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ENTREVISTA

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PLANETINHA

PLANETINHA

“A psicanálise é uma forma de Filosofia”

LÚCIO PACKTER

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Criada no final dos anos 1980 pelo médico e filósofo gaúcho Lúcio Packter, a Filosofia Clínica tem como premissa que cada pessoa funciona de um modo único. Dessa maneira, o filósofo clínico buscará durante as conversas com os pacientes as características do seu funcionamento existencial para trabalhar questões que estão tirando o seu sossego. Trocando em miúdos, a Filosofia Clínica é uma proposta de utilização terapêutica da Filosofia. Essa vertente da Filosofia é parecida com a Philosophische Praxi, criada pelo alemão Gerd Achenbach, em 1981, a partir da concepção epicurista de Filosofia como “terapia da alma”. Na opinião de Packter, porém, ecos da Filosofia Clínica são encontrados desde os pré-socráticos. “Cada vez que os filósofos consideraram os desdobramentos da alma humana, das aventuras do pensamento e da existência, ali houve um pouco de Filosofia Clínica”, avalia. Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica - FAFIMC, de Porto Alegre, pós-Graduado em Filosofia e Psicanálise pela Universidade Tuiuti, de Curitiba e pós-graduado em Psicologia pela Universidade Metropolitana Unida, de São Paulo, Packter é coordenador da Pós-Graduação em Filosofia Clínica da Faculdade Católica de Anápolis, da Pós-Graduação em Filosofia Clínica das Faculdades Itecne (Cascavel - PR) e do Studium Eclesiástico Dom Aquino Correia da Faculdade Católica de Cuiabá (MT). Coordenou também a pós-graduação em Filosofia Clínica na Universidade Moura Lacerda, de Ribeirão Preto (SP). Coordenador do Doutorado Institucional em Filosofia do Instituto Packter, Lúcio é coordena, ainda, o curso de Filosofia a distância dos professores, orientado pelo Instituto Packter. É autor das seguintes obras: Filosofia Clínica - Propedêutica; Semiose; Aspectos Matematizáveis em Clínica; Busca; Ana e o Dr. Finkelstein. Lúcio Packter fala sobre a proposta de utilização terapêutica da Filosofia em entrevista concedida a Marcelo Galli.

Basicamente, favor como funciona a prática da Filosofia Clínica, professor Lúcio Packter?

Após a consideração minuciosa da historicidade da pessoa, realizada com ferramentas da lógica, da analítica de linguagem, da epistemologia, entre outras, o filósofo pesquisará a organização dos elementos que existem nesta pessoa e que estão disponíveis, conforme o modelo da mente que a pessoa possui. Então, estará diante de algumas possibilidades de encaminhamento quanto a assuntos pertinentes à pessoa.

“Para a Filosofia Clínica, o inconsciente é uma invenção, não uma descoberta. Na psicanálise, o inconsciente é um fato, uma descoberta”

Seria esta uma maneira de retomar o que praticavam os epicuristas, professor Packter?

Também a eles. Na verdade, encontramos ecos da Filosofia Clínica desde os pré-socráticos. Cada vez que os filósofos consideraram os desdobramentos da alma humana, das aventuras do pensamento e da existência, ali certamente houve um pouco de Filosofia Clínica.

A disciplina ainda é vista com reticência pelo meio acadêmico de Filosofia brasileiro?

Há um diálogo cada vez mais consistente e mais profundo com a academia. Isso era de se esperar e é uma prática filosófica. O debate acadêmico em torno de um tema, seja ele a Filosofia Clínica ou outra questão, traz como componentes a dúvida, a confutação, a elaboração, os argumentos, a dialética, a reticência. Estes movimentos são parte constitutiva dos trabalhos. Estamos revendo, aprimorando, desenvolvendo os caminhos. Em alguns momentos, há mais dúvidas e menos convicções, afinal, Filosofia Clínica é Filosofia antes.

Você poderia citar alguns exemplos desse diálogo, professor Packter?

Na Faculdade Católica de Anápolis, onde coordeno a pós-graduação em Filosofia Clínica, existe uma conversação entre a religiosidade e os aspectos práticos ligados ao consultório. Na Universidade Moura Lacerda, em Ribeirão Preto, o diálogo envolve médicos, pedagogos, filósofos. Em hospitais pelo país, o diálogo acontece nas questões éticas. Há inúmeros exemplos. Um deles ocorre via Café Filosófico, um evento que se espalha por livrarias em capitais pelo país, um fórum privilegiado de diálogo com a comunidade em geral.

Além da psicanálise, quais são as outras áreas do saber com quem a Filosofia Clínica dialoga?

Existe um leque que se desdobra em vários. Filosofia da Mente, Neurociências, Psiquiatria, Psicologia, Medicina. A Filosofia Clínica se esparrama em campos aparentemente distantes como a Arquitetura, a Odontologia, a Religiosidade. Consideradas as dimensões de seus conteúdos, a Filosofia Clínica possui um acervo teórico e uma prática vastíssimos e a cada dia novas áreas entram passam a integrar esse diálogo.

Da Arquitetura? Da Odontologia? Explique um pouco mais essas interações, por favor.

Na Arquitetura, os projetos recebem maior profundidade e adequação quando são realizados levando em conta aspectos dinâmicos da estrutura do pensamento da pessoa. Assim, os espaços, a ordem dos ambientes, a estética, o funcionamento entre as partes podem considerar o modo de ser da pessoa que estará nesse ambiente projetado. Na Odontologia, desde o diagnóstico até a maneira como o tratamento será realizado, os procedimentos acontecerão conforme a perspectiva do que foi apurado na historicidade da pessoa, no modo da pessoa ser e de estar no mundo.

Qual é a sua resposta para quem critica a Filosofia Clínica como sendo uma forma de psicanálise?

A colocação mais adequada é provavelmente anterior: a psicanálise é uma forma de Filosofia. Estudiosos que se deparam com os aspectos essenciais da Filosofia Clínica logo compreendem as diferenças entre estas duas atividades: ausência de tipologias, de critérios de normalidade e patologia, ausência de inconsciente, mecanismos teóricos e práticos. Neste momento, existe em andamento conversações entre filósofos clínicos e psicanalistas, em diversos níveis: conceituais, referenciais, históricos, hermenêuticos. Estamos aprendendo uns com os outros.

“Questão importante: na Filosofia Clínica não existe o conceito de doença; como poderia então existir o conceito de cura? A Filosofia Clínica não propõe tal coisa”

Você poderia destacar um exemplo específico de troca entre filósofos clínicos e psicanalistas, professor?

Um exemplo diz respeito à existência ou não do inconsciente. Para a Filosofia Clínica, o inconsciente é uma invenção, não uma descoberta. Na psicanálise, o inconsciente é um fato, uma descoberta. Eis um material rico para trocas, conversações, discussões. Assim como a noção do Ser, em Filosofia, hoje se tornou um aspecto metafísico mais ligado à poesia e menos entendido por uma concretuconcretude, uma realidade em si, o inconsciente provavelmente será tido em um futuro próximo como um dado importante de referência, uma construção metodológica, uma ferramenta. Concretamente, o inconsciente não existe.

A literatura da Filosofia Clínica já tem casos emblemáticos que foram tratados pelos seus adeptos, e que serviram de modelo para consultas futuras ou até para exemplificar como se dá o tratamento pela corrente filosófica?

Sim, muitos. Um exemplo ilustrei em minha obra Ana e o Dr. Finkelstein (Editora Wak). Colegas como Hélios Strassburger e Monica Aiub ilustram em suas obras inúmeros casos clínicos.

O que aconteceu basicamente com a Ana e como foi o seu tratamento?

Há muitos anos atendi uma garota, a Ana, após um grave episódio, uma tentativa de suicídio. O tratamento dela seguiu naturalmente o que um filósofo clínico faz em um consultório: estudo da historicidade, considerações sobre a estrutura do pensamento, aplicação de procedimentos clínicos a partir do modo de funcionamento dela. No entanto, houve complicações por conta da situação. Entre os israelitas, ela é judia, o suicídio carrega pesados princípios éticos, existenciais. Mais tarde, após diversos cuidados de adaptação, esse atendimento se transformou em livro.

Você já chegou a classificar as principais queixas dos partilhantes? Por qual motivo e o que mais buscam as pessoas que procuram a Filosofia Clínica?

Questões existenciais levam algumas pessoas a procurarem por um filósofo na clínica. Estas questões são variadas, abrangem aspectos familiares, afetivos, de buscas, de final de vida, de questões sobre o funcionamento das relações humanas, de uso de drogas. Não há como colocar tais questões em um molde neste momento.

Refutar qualquer tipo de padrão a priori parece ser o principal ativo da Filosofia Clínica, não?

A Filosofia Clínica parte de diversos elementos como a historicidade, o contexto, o estudo da estruturação da pessoa, suas relações, seus endereços existenciais. Nesse sentido, há um forte elemento a priori: a pessoa nos traz um mundo como representação, traz algo a ser pesquisado.

Já dizia o popular ditado que “o silêncio vale ouro, a palavra vale prata”. Qual é o papel do silêncio na

Filosofia Clínica, professor?

O que o silêncio quer dizer, como ele se instaura, qual sua função, de que modo interage com outros elementos, quais seus vínculos remotos e quais os mais próximos, o caminho de seus desdobramentos são alguns itens que precisamos verificar para eu poder lhe dizer qual o papel do silêncio na Filosofia Clínica. Isso porque o silêncio pode ser o modo pelo qual a pessoa fala, o silêncio pode ser o vazio, pode ser o conteúdo, pode ser instrumento de conexão, pode ser outras milhares de coisas.

Portanto, o silêncio, para os filósofos clínicos, é relativo?

Subjetivo. Vamos pesquisar o que o silêncio é para a pessoa que está conosco. O que uma pessoa vivencia tem muito pouco a ver com relativismo em muitos casos. Se uma pessoa chora, se está magoada, atingida fortemente por uma questão pessoal, isso é assim nela, independente de algum relativismo. O elemento subjetivo é então anterior.

Não seria um exagero o que propõe a Filosofia Clínica, isto é, “a cura sendo proporcionada pela Filosofia”?

Questão importante: na Filosofia Clínica, não existe o conceito de doença; como poderia então existir o conceito de cura? A Filosofia Clínica não propõe tal coisa. Cada pessoa funciona de um modo único. O filósofo buscará as características da pessoa em seu funcionamento existencial para trabalhar questões que dizem respeito a ela. Isso nada tem a ver com cura.

Qualquer pessoa pode se tornar um filósofo clínico?

“Verdadeiros amigos podem ser essenciais em muitos casos e podem fazer com que determinadas questões se resolvam. Mas há muitas questões intrincadas que podem exigir a presença de um profissional”

Para se tornar um filósofo clínico, a pessoa deve ser graduada em Filosofia. Depois ela passará por um curso teórico de 18 meses. Será atendida durante o curso em uma clínica didática pelo professor titular. Conforme o desenvolvimento do aluno, poderá iniciar atendimentos supervisionados. Uma comissão dará um parecer final sobre os trabalhos do aluno. Nos centros de formação, os alunos estudam teoria e prática.

Se as pessoas tivessem verdadeiros amigos, para bater papo, falar as angústias, precisaria existir a Filosofia Clínica? Já que, como diz Aristóteles na Ética a Nicômaco, “com amigos as pessoas são mais capazes de pensar e de agir”.

Verdadeiros amigos podem ser essenciais em muitos casos e podem fazer com que determinadas questões se resolvam. Mas há muitas questões intrincadas que podem exigir a presença de um profissional. Nem sempre separar e compreender cada caso será algo fácil de ser feito.

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