessário, que não se promove o turismo construindo espaços turísticos”ou promovendo
atrações turísticas, mas, sim, sobretudo, propiciando e favorecendo o encontro e a vida urbanas. Certamente isso poderá conduzir a um processo de valorização imobiliária e a uma perda de vitalidade. Em situações com esta, uma diretriz clara em direção à cidade mista, levaria a intervenções públicas que, sem pretenderem congelar a cidade, o que é típico de um conservadorismo passeísta e patrimonialista, que não me atrai, teria como elemento central preservar a diversidade – no patrimônio edificado, nos usos, nos residentes e usuários. Numa cidade permanentemente ameaçada pelas tendências segregacionistas, pela fragmentação em cidadelas, talvez não exista política mais importante que aquela que tenha por fim assegurar a heterogeneidade densa, a preservação (onde ainda existe), o crescimento (onde a cidade se expande) e a recuperação (onde a cidade já foi tomada pela lógica exclusivista) da cidade mista. Intervir e congelar um patrimônio, seja ele material ou imaterial, sob a égide da preservação da memória e da identidade cultural, pode impedir seu desenvolvimento, suas mutações ao longo da história e decretar sua morte. Mas seria possível atualmente acreditar na sobrevivência natural dos valores importantes de uma cultura?
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CV: A chamada preservação é, sempre, seja de que tipo for, uma invenção. Invenção de novos sentidos para as edificações, invenção de novos usos, invenção de novos valores. Na verdade, a preservação nunca nos traz de volta o passado, mas apenas uma visão e uso presentes de determinados resquícios, fragmentos, desse passado. Projeta-se, assim, no presente, uma imagem do que o passado foi e do que ele teve de bom para ser preservado. Mas, em muitos casos, a preservação é, na verdade, mistificação. O que quer dizer a recuperação (física, material) da edificação de uma antiga cadeia ou de um velho mercado de escravos, no qual hoje se alinham lojinhas de souvenirs para turistas? Alguém acredita que este tipo de uso nos traz à memória o sofrimento dos escravos e a brutalidade da escravidão? É claro que não. O passado transformado em paisagem, cenário, mercado turístico não nos ensina absolutamente nada, nem resgata coisa alguma: apenas ilustra a capacidade infinita do capital de transformar, tudo o que toca, em valor mercantil. Trata-se, pois, de saber quem recupera e resgata. Para quê e para quem? A cultura é um processo dinâmico em que também se disputam sentidos, valores simbólicos e significados para as coisas, inclusive para a cidade e suas edificações. Não tenho simpatia nem pelo urbanismo arrasador do modernismo,
que via em cada sobrevivência um anacronismo a ser varrido sob a égide da racionalização pura e absoluta dos espaços, nem por um pós-modernismo com pretensões culturalistas que tudo transforma em espaços temáticos, nos quais reinam a valorização do capital, a mercantilização e espetacularização da cidade. Por que não reconhecer, como aconteceu na experiência localizada da Lapa e em uma infinidade de outras micro-experiências, que os citadinos podem, e sabem, protagonizar a cidade e suas transformações? Arquitetos, urbanistas e planejadores teriam que adotar um postura bem mais modesta que a usual. Teriam que abdicar da pretensão de dizerem às pessoas como morar e viver na cidade, segundo modelos ideológicos que expressam as forças dominantes – econômicas, políticas e ideológico-culturais. E, quem sabe, poderiam colocar-se a serviço dos citadinos, para ajudálos a encontrar a melhor maneira de expressar, no espaço urbano, seus meios e modos de vida, e a viver uma urbanidade feita de encontros, e, desta forma, fazer da vida urbana uma possibilidade de democracia e de emancipação?
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Intervenção no bairro portuário do Recife O Bairro Portuário do Recife constitui na atualidade uma ilha de 100 ha situada entre o Atlântico e o rio Capibaribe. A sua urbanização data dos primórdios do período colonial, tendo desempenhado um importante papel como local de articulação entre o âmbito rural da então província de Pernambuco e a Europa. A lingüeta de terra, suporte ao ancoradouro natural dos arrecifes, com superfície de 10 ha no século XVI, amplia-se ao longo do tempo por sucessivos aterros. Até o início do século XX constitui o centro de negócios do Recife e habitação de comerciantes e pessoas ligadas às atividades de exportação e importação, decorrentes da marcante presença do porto. A alteração da relação de troca da produção internacional repercute em nível nacional a partir de fins do século XIX, gerando, entre outras, a necessidade de adaptação dos portos às novas exigências da
época. Parte do Bairro do Recife passa por um processo de renovação urbana, com substituição do padrão arquitetônico e urbanístico configurado no período colonial e, conseqüentemente, com a alteração dos usos até então existentes. Reduz-se a habitação e as atividades comerciais dividem, com as financeiras, a ocupação do território. As vias de maior largura que as então existentes e convergentes no moderno cais são elementos marcantes do novo traçado, que inaugura o modelo de crescimento urbano rádio-concêntrico introduzido por Hénard no urbanismo francês, nos primeiros anos do século XX. A influência francesa orienta a arquitetura das construções que configuram as fachadas das avenidas Marquês de Olinda e Rio Branco e as alterações estéticas do casario do período colonial não substituído pelo projeto urbanístico do engenheiro Alfredo Lisboa (1911).
Amélia Reynaldo Arquiteta, Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Católica de Pernambuco e Doutora pela Universidade Politécnica da Catalunha
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Até meados do século XX, a economia do Bairro, assim como a do Recife, seguia o ritmo oscilante da atividade portuária associada à produção agrícola regional e as inconstâncias do mercado internacional. Nesse contexto, o bairro viveu momentos de prosperidade, estagnação, renovação e decadência. Na década de 1970 o porto do Recife, seguindo tendência mundial, sofre as mudanças nos modos de transporte e estocagem portuárias e cede parte das suas atividades para o Complexo Industrial Portuário de Suape, implantado no sul da Região Metropolitana do Recife. O deslocamento das atividades comerciais e financeiras para o bairro de Santo Antônio e das residências para o bairro de São José e a expansão urbana a oeste e ao sul do Recife geraram a configuração de novos centros de comércios e serviços, retirando a vitalidade da cidade antiga. O Bairro do Recife inicia um processo de decadência com perda de atividades e população e decadência física de suas infra-estruturas e do seu estoque construído.A intenção de revertê-la surge em fevereiro de 1988, como estratégia de preservação e valorização do patrimônio construído e estava contida entre as ações de médio prazo da proposta de Revitalização do Centro do Recife (1986). Os debates acumulados até então permitiram o desenvolvimento de uma nova lógica de intervenção urbana iniciando-
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se pelos espaços regulados por normativas de proteção e, mais ainda, com um baixo desempenho interno da estrutura urbana e com possibilidade de desempenhar um papel significativo na dinâmica urbana da cidade e, como tal, com repercussões positivas na sua base econômica. O Plano de Intenções para a Reabilitação do Bairro do Recife (1987 e vigente até 1989)[1] estabelecia como objetivos (i) integrar o porto à cidade; (ii) o máximo aproveitamento da infra-estrutura urbana existente; (iii) a utilização do estoque construído ocioso; (iv) a manutenção da população moradora, melhorando suas condições de habitabilidade; (v) a proteção e valorização do patrimônio histórico, cultural e simbólico; (vi) a integração do porto e do bairro à rede de circulação regional e nacional, principalmente na direção norte; (vii) a potencialização da circulação interna da área portuária através da redução do estrangulamento do acesso sul (rodoviário e ferroviário); (viii) a atração de atividades que fazem falta à cidade; as que organizam ou complementam as existentes; as estratégicas, pensadas como geradoras de atividades; e as que formam parte do imaginário desenvolvimentista aproveitando a reserva simbólica, física e ambiental do espaço. No âmbito do pensamento do planejamento urbano, a oportunidade de inovar na requalifica-
ção da estrutura urbana da cidade contida no Plano, contribuiu para a reflexão sobre a reinterpretação da estrutura urbana do espaço construído, com questões sobre a resistência da morfologia e da tipologia tradicionais para a absorção de novas atividades com pre- [1] Elaborado por um servação dos edifícios grupo interdisciplinar de valor histórico e formado por Antônio cultural, renovação Montenegro (histodos edifícios passí- riador), Evandro Sales veis de substituição (sociólogo), Maria José e melhoria das infra- Marques (arquiteta), estruturas urbanas e Maria Paula Gonçaldos espaços públicos, ves (arquiteta), Marta priorizando a perma- Domingues (arquiteta), nência da população Romero Pereira (arquimoradora; inclusão teto), Silvia Pontual da habitação como (assistente social), Vera atividade básica da Martins (arquiteta) e área, dotando-a de Vital Pessoa de Melo equipamentos co- (arquiteto) sob a comunitários de apoio ordenação de Amélia à habitação e aos tra- Reynaldo. balhadores do porto [2] Gonçalves, Maria (creche, escola, res- Paula e Reynaldo, Amétaurante popular, lia. Porto Digital: a dinúcleo de vida coo- mensão urbana. Lisboa: perativa, etc.). Revista PORTUS, 2002. Apoiado na análise das características físicas, funcionais e sociais do bairro, o Plano de Intenções supõe um conhecimento do espaço e, norteado por conceitos distintos daqueles até então vigentes nas diretrizes das políticas de intervenção nas áreas protegidas, propõe uma política de gestão, um zoneamento, uma
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Paço Alfândega
Rua do Bom Jesus
exaustiva atração de atividades e a elaboração de projetos pontuais definidos como prioritários para o início do processo de intervenção, que se definia como de longo prazo. A partir de 1993 os objetivos do Plano de Intenções são reajustados, as preocupações sociais perdem força no processo de reabilitação que dá lugar à máxima valorização do potencial turístico-cultural do bairro. As áreas de maior densidade de ativos de valor turístico configuram os pólos de intervenção prioritária (Bom Jesus, Alfândega e Pilar). A eficiência da estratégia pública
aplicada ao Pólo Bom Jesus (desapropriação e restauração de 5 imóveis disponíveis, através de aluguel, à iniciativa privada), o interesse da iniciativa privada em ofertar atividades de lazer e gastronomia e a receptividade e disponibilidade da população em desfrutar do espaço requalificado garantiram a vitalidade de partes do bairro. As manifestações culturais, inclusive o Carnaval, passam a desfrutar de um novo palco de eventos diluído nas ruas, praças e cais do bairro, com público garantido pelos diversos segmentos sociais. O projeto do Marco Zero (1999) – piso contínuo envolvendo os espaços públicos da convergência das vias do traçado da reforma urbana do início do século XX, tendo no centro a rosa dos ventos do artista plástico pernambucano Cícero Dias – introduz, na área, uma condição privilegiada para a realização de grandes eventos, antes limitados às areias da praia de Boa Viagem. O segundo momento da reabilitação do bairro está marcado, por um lado, pela reconversão do edifício da antiga Alfândega no centro comercial Paço Alfândega (2002), requalificação urbanística do cais da Alfândega, melhoria de espaços públicos das ruas Madre de Deus e da Moeda e restauração de edifícios importantes como a sede da Associação Comercial de Pernambuco, dos Correios e a instalação de centros culturais como do Banco Real e da Caixa Econô-
mica Federal. Por outro lado as atividades instaladas a partir de 1987 e, mais fortemente, a partir de 1993 abandonam paulatinamente o bairro. As atenções sobre as potencialidades do bairro para abrigar atividades de tecnologia da informação e comunicação estiveram presentes desde o final da década de 1980 e somente se concretizam a partir de julho de 2000, quando o Governo do Estado de Pernambuco lança o Porto Digital como uma iniciativa que busca conciliar o desenvolvimento das atividades TIC com a reabilitação do patrimônio urbano e ambiental do Bairro do Recife[2]. O empreendimento envolve o desenvolvimento da cidade da tecnologia – criação de um ambiente de negócios de tecnologia de ponta – apoiado na reutilização das estruturas obsoletas e subutilizadas do bairro portuário contribuindo para a sua reabilitação urbana. Com o processo de reabilitação iniciado em 1987 tem-se a queda de 33% da ociosidade dos edifícios, novos usuários dos bares e restaurantes instalados e turistas passaram a freqüentar a área e o número de moradores de baixa renda triplicou. O impacto dos investimentos, entretanto, revelou-se limitado a determinadas áreas do bairro. É nesse contexto que se insere a iniciativa do Porto Digital que tem, como estratégia, reunir, nas estruturas obsoletas do bairro portuário
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do Recife, os agentes motores da economia de inovação tecnológica – empresas, universidade e governo –, ampliando a abrangência dos esforços de reabilitação urbana e criando a sinergia associada à produção de conhecimento, desenvolvimento de competência e competição no mercado nacional e internacional. A implantação do Porto Digital é complexa e ampla, envolvendo a criação de órgão gestor, operações de transferência de usos, recuperação física de imóveis, infra-estrutura urbana, atração de negócios de TIC e de apoio (estacionamento, centros comerciais, hotéis e habitação), mecanismos de incentivo para a instalação de empresas e programas de inserção da população de baixa renda na economia digital. A perspectiva é que essas ações tragam para o Bairro do Recife mais de 3,5 mil novos usuários, dos quais 2 mil estudantes universitários de informática num horizonte de duas décadas. O Plano de Desenvolvimento do Porto Digital busca direcionar as suas ações estratégicas através da negociação com agentes públicos e privados, que inclui a apresentação das construções e áreas ociosas do bairro como as de ocupação preferencial para os usos de interesse direto (condomínios de TIC, incubadoras, centro de treinamento de empresários) e indireto (habitação, comércio, serviços, lazer, cultura, entretenimento), os projetos estratégicos e a visão de futuro apontada para o período 2015-20. Na atualidade, a instalação de cerca de 100 empresas de tecnologia de informação e comunicação é a responsável pela restauração e/ou requalificação com adequação funcional de cerca de 20 mil m² de construção, gerando 3 mil novos empregos num período de apenas 5 anos.
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A reabilitação do Bairro do Recife é um processo em andamento. O desafio do Porto Digital de se tornar plataforma referencial em negócios de TIC, mundialmente, dos espaços comerciais, de cultura e lazer, de atuarem como atração significativa é tão ambicioso quanto o de contribuir para a reabilitação do bairro portuário de Recife. É certo, entretanto, que o investimento em estruturas consolidadas, bem localizadas e obsoletas, e na melhoria da qualidade de vida de sua população constitui uma estratégia a ser perseguida. Enquanto a política de reabilitação européia se consolida no início dos anos de 1980[3], tanto através de medidas precisas de valorização das qualidades dos espaços protegidos[4], quanto na manutenção dos princípios de organização da paisagem cultural, a iniciativa brasileira de preservação do patrimônio obedece a distintos instrumentos normativos, em nível federal, estadual e municipal, sendo que o Decreto Lei nº 25/1937 lidera a formação do pensamento preservacionista nacional e obedece ao espírito da lei francesa de 1913 e apresenta historicamente uma defasagem em relação à recente produção normativa e de procedimentos na conservação do patrimônio. Apesar de avanços significativos na proteção dos conjuntos urbanos (Compromisso de Salvador, 1972), a histórica atuação nacional no âmbito da efetiva preservação do patrimônio – sustentabilidade e eqüidade social – não contabiliza muitos exemplos. A reabilitação do Bairro do Recife detém uma instigante trajetória, sem, entretanto, inscrever-se entre as melhores experiências no tema: as propostas de inclusão social não se efetivaram (restauração e adequação funcional de imóveis antigos para moradia da população favelada e instalação de
equipamentos coletivos e sociais, como creche, escola, restaurante popular), os novos usos e atividades instalados no final dos anos de 1980 e início dos 90 mudaram de endereço e o escritório local de planejamento não resistiu às mudanças de gestores municipais e fechou suas portas. O desejável êxito do centro comercial Paço Alfândega, por exemplo, pode ser responsável por parte do fracasso de muitos [3] LEVY, Jean-Paul. empreendimentos Centres villes en mutaespalhados na ilha, tion. Paris: Editions du principalmente os de CNRS, 1987. p. 143/146. alimentação. É bem [4] Até os anos de 1960, verdade que uma nova a regulamentação dos atividade de natureza monumentos históricos expansiva instala-se e a ação das coletividana área. Entretanto, des públicas estiveram além das atividades essencialmente consade tecnologia da in- gradas ao inventário e à formação e comu- proteção. Em 1975 todos nicação é de funda- os bairros centrais de mental importância Paris e outros bairros que o planejamento do entorno do coração do território a ser re- da cidade foram objeto abilitado possa con- de inscrição. Na atuatemplar a existência lidade, mais de 60% da de espaço público de superfície de Paris está qualidade e serviços protegida. Mais de 1,2 urbanos adequados, a mil imóveis ou conjunrealização de eventos tos de imóveis estão culturais acessíveis e protegidos e mais de 300 diversos, a atração de são classificados como um conjunto de ati- monumentos históricos vidades comerciais e e estão, majoritariade serviços e, princi- mente, localizados no palmente, a criação centro antigo. Caso de mecanismos efi- o entorno protegido cientes para a me- desses imóveis (círculo lhoria das condições de 500m de raio para de habitabilidade da garantir a sua visibilipopulação morado- dade) fosse legislado, a ra na Comunidade superfície protegida de do Pilar e a sua per- Paris seria mais de 80% manência no bairro. do seu total. (CALZORONeste sentido devem NI, 1981) orientar-se os esforços para inscrever a reabilitação do Bairro do Recife entre as práticas relevantes da política de proteção do patrimônio no Brasil.
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Agradeço a colaboração do Prof. Dr. Roberto Segre e de João Paulo Mello para a elaboração deste artigo.
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vazios um desafio para o futuro
urbanos Como praças, parques, jardins e espaços para circulação dos pedestres e veículos, tradicionalmente considerados como vazios por oposição aos cheios edificados.
No Estatuto da Cidade, lei federal 10.157 (10/07/2001) que define os princípios da reforma urbana foram considerados vazios urbanos os imóveis não ocupados, não utilizados ou subutilizados, sendo apenas esses últimos definidos em relação ao potencial construtivo.
Andréa Borde
Prof. Dra. FAU/UFRJ Pesquisadora Associada PROURB/FAU/UFRJ
As grandes cidades contemporâneas têm seu futuro urbano fortemente associado à transformação dos terrenos e edifícios em situação de vazio urbano. Cidades, como o Rio de Janeiro, cujo tecido urbano consolidado apresenta inúmeras situações de alteridade e descontinuidade conformadas pela presença de terrenos e edifícios esvaziados. Vazios que, diferentemente dos espaços livres de construção e das áreas para expansão urbana, são resultado de um processo de esvaziamento representativo, muitas vezes, de crises estruturais do sistema produtivo. Esses vazios esvaziados que permanecem desocupados (sem ocupação), desafetados (sem uso), ou subutilizados (com utilização abaixo do potencial construtivo) atuam como pontos de desequilíbrio, de instabilidade e de transformação urbana com funções, valores e significados na produção e percepção do espaço urbano específicos. A apreensão dos diferentes níveis de significação dos vazios urbanos constitui-se, assim, em uma questão paradigmática para a compreensão da dinâmica urbana dessas cidades e do papel que os vazios urbanos podem desempenhar na construção de uma nova sociabilidade urbana. Para tanto, é necessário identificar os principais tópicos que orientam a discussão contemporânea sobre os vazios urbanos e promover análises que considerem articu-
Chaline (1999) identifica esses processos de perda de função (desfuncionalizados), de uso (desafetação) e/ou de ocupação (desocupação) como processos que antecedem a formação de vazios urbanos.
ladamente os diversos momentos do seu processo de formação: o vazio, que corresponde às relações que o vazio urbano estabelece atualmente com o tecido urbano e seu impacto na dinâmica urbana; o esvaziamento, os fatores que levaram à formação e permanência da situação de vazio urbano; e, o preenchimento, que corresponderia ao eventual processo de transformação dessas situações. Vale destacar que, embora as intervenções urbanas realizadas em áreas de vazios urbanos correspondam, provavelmente, ao momento mais documentado do processo dos vazios urbanos, é necessário que sejam elas articuladas aos dois momentos anteriores para compreender como as reativações dos vazios urbanos se inserem no atual contexto urbano e porque algumas delas não preenchem, efetiva e simbolicamente, os vazios urbanos. O enfrentamento desta questão é particularmente importante para a compreensão dos caminhos apontados para o desenvolvimento urbano das grandes cidades dos países em desenvolvimento. Cidades como o Rio de Janeiro, nas quais os vazios do tecido consolidado e infra-estruturado representam uma significativa desigualdade urbana, considerando o esvaziamento residencial da área central e o crescimento em direção às periferias ao longo do século XX. Considerando a revisão conceitual demandada para a compreensão desse fenômeno urbano contemporâneo, optou-se pela proposição de critérios e categorias de análise que permitissem estabelecer conexões entre os processos de produção do espaço urbano e de formação dos vazios urbanos a serem considerados em sua gestão e transformação. O vazio urbano começa a se constituir como um fenômeno significativo, e a despertar reflexões no campo do urbanismo, a partir da crise estrutural do sistema produtivo, de meados da década de 1970 que, entre outros aspectos, contribuiu para o aumento do estoque de terrenos e edifícios industriais desfuncionalizados e para as dificuldades colocadas à sua refuncionalização. Mantidos vacantes, edificações e quadras inteiras do tecido industrial e de sua área em torno, foram arrastados a uma situação de vazio urbano. Na década de 90 ocorre uma inflexão no processo de formação dos vazios urbanos, bem como nas reflexões teóricas
Reativação: ação de catalisar movimentos e transmitir energias e relações entre usos, eventos, escalas e/ou cenários que, pela sua própria natureza, são submetidos a um processo dinâmico (Gausa et allii, 2003, p.514).
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Considera-se área infra-estruturada no sentido mais amplo de acesso à cidade: serviços de saneamento e de transportes coletivos, espaços livres e atividades de comércio e serviços.
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Os debates iniciais foram capitaneados pelas questões suscitadas pelos levantamentos realizados na França e na Inglaterra sobre as friches industrielles e as derelict lands. Entre eles destacamse o de Lacaze (1985), que apresenta o relatório do grupo de trabalho interministerial formado para mapeamento das grandes friches industrielles e Gaudriault (1981), que coordenou a elaboração dos primeiros inventários sobre aquelas da Região da Ile de France. Entre os ingleses destacam-se Bradshaw e Burt (1986), que analisaram as derelict lands e apontaram critérios a serem observados em sua transformação.
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Inflexão teórica capitaneada pela compreensão de Sola Morales dessas situações de vacância urbana como terrain vagues, uma das cinco categorias de análise propostas por ele ao Congresso da União Internacional de Arquitetos de 1996 para a compreensão da cultura urbana contemporânea. Neste processo, muitas vezes, a reconquista dos locais que deram origem à cidade e que se transformaram em lugares negativos, repulsivos, se tornam, os lugares através do qual a cidade se redefine (Grumbach, 1996).
Neste mapa esquemático é possível observar a heterogeneidade do tecido urbano do grande vazio projetual da Avenida e seu processo de formação que conformaram uma diversidade de vazios urbanos, cujas alteridades promovem permanências e descontinuidades.
Um dos principais argumentos da atuação por projetos, ainda que questionável à luz dos limites impostos pelas demandas sociais às intervenções urbanas, tem sido a agilidade do processo decisório (Portas, 2000).
No urbanismo a noção de degradação está relacionada à destituição de qualidades físicas, formais e funcionais de uma edificação ou conjunto urbano. Suas causas incluiriam desde as perversas conseqüências da especulação imobiliária até a presença de segmentos sócio-econômicos de mais baixa renda com hábitos opostos aos das elites. Esta noção deve ser questionada, pois tem sido frequentemente utilizada para justificar ações de renovação urbana com expulsão da população local, que se contrapõem à promoção da desejada diversidade e eqüidade urbanas.
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produzidas sobre o tema. As regras impostas pelo capital às novas estruturas produtivas flexibilizam as relações de trabalho, reduzem o papel do Estado, submetem-no ao mercado financeiro e promovem a falência do bem-estar social. As demandas criadas pela nova ordem mundial exigem novas estruturas urbanas, as cidades precisam se constituir em pontos nodais do novo sistema urbano em redes, o que leva as cidades a promoverem uma aceleração nos processos de transformação urbana. Os vazios urbanos passam a ser considerados oportunidades para o capital financeiro, com interesses imobiliários, mas também fundiários, para o qual não interessa mais a manutenção das situações de vacância que pontuam o tecido consolidado das grandes cidades. Assim, tudo aquilo que poderia desacelerar o ritmo financeiro – demandas sociais, terrenos e edifícios vacantes, legislação urbana, ações planejadas, etc. – passa a ser considerado obstáculo ao funcionamento do sistema. Por outro lado, o que pode acelerar e atrair o fluxo de capitais – terrenos livres e infra-estruturados, mão-de-obra especializada, ações pontuais, planejamento estratégico, etc. – passa a ser visto como uma chance para o pleno desenvolvimento desse sistema. Os vazios urbanos, percebidos como expressões de decadência, deterioração e degradação urbanas, em um mundo que privilegia a imagem e a visibilidade como forma de poder e a produtividade como forma de inserção social, passam a ser locais privilegiados para os novos projetos de requalificação e renovação urbanas. Neste contexto, o projeto urbano tornou-se um instrumento para fazer emergir cidades atraentes a partir das estratégias urbanas relacionadas aos vazios esvaziados do tecido urbano. Intervir nos vazios urbanos se configura, assim, como uma ação que visa reverter os impactos negativos que essa percepção do espaço urbano pode produzir nas formas de produção e acumulação do capital, neste momento, predominantemente urbano. As intervenções urbanas promovidas nas diferentes situações de vazio urbano (vazios intersticiais, vazios arquitetônicos, vazios de grandes dimensões, etc.) de cidades como Barcelona, Paris, Londres e Berlim transformam suas dinâmicas urbanas, inserindo-as no novo sistema urbano e tornando-as referenciais para outras cidades. No entanto, talvez pela não compreensão dos fatores sociais, políticos, econômicos e simbólicos que colaboraram para a formação e permanência das situações de vacância urbana, foram cometidos, no campo das práticas e das intervenções urbanísticas, alguns exageros e omissões nas últimas décadas que contri-
Quadro de Tecidos Urbanos da Avenida Presidente Vargas e da área em torno.
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buíram, ao contrário do que se poderia supor, para a formação de novos vazios urbanos. Evidenciando, assim, que não existe apenas uma possibilidade de atuação em situações de vazio urbano; e que essas ações devem estar atentas aos processos que levaram à formação desses vazios, suas articulações com o tecido urbano e com a construção de uma cidade mais justa para seus cidadãos. Neste sentido, Clichevsky (2002) reforça a importância de a gestão dos vazios urbanos integrarem as políticas públicas de equidade urbana, da qual participariam tanto o setor público como os demais setores sociais. O poder público deveria atuar tanto transformando os vazios urbanos existentes, como coibindo a formação de novos vazios, a fim de que estes não fossem mais associados ao vazio de poder (Fausto e Rabago, 2001). É necessário retomar a noção do urbano como lugar do encontro, da pluralidade e que demanda ações solidárias em prol de uma cidade mais justa. Um lugar em que um outro mundo é possível, distinto daquele proposto pelo pensamento hegemônico do capital internacional. Um mundo em que os vazios urbanos podem se constituir em um outro lugar, a partir do qual se viabilize a articulação das questões contemporâneas nas escalas global e local, no atendimento às diversas e urgentes demandas sociais, políticas, econômicas e simbólicas. A transformação dos vazios do tecido consolidado, como forma de se deter uma possível dispersão urbana em direção aos vazios das áreas de expansão, tem sido considerada tanto uma possibilidade de agravamento das condições ambientais do centro e adiamento da requalificação da periferia (Portas, 2000), como uma oportunidade de maximização da infra-estrutura instalada através do adensamento sustentável do tecido urbano consolidado (Rogers, 2001). Não parece, contudo, que seja uma questão de privilegiar a atuação em vazios centrais ou periféricos, mas, sim, de adotar estratégias de atuação diferenciadas a fim de promover uma rearticulação mais ampla do tecido urbano. A opção pelo projeto urbano não deve ser hegemônica, automática, sem planejamento, mas uma opção conseqüente integrante de um escopo de ações planejadas. É importante ressaltar, ainda, o papel que algumas ações culturais emblemáticas desempenharam no contexto das reativações dos vazios urbanos. Iniciativas que promoveram a reafetação e refuncionalização tanto de vazios intersticiais como arquitetônicos, para atividades temporárias, tais como, entre outras: os jardins comunitários cultivados em vazios desocupados, geralmente intersticiais, na Europa e nos Estados Unidos, a conversão de edifícios vazios, sobretudo na Europa; a apropriação artística das situações de vazios urbanos nas cidades européias e norte-americanas, desde a década de 1960, com o movimento de contracultura. Uma iniciativa inovadora, neste sentido, tem sido a ocupação temporária de edificações em situação de vazio urbano por um período de tempo pré-determinado pela associação cultural Usines Ephémères. Essa associação promove, em convênio com a prefeitura e o proprietário do imóvel, a utilização temporária por jovens
Ver, entre outros, Carr (1996) para o contexto norte-americano e Chalas (2000) para o contexto europeu dos jardins comunitários e Thienot (2005) para a apropriação artística dos vazios urbanos no contexto francês.
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Av. Presidente Vargas: corte esquemático e margens norte e sul. Os dois panoramas expõem as contradições do tecido heterogêneo da Avenida marcado pela presença de pequenas, médias e grandes extensões de vazios urbanos em ambas as margens. No primeiro vê-se desde o edifício da Estação Central e o Morro da Providência ao fundo até os edifícios altos da área central de negócios. No segundo, desde as palmeiras do parque urbano do Campo de Santana até o edifício Balança, mas não cai, um marco residencial da Avenida, uma seqüência de terrenos desocupados ou subutilizados rompida apenas por um edifício.
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artistas contemporâneos. Após o período acordado, o imóvel é retomado pelo proprietário “recapitalizado”, que realiza, então, as obras necessárias à transformação de uso. Esta iniciativa articula, deste modo, demanda não atendida (de locais para a produção da arte contemporânea de jovens artistas) e ocupação provisória, como forma de conter a deterioração progressiva da edificação vacante e a desestabilização da área em torno. No Rio de Janeiro, a Avenida Presidente Vargas constitui-se em uma das situações de vazio urbano mais emblemáticas da área central. A Avenida se insere no contexto dos vazios conformados pelas grandes intervenções promovidas pelo poder público, no século XX, nesta área de grande significação histórica, formal e funcional para a cidade, no afã de criar terras públicas em área valorizada (como os arrasamentos dos morros do Castelo e Santo Antonio e a abertura de grandes vias). Ao atravessarem diversos momentos da historia urbana carioca estes vazios projetuais podem estar indicando, que teriam deixado de ser elementos transitórios e passado a se constituir em elementos estruturadores da configuração espacial da área central. O grande vazio projetual configurado pela Avenida Presidente Vargas participa de vários momentos do processo de esvaziamento da área central: (i) a abertura do trecho inicial, entre a Igreja da Candelária e o Campo de Santana, no início da década de 1940, promoveu desterritorializações e incontáveis terrenos subutilizados para fins de estacionamento; (ii) a abertura de grandes vias cruzando a Avenida, como os elevados da Perimetral, Trinta e Um de Março e Paulo de Frontin, e as primeiras estações abertas do sistema metroviário, criaram vazios urbanos que desarticularam ainda mais o tecido urbano da Avenida; e, finalmente, (iii) o grande vazio urbano criado pelo estado de espera, em que permaneceu o trecho entre o Campo de Santana e a Praça da Bandeira. Ao longo de mais de sessenta anos de história da Avenida, essas situações de desafetação, desocupação, subutilização e desestabilização foram se sobrepondo e gerando outras tantas situações de vazio urbano.
RETROVISOR
NOZ
Mesmo sendo consideradas pelo Plano Diretor de 1992, como prioritárias à ocupação, e quase todas as análises empreendidas sobre a Av. Presidente Vargas apontem para a existência de grandes vazios ao longo da via, não foram, ainda, elaboradas propostas urbanísticas que considerassem a avenida, em toda a sua extensão, e seus vazios urbanos. A Avenida permanece não apenas como uma grave cisão espacial, mas, sobretudo, como um vazio projetual paradigmático da área central. Ela organiza um tecido heterogêneo, permeado de situações de vazio urbano, cujas tensões demandam análises articuladas e ações integradas. Os aspectos pertinentes à maioria das grandes cidades contemporâneas e à Avenida Presidente Vargas, na cidade do Rio de Janeiro, aqui abordados permitem considerar que os vazios urbanos representam um desafio para a construção de uma nova sociabilidade urbana. Desafio configurado tanto pela necessidade de coibir a formação de novas situações de vazio urbano, como pela proposição de ações urbanísticas (políticas pùblicas de minimização da iniqüidade social, projetos urbanos, iniciativas da sociedade civil, etc.) articuladas, nas escalas global e local, que promovam a reativação dos vazios urbanos e o desenvolvimento dessas cidades. Os vazios urbanos despontam, assim, como áreas de manejo da forma urbana capazes de contribuir para a promoção de um futuro urbano mais cidadão.
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Em 1997 foi proposta a realização de um Rio Cidade para a avenida, mas que não chegou a ser estudado.
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Maquetes e perspectivas do projeto da Av. Pres. Vargas: Expectativas não verificadas. Percebese nesta restituição gráfica da Av. Presidente Vargas (2006) desde a Baia de Guanabara até a Av. Francisco Bicalho, o contraste entre o trecho inicial, marcado pela presença da Igreja da Candelária, inaugurado em 1944, e o trecho seguinte até hoje esparsamente ocupado. Este trecho inicial é uma expansão da área central de negócios da Av. Rio Branco. A partir do Campo de Santana a expectativa de ocupação não se verificou. A maioria das edificações deste trecho é institucional ou empresas públicas privatizadas.
curso de arquitetura e urbanismo da puc-rio o que é o curso? O curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio está diretamente ligado aos departamentos de Engenharia Civil, Artes & Design e História. Tem como objetivo formar o aluno para trabalhar como profissional de projeto em arquitetura e urbanismo, em construção civil e em paisagismo. Também prepara o estudante para atuar na área da preservação do patrimônio artístico e cultural. Concebido de maneira a fornecer instrumentos projetuais e técnicos, assim como desenvolver o pensamento crítico necessário para a inserção do novo profissional no mercado de trabalho, o curso fundamenta-se numa proposta de ensino integrado. Essa concepção se reflete na estrutura curricular, com grande destaque para as disciplinas de projeto de arquitetura. A participação de professores de diversas áreas, compartilhando conteúdos e desenvolvendo novas competências, busca a integração efetiva entre a teoria e a prática, a criatividade e o pensamento crítico. Já o programa de estágio possibilita ao aluno exercitar o dia a dia da profissão no Escritório Modelo, participando de projetos de cunho social ou trabalhando em escritórios de arquitetura e urbanismo. O currículo inclui, ainda, disciplinas eletivas livres, oferecidas no âmbito do curso ou por outros departamentos da PUC-Rio. Outra marca da graduação em Arquitetura e Urbanismo são as chamadas atividades extracurriculares, com destaque para viagens nacionais e internacionais, organizadas por professores e alunos. Os convênios com universidades estrangeiras também oferecem aos estudantes a possibilidade de realizar viagens de intercâmbio internacional.
coordenador do curso Prof. Otávio Leonidio diretor do departamento de engenharia civil Prof. Celso Romanel diretor do departamento de artes&design Prof. Luiz Antonio Luzio Coelho supervisores de Projeto Prof. Alder Catunda Timbó Muniz Prof. Andrés Martin Passaro Prof.ª Claudia Maria P. N. de Miranda Prof. Fernando Betim Paes Leme Prof. Hermano Viriato de Freitas Filho Prof.ª Maria Fernanda R. C. Lemos Prof. Marcelo R. V. D. de M. Bezerra Prof. Marcos Osmar Fávero supervisores de Área Profª. Maria Cristina Nascente Cabral (História e Teoria) Profª. Iclea Reys de Ortiz (Tecnologia e Construção) Prof. Silvio Dias de Moura (Representação) Prof. Pedro da Luz Moreira (Urbanismo, Paisagem e Meio Ambiente) equipe Consuelo da Silva Carvalho
Secretaria: Edifício Cardeal
Portaria SESu/MEC nº 52
Prazo proposto para a conclusão do curso
Leme • Sala 301 tel 3527–1828
de 26/05/2006
5 anos letivos máx: 10 anos letivos
fax 3527–1195
D.O.U. de 29/05/2006
gradarq@rdc.puc-rio.br http://www.arq.puc-rio.br
Esta revista foi impressa em offset pela Gráfica Gol no papel Couché Matte 90 g/m2. As principais famílias tipográficas usadas na composição do texto são Fedra Sans e Fedra Serif A, ambas de Peter Bilak.
ANARQUITETURA Alguma coisa está fora da ordem/ Verônica Rodrigues/ p.04 Arquitetura dos Irmãos Roberto/ Luiz Felipe Machado/ p.08 Arquitetura versus Edificação/ Jorge Mario Jáuregui/ p.14
ZOOM L. C. Toledo apresenta o projeto de urbanização da Rocinha/ p.22 Uma conversa no centro de educação e cultura lúdica/ A. Mendonça, A. Coutinho, M. Palmeiro/ p.31 Participação?/ M. Fernanda Lemos, Fernando Betim/ p.36 Anotações/ Larissa de Aguiar/ p.39
RUÍDOS A cidade como texto/ Renato Cordeiro Gomes/ p.44 Simmel: A metrópole e a grande cidade/ Ricardo Benzaquen/ p.52 Relicário/ Juliana Sicuro/ p.56 Tabuleiro da rua & Aos sete mares/ Os sete novos/ p.62
RETROVISOR TFG: Complexo Paneleiras/ Amanda Miranda/ p.66 Contraponto/ Carlos Vainer, Sílvio Zancheti/ p.70 Intervenção no bairro portuário do Recife/ Amélia Reynaldo/ p.75 Vazios Urbanos/ Andrea Borde/ p.79