Revista Rasante n02 . 2018 . Corpos Diversos Lugares

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natan ferreira


revista rasante interseçþes entre arte e cidade

abril, 2018


Corpo Editorial

Thalita Castro Bruno Geraldi Martins Rafael Baldam Equipe de Colaboração

Yumi Neder Camila Torato Thais Andressa Luana Espig Regiani Thays Guimarães Camila Miki Ana Paula Oliveira Nasc. Igor Augusto Leite Andrey Marcondes

A Revista Rasante é uma publicação quadrimestral que propõe debates nas intersecções entre as artes e a cidade. Entendese aqui que a cidade é feita não só de sua materialidade, mas também de todos os sonhos, encontros e desencontros e poesias que a preenchem. Analisar a cidade a partir da ótica das representações artísticas, como o cinema, música, teatro, etc, é abrir possibilidades de leitura para o espaço vivido. A Revista Rasante é uma publicação independente, e conta com o aval de seu corpo editorial e dos autores para divulgação de seu conteúdo. Quer publicar na Rasante? Entre em contato conosco via Facebook, e-mail ou site.

Projeto Gráfico

Thalita Castro Bruno Geraldi Martins Rafael Baldam Autoras e Autores dessa Edição

Natan Ferreira, capa E-mail Laterrateral (Noémia), entrevista revistarasante@gmail.com Incubadora de Artistas (Vitor Carvalho), entrevista Facebook Yara Boscolo Bragatto, artigo https://www.facebook.com/ Helena Magon, artigo revistarasante/ Fausto Ribeiro, artigo Issuu Rafael Baldam, artigo https://issuu.com/revistarasante Yasmin Pinheiro, portifólio Site Felipe Abreu, portifólio https://revistarasante.wixsite.com/ Felipe Cirilo, portifólio artecidade Thays Guimarães, reflexão Endereço Gabriel Villas Boas, reflexão Rua Eugênio Leardine, 214, Itatiba/SP

ISSN 2594-8946

acervo livre, the british library


Seu lá é o aqui de alguém

Corpos reagem distintamente aos lugares. Ao passo que passam pela cidade, o que passa neles? Um corpo lembrado em um lugar esquecido. Naquele corpo ficaram rastros de outros lugares. O passo que constrói o caminho, que faz o desvio, que leva ao cais. A presença e o querer que transformam espaços em locais. No corpo, pinta, na cidade, tinta.

Via de mão única movimentos peristálticos. Na calçada, qual a regra que vale? Caber no lugar que te cabe? Ver para crer? Estar para ser? Como olhar de longe e sentir de perto? Os dias de sarjeta alargam as rugas. Um corpo esquecido em um lugar lembrado. Naquele lugar ficaram rastros de outros corpos. Onde a uns, lar, a outros, algoz. Lugares reagem distintamente aos corpos.

Seu aqui é o lá de alguém

LUGARES DIVERSOS CORPOS

Thalita Castro, Bruno Geraldi Martins, Rafael Baldam

No território, lugares são feitos onde há apenas espaço. A memória, vivências subjetivas, desejos e pesadelos, são alguns instrumentos que trabalham nesse sentido: dotam de significado a cidade. No entanto, é preciso olhar para o agente, que desenha com tinta invisível uma urbe subjacente. O corpo carrega-se um universo dentro de si, e quando pisa no chão, este já não é mais o que foi; quando olha para o horizonte, este já possui outra cor. É luta pelo direito de pôr o próprio corpo onde se bem entende, sabendo que o espaço público é feito de conflitos, de estranhamentos. Presença. Contudo, é preciso estar presente para compreender um lugar, um espaço? A que distância começa a ausência? É fato que o corpo-agente transforma o território, mas não sem que este aplique sobre a pele o peso da urbanização (desigual), do passado rasgado da página, do rastro da vivência. Entre as marcas e pisadas, cada forma e corpo define uma ação. Na pausa, o olhar se inverte. Na mira, a busca por remarcações. Olhar e ser olhado, no espaço público todos são produtores de narrativas, musicadas, desenhadas, silenciosas, explosivas. Para todo corpo, obstáculos; para uns muros, paredes, para outros, livre passagem. A Revista Rasante n02 te convida para os infinitos meridianos dos sentidos opostos e complementares. Leia com seu corpo, a cidade, a revista.

EDI TORI AL

CORPOS DIVERSOS LUGARES


A Cartografia Feminina 90 Thays Guimarães oeste Corpos Desobedientes: práticas tangíveis para compor no cimento 88 Fausto Ribeiro oeste Vellum Nave 72 Helena Magon oeste Planejador Regional e Lourdes 44 Gabriel Villas Boas oeste Elefante Branco: discutindo a insolubilidade da precariedade urbana atraves do cinema 36 Rafael Baldam oeste Duplinhas 04 Felipe Abreu oeste

acervo livre, the british library


06 Duplinhas leste Felipe Abreu 16 Entrevista: Incubadora de Artistas leste Vitor Carvalho 32 Os dois lados do mesmo disco leste Yara Boscolo Bragatto Janelas que dĂŁo para outras 56 Campinas leste Yasmin Pinheiro 66 Entrevista: Laterrateral leste NoĂŠmia 78 Ensaio depois da Parede leste Felipe Cirilo



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A CARTOGRAFIA FEMININA THAYS GUIMARÃES Graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela Unicamp, integrante do Coletivo Charlotte Perriand

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Rua pública Transporte público Espaço Mulher Que amamenta Se prostitui Caminha mas Se protege Ela procura caminhos perdidos Pisoteia as calçadas difíceis Das cidades Planeja os horários E os trajetos Porque ela teme O assédio A rota mais longa é a da mulher Moradia que era reclusão Agora é proteção Na cidade matriarcal Como pode seu corpo ser visto como objeto público Não Político

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Hoje ela pisa no chão para ler depois meninas que vestiam preto, editora hedra Num andar de afirmação Para tomar de volta Aquele espaço Que nunca teve Afinal Nas ruas onde caminha Desejar Ser mulher Flâneur Através da multidão Como Na cidade para os homens Dos carros Muros Empenas cegas Fez-se olhares escuros Onde falta memória E história A lógica Da metrópole modernista Chama Grita Por um urbanismo feminista Ela quer voz para planejar A mulher Negra Trans Transforma essa situação De caos Em consciente motivação Se cada cidade é única Mas construída com um padrão Traz diversidade Leva para longe esse espaço condicionado Preso num espírito sem coletividade Porque A cidade também violenta Ela não sabe O urbano que a mulher experimenta thays guimarães . a cartografia feminina

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maxwell rushton, left out, 2015-16

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CORPOS DESOBEDIENTES PRÁTICAS TANGÍVEIS PARA COMPOR NO CIMENTO

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FAUSTO RIBEIRO Coordenador do Confluências: Núcleo de Práticas Performáticas; Pesquisador adjunto da Cia. Domínio Público sob orientação de Holly Cavrell; Mestre em Artes da Cena (UNICAMP) e Doutorando em Artes da Cena (UNICAMP)


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Este artigo busca compartilhar estratégias e procedimentos de criação performática realizados em diálogo com a silhueta da cidade com base nos processos de criação do do Núcleo de Práticas Performáticas Confluências1 e do Grupo de Estudos “Corpos Desobedientes” (UNICAMP), por uma perspectiva que parte da experiência prática, atravessada por ambos coletivos, e também por diversas inspirações teóricas, tais como: André Carreira; Guy Debord; Eleonora Fabião; Bia Medeiros, Holly Cavrell e Hakim Bey e todas as imagens cotidianas que nos permitem apreciar a cidade como um local de potente poesia. Felipe vs Felipe. Foto: Fausto Ribeiro (2017), Franca

A “desobediência” referenciada no título, liga-se à busca de outras formas de relação do corpo da performance com o espaço habitado e com o usuário da cidade, negando ou, no mínimo, buscando outras formas de habitar determinados espaços para além das formas padrão do jogo funcional do mercado de consumo, do mundo do trabalho e dos projetos

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governamentais, que, em geral, vêm reforçar os anteriores. Adiante, exploraremos mais a fundo essa noção de subversão intrínseca ao nosso fazer artístico. Reforçamos que não pretendemos realizar um levantamento histórico dos caminhos até aqui percorridos, mas sim, expor consignas que de forma justapostas ao longo das práticas realizadas, tornaram-se uma espécie de vocabulário ou disparadores (mutáveis) que podem ser experimentados por outros núcleos como ponto de partida para a realização de atos performáticos ou simplesmente para fomentar a reflexão sobre Arte e Cidade.

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Sobre a criação de um “vocabulário” próprio, não quer dizer que este seja uma estrutura fixa ou rígida, a qual adotamos como forma de uma metodologia sistêmica e impermeável. Seria um tanto radical e extremo criarmos um sistema que dita fórmulas para a criação performática na esfera da cidade e que este sistema não possa ser “desobedecido”. Estaríamos indo na contramão do que propõe esta pesquisa. Portanto, estas estruturas criadas dentro de uma lógica peculiar e - necessariamente - mutável tende a ser uma contribuição das experiências do Núcleo Confluências e Corpos Desobedientes através de um olhar singular, cheio de inspirações e querências, que buscam ressignificar por meio de uma experiência entre performance e urbanismo dentro das cidades como uma possibilidade de mutação dos hábitos urbanos impostos pelo Estado e outros micro-poderes, como forma de controle e seguridade. Além disso, a utilização e re-significação de um local onde ocorrerá um determinado ato performático, tem, em geral, como foco, o consumo e os afazeres da vida cotidiana como bancos, restaurantes, lojas, calçadões, etc. Isso torna-se extremamente importante no sentido de expor, de forma lúdica, como a cidade, este conglomerado de cimento e vidas, pode, por instantes, se

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transformar em obra de arte, desvirtuando toda uma lógica pré-determinada e altamente rígida sobre como sua circulação é orientada ou mesmo conduzida. Henri Lefebvre afirma que “o futuro da arte não é artístico, mas urbano. Porque o futuro do homem não se encontra nem no cosmo, nem no povo, nem na produção, mas sim na sociedade urbana” (LEFEBVRE apud TRINDADE e TURLE, 2016, p.35). Concordemos ou não com a visão materialista-dialética de Lefebvre, o fato é que não há como negar: num mundo globalizado em que a maioria da população vive em contexto urbano e capitalista, onde as práticas da vida cotidiana são inexoravelmente regidas por fatores comuns que derivam das lógicas do trabalho e do consumo, o que transforma os grandes centros urbanos em lugares essencialmente muito semelhantes, respeitadas as diferenças climáticas e culturais. É importante notar que, sobretudo nas últimas décadas, um movimento de saída dos espaços fechados de apresentação e exposição de arte tem seduzido e levado muitos artistas de áreas diversas a buscarem “experimentar” o espaço público das cidades. Disso, talvez, tenham surgido tantas novas formas de interação com os fixos e fluxos urbanos que resultaram em tantas novas nomenclaturas de práticas artísticas. Em nossa prática, propomos construir acontecimentos que rompam as lógicas estabelecidas, seja por hábitos já condicionados ou por regras que o poder público, junto ao privado, estabelecem como normativas comportamentais a determinado espaço; colocamos nesta zona de turbulência de corpos vivos dialogando em meio de espaços públicos e privados onde fazemos dessas relações algo potente e de resistência aos processos desumanizantes do mundo materialista contemporâneo. Adiante, apresentaremos o conceito de [M.U.], microação urbana, que tomamos

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como base do processo de criação. Por meio dessas [M.U.], encontramos uma forma de iniciar diálogos com a cidade de forma simples, porém potentes. Não estamos ainda pensando em espetáculos, mas na mínima unidade de composição que poderá futuramente tornar-se parte de algo maior. Também apresentaremos outros “comandos” ou “disparadores” que tornaram-se comum e nem sempre intencionais para nossa criação. São eles: reconhecimento e negociações; “iscas”; processos de ligação/condução e subversões.

M.U. - MICROAÇÕES URBANAS Foto: Fausto Ribeiro (2017), Brasília

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Chamamos de microações urbanas as propostas de interação/ intervenção desses performers no espaço urbano que podem ir desde as escolhas mais simples, em termos de ação (ou mesmo seu contrário, uma proposta de inação que se choque com a dinâmica frenética do arredor), até propostas mais ousadas que provoquem uma alteração de grandes proporções nos usos cotidianos daquele lugar. As escolhas que constituem

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a criação dessas microações partem do indivíduo, da necessidade e urgência em querer mergulhar em si como performer e, também, um posicionamento político-poético inserido na construção dessas ações que permeia suas temáticas. A construção de microações não pretende ser um exercício existencial, e sim, ser um novo modo de relação com o ambiente urbano, uma forma de “modificar nossa sensibilidade e nossos modos de ver e se relacionar com o mundo num sentido de maior liberdade” (QUILICI, 2015, p.144). Damos o nome de microação a esses exercícios iniciais por serem o ponto de partida, um primeiro passo de uma criação que pode revelar a potência de explorações mais complexas, profundas e/ou demoradas. A diferença entre uma Microação e uma Ação, se estabelece no grau de unidade mínima que a primeira ocupa. As [M.U.], como processo de criação, variam de acordo com a intencionalidade das investigações do dia. Pode acontecer de elas partirem de premissas previamente estruturadas para irem, gradativamente, acumulando outros comandos e tornando-se mais elaboradas, ou também pode acontecer de não haver nada além do desejo de se colocar em certo risco num lugar que se apresente interessante e potente. Ou seja, as [M.U.] podem ir de um extremo de quase nenhuma instrução, como por exemplo, simplesmente oferecer um espaço para o performer e deixá-lo criar, passando por um meio termo, que seria um comando simples para a criação2, indo até o outro extremo que seria uma sequência de vários comandos, de várias propostas de práticas ou tarefas. A microação tem essa característica de construir-se a partir de um repertório variado dentro do quesito estímulos iniciais.

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Descrição

1. O performer deve ter em mente, no exercício de criação, que sua M.U. estabeleça um diálogo em tempo real com o ambiente que estiver inserida e que, desta relação, o espaço/local escolhido também faça parte da performance. 2. Outra observação a ser ressaltada durante a sua criação é que ela deva de alguma forma interromper ou re-criar novas linhas de fluxo e lógicas no espaço que é criada. [M.U.] Sugestão de Abordagem 1 Foto: Braulio Sismondi (2018), Montevideo

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NOME DA AÇÃO . Atirado ao chão SUPORTES/OBJETOS . Um gravador de voz LOCAL/ESPAÇO . lugares de fluxo extremo de passantes HORÁRIO . (a definir) COMANDOS . deitar-se em uma calçada movimentada e buscar

relações com os passantes curiosos, como contar uma história que te marcou em algum momento ou deixar espaços para que o passante tem a dizer.

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[M.U.] Sugestão de Abordagem 1 Felipe vs Felipe,. Foto: Fausto Ribeiro (2017), Franca NOME DA AÇÃO . FELIPE [versus] FELIPE SUPORTES/OBJETOS . Um carro LOCAL/ESPAÇO . Uma rua central da cidade de Franca-SP HORÁRIO . 12:30 COMANDOS . bloquear duas esquinas com fitas de contenção

ou cones; dançar com a estrutura externa do carro; achar uma lógica de tempo para parar.

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ISCAS Foto: Fausto Ribeiro (2016), Ribeirão Preto

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A Isca é uma espécie de diluição da linha limítrofe entre real/ ficcional, uma brincadeira de confundir, mas com a eficácia de despertar a atenção e atrair o foco. É algo que tem o mesmo propósito daquilo que os grupos de teatro tradicionais chamavam de “convocatória”. Porém, aqui, não se trata de um anúncio que quer avisar ao respeitável público que o espetáculo terá início. Por isso mesmo, essa ação-isca deve ser pensada a partir de uma minuciosa observação da dinâmica do local, ou corre o risco de já se entregar pelo excesso de estranheza ante o “normal” daquele espaço. Desta maneira, a Isca se torna uma espécie de pré-ação da [M.U.]. Um exemplo banal de isca poderia ser a discussão de um casal que começa a se exaltar no meio da rua, gritando um com o outro, de modo que os passantes acreditem que aquilo é verídico. Para que seja mais interessante e potente, um elemento

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de estranheza pode ser acrescentado, como por exemplo, o casal poderia estar discutindo e gritando, mas cada um em uma calçada de um lado diferente de uma grande avenida. Nenhum deles atravessa, mas a discussão prossegue em berros de um lado para outro. É estranho, mas ainda existe uma certa dúvida, por conta do inesperado ou da forma que a ação brota no espaço. A isca se caracterizaria como um recurso lançado para atrair a atenção antes que a situação poética ou ficcional “principal” comece, gerando uma perturbação realista, mas que tem um aspecto de extraordinário. A isca é um chamariz para atrair a atenção, ou seja, não é ainda uma parte da M.U., sendo uma cortina transparente que agrega o real e o ficcional.

CONDUÇÃO / LIGAÇÃO Se tivermos, por exemplo, um conjunto de [M.U.] que foram criadas por diversos performers – digamos que como resultado de uma oficina ou workshop -, e então, se deseje fazer delas uma só apresentação. Surge a necessidade de criação de outros recursos cênicos para conectar e conduzir pelo circuito previamente criado. Tais recursos de ligação ou condução são muito potentes pelo fato de tirar o olhar do público do espaço seguro da roda e, com isso, poder fazê-lo observar outros pontos da cidade, com outros focos diferentes. Porém, deve-se observar que estas ligações não podem estar ali de forma desconectada, pois, desse modo, provocariam um “esvaziamento” de toda a energia gerada com uma [M.U.] até que a próxima acontecesse. O ideal é o oposto, aproveitar e acumular as emoções e sensações geradas. Sendo assim, estas ligações também devem ser uma espécie de microação, neste caso, microações itinerantes. Em alguns casos, como início dessa ação de ligação, podemos lançar mão do recurso da Isca, alguma coisa que não se sabe se é real ou não, mas que leva o espectador a lançar o foco para algo mais interessante do

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que o anterior, conduzindo-o para outro lugar. Justamente por essa razão, é preciso saber ordenar bem essas ações pelo espaço, pois tais ações de ligação precisam ser mais atrativas para que se deseje observá-las e segui-las ao invés de manter a atenção no que ocorria antes. Estas ligações devem ser claras para se tornarem potentes, já que o ambiente é um grande aliado para a construção destas ligações.

RECONHECIMENTOS E NEGOCIAÇÕES Feliz Ano Novo Foto: Fausto Ribeiro(2016), Ribeirão Preto

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É muito lugar-comum dizer que todo ator ou performer deve, antes de executar uma ação cênica, fazer o reconhecimento do espaço. O que destacamos aqui é a pluralidade de formas de entender esse reconhecimento. Em primeiro lugar, é preciso dizer que o reconhecimento não implica somente em

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riscos, mas também em potências. É importante fazer um reconhecimento do espaço urbano mais aprofundado para tirar dele as maiores vantagens em termos de potência de expressão e alcance comunicativo, bem como saber evitar todas as formas de riscos que esse espaço pode oferecer. A cidade é multifacetada, podendo ser observada por diversos focos de interesse e diferentes campos de estudo. Para cada uma dessas faces – histórica, física, funcional, estética, etc. – temos diferentes riscos, diferentes potências e diferentes poderes. É preciso, então, ter a consciência destes diferentes níveis porque alguns elementos são bastante óbvios e fáceis de se notar, como os riscos físicos que uma praça oferece: buracos no piso, fios de tensão, pedregulhos ou areia que tornam o chão escorregadio, etc. Outros riscos são mais sutis, por exemplo, no campo funcional, quais horários temos mais trânsito, ou temos mais pessoas passeando com crianças e cachorros? A que horas e em que lugar é habitual a entrega de sopa para moradores de rua por alguma entidade, o que causa uma enorme fila e barulho? Do ponto de vista histórico, houve algum acontecimento nessa cidade que torna algum tema mais particularmente sensível? É prudente “brincar” com algumas figuras dos monumentos ou elas são realmente significativas para a memória local e a “brincadeira” pode ofender? Também não é difícil notar que esses mesmos riscos podem, olhando-se de outra forma, tornarem-se potenciais de exploração. Nesse campo de exploração das potencialidades, a busca de dialogar com os riscos e o reconhecimento das forças de poder, as negociações são sempre necessárias. Entendemos que buscar o diálogo real com os responsáveis por algum espaço a fim de ter acesso a eles, o que não seria possível sem esse contato. Se quero usar um determinado espaço, preciso saber se há uma legislação local, o que ela diz e o

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que ela permite. É preciso pensar quais contatos devo buscar para conseguir mais facilmente autorizações e afins. No caso de espaços privados, como negociar com gerentes, supervisores e deixar claro a todos como se estabelecerá a ação, para não prejudicar aquela parceria local? Não obstante, buscamos ter autorizações prévias de uso dos espaços. Estaríamos, assim, deixando a subversão de lado e adentrando no sistema imposto ao ambiente. Vitrines, marquises, janelas, balcões e etc, podem também estar entre os elementos do espaço urbano à disposição do performer, desde que feitas as devidas negociações prévias.

SUBVERSÕES

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A prática se entende como subversiva a partir do momento que ela altera os fluxos e a memória da cidade. No entanto, durante os processos de criação pode-se pensar em diferentes formas de subverter, adotando essa escolha também como uma parte consciente do processo. Exemplos: Subversão de Linguagens

As linguagens tradicionais do teatro de rua, que não têm uma característica invasiva dos espaços públicos, podem ser subvertidas na medida em que se sugira outras formas de disposição espacial (que não sejam a “roda” esperada) ou outras formas de aproximação com o público (que não sejam as conhecidas convocatórias). Também é interessante a mistura de linguagens que apontem para o sublime e para o grotesco, simultaneamente. Um mendigo dançando balé ou declamando poemas, uma mulher muito produzida em trajes de festa rolando pela lama. Mesmo num texto qualquer, alterar registros de linguagem do mais formal ao mais coloquial, incluindo marcas de oralidade, gírias e expressões idiomáticas num monólogo shakespeariano.

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Subversão do Público e do Privado

Realizar ações no ambiente público que geralmente são realizadas em um ambiente privado, tal como fazer a barba no meio de um calçadão. Assim como realizar uma ação dentro de uma loja, que surpreende o real uso daquele local, tal como expor cenas íntimas numa vitrine. Subversão de Tempo

Realizar ações num tempo muito dilatado ou muito condensado, de modo que fique evidente o choque com a dinâmica exterior. Subversão de Planos

Fazer ações quaisquer alterando seu plano habitual, como atravessar a rua deitado, ou tomar café suspenso por cordas. Convidar o olhar do espectador para uma investigação também vertical da cidade. Enfim, há muitas possibilidades de estímulos iniciais que poderíamos listar aqui a partir de formas de subversão do cotidiano. Por ora, basta destacar que temos diante de nós um rol de estratégias para iniciar um processo criativo de ação cênica nas ruas. Esse repertório, a ser explorado, irá, certamente, revelar novas possibilidades e, assim, pela prática constante de exploração desse novo território da cidade, novas formas de habitar e de viver/refletir a urbes também surgirão.

NOTAS 1. https://confluenciasrp.wixsite.com/confluencias 2. Como propor uma temática, “faça algo sobre a indiferença”, digamos, ou mesmo uma tarefa como “cantar algo ridículo bem alto” ou buscar relações como “faça alguém sentar e ouvir uma história enquanto dança pra ela”, etc.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998. AUGÉ, Marc. Los “No lugares”. Espacios del anonimato (Una antropología sobre la modernidad). Barcelona: Gedisa, 1998. BEY, Hakim. TAZ: zona autônoma temporária. Disponível em: <http://www.mom. arq.ufmg.br/mom/arq_interface/4a_aula/ Hakim_Bey_TAZ.pdf>. Acesso em: 14 set. 2015. CARREIRA, André. Teatro Contemporâneo: de Stanislavski a Bob Wilson. In: Porto Cênico, v.1, n.1. Santa Catarina, 2009. ________________ A cidade como dramaturgia do teatro de invasão. Xi Encontro Regional ABRALIC, 2007, realizado23, 24 e 25 de Julho de 2007. Universidade de São Paulo-SP. _________________ Teatro de rua na Argentina e no Brasil democráticos da década de 80. São Paulo: HUCITEC, 2007. ________________ Dramaturgia do espaço urbano e o teatro de invasão, in MALUF, Sheila e BIGI deA. Ricardo (orgs.). Reflexões sobre a cena. EDUFAL: Maceió, 2005. 74 oeste

________________ Teatro de rua como apropriação da silhueta urbana: hibridismo e jogo no espaço inóspito. In Trans/Form/Ação, São Paulo, 24: 1-309. 2001. CAVRELL, Holly Elizabeth. Dando corpo à história. Curitiba: Editora Prismas, 2015. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. QUILICI, Cassiano S. O Ator-performer e As Poéticas da Transformação de Si. São Paulo: Annablume, 2015. THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil. Disponível em: <http://www.domi-niopublico.gov.br/download/texto/cv000019. pdf>. Acesso em: 13 nov. 2016. TURLE, L.; TRINDADE, J. Teatro(s) de rua no Brasil: a luta pelo espaço público. 1.ed. – São Paulo: Perspectiva, 2016.

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HELENA MAGON Arquiteta por formação, atriz, tem seu percurso marcado pelo entrelaçamento de múltiplas linguagens

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nova totius terrarum orbis, hendrik hondius, 1630

para ler depois requiem para cezanne, bertrand puard

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É a simulação de uma viagem. Um caderno também de memórias, do imaginário. Duma viagem vivida por construção de lembranças, impressões e apreensões. Um filme falado (2003), longa-metragem do cineasta português Manoel de Oliveira, é o ponto de partida para um quebra-cabeça. Um navio parte de Lisboa para um cruzeiro: Marselha, Nápoles, Atenas, Istambul, Cairo, Aden. Percorre lugares santificados, míticos, traçando a História da Civilização Ocidental. Lugares em que nunca estive. Desde sempre tenho uma boa afeição aos espaços urbanos ao modo de se morar e, sobretudo, como acontece quando a casa não é “a casa”. Vivenciar e observar como os habitantes vivenciam sua corporeidade, suas poéticas. Sem a clareza sobre essa questão, parti na época da graduação para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, onde obviamente me foi desvelada outra profundidade em relação a este olhar espacial. Entretanto, durante o curso, o tema não era o que mais despertava minha atenção. Saí da faculdade, me profissionalizei como atriz e junto a essa formação fui trilhando um percurso multidisciplinar. Sempre as questões do espaço vivido estiveram bastante presentes – ora consciente, ora intuitivamente. Embora a formação acadêmica tenha fortalecido esse olhar; a prática Teatral, vivências corporais e, posteriormente, as experiências com o Cinema me aguçaram certas percepções e (inquestionavelmente) também o fato de eu ser uma andarilha convicta, que gosta de se perder pelos espaços desconhecidos: me fazer me perder para daí me encontrar. No espaço conhecido, re-conhecê-lo a partir de outras perspectivas. Um imenso prazer em, a partir do caos, traçar um mapa bidimensional fundido à memória da espacialidade e a todas a

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subjetividade da construção do percurso. Um tipo de apreensão construído pela concretude do espaço como também pelos sons, pelo desejo, pelos cheiros, pelas visualidades que se descortinam. Um mapa mental que se torna todo meu.

DO HÁBITO À PERCEPÇÃO Como mencionado acima, sempre tive gosto por descobrir rotas, desbravar mapas, observar a arquitetura do entorno, tentar decifrar como pessoas habitam, me surpreender com perspectivas. Entretanto um olhar mais aguçado e um outro nível de percepção só adquiri depois duma certa prática nos ensaios do Atelier de Manufactura Suspeita, dirigida por Maurício Paroni de Castro. Ele propunha-nos os exercícios da ‘Deriva’, para que pudéssemos trabalhar de maneira prática o conceito de cartografia emocional, exercício completamente baseado no livro de Walter Benjamin, Rua de mão única. 70 oeste

Tal exercício “consiste na prática, em criar situações reais, em locais públicos, nas quais o ator realiza um deslocamento a partir de premissas previamente determinadas e com um tempo de duração também estipulado. O exercício gera um fluxo de ações que é determinado pelo percurso feito. Ao término são feitas considerações e reflexões acerca do mesmo, para compreender e contextualizar a trajetória emocional” (BENJAMIN, 1986) Esse tipo de experimentação trouxe a extrema noção do quanto nossas rotas e comportamentos são condicionados por regras e fatores externos, dou destaque aqui às sinalizações, na rua e sobretudo em ambientes fechados. Num shopping, por exemplo: espera-se que os frequentadores passeiem pelo lugar entrando ou não em lojas – só o fato de se fazer repetidas vezes um percurso sem estar atento às vitrines, já faz com que os seguranças fiquem em estado de alerta. E assim em todo espaço urbano: temos um script de possibilidades de movimentação,

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de sentidos, de lugares de permanência, de velocidades. Se é burlado, algo ou alguém está saindo da norma vigente. Complementando. Em Rua de mão única, Benjamin praticamente enuncia que somos obrigados a nos localizar a todo instante, mesmo se desejarmos nos perder. Nem um porre nos tira da linha. Ser ‘racional’ seria ser condicionado a seguir placas de trânsito, indicações de direção, semáforos. Por extensão, seguimos modismos, tendências estéticas, manias coletivas turismo de massas. Viajamos milhares de quilômetros para posarmos diante de um cartão postal. A coisa vem de longe. Quem quer que tenha visitado qualquer ruína de cidade romana com atenção terá sempre notado uma rua de norte a sul chamada cardum e outra de leste a oeste chamada decumanum, com paralelas de mesmo nome (...). Se você visitou Nova York, mesmo desatento, notou que a cartografia urbanística é a mesma: um tabuleiro de xadrez. Fonte: Google Maps, 2017

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Infelizmente perde-se muito com isso. A sensação de desorientar-se em Marrakesh, onde se pode tranquilamente fantasiar rapto, escravidão branca e coisas afins, ficou fora de moda. É bem mais comum um executivo de folga (de um dia) na Itália conhecer alguma lojinha globalizada em Veneza do que se perder naquela maravilha e descobrir o que há de melhor na cidade. Não são apenas os museus, canais ou gôndolas: são também os bares atrás de residências comuns. (...) Enfim, o ensaio de Benjamin sugeriu-me algo ainda maior: a existência em qualquer cidade e nas pessoas que as habitam, de uma cartografia emocional a ser descoberta e desenhada1.

UM QUESTIONAMENTO

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Vivi por quase 8 anos, entre idas e vindas, na cidade de Salvador. Velha conhecida, já que minha família por parte de pai é de lá, onde passei muitas das férias de verão. Assim pude notar a transformação de parte da cidade – a orla marítima e os bairros onde que meus avós e tios moravam. Evidentemente residir lá fez com que meu olhar adquirisse outra amplitude. E outro grau de curiosidade. Enquanto tecia uma nova cartografia às minhas memórias, tentava desbravar novos ângulos, novos horizontes e novos caminhos – o entrave ao qual eu sempre me deparava: “não ande por aí, tem muito marginal”, “você é doida menina, não vá até lá, vão te assaltar com essa cara de turista”. Não posso dizer que fossem mentirosas, inclusive já passei por apuros, fui assaltada enquanto o que só queria era respirar a paisagem. Esse contexto fez com que percebesse o quanto estava “censurada”’ do uso daquela cidade. As mais belas paisagens me eram restritas, assim como para qualquer cidadão mais ou menos enquadrado no padrão vigente do que se considera ‘ser cidadão’. Passei a reparar nos tais “marginais”, eram os únicos que detinham o poder de transitar por onde bem entendessem na

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hora que quisessem – falo dos espaços públicos obviamente. Vivenciam a cidade a partir de outras perspectivas, do mesmo modo que seus corpos entrecortam, dançam pelos espaços, são outros movimentos, velocidades. De volta a São Paulo, sigo tentando perceber estas outras perspectivas por mim não vivenciadas.

MERLEAU-PONTY, CÉZANNE E O REFUNDAR DA MINHA CULTURA Possível se criar um enigma, uma aura sem o corpo estar entrelaçado ao visível? Podemos apreender o invisível sem haver um tempo em suspensão e outro em decantação? “É oferecendo seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em pintura.” (MERLEAUPONTY, 2004, p.16) Toda a reflexão deste trabalho foi completamente embebida pelo texto O Olho e o Espírito, de Maurice Merleau-Ponty e a trajetória de Paul Cézanne. Jamais compreenderíamos a obra de Cézanne se não falássemos da montanha de Santa Vitória, tema emblemático de sua obra, por vezes colocado em tela, “É a própria montanha que, lá distante, se mostra ao pintor, é a ela que interroga com o olhar.” (MERLEAUPONTY, 2004, p.21) E também foi a montanha que interrogou Cézanne – por uma vida. Porque o objeto escolhido se encontra no próprio sujeito que o interroga, aniquilando, assim, a separação entre sujeito e objeto. Para o artista, coexistem numa constante tensão, sendo duas dimensões de conhecimento: o visível e o invisível. A

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esse modo de se estar no mundo, Merleau-Ponty denomina “transubstanciação”. Pertence ao mundo ao mesmo tempo que o observa, vê o mundo de fora e vê consigo – considerando que ver é “ter à distância”, seu mundo é completo sendo, no entanto, apenas parcial”. E qualquer que seja a maneira de revelá-lo, seja retratando, se opondo ou fazendo um recorte; há sempre si mesmo, é uma tradução. Esse olhar que vê o objeto joga luz em si para, depois, devolvê-lo ao mundo. É o “olho de dentro” que opera:

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“(...) a visão só aprende vendo, só aprende por si mesma. O olho vê o mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele próprio, e, na paleta, a cor que o quadro espera; e vê, uma vez feito, o quadro que responde a todas essas faltas, e vê os quadros dos outros as respostas a outras faltas(...) o olho é aquilo que foi sensibilizado por um certo impacto do mundo e o restitui ao visível pelos traços da mão” (MERLEAU-PONTY, 2004, p.19-20) E o pintor pinta porque através do seu olhar para o mundo foi possível que as cifras do visível fossem nele gravadas. E para que isto se dê, “o corpo operante e atual” se faz necessário, “aquele que não é uma porção do espaço, um feixe de funções, que é um trançado de visão e de movimento”. (MERLEAU-PONTY, 2004, p.16) Este corpo é suporte de seu olhar, conduz o olhar dentro e pelo mundo visível. O corpo está inserido no mundo, é um emaranhado, o mundo é uma extensão dele. E ele também se vê. Movendo-se, percorre e se faz pertencer a este percurso. O passeio pelo mundo visível depende deste corpo. – “ só se vê o que se olha”. E o que se olha se assimila como possibilidade de existência, de experimentação, pois já que é visto, em alguma

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medida está a meu alcance, tornando-se visão e movimento partes do mesmo. Ao se aproximar pelo olhar, o mundo se abre para ele e ele se abre para o mundo. Conforme se constrói um percurso, seja improvisado ou não, constrói-se uma paisagem, constrói-se um pensamento, do qual ele faz parte não sendo seu ‘si’ mera representação - por isso essa representação é “proibida” de ter um princípio e um fim em si própria, de ser ideal, a devolução desse retrato vem impregnada do ‘si’. Trama-se um reflexo do mundo exterior, dentro num fluxo sem fim. E o mundo de dentro vai se construindo a partir dessa imbricação que é vista no tempo presente que, por sua vez, se imbrica com o que já foi cifrado neste corpo. Merleau-Ponty assume esse deslocar como uma ‘sequência natural’, por uma visão “amadurecida” e conclui de modo sublime: “[meu corpo] Ele não está na ignorância de um si, não é cego para si, ele irradia de um si...” (MERLEAUPONTY, 2004, p.16) Assim era com Cézanne, dizia que a vibração da aparência é que era o berço das coisas. A primeira ideia, ou melhor, a primeira pergunta foi pensar se seria possível apreender um espaço, uma paisagem, sem ter dado o tempo da mesma (me) adentrar pelos poros, se em um flash eu veria o invisível. Mais, numa cidade como São Paulo, como desbravar sozinha, à queima roupa, lugares inacessíveis ao ‘cidadão comum’? Como burlar as ‘orientações obrigatórias’ por tempo suficiente para, ao mesmo tempo, preservar a ‘integridade física’, evitar certos riscos cujas consequências poderiam ser razoavelmente desastrosas? Esta apreensão aparecia mais como a possibilidade de um desenho, cego ou ‘semi’-cego. A fotografia também foi cogitada, porém eu estava ciente de que por celular não

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conseguiria a amplitude pretendida e, com a câmera meu domínio técnico não seria suficiente para domar a luz como gostaria na ligeireza que seria necessária. Eu seria refém do equipamento e “o artista age contra o equipamento”, nas palavras do professor Ricardo Fabbrini em sala de aula, só assim poderia de fato criar um diálogo naquela linguagem, e uma possível contra-imagem. E como não me sinto à altura para desfiá-la, não passaria de mais um amontoado de imagens num limbo. Mas esta era uma decisão seguinte.

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Eis que surge a sugestão do Google Maps. Após um instante de surpresa, a investigação: na verdade essa investigação num primeiro momento veio muito mais com um instigante impulso de negação, afinal pensava que seria impossível qualquer fruição, qualquer surpresa, qualquer sentido aguçado. Daí surgiu a curiosidade. Será que é possível criar-se um percurso, um percurso de paisagens, absolutamente virtual, digo, sem os aparatos 3D de plena simulação, pela própria bidimensionalidade da tela do computador? “‘Há um minuto do mundo que passa, é preciso pintá-lo em sua realidade,” Perfazia-se a meditação num lance. ‘Sustenho meu motivo’, dizia Cézanne, e explicava que a paisagem deve ser circunscrita nem muito alta, nem muito baixa, ou ainda trazida viva numa rede que nada deixa passar”. (MERLEAU-PONTY, 2004, p.119) E por São Paulo, quais poderiam ser as paisagens? Recorri ao Google Street View. Descobrindo perspectivas, para mim, inusitadas, trechos da cidade que eu não conhecia, trânsitos literalmente na contramão, ocorreu-me, “Por que não ir mais além? O que estou fazendo aqui se eu poderia estar na Fontana di Trevi?”. Chegando lá, uma imensidão de turistas; isso causou-me um certo tédio, confesso. Gostaria de encontrá-la um pouco mais

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idílica, não necessariamente como em La Dolce Vita, de Fellini, mas bem menos ‘consumida’. No entanto, por que estar lá, justamente lá? Ou em qualquer outro lugar. Não fazia sentido. Cena do filme Um Filme Falado

Sempre tive adoração pelo mar, por navegar. Acredito que contaminada pelas aulas do professor Fabbrini, as utopias, distopias e heterotopias, o navio como exemplar espaço heterotópico..., num estalo me veio à mente Um filme falado, do cineasta português Manoel de Oliveira: mãe e filha embarcam num cruzeiro cujas paradas são marcos da História da Civilização e sobretudo a mãe vai narrando as conquistas, mitos, tradições ao longo do filme. Sempre apreciei muito a obra, entretanto ela foi ganhando cada vez mais entendimento e nuances, conforme o tempo foi passando – o filme é de 2013, quando assisti. É um dos filmes cuja reflexão vêm e vão. Dei-me conta que são lugares em que nunca estive. Ora, se uma infinidade de turistas atualmente devora museus, lugares históricos, monumentos, olhando apenas por seus visores de smartphones e assim se relacionam (se relacionam?) com obras, com a arquitetura duma cidade...

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Talvez eu pudesse criar um simulacro. Percorrer aquele roteiro criando registros a partir do Google Maps, Google Street View e Google Earth.

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“Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem. O primeiro refere-se a uma presença, o segundo a uma ausência. Mas é mais complicado, pois simular não é fingir: ‘Aquele que finge uma doença pode simplesmente meter-se na cama e fazer crer que está doente. Aquele que simula uma doença determina em si próprio alguns dos respectivos sintomas’ (Littré.) Logo fingir, ou dissimular, deixam intacto o princípio da realidade: a diferença continua a ser clara, está apenas disfarçada, enquanto que a simulação põe em causa a diferença do ‘verdadeiro’ e do ‘falso’, do ‘real’ e do ‘imaginário’. O simulador está ou não doente, se produz ‘verdadeiros sintomas’? Objectivamente não se pode tratá-lo nem como doente nem como não-doente”. (BAUDRILLARD, 1991, p.9-10) Eu padeceria de algum sintoma?

O PERCURSO Dando início à minha pesquisa do roteiro, e, depois, enquanto ‘visitava’ aqueles pontos percebi que mesmo não tendo estado neles, de alguma maneira se faziam vivos, me induziam a visualizar mentalmente uma série de imagens, referências que foram construídas ao longo de uma vida. Através do mundo virtual, uma simulação de presença. Através das memórias as alegorias presentes. Durante a viagem fui coletando imagens de paisagens, mapas celestes e terrestres, mapas antigos, perspectivas das paisagens. Compõem o caderno também desenhos da infância e frames

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do filme Morte sobre o Nilo, dos quais falarei a respeito mais adiante. Vale mencionar que, nesse roteiro, tive o cuidado, inúmeras vezes e sempre que possível, de buscar através do mapeamento do Google, a localização mais verossimilhante às que estão as personagens do filme, para poder ‘ver’ do ângulo mais próximo ao delas. Assim ocorreu no Porto de Marselha, na saída de Lisboa, no Castelo do Ovo. Outra forma de apreensão da paisagem foi a captação de frames dos filmes, ora como fonte para a devolução do olhar, ora como recorte ilustrativo de lugar da memória. Fonte: Google Maps, 2017. 61 oeste

Em algumas visitas fui surpreendida por algumas assombrações. Partes de outros visitantes ou pessoas inteiras e borradas que ficaram registradas em determinados ângulos das imagens do Google. Além disso, na busca pelo Museu do Cairo, pelo Google Earth, saiu como resultado simultâneo o Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, justamente, além o Museu Egípcio e Rosacruz em Curitiba. Assim sendo, decidi assumir tais resultados e tais ruídos, desistindo de falsear sinais das imagens que denunciavam sua a origem.

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UM FILME FALADO No filme emergem questões relacionadas à historiografia, à narrativa histórica, bem como a crítica do eurocentrismo, orientalismo, relacionando-as à Portugal e ao Mediterrâneo, assim como, em se tratando de Antigas Civilizações, lugares da memória. Mãe e filha, a mãe professora de História, têm como destino final Bombaim onde o marido as espera. O cruzeiro é o pretexto para que a mãe mostre à filha os marcos da História do Ocidente. Saindo de Lisboa, o navio aporta em Marselha, fala-se da colonização fenícia, da invenção do alfabeto. Seguem para Nápoles onde visitam o Castelo do Ovo, a mãe conta sobre a profecia de Virgílio. Visitam a cidade de Pompéia, petrificada pelas lavas do Vesúvio. Atenas, onde veem a Acrópoles, Partenon, Teatro de Dionísio. Santa Sofia em Istambul, Cairo e as Pirâmides de Gizé e Esfinge. 60 oeste

E conforme é relatado na crítica de João Bénard da Costa, “Mas, a partir de Constantinopla, os sinais são mais elípticos ou crípticos. Junto ao chão, em plano de pés, mostram-se-nos as cruzes do cristianismo deposto. Os caminhos começam a ser caminhos opostos, na direção de Meca ou na direção de Jerusalém. No Cairo, a esfinge e os escaravelhos iluminam os vivos e os mortos, visitantes dos abismos e do oculto. O azul é a cor do maligno e o que se vê já não coincide com o que não se vê”.2 (COSTA, 2009) Durante o percurso há um jantar “que reúne um ator americano, de origem polaca, no papel do capitão do navio (John Malkovich), uma atriz francesa, no papel de uma rica mulher de negócios (Catherine Deneuve), uma atriz italiana, no papel de um famoso modelo (Stefania Sandrelli), e uma atriz grega no papel

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de uma célebre cantora (Irene Papas). É um jantar de circunstância, pois que o circunstancial capitão convida para a sua mesa as três celebridades que levava a bordo. A conversa é circunstancial, ‘uma espécie de jogo’, como lhe chama o capitão, pois que cada um ou cada uma resume a história da vida, com paragem nas datas mais marcantes: nascimento, casamento ou não casamento, filhos ou não filhos. Nada de indiscreto, nem de confidencial. Conversa de salão ou jogo de sala. Mas o que sai fora das normas (de todas as normas) é que o capitão fala inglês, a empresária francês, a exmodelo italiano e a cantora grego. E todos se entendem perfeitamente”.3 (COSTA, 2009) Num dado momento, o capitão convida a professora de História e a sua filha (Leonor Silveira e Filipa de Almeida), ambas portuguesas, para que se sentem junto a eles. Surpreende o fato que, então, a professora passa a falar em inglês, a ‘língua universal’. O filme traz nuances que colocam Portugal sempre como um caso à parte. Levantando a questão da Grécia na formação da Europa e da própria Civilização Ocidental, a personagem que no filme representa a cultura helênica aponta a contradição: apesar dessa dívida imensa do mundo moderno aos gregos, a sua língua hoje em dia só é falada na própria Grécia. Ou seja, a linguagem, que num primeiro momento foi o veículo da transmissão dos ideais gregos de democracia, humanismo e filosofia, a partir de determinado instante perdeu importância, embora os valores por ela transmitidos perdurem. Além das questões mencionadas, o modo como é filmado o coloca totalmente na contemporaneidade, há o diálogo da linguagem e seu realizador. A fotografia não explora ilusionismos, efeitos. Explora o olhar, o tempo do observador

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e de quem observa. Planos estáticos e movimentação do próprio navio. Não há ‘a mais’. Os planos seguem a favor do que se conta, complementam o significado. Cena do filme Um Filme Falado

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As personagens estão imersas num contexto narrativo de modo que há um certo distanciamento para o espectador. As personagens não vivenciam o conteúdo histórico que é narrado, é uma voz passiva. O fato da História ser contada (e não vivida) é fundamental para que um certo vazio possa permear os veios do imaginário de quem assiste - não é uma narrativa saturada de imagens, ela deixa espaço na mente para que cada um possa construí-la a partir de seu imaginário, de referências simbólicas tão atávicas (para a Europa e povos colonizados pelos Europeus, ao menos). A matriz da civilização em que vivemos: o navio. Quase todo o filme se passa nele. “A maior reserva de imaginação do séc. XVI, nas civilizações sem barcos, a espionagem substitui a aventura e a polícia substitui os piratas” (FOUCAULT, 2009, p.442) Como cita Foucault, uma heterotopia por excelência. Um lugar não-hegemônico, de múltiplas camadas de significação. No filme

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a História da Civilização do Ocidente pode ser contada ‘sem supremacias’, numa outra relação tempo-espaço. Um Filme Falado é uma valiosa obra contemporânea que entrelaça, na sua totalidade, tema, estética, suporte, modo de realização trazendo em seu cerne, numa brilhante síntese, inúmeras questões da contemporaneidade. E que dialoga, a todo instante, com o não visível.

OPÇÃO PELO DESENHO Desenho Cego X Desenho de Observação

O desenho foi escolhido por ter sido o meio de maior aproximação como refundar da minha cultura própria. Migrei para o Teatro e outras atividades artísticas multidisciplinares. Filha de designers passei a infância em meio a tintas, giz, lápis, livros, pinturas, exposições. Minha formação acadêmica é Arquitetura e Urbanismo, cujo pensamento é totalmente construído e apresentado pelo desenhar. O exercício do pensamento, sempre como a “imagem de primeira geração”, assim como o concluiu Joseph Boeys, o desenho como primeira visualidade do pensamento, é o desenho, “transformado no ponto de forças invisíveis para coisas visíveis”. Entretanto, acabando a Universidade, fui pouco a pouco me distanciando do desenho, até que parei por completo sem aparente motivo além da tal falta de tempo. Recentemente, parte dos pequenos prazeres foi me aproximar novamente da textura do papel canson, sentir o cheiro do grafite, a aspereza e a leveza do carvão, devolver ao meu olho a capacidade de ver. Mais ainda, me dei conta que minha memória de infância da Antiguidade é desenhada. Além

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de memórias mais recentes das aulas de História, da História, do Teatro Ocidental, de pesquisas arquitetônicas, nunca havia esquecido de um trabalho feito para a escola, aos sete anos. Aprendendo sobre as civilizações antigas, pesquisamos e montamos uma pasta contando sobre hábitos, geografia da Mesopotâmia, Grécia, Egito... Essa pasta sempre me foi cara, nunca me desfiz dela. E sempre, durante a vida, surgiam as imagens daqueles desenhos, que ficaram sedimentada e se mantiveram facilmente acessíveis. Fato que contribuiu para certeza de que Um Filme Falado seria o caminho.

Desenho da autora, 2017.

O desafio seguinte foi absolutamente pessoal: antes de vislumbrar qualquer possibilidade de um enigma que vir à tona, antes de tentar deflagrar algo que não estivesse lá já escancarado. Intui que em alguns casos somente a partir do exercício do desenho cego, ou alternado com breves olhadelas, conseguiria

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fugir dos clichês, das imagens já saturadas, do que é uma coluna greco-romana, blocos das pirâmides, a cabeça da Esfinge, etc. Como quando Merleau-Ponty cita Frenhofer em seu texto A Dúvida de Cézanne, “O sentido da pintura é o mesmo: ‘(...) Uma mão não se limita somente ao corpo, exprime e continua um pensamento que é preciso aprender e produzir(...). Eis a verdadeira luta! Muitos pintores triunfam instintivamente sem conhecer este tema da arte. Desenham uma mulher, mas não a vêem.’” (MERLEAU-PONTY, 2004, p.120) Assim percebi que podia trazer à luz ao menos certas estruturas contidas nas imagens. O exercício do desenho cego se fez fundamental já que, a meu ver, tendo um tempo limite para fazê-lo, há de se optar por um fio condutor, uma diretriz, seja linha, seja volume, seja textura. Eis sua força. De certa maneira traçando um paralelo, como faz Egon Schiele em algumas de suas obras, como uma metonímia, destaca uma parte insinuando, subjetivando a completude do que representa – não que o resultado para o desenho cego tenha que obrigatoriamente que sugerir qualquer completude, a aproximação deste exemplo ao trabalho é pela opção em operar a partir dum elemento eletivo. Assim como nos exercícios durante as aulas, dentro do limite, aqui tentei captar a estrutura daquelas imagens de paisagens. Desenhos de observação de certa ligeireza foram o outro recurso, tentando perceber a amplitude das perspectivas, a textura, os volumes das imagens, partindo de um olhar que rondasse a tela para imprimir no papel o que ia se fazendo cifrado e cuja intenção dessa percepção pudesse minimamente se revelar no gesto.

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IMPRESSÕES, CONSTATAÇÕES Deparo-me com a questão que Walter Benjamin responde:

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“Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós e desse galho, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho. Graças a essa definição, é fácil identificar os fatores sociais específicos que condicionam o declínio atual da aura. Ele deriva de duas circunstâncias, estreitamente ligadas à crescente difusão e intensidade do movimento de massas. Fazer as coisas ‘ficarem mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através de sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto como possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução”. (BENJAMIN, 1986, p.170) Assim como a posse da ultrapassagem dos limites, fronteiras, paisagens. “O imaginário da Disneylândia não é verdadeiro nem falso, é uma máquina de dissuasão encenada para regenerar no plano oposto a ficção do real. Daí a debilidade deste imaginário, a sua degenerescência infantil. O mundo quer-se infantil para fazer crer-se que os adultos estão noutra parte do mundo ‘real’, e para esconder que a verdadeira infantilidade está em toda a parte, é a dos próprios adultos que vêm aqui fingir que são crianças para iludir sua infantilidade real” (BAUDRILLARD, 1991, p. 21)

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Desse mesmo modo, penso que o Google e seu alcance inimaginável também nos dê o “real” porque essa liberdade, justamente, não existe. Ainda, “Do mesmo tipo que a impossibilidade de voltar a encontrar um nível absoluto do real é a impossibilidade de encenar a ilusão. A ilusão já não é possível porque o real já não é possível. É todo o problema político da paródia, da hiper-simulação ou simulação ofensiva que se coloca”. (BAUDRILLARD, 1991, p.29-30) Ou, nas palavras de José Saramago discorrendo sobre a visão, “O que eu acho é que nós nunca vivemos tanto na Caverna de Platão como hoje... Hoje é que estamos a viver de fato na Caverna de Platão. Porque as próprias imagens que nos mostram da realidade, de alguma maneira, substituem a realidade. Nós estamos num mundo audiovisual. Nós estamos efetivamente a repetir a situação das pessoas aprisionadas, atadas na Caverna de Platão, olhando em frente, vendo sombras e acreditando que essas sombras são a realidade. Foi preciso passarem todos estes séculos para que a Caverna de Platão aparecesse, finalmente, num momento da História da Humanidade que é hoje. E vai ser, e vai ser cada vez mais”.4 (JANELA DA ALMA, 2001, documentário)

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Curiosamente, e não por acaso, se prestarmos atenção ao caderno concebido, notaremos que sobre Áden, no Iêmen, pouco há. É o Oriente. Áden consiste em um conjunto de pequenas cidades: Crater, a cidade portuária original, a cidade industrial conhecida agora como Little Aden com sua grande refinaria de petróleo, e Madinat ash-Sha’b, o centro governamental. Seu antigo porto natural jaz na cratera de um vulcão extinto, o qual forma agora uma península, unida à terra firme por um pequeno istmo. Há inúmeros conflitos no Iêmen por questões geopolíticas que envolvem restauração democrática e territorial, etnia local e radicalismo da al-Qaeda, interesses no petróleo. O Google Maps chega num limite de proximidade e não há a opção de circular pelo lugar através do recurso do Google Street View. Certamente pelas questões mencionadas. Esta experiência só reforça a colocação, acima, de Baudrillard. Prosseguindo com Benjamin, elucido o ponto da minha tormenta, 52 oeste

“Retirar o objeto de seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar ‘o semelhante no mundo’ é tão aguda que consegue captá-lo até no fenômeno único” (BENJAMIN, 1986, p.170) Entretanto esse captar não é garantia que a tensão tempoespaço, o enigma, a metafísica, estejam presentes. Mesmo por trás dum conceito, este tem que ser vivido; através da apreensão do fenômeno, a “febre vaga”, como menciona Merleau-Ponty. O olhar do artista revela-se como uma ideia, uma posição, um ponto de vista cuja relação de ausência X presença estão contidas. Como a questão da luz para Cézanne, ele não estava interessado no quanto ela modificava a forma, mas, sim, o quanto ela intervinha em seu estado interior. E como libertar do clichê a imagem vivida através do Google?

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Pergunto-me, na deriva pela web, dentro dessa premissa de apreensão da paisagem, como trazer à tona a imagem de exceção? Mais: Se uma imagem autêntica se nutre da realidade empírica material, evidenciando, denunciando suas contradições, como revelar a autonomia a partir duma simulação como o percurso do Google Street View? Imagino que um dos caminhos seja operar através do próprio suporte, talvez ele mesmo seu próprio antídoto. Talvez um caminho próximo ao que Duchamp fazia com seus readymades: a negação + a negação = positivo, os resíduos das máquinas são as ironias que destroem a si mesmas e, assim, (as) criticam. Como disse Saramago, “Para conhecer as coisas, há que dar-lhes a volta. Há que dar-lhes a volta toda”. (JANELA DA ALMA, 2001, documentário) Fonte: Google Maps, 2017

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Parte do que houve de mais instigante no percurso se aproxima da ideia do antídoto. Durante as viagens fui surpreendida por membros distorcidos, meios corpos de visitantes nos marcos, monumentos, interior de museu, sempre como espectros, borrões. Congelados na paisagem. A inexistência e a eternidade dum instante fragmentado. A perspectiva acessada não é em tempo real, assim como os visitantes registrados e que registraram os pontos turísticos, todavia partes deles estão lá como ex-votos virtuais. Esses fantasmas foram, para mim, justamente a presença duma imagem de exceção: a morte da morte, talvez o mais vivo nessa expedição. Quanto aos desenhos produzidos, percebi depois de feitos que, um após o outro, foram tentativas de extração do que seria, digamos, uma imagem cujo ideal era de se aproximar a um desenho de primeira geração, no caminho inverso. Tentativas de revelar o que eu percebia como força motriz daquelas paisagens. Daqueles enquadramentos. 50 oeste Desenho da autora, 2017. revista rasante nº 02 . 2018 . corpos diversos lugares

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Os enquadramentos. A impossibilidade de viver a paisagem. De, na tridimensionalidade da paisagem, meu corpo se prolongar nela. Não há a brechas para se criar uma tessitura com o que já foi cifrado em mim para que eu fizesse meu próprio recorte. O corpo não pertence ao mundo, não fica numa condição vidente-visível, não se vendo nele, não participa do mundo. Falta a tal ‘humanidade’ já que há o distanciamento do mundo e, junto com ele, o do ‘si’. É o paradoxo, o enigma da visão que Merleau-Ponty tão bem descreve em O Olho e o Espírito “Um corpo humano está aí quando entre vidente e visível, entre tocante e tocado, entre um olho e outro, entre a mão e a mão se produz uma espécie de recruzamento, quando se acende a faísca do sencientesensível, quando se inflama o que não cessará de queimar, até que um acidente do corpo desfaça o que nenhum acidente teria bastado para fazer...” (MERLEAU-PONTY, 2004, p.18) Após desenhos feitos, lembrava de Wim Wenders, sobre se usar óculos, “(...) acho que você fica mais consciente do enquadramento. Quando tinha trinta anos tentei usar lentes de contato. Mas mesmo quando usava, procurava meus óculos, porque, apesar de enxergar bem sem os óculos, sentia falta do enquadramento... E acho que a visão é mais seletiva. Temos mais consciência do que vemos de fato. Sem os óculos tenho a impressão de ver demais. E não quero ver tanto, quero ver de forma mais contida.” (JANELA DA ALMA, 2001, documentário) Entretanto é o corpo dele que está emaranhado ao mundo, portanto e obviamente, a seleção, o recorte do mundo, é feito por ele próprio. Para a alma, o corpo é o “espaço natal e a

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matriz” de todo e qualquer espaço. Só se vê, vendo “(...) e que introduz, entre o espaço e o pensamento, a ordem autônoma do composto de alma e de corpo” (MERLEAUPONTY, 2004, p.31) O ato de ver. Faltava-me este ‘ver demais’. Para, assim, descobrir o que inflamaria a faísca. A faísca pode não ter sido incendiada, mas um lampejo foi desencadeado. O passeio causou-me sintomas, não posso negar. Uma certa euforia ao conseguir, ainda que pelo computador, a perspectiva certa, ou a sensação parecida de, ao “me” aproximar da terra firme em Istambul me lembrar de como é chegar pelo mar em Salvador e ver a Cidade Baixa com a Cidade Alta por cima.

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Paralelamente a essas questões colocadas, há o lugar da memória e o que foi tecido agora, a contaminação em mim. O percurso foi valioso, pois emergiram imagens que nunca esqueci – me lembro do instante em que desenhava as bolinhas do encosto da cadeira do ‘Imperador Persa’ tentando copiar do livro. O quanto o que apreendi desse mundo antigo ficou cifrado em mim. Bem como filme Morte no Nilo, na mesma época; era o meu preferido das madrugadas fugidias dos olhos dos pais, não cansava de ver aquele barco – lembro de que achava muito esquisito um barco daquele porte navegar num rio (ainda não tinha a noção do tamanho que pode ter um rio), as cores da paisagem, a proporção daqueles monumentos em relação às personagens, os cantos misteriosos. Quando o filme - novamente um barco me veio à cabeça, durante a ‘minha’ visita ao Egito, tive certeza de que não poderia deixar de inseri-lo naquele caderno. Assim como mapas, cuja completude sempre se dá com a imaginação das referências que temos (ou que inventamos), suas outras dimensões são sempre construídas em nossa mente. Os mapas celestes, desenhados à mão, a olho, e por mais fidedignos que

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fossem pertencem também ao lugar do sonho, do símbolo, do mito, do além de nossa existência. Novas tramas foram artesanalmente construídas. O quebra-cabeças do imaginário ficou mais rico, com mais peças. E os mapas atuais, virtuais, o Google Maps, o quanto ele me dá de real, de hiper-real, seu conteúdo é tão saturado que mal sobram espaços para que o imaginário os complete. Mas sempre há alguma lacuna, sempre há alguma brecha para a subversão. Talvez o que nos falte é tempo, ou atenção. Para que possamos devolver ao olhar a capacidade de ver. E imaginar.

AS CIDADES E OS SÍMBOLOS 35 Quem viaja sem saber o que encontrará ao final do caminho, pergunta-se como será o palácio real, a caserna, o moinho, o teatro, o bazar. Em cada cidade do império, os edifícios são diferentes e dispostos de maneiras diversas: mas, assim que o estrangeiro chega à cidade desconhecida e lança olhar em meio às cúpulas de pagode e claraboias e celeiros, seguindo o traçado de canais hortos depósitos de lixo, logo distingue quais são os palácios dos príncipes, quais são os templos dos grandes sacerdotes, a taberna, a prisão, a zona. Assim – dizem alguns – confirma-se a hipótese de que cada pessoa tem em mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma cidade sem figuras e sem forma, preenchida pelas cidades particulares. Não é o que acontece em Zoé. Em todos os pontos da cidade, alternadamente pode-se dormir, fabricar ferramentas, cozinhar, acumular moedas de ouro, despir-se, reinar, vender, consultar oráculos. Qualquer teto em forma de pirâmide pode abrigar tanto o lazareto dos leprosos quanto as termas das odaliscas. O viajante anda de um lado para o outro e enche-se de dúvidas: incapaz de distinguir os pontos da cidade, os pontos que ele conserva distintos na mente se confundem. Chega-se à seguinte conclusão: se a

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existência em todos os momentos é uma única, a cidade de Zoé é o lugar de existência indivisível. Mas então qual é o motivo da cidade? Qual é a linha que separa a parte de dentro da de fora, o estampido das rodas do uivo dos lobos? NOTAS 1. CASTRO, Maurício Paroni de, Aqui ninguém é inocente: Voltaire de Souza, o intelectual periférico / Maurício Paroni de Castro e Ziza Brisola – São Paulo, Alameda, 2007. p.25 2. Fonte: http://focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-falado. htm 3. Idem. 4. Janela da alma (2001), João Oliveira e Walter Carvalho, documentário 5. CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. 1ªed. São Paulo, Companhia das Letras, 1990. p.34

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REFERÊNCIAS Bibliográficas BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação, trad. Maria João da costa Pereira. Lisboa: Ed.Relógio D’Água, 1991 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1986 BORGES, Jorge. Sobre o Rigor na Ciência, in História Universal da Infâmia, trad. de José Bento, Assírio e Alvim,1982, 117 CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. 1ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CASTRO, Maurício Paroni de. Aqui ninguém é inocente: Voltaire de Souza, o intelectual periférico / Maurício Paroni de Castro e Ziza Brisola – São Paulo, Alameda, 2007. FOUCAULT, Michel. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema – Col. Ditos e Escritos III – 2ªed. Rio de Janeiro: Forense

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Universitária, 2009. MERLEAU-PONTY, M. O Olho e o espírito. São Paulo: Cosac&Naif. 2004. Filmográficas Janela da alma (2001), João Oliveira e Walter Carvalho, documentário Morte sobre o Nilo (1978), John Guillermin Um filme falado (2003), Manoel de Oliveira Web http://focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-falado.htm https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81den

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para ler e assistir le tout nouveau testament, jaco van dormael, 2015

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GABRIEL VILLAS BOAS estudante do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo pela UFSC, simultaneamente à graduação a fotografia o desenho e a dança. Em algum momento ele começou a confundir estas coisas. revista rasante nº 02 . 2018 . corpos diversos lugares

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Esta reflexão surge em dezembro de 2017, momento em que eu cursava a disciplina de TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) e de Urbanismo V. No TCC trabalhava na escala 1:1, caminhava pela cidade e me seduzia pelas micropolíticas e relações do cotidiano, pelo urbanismo enquanto dispositivo tático. Já em Urbanismo V, na escala 1:50000, me encontrava no desafio de realizar um projeto urbano regional (Florianópolis, Biguaçu, São José e Palhoça), de planejar e traçar estratégias. Embora o planejamento regional seja importante para a compreensão das estruturas macro da cidade, tenho que admitir que o meu corpo não se sentia confortável na posição de planejador regional. Enquanto desenhava os mapas, me questionava sobre o poder que uma caneta tinha em minhas mãos. O simples movimento de ligar um ponto ao outro, onde 1cm era 50000 cm, deveria determinar a vida dos outros. A realidade se suspende.

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Eu fingia saber por onde as pessoas gostariam de passar e o que elas gostariam de ver, determinava quantas famílias precisariam ser desabrigadas e quantos metros elas caminhariam até a rua seguinte, desenhava escolas. Talvez as escolas que eu desenhei estivessem sem professores. Vai que eu tenha desenhado um posto de saúde longe da casa da Lourdes. Vai que ela não possa buscar o remédio para hipertensão sozinha. Naquela escala que eu estava trabalhando, precisava abstrair as coisas que não sabia... e fingir. Eu precisava abstrair a Lourdes, precisava fingir a Lourdes.

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Também precisava abstrair que estava olhando três municípios de um ângulo pouco usual, que só é possível, por exemplo, de um helicóptero. Eu imaginava que professorxs e alunxs eram os pilotos desse helicóptero, por consequência só veríamos o que estivéssemos dispostos a ver. Entre arquitetas e arquitetos, olhávamos para a cidade, e concordávamos uns com os outros. Era bastante tranquilo, só se perguntava coisas das quais já sabíamos as respostas. Nossos valores e circunstâncias eram bastante parecidos.

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Lá em baixo, na cidade real, talvez os valores e as circunstâncias fossem outros, talvez a vida concordasse de outra maneira, não tínhamos como saber. Talvez eu não tivesse visto a Lourdes daquela distância e por mais que a ciência dissesse que tínhamos total controle técnico daquele meio, por mais que colocássemos legendas, escalas e norte, alguma coisa ainda incomodava. Naturalmente, que da nossa realidade abstrata nasceu um resultado abstrato. Um mapa. 41 oeste


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Eu olhava para o mapa, e ele olhava pra mim. Até que tinha ficado bonitinho. Não vou dizer que eu não gostava dele, são vários anos fazendo esses mapas, chega uma hora que você aprende. Tava bem correto, não é que ele estivesse errado, a questão é que ele não me convencia completamente, dava desconforto. Perseguindo este desconforto, cheguei num lugar (a gente sempre tá num lugar, não?). No TCC apreendia a cidade estando em contato com ela, experienciando-a. O meu corpo em contato com o corpo da cidade me transformava em um corpo sensível que se permitia contaminar pelo urbano, um corpo disponível a acontecimentos e a incertezas.

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Nessa experiência, ambos os corpos (cidade e eu) se confundiam, não era apenas arquiteto, também era cidadão, caminhante, freguês, Lourdes… Se ali por um lado me encontrava confortável, por outro, no exercício de Urbanismo V, não. A manifestação do método do planejamento regional no meu corpo incomodava.

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Sentia-me arrancado para fora do espaço, não me ofereciam mais uma experiência de cidade, mas sim uma síntese de cidade, tudo o que ela poderia ser - ou não- havia sido planificado num conjunto de linhas. Diante das circunstâncias, meu corpo perde a sensibilidade; não consigo me inserir nesta cidade, não me contamino e não a experiencio. Frente a este cenário, me resta entrar no personagem... visto meu jaleco de urbanista e com ele, minhas -fingidas- certezas. Seguramente, agora as Lourdes já são números, taxas e porcentagens… Não demorou muito e, por um deslize em minha atuação, a parte mais desconfiada do meu corpo duvida do que estou fazendo e entra em desconforto. A verdade é que existia uma cidade fora daquele mapa, e parte de mim queria muito saber onde as Lourdes estavam.

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para ler e assistir era o hotel cambridge, eliane caffé, 2016

ELEFANTE BRANCO DISCUTINDO A INSOLUBILIDADE DA PRECARIEDADE URBANA ATRAVÉS DO CINEMA

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RAFAEL BALDAM Formado em Arquitetura e Urbanismo pela UNICAMP, mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo IAU USP, possui trabalhos em música, cinema, ilustração e poesia


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INTRODUÇÃO: CINEMA PARA DISCUTIR PRECARIEDADE URBANA Este texto é um trabalho resultante das discussões abordadas na disciplina Urbanização na América Latina: questões teóricas e metodológicas1, e se valerá da seguinte estratégia para explorar a temática proposta. O primeiro movimento desse trabalho apresentará uma análise crítica do filme de ficção argentino Elefante Blanco2, sem ater-se demasiadamente em uma análise cinematográfica, contudo sem negligenciar os aspectos dessa linguagem que possam contribuir para a crítica social e urbana que o filme constrói. Dessa análise serão levantadas as questões urbanas que ele suscita, entendendo que aqui elas se comportarão como chamarizes para aprofundamentos, que se darão nos próximos tópicos. Uma vez que o filme retrata um bairro em Buenos Aires, e sua produção se deu nesse mesmo local, o segundo movimento desse trabalho explorará os processos de urbanização que tomaram forma nas grandes cidades argentinas, com foco na cidade de Buenos Aires. Dessa forma, pretende-se compreender que forças se mobilizam no território para que esta cidade assuma as formas representadas em Elefante Blanco. Interessa aqui investigar as frestas da urbanização, principalmente a informalidade e a precariedade urbanas como efeitos colaterais de uma produção desigual de cidade. O terceiro movimento desse texto buscará uma perspectiva latino-americana para a informalidade e precariedade urbanas. A realidade que o filme apresenta, apesar das particularidades locais, pode ser encontrada de maneiras análogas em diversos países da Latino-américa. Há margem então, para uma discussão ampliada sobre uma realidade urbana compartilhada por esses países, que será observada aqui, sob uma lente de estrutura comum dos processos de

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produção e reprodução da precariedade e informalidade nas cidades da América Latina. Narrativa Cinematográfica Como Metodo

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O cinema possui artifícios capazes de articular uma linguagem que confere verossimilhança ao universo representado na tela, seja ele real ou não. Portanto, para o espectador, cria-se objetivamente uma possibilidade de futuro, um sonho, ou um “espelho”. Assumindo um movimento em duas direções, um filme é produto cultural do presente ao mesmo tempo em que lança perspectivas de futuro; ou ainda, ele é produto do presente, mas pode se colocar à parte desse momento para criticá-lo, analisá-lo. A partir do vislumbre, são permitidas as transformações. Ainda que a cidade do cinema não seja a cidade real, mas sim uma representação dela, uma escolha-deobservação sobre ela, esta influencia e é influenciada pela cidade real. Em um movimento quase tautológico, filmar a cidade alimenta aquilo que a constrói, até que sua materialidade se pareça com sua versão filmada: cinegenia. (COMOLLI, 2008) Uma vez estabelecida a reciprocidade entre cidade e cinema, interessa aqui aquilo que une estes dois objetos num sistema de representação e representado. O cinema, ao lançar mão de seus artifícios narrativos, possibilita uma leitura de cidade, que é devolvida ao espectador num conjunto de imagem, som e movimento, que por sua vez, opera transformações de significado na relação espacial subjetiva. Desse modo, o aspecto caótico do cotidiano urbano assume graus de legibilidade e compreensão pelo indivíduo, ainda que o faça através das lentes dos diretores, roteiristas, atores, etc (AITKEN e ZONN, 2009). Além do sonho, o cinema age como leitura do presente, possibilitando interpretações sobre o agora. Quando filmada, a cidade também coleta vestígios: os corpos, palavras, gestos, movimentos fugidios do cotidiano. A câmera

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transforma a cidade em texto, e ao mesmo tempo em coletânea de todas as práticas sobrepostas e justapostas que tomam corpo no espaço urbano. Esse processo acontece, mas não sem atravessar uma escolha, pois sendo uma representação, o cinema direciona um olhar: ao mesmo tempo em que mostra algo, deixa de mostrar o que está fora do quadro (COMOLLI, 2008). A cidade filmada não é a cidade real e tampouco um espelho dela (mesmo nos filmes de caráter documental). É uma lente através da qual o espectador adquire uma possibilidade de visão fora de si, direcionada ao próprio indivíduo e ao seu ambiente. Além do cinema como alimento do imaginário de produção de espaços, está o cinema como instrumento de análise de uma realidade. A formatação de uma série de dinâmicas sociais e espaciais em um filme, entrelaçadas por uma questão estrutural, permite que os temas abordados na tela sejam questionados cada vez em que o filme é exibido. Como um ponto de referência, o filme posiciona o espectador frente ao tempo-espaço retratado na tela e, ao mesmo tempo, frente a seu próprio tempo-espaço, em graus de contraste ou confirmação àquilo que o filme apresenta. Nesse sentido, a dinâmica estabelecida pelo cinema é dialética além de estética. O filme argentino Elefante Blanco escolhe como objeto de foco da narrativa a villa3 Ciudad Oculta, em Buenos Aires, onde o crime, a violência e a precariedade são constantes. A villa cresceu em torno de um grande edifício abandonado

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ainda na sua construção, um marco arquitetônico-urbanístico no território. O tratamento dado às dinâmicas sociais que preenchem este espaço, a possibilidade de encontrar paralelos desse modo de ocupação em praticamente toda a América Latina e sua relevância enquanto catalisador de discussões pautadas na urbanização de cidades latino-americanas, são alguns dos motivos que fazem deste filme uma peça potente para discussões sobre cidade.

ELEFANTE BLANCO: A PRECARIEDADE PERSISTENTE

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O filme Elefante Blanco, dirigido pelo argentino Pablo Trapero, lançado no Brasil em 2012 e catalogado como um longametragem de ficção, pode ser considerado uma espécie de intermediário entre um filme ficcional e documental. Tal distinção se faz difícil pois o roteiro baseia-se em um universo real, posiciona uma personagem real tangente à narrativa4, as dinâmicas representadas têm recorrência em espaços reais dessa natureza, contudo o núcleo da história contada é composto por personagens e fatos fictícios, apesar de ser possível identificar correspondências em casos reais. O objeto que dá nome ao filme, e que conduz as discussões, se localiza na Villa 15, ou Ciudad Oculta, no bairro Villa Lugano em Buenos Aires, é um edifício estatal concebido para ser o maior hospital da América Latina5. Com projeto datado da década de 1920, teve suas obras iniciadas na década de 1930, mas sofreu interrupções até serem abandonadas por completo na década de 1950. Ao redor do edifício (e dentro dele) se instalaram famílias de baixa renda, construindo precariamente suas próprias casas, até constituírem a villa. Em 2012, ano de lançamento do filme, estimava-se que sua população estaria entre 15 000 e 20 000 pessoas. Uma parte dessa população, após a interrupção das obras do edifício, passou a ocupá-lo.

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Esta é a primeira função do edifício que o filme apresenta: uma estrutura sólida, dentro da qual foram instaladas moradias precárias em meio aos escombros e ao lixo. O diretor mostra que este edifício, de escala assustadora, se localiza em contraste ao seu entorno, uma área de casebres pobres e amontoados. A partir desse objeto arquitetônico o filme estabelece uma “presença” naquele território, que será problematizada ao longo da narrativa, e desse texto. O edifício também é colocado como um dos locus do crime, mais especificamente do tráfico e do uso de drogas. É interessante notar que esse mesmo objeto possui diversas conotações, dependendo da perspectiva de observação. No contexto fílmico ele é sinônimo de moradia para uma parcela da população, é também associado ao crime, e ainda é símbolo de uma instituição governamental falida, que através de décadas não foi capaz de finalizar a obra ou sanar as precariedades daquele bairro. 31 oeste

Edifício “Elefante Blanco” e villa Ciudad Oculta. Fonte: Google Maps, 2017

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A villa Ciudad Oculta, como apresentada pelo filme, é caracterizada por uma ocupação de casebres, feitos de madeira, chapas metálicas e outros materiais recicláveis, além de possuir casas feitas de alvenaria. Se colocam lado a lado, com pouco ou nenhum espaço para ventilação e luz dentro das moradias. As ruas são de terra, com desenho incerto e variável, não há sinal de coleta de esgoto e lixo, ou de acesso à água limpa. Apesar das diferenças históricas, a villa Ciudad Oculta pode ser comparada às favelas da grande São Paulo por suas semelhantes condições precárias de vida. O crime e o perigo são constantes naquele ambiente. Situações corriqueiras e aparentemente inofensivas, rapidamente se transformam em momentos decisivos onde a violência invade e toma o espaço para si.

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Nesse contexto, as relações sociais ganham grande importância. Como redes de cooperação, o contato com os vizinhos e o estabelecimento de conexões ajudam a mitigar as mazelas da villa. Os personagens Julián (Ricardo Darín) e Nicolás (Jérémie Renier) representam um nó dessa rede de relações através da presença da igreja católica nesse território. O Padre Julián, que trabalha e mora há 10 anos no bairro, chama o Padre Nicolás, estrangeiro, para fortalecer as lutas que ele promove, no entanto, uma vez externo às dinâmicas de poder já estabelecidas ali, Nicolás acaba promovendo instabilidades nas relações com os moradores e com a igreja por agir “fora do protocolo”. Entre as atribuições do grupo religioso na villa estão a manutenção de uma capela, um espaço para a fé em meio ao caos; orientação aos jovens; mas principalmente, a construção de um novo espaço, contendo uma área de moradias e equipamentos comunitários como refeitório e creche, financiados pelo bispado de Buenos Aires. Junto aos esforços da igreja, está a personagem Luciana (Martina Gusman), assistente social que soma forças aos dois padres e que, numa narrativa paralela à grande temática do filme, se envolve com um dos

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padres, fazendo-o questionar sua vocação religiosa. O filme omite um posicionamento estatal forte sobre a situação da villa, apenas recorrendo a comentários rápidos, uma vez que seu foco está sobre a atuação da igreja católica naquela área. Uma colocação mais enfática sobre a posição estatal é feita ao fim do filme, sob a forma de uma reintegração de posse executada pela polícia. Esta retirada da perspectiva estatal corrobora com uma realidade de não atuação do poder público no sentido de atender às demandas de populações em situação ilegal; porém, enfraquece o entendimento de como o poder público age frente às questões levantadas.

Cena do filme Elefante Blanco, 2012.

Elefante Blanco se sustenta fortemente na espacialidade corroída pela pobreza para posicionar suas personagens e as dinâmicas estabelecidas entre elas. Assim, aquele ambiente cumpre um papel de personagem onipresente na trama, uma espécie de corrente que amarra todos àquela realidade e os obriga a conviver com suas perversidades. A partir da retirada do poder público daquela área (não há infraestrutura,

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legalização, controle, etc) é possível localizar 4 forças que disputam o vácuo de poder deixado: a igreja católica, que age como benfeitora da população; as organizações criminosas, que tentacularizam o crime nos corpos e espaços; a população, que se apresenta como demandante de melhorias nas condições de vida; e a força policial que, como um braço do poder público, se coloca como força bruta de contenção de conflitos. Frente ao histórico de urbanização desigual e ocupação ilegal deste território, a sobreposição de forças que se colocam ali, localizadas num espaço de precariedade e conflito, resulta numa dinâmica de impasse em relação às problemáticas representadas. Os fantasmas da insolubilidade

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Após uma primeira aproximação ao filme Elefante Blanco, é notável a forma com que o edifício é mostrado: pouco tempo do filme se dedica a mostrá-lo ou a explicá-lo; apesar dele emprestar seu nome para o título da trama, esta não é sobre ele; ele está presente nas trajetórias, sem dúvida, mas é apresentado mais como uma força adormecida do que como um espaço. Frente a essa ambiguidade, o que representa então o edifício Elefante Blanco? Ou ainda, a que o diretor se refere ao nomear o filme Elefante Blanco? Elefante Blanco assume uma conotação simbólica. É, sim, o edifício inacabado ocupado pelas famílias e pelo tráfico. Ele é um objeto tectônico que se destaca naquele território, e acumula uma série de representações simbólicas como a ineficácia governamental e uma possibilidade de moradia improvisada. Nesse sentido, este objeto arquitetônico tem seu papel confirmado pelo final do filme, quando um conflito maior se desenvolve ao redor do edifício. Aqui ele é uma materialização da expressão popular “elefante branco”, como um objeto irresoluto e persistente, colocando-o em uma posição de incômodo permanente. Se lembrarmos ainda que

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a villa Ciudad Oculta se construiu ao redor do edifício, este objeto ganha mais importância, já que está presente desde as origens daquele bairro pobre e, portanto, faz parte daquela trajetória de precariedade, acumulando memórias, identidades e possibilidades frustradas. Portanto, ele pode ser encarado como um dos espaços da pobreza e como um espaço simbólico que confirma a pobreza.

Cena do filme Elefante Blanco, 2012.

Em outro entendimento do termo “elefante branco”, é possível colocá-lo em um contexto mais amplo no filme, o que dá margem para uma gama maior de questões levantadas. Consideremos o filme a partir da seguinte perspectiva. O edifício inacabado e tomado pela villa é uma presença que não tem resolução: apesar da promessa positiva que ele trouxe, há décadas que ele foi convertido em um fantasma de edifício. A partir das ideias de “objeto sem resolução” e “fantasma”, Elefante Blanco transita por vários que temas que compartilham essas duas características. A violência e o crime são dois desses temas. Rondam as ruas, os becos (e

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o próprio edifício) a ameaça de tiroteios, os corpos armados, o tráfico de drogas, a morte. Ambos não se resolvem pois são fruto de conflitos maiores e da sobreposição de forças em disputa. Na tentativa da igreja católica em oferecer alguma dignidade àquelas famílias, através da construção de moradias e um centro comunitário, apresenta-se outra insolubilidade: as instituições falhas. Com o poder público ausente (outra instituição falha) e com os conflitos se agravando, a institucionalidade da igreja católica, aqui colocada como financiadora das obras, atinge seu limite e retira-se, agravando ainda mais as tensões. Antes apresentada como uma entidade presente e portadora de artifícios que contornam os danos da pobreza (os batismos, as festas, grupos de apoio aos jovens, a capela, eram todos trabalho da igreja que ofereciam alguma dignidade à população), se transforma em algo quebrado e insuficiente.

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Na escala subjetiva, interna aos personagens Julián e Nicolás, há fantasmas que os rondam e não se resolvem. No caso de Julián, demonstra fraquezas em continuar a luta dentro da villa. Ele não suporta mais, apesar das suas motivações como sacerdote. No caso de Nicolás, sua vocação enquanto sacerdote não se resolve por ter sempre por perto a presença do envolvimento romântico com a assistente social Luciana. Neste aspecto do filme (que tem menor peso na narrativa, mas que merece ser contabilizada), percebe-se que a subjetividade sofre o peso das lutas, e por vezes, cede. Apesar dos esforços da igreja e da comunidade em conferir melhorias para os moradores da Ciudad Oculta, a precariedade persiste. A presença fantasmagórica da pobreza instala-se nas moradias autoconstruídas, na falta de infraestrutura, na falta de lazer, na erosão de perspectivas, ou seja, não se resolve. Assim, como extensão dessa questão, a situação da favela na cidade também não se resolve: sua gênese reside em questões estruturais da urbanização desigual das cidades. Aos olhos da cidade formal, a favela se tornou um fantasma, que carrega os

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estigmas da violência e da criminalidade, que é evitada e demonizada; um elefante branco no meio da cidade. A partir da leitura feita do filme Elefante Blanco, este trabalho então irá explorar a urbanização desigual na cidade de Buenos Aires, atentando para seus efeitos colaterais e para o grau de insolubilidade que a precariedade urbana apresenta.

URBANIZAÇÃO ARGENTINA: ACELERAÇÃO E SEGREGAÇÃO Dinâmicas Urbanas Em Transição

Para compreender como se dão os processos de reprodução da precariedade urbana em Buenos Aires, é preciso contextualizar a urbanização argentina em termos gerais, de modo a delimitar o universo em que ela ocorre naquele país e na América Latina. Durante os séculos XVI e XVII, a urbanização argentina se caracterizou por sua predominância na região noroeste, que agrupava mais da metade da população e possuía forte relação econômica com Potosí. Nesse período, a urbanização cumpria um papel de dominação territorial, implicando em severos conflitos com a população indígena, que teve suas relações de trabalho, familiares e espaciais desfeitas. Gradualmente, a economia potosina perde vitalidade, enquanto o porto de Buenos Aires ganha força. Esta transformação impacta nas cidades, que têm suas atividades focadas no comércio, transporte e serviços, em detrimento de atividades produtivas. A partir desse momento, Buenos Aires começa a ganhar o porte de cidade, chegando a mais de 180 000 habitantes em 1869. A partir da segunda metade do século XIX, os investimentos estrangeiros em países latino americanos ganham força, mobilizando um mercado agroexportador e estimulando a implantação de estradas de ferro como

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parte do sistema de produção. Assim, as relações produtivas estabelecidas caracterizavam-se por sua bilateralidade, já que Buenos Aires era a única porta de entrada e saída do país. Neste cenário, a imigração ganha um importante papel. Tendo se dirigido principalmente para áreas urbanas, a taxa de imigrantes estrangeiros em Buenos Aires, em 1895 era de 50%. Ganham força também os fluxos migratórios vindos do nordeste e noroeste em direção à região dos pampas e de Buenos Aires.

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Já a partir de 1950, processos econômicos como a abertura para o capital estadunidense, a assimilação de empresas transnacionais, o ingresso da Argentina no FMI e no Banco Mundial, entre outros, promove um descompasso na distribuição de renda e descompensamentos em economias regionais, como a produção de açúcar de Tucumán. Este desmonte do aparato produtivo culmina num processo de fortalecimento da terceirização. Buenos Aires, Córdoba e Rosário, por possuírem um campo produtivo industrial maior, sentem com maior peso estas alterações. Com a política implantada a partir de 1989, com Carlos Menem, vieram um crescente déficit da balança comercial e o crescimento do desemprego (VELÁZQUEZ, 2000).

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Seguindo este percurso, o território argentino acompanhou as transformações político-econômicas que se deram. Os processos de mudança da distribuição populacional, que se deslocam do eixo noroeste em direção ao sudeste; o incremento populacional motivado pelo modelo agroexportador somado às substituições de importação, aplicados na região dos pampas; e o protagonismo de Buenos Aires, que desponta no início do século XX, mas que é esmaecido devido o desmonte do aparato produtivo e ao crescimento das cidades médias. Nos últimos decênios, o crescente número de cidades ingressando nas categorias de cidades médias (até 100 000, 400 000 e 1 milhão de habitantes), indica uma transformação da dinâmica de forças em curso. Ainda que Buenos Aires não perca seu protagonismo, emergem aglomerados urbanos como Grande Córdoba, Grande Rosario, Grande Mendoza, Grande São Miguel de Tucumán, entre outros, e cidades intermediárias maiores como Grande Santa Fe, Grande San Juan, entre outras, que compõem um quadro de relações mais complexo ao lado da antes macrocefálica Buenos Aires. A urbanização da Argentina se coloca num contexto de rápida urbanização da América Latina, que apesar de ter sido iniciada tardiamente, foi acelerada até que ao fim do século XX já possuía um grau de urbanização comparável aos países centrais. A Argentina, sendo um dos primeiros países latino americanos a ingressar no mercado internacional e a ter sua industrialização e urbanização intensificadas, sofreu uma espécie de desenvolvimento prematuro, de modo que não houve tempo suficiente para a indústria se diversificar e se solidificar, assim minando as possibilidades de construção de um cenário produtivo sólido (ALMANDOZ, 2008). A urbanização sem industrialização carregaria então uma crescente demanda por espaço urbano somada à também

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crescente inflação do setor terciário. As estratégias que se seguiram, como o neoliberalismo ao fim do século XX e a governança corporativa no início do XXI, se aplicam em um contexto territorial remanescente dos períodos anteriores e, portanto, buscando novas respostas para perguntas que têm seu cerne em práticas político-econômicas-espaciais em períodos passados. As contradições que este cenário implica se materializam como a incapacidade de prover moradia segundo a demanda; o descompasso entre trabalho, renda e vida digna; e a impossibilidade de apropriação da força política direcionada aos interesses públicos. Buenos Aires: Urbanização E Precariedade

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Como apresentado, o processo de formação das cidades argentinas passou de um foco no noroeste do país, para o desenvolvimento do conjunto de cidades da região dos pampas, acompanhando uma primazia da cidade de Buenos Aires, e por fim, uma ênfase no crescimento de cidades médias e outras grandes aglomerações urbanas. Este percurso não pode ser descrito sem seus impactos na reprodução da pobreza, da precariedade e da exclusão de uma parcela da população que não possuía (e não possui) força para conduzir ou influenciar as disputas político-econômicas. Há então, um rebatimento dessa dinâmica de exclusão no território. Sem conseguir acessar os recursos que a cidade oferece, a parcela excluída constrói seu próprio espaço urbano, à medida das suas necessidades e das escassas alternativas que lhes restam. O cenário resultante é marcado pela precariedade urbana. Para Pírez (2016), a formulação do território argentino segundo o mercado agroexportador, permitiu a compra e venda de lotes periféricos, normalmente sem regulação ou infraestrutura, onde os proprietários construíram suas casas por conta própria. Em resposta, o poder público delimitou orientações de controle

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populacional, condições de salubridade, facilitações de crédito e produção de moradias para baixa renda. No entanto, não só a produção dessas moradias foi insuficiente, como as facilidades de crédito não alcançaram a população mais pobre. A expansão metropolitana até meados do século XX, ainda com uma produção de moradias sociais aquém da demanda, baseou-se principalmente na oferta de créditos para compra e venda de lotes formais, mas sem infraestrutura ou equipamentos, onde a autoconstrução foi o modo principal de produção de moradia. A partir da década de 1930, a população impedida de acessar o mercado formal de terras e os benefícios fiscais, começou a ocupar terrenos ilegalmente e construir suas próprias casas, configurando as villas de emergencia ou villas miseria. “El resultado fue una ciudad que integraba en forma regular, aunque desigual y segregada, a una parte importante de los sectores populares y que, en el caso de quienes no lograban la solvencia necesaria para los procesos regulares, se les permitían usos clandestinos de los bienes urbanos para producir no mercantilmente sus asentamientos6.” 7 (PÍREZ, 2016, pg. 99) As políticas aplicadas a partir de 1976 objetivando a reestruturação da economia argentina, debilitaram a alocação de recursos para políticas direcionadas aos mais pobres. A cidade de Buenos Aires chega ao fim do século XXI com seu aparato industrial deteriorado, desemprego crescente e aumento da desigualdade de renda. González (2010) identifica esse processo político-econômico na cidade como uma territorialização excludente dos setores populares. Para o autor, a trajetória dos pobres urbanos, a política urbana neoliberal, o aspecto paliativo das políticas públicas de assistência e a disputa pela gestão do território pobre por instituições, organizações sociais e outros atores, são os

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pontos fundamentais que permitem a reprodução dos territórios excludentes. Para ter uma noção de escala dessa ocupação, Cravino (2008) coloca que a população residente em villas na cidade de Buenos Aires passou de 42 462 (1,4% da população total) em 1962, para 107 805 (3,9% da população total) em 2001, ocupando 1,46% em área do território da cidade. Para Suárez e Lépore (2014), se considerada a taxa de crescimento anual de 2001 a 2010 como constante, teremos na atualidade cerca de 200000 pessoas vivendo em villas na cidade de Buenos Aires.

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Villas e asentamientos na cidade de Buenos Aires, 2011. Fonte: Dirección General de Estadística y Censos.

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O mapa acima relaciona 15 villas, 2 núcleos habitacionais transitórios e 24 asentamientos na cidade de Buenos Aires. Contudo, estas estatísticas (divulgadas por órgão estatal) podem facilmente estar subestimadas, já que outros estudos apontam um número maior de villas e asentamientos, podendo chegar ao dobro do registrado. Pelo quadro de urbanização da cidade de Buenos Aires e a posição que as villas ocupam nesse território, é possível fazer algumas observações. A primeira diz respeito à crescente população de villas e asentamientos, impulsionada fortemente pela migração interna e externa, e pelas taxas de natalidade elevadas. Contrariando a lógica predominante na cidade de Buenos Aires, que teve um estancamento do crescimento populacional, o crescimento demográfico nas áreas de precariedade urbana manteve suas taxas de crescimento, chegando a representar 5,7% da população total da cidade, em 2010. O segundo ponto se refere à localização da maioria das villas e asentamientos no sul da cidade de Buenos Aires. Como resultado dos processos históricos de ocupações periféricas (apontadas no item anterior), os bairros Villa Soldati, Villa Riachuelo e Villa Lugano8 concentram as ocupações precárias no sul. O terceiro ponto se refere à consolidação das villas e asentamientos como espaços de pobreza. Uma vez que a população que não possui renda suficiente não tem alternativas para moradia, esse modo de ocupação configura uma delimitação espacial para a pobreza e marginalização. Outro ponto é a posição sócio econômica que estes espaços de pobreza ocupam em relação à Buenos Aires. Uma vez que não são espaços fora da cidade, eles encontram-se integrados a ela de maneira peculiar, já que a segmentação social que acompanha essa espacialização, coloca as villas em uma posição hierarquicamente inferior, inclusive segmentando o norte do sul da cidade de Buenos Aires (LÉPORE e SUÁREZ, 2014).

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As villas no território argentino e na cidade de Buenos Aires, tendo sua intensificação a partir de meados do século XX e sua presença permanente desde então, aponta para um entendimento da precariedade urbana como parte constituinte da urbanização e do “desenvolvimento”, e não como um estágio intermediário o qual busca-se a superação. Villa 15: Ciudad Oculta

“Viva la Ciudad Oculta!” (ELEFANTE BLANCO, 2012) Apesar de compartilhar características estruturais de formação, as villas da cidade de Buenos Aires possuem particularidades no que diz respeito às suas localizações e acesso a serviços e infraestrutura. Tendo como foco a Villa 15, ou Ciudad Oculta, representada no filme Elefante Blanco, aqui pretende-se posicioná-la em relação ao universo da precariedade de Buenos Aires. 18 oeste

As primeiras ocupações, que mais tarde viriam a se tornar parte da Villa 15, se deram ao fim da década de 1940, na região da cidade de Buenos Aires, no bairro hoje chamado Villa Lugano. Nessa época, o edifício Elefante Blanco, propagandeado como o maior hospital da América Latina, estava em construção. As ocupações adjacentes eram compostas por grandes áreas agrícolas e industriais, sendo que seus trabalhadores foram os primeiros a se alojarem na futura Villa 15. Com as políticas de erradicação de villas iniciadas na década de 1950, e com as políticas de reestruturação urbanas do período ditatorial (1976-1983), as villas sofreram significativas perdas de seus direitos de reconhecimento e de possibilidade de melhoria de condições de vida. Ao mesmo tempo, a população villera não parava de crescer. Segundo o Instituto de Investigações Gino Germani (2011), a Villa 15 possui 2063 moradias, ocupando 36,5ha, colocando-a como a segunda maior ocupação (em

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espaço construído), da cidade de Buenos Aires. A partir da década de 1990, com uma política neoliberal de venda de terras desinteressantes ao Governo e promoção da urbanização desses bairros precários (que não foi concluída), os moradores da Ciudad Oculta, reunidos sob uma Associação de Bairro, compraram as terras que já ocupavam há meio século, conseguindo a propriedade. A partir de 1996, ocorrem iniciativas infrutíferas de alocação de infraestrutura, o que leva a uma formulação de uma lei em 19989, promovida pelos moradores, visando a urbanização, regularização e integração da Villa ao tecido urbano e cultural da cidade. A partir da crise dos anos 2000, do crescimento da população villera e da pressão que se instalara por melhorias nesses bairros, é criado o Plano Nacional de Abordagem Integral, que atuará nas 6 villas da cidade de Buenos Aires e outras mais da área metropolitana. Para a Villa 15, seu impacto se transformou em um projeto de lei de integração do traçado das ruas à cidade. O projeto foi aprovado em 2015 (FERNÁNDEZ, de SÁRRAGA, 2016). Para Alvarez, Maldonado e Russo (2011), a villa Ciudad Oculta caracteriza um gueto, por cristalizar noções de segregação física, econômica, social e cultural. Para os autores, esta cisão entre a cidade formal e a villa dá margem para cisões menores, internas às ocupações. Em contraste com uma hipotética homogeneidade retratada pela mídia, os autores afirmam que há nuances nas práticas e nas percepções entre os moradores. Dentro da villa, as separações de percepção são feitas de acordo com a territorialidade da morada. Diferenciam-se aqueles que moram em casas precárias, dos que moram em casas melhores, daqueles que moram no edifício Elefante Blanco, dos que moram no conjunto em frente à villa, dos que moram em contêiners. Além de diferenciarem-se de acordo com as nacionalidades presentes ali (já que a villa foi

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construída em grande parte em momentos de forte migração), crenças, famílias, entre outros critérios.

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A medida que percebe-se a complexidade dos territórios da precariedade, vê-se que ela deriva de sua trajetória histórica, presente nos processos de desenvolvimento urbano, denunciando a impossibilidade de uma larga parcela da população de participar do jogo capitalista da cidade. É evidente que apesar dos esforços promovidos no sentido de mitigar os danos às tais populações pobres, sua quantidade não diminui. É importante que estas ações existam, sem dúvida, pois podem conferir alguma qualidade de vida onde há pouca. Elas cuidam do agora. Mas e o depois? O ponto de gênese das villas, das favelas, dos assentamentos, dos bairros pobres, não é atacado, ou o faz com força insuficiente. Sem a pretensão de buscar uma solução única e simples para uma questão dessa proporção, é preciso compreender que em uma escala menor, há memórias, corpos, afetos e economias nos territórios da pobreza, que devem ser preservados. Contudo, ao ampliar a escala, e observar a “perseverança” da existência de tais territórios, seria possível dizer que seu conjunto equivale a um quadro sintomático? Estaria a “doença”, então nos modos de produção desses espaços?

INSOLUBILIDADE DA PRECARIEDADE URBANA A partir das breves colocações já feitas é possível traçar pelo menos três considerações. A primeira, de que os espaços de precariedade na cidade são resultantes de processos políticoeconômicos estruturais em contato com a urbanização desigual. A segunda, de que a persistência de tais espaços supera as iniciativas de mitigação ou contenção, que pretendem conferir qualidade de vida de maneira retroativa às populações precarizadas. A terceira, que resulta da soma das duas anteriores,

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trata da complexificação do quadro da precariedade urbana atual, que carrega uma trajetória histórica onde se atrelam a economia, política, tecnologia e até as noções de modernidade e desenvolvimento. O que vemos no filme Elefante Blanco é uma luta de mitigação dos danos que aquela população acumula. Não por acaso, esta luta é mostrada como insuficiente frente à escala aterradora do quadro da precariedade urbana e social. A produção das favelas, villas e bairros precários em geral não acontecem espontaneamente, ela antes deriva de um modo hegemônico de produção de cidade para depois se tornar um objeto com vida própria, que por sua vez irá relacionar-se com este modo hegemônico. Para Samuel Jaramillo (2008), compreender o mercado de terras e o mercado de habitação dos países não centrais é uma chave para iluminar o território dos assentamentos ilegais, ocupações, autoconstruções, bairros precários, etc. Para o autor, os regimes de baixos salários, somados a um crescimento demográfico e urbanização velozes, que são aspectos comuns nos países latino-americanos, colocaram estes países em uma situação peculiar no quadro global: no contexto do capitalismo planetário, estes países de industrialização tardia tiveram que manufaturar seus próprios artifícios para participar da competição; daí o oferecimento da mão de obra barata e da exploração de recursos naturais. Em um cenário de crescente urbanização e aumento da população, a parcela da população com baixos salários não consegue ingressar no circuito formal de circulação do capital, ao mesmo tempo em que as políticas públicas não conseguem subsidiá-la, levando-a para a autopromoção da sua força de trabalho e estendendo-se à autoprodução da sua morada. A impossibilidade de acesso ao mercado formal de terras e moradia urbanas pela população excluída, se dá pela

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própria complexidade do produto-moradia. Seu longo tempo de produção, entidades promotoras sob a pressão da maisvalia, o atraso tecnológico da indústria da construção, o terra urbana como custo agregado ao produto final, a ação ineficiente do Estado, são alguns dos motivos que contribuem para o encarecimento da moradia urbana. No entanto, este é um fator do bem estar que é imprescindível, e portanto, aqueles que não têm acesso garantido a esse bem, o farão por outros caminhos.

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Nesse sentido, a autoconstrução e a ocupação de terras ociosas surgem como duas ferramentas utilizadas pela população pobre, para contornar a impossibilidade de suas rendas conterem os gastos que uma moradia requisita. A autoconstrução, que minimiza os gastos com a própria ação da construção, já que o proprietário executa a obra por conta própria, é colocada em prática em loteamentos legais ou ilegais. No entanto, na busca pela minimização dos gastos com a moradia, a oferta de terras de loteamentos ilegais é constantemente mais barata, uma vez que ela é feita em áreas sem infraestrutura, áreas longe da

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concentração dos postos de trabalho, ou ainda áreas ilegais devido restrições técnicas ou ambientais que impedem que o mercado legal atue ali. Assim, a associação entre autoconstrução e loteamentos ilegais é constante. A ocupação ilegal de terras ociosas dá um passo adiante, pois está ligada a uma luta política de consumação dos espaços sociais através dos espaços urbanos, que tem seu impacto amplificado na mesma medida em que os riscos o são. Essas formas de produção do espaço estão localizadas numa espécie de sub circuito do capital urbano, que acontece na periferia do capitalismo. Este possui sua própria complexidade, além de manter relações com o mercado formal de terras e moradia. Internamente ao mercado informal (que ocupa espaços precários como favelas e villas) as relações de renda ganham novos contornos. Por exemplo, uma família pobre que construiu sua própria casa em uma área precária pode ter um cômodo sob locação, valorizando a moradia como capital, gerando uma renda, e invariavelmente provocando uma distinção de papéis: aquele que é “proprietário” da moradia e aquele que é locatário. O sub circuito também está atrelado ao mercado formal. O preço da moradia informal é atrativo até o ponto em que atinge o ponto mais baixo do preço da moradia formal. Assim, o teto para os preços das moradias informais oscila à medida que os preços mais baixos dos imóveis formais também oscilam, o que pode acarretar uma subida dos preços informais, já que os imóveis formais expostos às condições legais de produção imobiliária acabam por ter seus preços finais amplificados. Portanto, não só as áreas de urbanização precária se reproduzem devido a impossibilidade de uma parcela da população acessar o mercado formal, como elas também fazem parte do mercado formal de maneira indireta. O que é visto no cotidiano, os bairros auto-construídos, as

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ocupações de terras, a precariedade das favelas, comunidades sem infraestrutura mínima, entre outras manifestações da pobreza, podem ser encaradas como traduções sócio espaciais de um sistema político econômico em crise frequente. Como Pradilla (1988) coloca, as soluções que as populações pobres encontram para atravessar suas restrições não devem ser vistas como as causas do caos e da penúria urbana, e tampouco como alternativas reais para os problemas que tentam sanar. Estão mais próximas de um sintoma de um modo de produção de cidade. Para o autor, a reprodução da moradia precária, o transporte urbano caro e ineficiente, o trabalho informal nas ruas, são reverberações da impossibilidade de absorção dessas populações nos sistemas hegemônicos de reprodução do capital. Ainda assim, é possível colocar uma outra questão: é possível que o capitalismo tenha a precariedade como imprescindível para sua reprodução? Ao comentar sobre a autoconstrução, Chico de Oliveira (2003) coloca: 12 oeste

“Assim, uma operação que é, na aparência, uma sobrevivência de práticas de “economia natural” dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho.” (de OLIVEIRA, 2003, pg 59) Afastando-se de uma leitura binária, Chico de Oliveira coloca os entendimentos de “moderno” e “atrasado” ou “desenvolvido” e subdesenvolvido”, não como universos separados, tampouco como fases lineares de progressão. O autor aponta para o papel integrante que o subdesenvolvimento tem na produção da “modernidade”, de modo que aquela é capaz de produzir excedentes, que são em parte absorvidos pelo exterior, contudo é incapaz de absorver a outra parte dos excedentes por ela produzidos.

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Aqui, coloca-se que a precariedade urbana é uma das traduções sócio espaciais de tais excedentes não absorvidos e que, portanto, configura uma parte essencial para a reprodução do desenvolvimento, seja ela em outra parte da cidade ou em outro país. Dessa forma seria possível argumentar que as políticas públicas de assistência à população pobre, as iniciativas de ONGs e instituições, os esforços para mitigar os desfalques que a pobreza implica não seriam capazes de atingirem seus objetivos, mas estariam apenas gerindo a pobreza, redistribuindo-a, reformulando-a, relocalizando-a. Nesse sentido, a insolubilidade da precariedade urbana não advém da incapacidade do poder público ou das instituições afetadas por essa pauta, mas sim da necessidade de manutenção da pobreza que o capital deve empreender para a reprodução dos modos de produção hegemônicos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Sem pretensões de encerrar qualquer tópico, este trabalho partiu da análise do filme de ficção Elefante Blanco para apresentar discussões sobre a precariedade urbana em Buenos Aires, e as dificuldades em superá-la.

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A primeira consideração a ser feita trata da análise cinematográfica. Se encararmos o cinema não como mero acessório cultural, mas como uma linguagem de representação que influencia e é influenciada por um contexto sócio cultural, veremos que ele ganha profundidade suficiente para abrigar reflexões e críticas que além da cinematografia. A reflexão que o filme proporciona, além da caracterização do espaço de precariedade das villas e das dinâmicas sociais que se instalam ali, permite estender seu entendimento para a condição da pobreza na cidade. Utilizando o objeto arquitetônico de um hospital com as obras interrompidas como artifício narrativo, seu status de “elefante branco” em meio à pobreza se expande para os outros “elefantes brancos” da cidade: a violência, o bairro pobre, a ineficácia das instituições. Para obter este entendimento metafórico, há de ser feito um salto. Justamente, o cinema auxilia a construí-lo através de sua linguagem. Há ainda uma análise possível externa ao filme. O ato de se roteirizar e produzir um filme sobre esta temática, se traduz em uma mobilização de capital em direção ao reconhecimento da questão da precariedade, que ganha amplificação pela roupagem dramática ficcional facilmente assimilável pelo público. No entanto, não deixa de ser uma reafirmação da necessidade de iluminar a realidade da precariedade urbana. Em uma breve aproximação à urbanização argentina, foi possível perceber que sua trajetória, apoiada primeiramente em uma economia agroexportadora, atravessando o desenvolvimento da ferrovia e da industrialização, até o aumento demográfico

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vertiginoso, carregou consigo não só o discurso do desenvolvimentismo, como também seus efeitos colaterais. A expansão das villas pela cidade de Buenos Aires são evidências de a urbanização e o desenvolvimento não são para todos. A villa representada no filme, Villa 15 ou Ciudad Oculta, faz parte do contexto da urbanização de Buenos Aires. Após o início da sua ocupação na década de 1930, e o aumento da sua população, ela sofreu com as iniciativas do poder público de contenção e supressão da ocupação, que se mostraram ineficientes. A persistência dessa villa, e de muitas outras, às tentativas de eliminação da precariedade, seja pela violência ou pelo subsídio, indica que as questões que propagam a precariedade não são superficiais, ou seja, não são atingidas por tais políticas, que deixam a estrutura da pobreza intacta. Apesar de uma urbanização pulsante, a crescente demanda por moradia e trabalho que instalou-se nas cidades latinoamericanas a partir de meados do século XX, não conseguiu ser absorvida pelos meios de produção. Como consequência, desemprego e os baixos salários acompanharam a criação de alternativas à moradia formal, como a ocupação de terras ociosas e a autoconstrução. No cerne dos problemas habitacionais, do caos urbano, dos bairros sem infraestrutura, da violência, do crime, da pobreza, está a incapacidade do modelo capitalista de absorver uma parcela da população, que, para viver na cidade, tem como única alternativa a precarização do próprio modo de vida. Se pensarmos que a pobreza e a informalidade caminham juntas ao desenvolvimento e a formalidade, inclusive estabelecendo relações de troca entre elas, seria possível colocar que a precariedade não trata-se de um estágio a ser superado, mas sim de uma das engrenagens do desenvolvimento, que se dá, obviamente, fora da precariedade. Por isso, os esforços de contenção, mitigação, eliminação ou subsídio à pobreza e a

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precariedade urbana seriam insuficientes para permitir qualquer mudança estrutural. Ao contrário, configura-se uma gestão dos problemas, que apresenta-o por outras narrativas, desloca-o, mas não o soluciona. A insolubilidade da precariedade urbana está relacionada à manutenção dos sistemas hegemônicos de poder; torna-se outro “elefante branco” que temos que lidar.

NOTAS 1. Curso de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos, ministrado por Tomás Antonio Moreira e Eulália Portela Negrelos. 2. Apesar do filme ser categorizado como ficção, é baseado em personagens e locais reais. 3. O local referido no filme como villa, pode ser encontrado no Brasil com o nome de favelas ou bairros precários.

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4. Trata-se do Padre Carlos Mugica, sacerdote que se engajou nas lutas sociais argentinas ao lado de pobres e moradores das villas, e assassinado em 1974. Por ter possuído uma atuação semelhante à dos personagens do filme, nos pontos em que ele é citado, sua figura funciona como uma memória, ou uma força que motiva as personagens a se engajarem nas suas trajetórias de luta. 5. Mais de 60000m² construídos, 14 pavimentos e 2 subsolos. Hoje (Julho de 2017), este edifício encontra-se às vésperas de ser demolido para dar lugar ao Ministério de Desenvolvimento Humano e Habitat, um processo que encontra problemas em lidar com as remoções de moradores necessárias na Ciudad Oculta. 6. Segundo definição de Cravino (2008): área que combina alguma das características a seguir: acesso inadequado à infraestruturas, moradia de baixa qualidade e informal, condições de vida insalubres e localização em áreas de risco. 7. “O resultado foi uma cidade que integrava de forma regular, ainda que desigual e segregada, a uma parte importante dos setores populares e que, no caso de quem não conseguia os recursos necessários para os processos regulares, se permitiam usos clandestinos dos bens urbanos para produzir não mercantilmente seus assentamentos.” Tradução própria.

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8.Villa Lugano é o bairro onde se localiza a villa 15, ou Ciudad Oculta e o edifício Elefante Blanco, ambos representados no filme Elefante Blanco. 9. Ley 148/98.

REFERÊNCIAS Bibliográficas AITKEN, Stuart; ZONN, Leo. Re-apresentando o lugar pastiche. In: Cinema, Música e Espaço. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2009. Pg 15-58. ALMANDOZ, Arturo. Despegues sin madurez: Urbanización, industrialización y desarrollo em la Latinoamérica del siglo XX. Revista Eure, Santiago de Chile, vol. XXXIV, n. 102, pg. 61-76, 2008. ALVAREZ, Karina; MALDONADO, Natalia Ortiz; RUSSO, Daniel. Los pibes, el paco, la villa: del neoliberalismo y otros demonios. In: IV Encuentro Nacional de Políticas Públicas y Trabajo Social: Aportes para la construcción de lo público, Buenos Aires, Anais, 2011. COMOLLI, Jean Louis. A cidade filmada. In: Ver e poder – A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (org). Cinema, Música e Espaço. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2009. 175 pg. CRAVINO, María Cristina (org). Los mil barrios (in)formales: aportes para la construcción de um observatório del hábitat popular del Área Metropolitana de Buenos Aires. Buenos Aires: Universidad Nacional de General Sarmiento, 1ª ed, 2008. FERNÁNDEZ, Inés; de SÁRRAGA, Ricardo. Ciudad y memória: construcción coletiva del espacio público em Villa 15. Centro de Investigaciones Hábitat y Municipios (CIHaM) Universidad de Buenos Aires, 2016. GONZÁLEZ, Pablo. Los asentamientos populares em la Región Metropolitana de Buenos Aires: emergencia y reproducción del território em los procesos neoliberales de construcción de ciudad

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(1980-2010). Geograficando, ano 6, n. 6, pg. 147-164, 2010. Instituto de Investigaciones Gino Germani. Barrios al sur: Villa Lugano, Villa Riachuelo, Mataderos, Parque Patricios y Villa Soldati a través del tiempo. Buenos Aires: Facultad de Ciencias Sociales, 2011. JARAMILLO, Samuel. Reflexiones sobre la “informalidad” fundiária como peculiaridad de los mercados del suelo em las ciudades de la América Latina. Territórios, n. 18-19, pg. 11-53, 2008. De LATTES, Zulma Recchini. El processo de urbanización em la argentina: distribuición, crescimento y algunas características de la población urbana. Desarrollo Económico, vol. 12, n. 48, pg. 867-886, 1973. LÉPORE, Eduardo; SUÁREZ, Ana Lourdes. Las villas de emergência de la ciudad de Buenos Aires. In: Las villas de la Ciudad de Buenos Aires: territorios frágiles de inclusión social. Buenos Aires: Educa, 2014. NUCCI, Josefina Di; LINARES, Santiago. Urbanización y red urbana argentina: in análisis del período 1991-2010. Journal de Ciencias Sociales, Buenos Aires, ano 4, n. 7, pg. 4-17, 2016. 6 oeste

de OLIVEIRA, Chico. Crítica à razão dualista – O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003 (edição original de 1972). PÍREZ, Pedro. Buenos Aires: la orientación neoliberal de la urbanizacíon metropolitana. Sociologias, Porto Alegre, ano 18, n. 42, pg. 90-118, 2016. PRADILLA, Emilio. El mito neoliberal de la “informalidad” urbana. Revista Interamericana de Planificación, vol. 22, n. 85, 1988. VELÁZQUEZ, Guillermo. El processo de urbanización de la Argentina: de la primacía a la fragmentación socio-espacial. Tiempo y Espacio, Bueno Aires, n. 9-10, pg. 5-22, 2000. Filmográficas ELEFANTE Blanco. Direção: Pablo Trapero. Argentina: Morena Films, Matanza Cine, 2012. DVD (110 min) Som, Cor. ELEFANTE Blanco Ciudad Oculta. Direção: Alexandra Indaco. 2005. Online, disponível em <https://www.youtube.com/ watch?v=Ae-iQa6dOBQ> (52 min) Som, Cor.

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DUPLINHAS

FELIPE ABREU Fotógrafo, editor e produtor de conteúdo. Atua como editor da revista OLD e cursa mestrado em Artes Visuais na Unicamp

As duplinhas nasceram por um motivo absurdamente banal: tinha em casa alguns rolos de filme 35 e não tinha comigo uma câmera para fotografá-los.


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Parti, então, em busca de uma solução simples e barata para resolver esta questão.

Encontrei um anúncio de uma Olympus Trip no Mercado Livre a um preço bastante acessível. Câmera comprada, primeiros filmes feitos e se forma uma questão: como vou apresentar as imagens resultantes deste processo?

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Há tempos que me concentro no estudo da edição e da construção de sequências em fotografia, então, logo me veio um desejo de criar pares, micronarrativas visuais usando as primeiras imagens feitas com a recém adquirida Trip. Segui o instinto e, no final de 2016, postei as primeiras duplas no Instagram. A recepção foi boa, eu já estava me entendendo melhor com a câmera e, por isso, decidi seguir com este projeto, criando duos de imagens que conversassem pelos mais variados motivos: forma, cor, narratividade, tema, tempo.

Com o passar das duplas, fui percebendo o surgimento de alguns temas, o que passou a nortear a criação das imagens e dos pares. Predomina um sentimento de desencontro, de objetos que estão fora de seu local comum ou que, pelo enquadramento ou iluminação, ganham contornos pouco usuais. Assim, passei a explorar meu cotidiano sob este prisma, de um registro das mais sutis formas de caos urbano. Isso, unido a um sentimento de imobilidade e de falta de perspectiva constantes, foi dando corpo às duplinhas que agora são quase 150 e em breve ganharão novo nome, mais definitivo e adequado aos temas e à narrativa por elas construída.


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Convidamos você, cara leitora (ou leitor), a experimentar o encontro dos corpos no território através de uma forma de leitura da Revista Rasante. Caminhando de oeste a leste, ou de leste a oeste, o encontro é inevitável, e junto dele, o estranhamento e o aprendizado. Este é o ponto de encontro. 0 oeste

Esta edição da Rasante não possui fim, mas sim, dois começos, duas narrativas que se encontram, aqui. Sugerimos que recomece sua leitura, mas partindo de outro começo, aquele ao leste, onde você não encontrará contracapa; o sentido de leitura será da página direita para a esquerda. Lembre-se que para enxergarmos outras formas de ver, é preciso balançar nossas próprias estruturas. Ao chegar aqui, neste mesmo ponto novamente, o que terá mudado?

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{ Convidamos você, cara leitora (ou leitor), a experimentar o encontro dos corpos no território através de uma forma de leitura da Revista Rasante. Caminhando de oeste a leste, ou de leste a oeste, o encontro é inevitável, e junto dele, o estranhamento e o aprendizado. Este é o ponto de encontro. Esta edição da Rasante não possui fim, mas sim, dois começos, duas narrativas que se encontram, aqui. Sugerimos que recomece sua leitura, mas partindo de outro começo, aquele a oeste, onde você não encontrará contracapa; o sentido de leitura será da página esquerda para a direita. Lembre-se que para enxergarmos outras formas de ver, é preciso balançar nossas próprias estruturas. Ao chegar aqui, neste mesmo ponto novamente, o que terá mudado?

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Na seleção apresentada na Rasante Nº 2, há um destaque especial para a exploração do espaço urbano. Inspirei-me em uma certa lógica arqueológica para escolher as imagens, buscando pequenos símbolos escondidos, revelados pela ação de terceiros ou pela ação da câmera, que destaca objetos fugazes ou esquecidos. Assim, é possível explorar este ambiente em constante transição, cheio de pequenas idiossincrasias típicas das cidades brasileiras, um lixo que é rico, um espaço que tem seu charme na ausência de conservação e a sempre presente iconografia religiosa, até nos lugares mais absurdos.


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Há tempos que me concentro no estudo da edição e da construção de sequências em fotografia, então, logo me veio um desejo de criar pares, micronarrativas visuais usando as primeiras imagens feitas com a recém adquirida Trip. Segui o instinto e, no final de 2016, postei as primeiras duplas no Instagram. A recepção foi boa, eu já estava me entendendo melhor com a câmera e, por isso, decidi seguir com este projeto, criando duos de imagens que conversassem pelos mais variados motivos: forma, cor, narratividade, tema, tempo.

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Com o passar das duplas, fui percebendo o surgimento de alguns temas, o que passou a nortear a criação das imagens e dos pares. Predomina um sentimento de desencontro, de objetos que estão fora de seu local comum ou que, pelo enquadramento ou iluminação, ganham contornos pouco usuais. Assim, passei a explorar meu cotidiano sob este prisma, de um registro das mais sutis formas de caos urbano. Isso, unido a um sentimento de imobilidade e de falta de perspectiva constantes, foi dando corpo às duplinhas que agora são quase 150 e em breve ganharão novo nome, mais definitivo e adequado aos temas e à narrativa por elas construída.

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Parti, então, em busca de uma solução simples e barata para resolver esta questão.

Encontrei um anúncio de uma Olympus Trip no Mercado Livre a um preço bastante acessível. Câmera comprada, primeiros filmes feitos e se forma uma questão: como vou apresentar as imagens resultantes deste processo?

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Exposição fotográfica 4º BIT! . Foto: Página oficial. 7 leste

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Na 4° Edição do BIT! Festival de Fotografias, vocês trouxeram como tema o NU. Qual foi a aceitação desta exposição? Como vocês sentem a relação do nu com a cidade? (Discorram como quiserem, podem viajar.) É importante levar o nu para fora das paredes?

O nu é um dos temas mais explorados na história da fotografia. A proposta foi conhecer fotógrafos que estão pesquisando este tema, sob uma visão autoral e diversa. Curiosamente, foi uma das exposições com mais público que tivemos. Portanto, apesar do tema ser muito explorado, ele continua despertando muito interesse. O tirar a roupa é um processo, não se é somente um corpo nu, e sim, um conjunto de significados e códigos. Estar nu, posar nu, fotografar nu, mostrar as partes ou se desnudar ainda são vistos como algo reacionário na sociedade, e levará muitos anos até que se perceba o quão antigas ainda são nossas percepções relacionadas a isso. Explorar este tema em uma exposição, em cidade do interior, foge um pouco da normalidade o que desperta discussões e paradigmas sempre interessantes.

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que forma a arte no espaço urbana modifica sua dinâmica? (A arte influencia na vontade de caminhar a pé pela cidade? Muda o trajeto das pessoas? Traz conforto e segurança?) E mais além, a arte influencia na estrutura física da cidade?

O objetivo de nosso projeto “Ocupa Atibaia” é justamente sair dos lugares ditos “consagrados”, ou seja, destinados à exposição e às apresentações artísticas (equipamentos culturais: teatro, cinemas, bibliotecas, museus), para dar visibilidade à arte cotidiana, espalhada pelas ruas. Viabilizar o encontro com a arte independente, principalmente devido aos temas utilizados pelos artistas de rua, que são ricos e diversos, pois muitos trabalhos estão pautados em críticas sociais, políticas e econômicas. A arte pública aumenta a autoestima do cidadão, o sentimento de pertencimento à cidade. Sempre que passo em frente a algum mural que a Incubadora viabilizou e vejo as pessoas tirando fotos e fazendo selfies, etc, é notório esse sentimento de compartilhar algo do tipo: “Olha que legal a minha cidade!”, e essa imagem é espalhada pelo seu círculo social, ampliando os horizontes.

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5º Festival Brasileiro de Nanometragem na Praça. Foto: Vitor Carvalho. vitor carvalho . incubadora de artistas

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Foto: Ricardo de Paula.

Sempre observamos a diversa gama de artistas e manifestações artísticas que são escolhidas nos editais de vocês, desde o Ocupa Atibaia até o Festival de Nanometragem, que apesar de usar uma única plataforma de exibição, consegue trazer os mais diversos temas e linguagens nos seus 45 segundos. Como se dá o processo de curadoria, escolha das artes para cada edição?

Cada projeto exige processos diferentes de seleção. Na maioria dos casos temos em comum, os itens: qualidade da obra, seu teor artístico, técnica empregada, originalidade e criatividade.

A Incubadora tem o edital de fomento Ocupa Atibaia, que agora já está em sua quinta edição. Segundo a chamada do edital no site, a intenção deste é: ”Modificar a forma como as pessoas enxergam os espaços públicos. Levar até elas um momento de inspiração e reflexão, quando estão a caminho do trabalho, do supermercado, rodoviária ou escola. Valorizar o trabalho do artista fora dos ambientes convencionais...”. Segundo a experiência de vocês em Atibaia e fora dela, de

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Quais são os desafios de inserir a arte no contexto urbano?

A arte de rua pode ser espetacular ou modesta, permanente ou temporária, muito bonita ou agressiva, mas todas elas nos mostram uma cidade viva! Desde os tempos das cavernas, temos a necessidade de nos expressar através de desenhos nas paredes etc. O desafio é atingir um público que não frequenta um museu, uma galeria de arte, ou eventos semelhantes e, através de uma experiência direta na rua, fazer com que esse público perceba que o que o consegue ver ou contemplar... é arte!

Como é o acompanhamento da instalação das obras? De que forma conseguem espaço e permissão para as instalações e intervenções artísticas no espaço extra-incubadora?

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Para os projetos extra-incubadora, procuramos parceiros e apoiadores, que nos ajudam a viabilizá-los, seja com cessão do espaço, ou com simples autorização, como por exemplo, utilizar uma parede para um grafite.

Vocês abrem editais e selecionam artistas de Atibaia e de todo o Brasil. Qual a importância da participação dos artistas da própria cidade e dos artistas de outras localidades na exposição e no cenário da interação social/artística?

O Intercâmbio cultural é muito rico, pois possibilita o diálogo intercultural, o desenvolvimento de novas relações e interlocuções, o fomento ao pensamento crítico, a transformação pessoal e, o mais importante, a ampliação ou troca de repertórios. Um artista jovem ou novato que tem a oportunidade de expor junto a um artista consagrado, também constrói um bom currículo.Enfim, são oportunidades apresentadas, são atalhos que dificilmente se abrem em outras instituições. Essa é a premissa da Incubadora de Artistas.

vitor carvalho . incubadora de artistas

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3º Festival do Saci Pererê Foto: Página ofical.

A cidade é um ser complexo, poderíamos até personificar as cidades como já fez Ítalo Calvino em Cidades Invisíveis, onde cada uma tem sua personalidade, suas delícias, perigos e segredos, seja em forma de espaço, história, dinâmica. Pensando que, ao interagir com um ser, uma ação gera diversas reações que o influenciam dali por diante, onde cabe e quais os papéis da arte na cidade?

Infelizmente, vivemos um momento de sucateamento do sistema público. Desenvolver uma forma diferente e autônoma de gestão cultural, aponta para um tipo de ativismo de resistência. Não é isso que buscamos, a arte pode ir além... Através de nossos projetos, buscamos alimentar a imaginação ou pura contemplação sobre a cidade. Tentamos ser, também, uma ferramenta de costura e transformações, de fomento de práticas cidadãs, de produção e gestão de conhecimentos comuns, abertos e compartilhados, enfim, acreditamos em uma construção de novos valores. É muito importante o cidadão comum se deparar com a diversidade cultural diretamente na rua, sem necessariamente ter se dirigido a um centro cultural.

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Como é ser um grupo de fomento de artes na cidade e em uma cidade do interior?

É e sempre será um desafio, pois como é notório, as cidades do interior são sempre muito conservadoras, e, quebrar paradigmas é como vencer uma batalha a cada dia, sempre com novos desafios. Nossa equipe ama o que faz e isso é de suprema importância para as coisas darem certo. Ou seja, pessoas certas nos lugares certos e com objetivos em comum. É um trabalho super colaborativo.

Atibaia é próxima à capital, São Paulo, e também à Campinas, duas das quais diversas cidades do interior acabam espelhando a sua forma de produção do espaço urbano. Exemplificando este raciocínio, o PLANO DIRETOR ESTRATÉGICO da cidade de São Paulo, de julho de 2014, teve sua repercussão em diversas cidades do interior, onde diversas das medidas da capital 13 leste

passaram a ser incorporadas também, proporcionalmente, nos planos das cidades menores. Acontece o mesmo no caso da produção, consumo e liberdade artística? Como vocês veem a influência do acontecer artístico das grandes cidades nas cidades do interior?

Pensamos que é um pouco diferente e buscamos, nessa diferença, oferecer produções temáticas como o Festival do Saci, por exemplo, que busca uma pegada mais regional e caipira, mas com aquele toque contemporâneo, que resulta num produto singular. Estamos muito perto de grandes cidades, mas muito distantes de uma inclusão cultural da população. Esta é uma de nossas principais funções, encurtar esse caminho. Se não seria fácil, teríamos feito a Incubadora em São Paulo, onde os atalhos seriam grandes.

vitor carvalho . incubadora de artistas

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Qual a importância de ter uma Incubadora de artistas em uma cidade do porte de Atibaia?

É muito importante a inclusão social da população do interior na cadeia produtiva da cultura, oferecendo condições para que todos - especialmente aqueles excluídos do consumo das artes - tenham acesso à inventividade artística das diversas manifestações culturais, uma vez que, na maioria dos casos (no interior), o poder público é inoperante, extremamente amador e lento neste campo.

Ação do 4º Ocupa Atibaia. Foto: Ricardo de Paula. 14 leste

O que levou vocês a escolherem o centro histórico da cidade como local para sede e espaço de exposições?

Inicialmente pela sensação de pertencimento que os centros históricos causam em seus habitantes. Entendemos como a área em que as funções se sobrepõem e, sobretudo, o lugar em que se desenrolam as atividades vistas como sendo particularmente importantes e por ser, na maioria das vezes, o coração da cidade. Geralmente, a memória coletiva da cidade e de seus visitantes, sempre estão associadas ao centro histórico, pois foi ali que a cidade se desenvolveu inicialmente. É sempre um ponto de afeto geográfico.

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ostaríamos, para começar a entrevista, que de uma forma bem

livre vocês nos apresentassem a Incubadora de Artistas.

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A Incubadora é um polo catalisador de ações culturais, centro de referência e inovação com contrapartidas sociais e iniciativas artísticas diversificadas. Disponibilizamos gratuitamente para a população uma galeria, com calendário anual de exposições de artes visuais, a maioria das atividades são realizadas através de editais públicos. Também funciona, em nosso espaço, uma Biblioteca especializada em Artes Visuais. Organizamos uma série de atividades, também fora da sede física, como Festivais de Música, Cinema e Arte de Rua.

Ambos os fundadores da Incubadora são de Atibaia e tiveram percursos nas artes fora da cidade antes de fundar a Incubadora. Quais os motivos, insurgências os levaram a fundar a Incubadora na cidade de Atibaia?

Somos dois artistas de Atibaia e justamente em nossas expectativas quando jovens, antes de cair no mercado, aqui mesmo e fora da cidade , listamos uma série de coisas que seriam um sonho para nós quando jovens. Nossa experiência veio de vivências que buscamos fora daqui. Procuramos oferecer justamente aquilo que mais queríamos: fomentar a arte e cultura principalmente para os jovens artistas. E um jovem artista pode ser uma pessoa de meia idade, por exemplo, a artista Tomie Ohtake, começou a fazer arte com 40 anos.

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Ação do 4º Ocupa Atibaia. Foto: Página oficial.

INCUBADORA DE ARTISTAS ATIBAIA-SP/BRASIL

ENTREVISTA RASANTE BRUNO GERALDI E RAFAEL BALDAM

INCUBADORA DE ARTISTAS VITOR CARVALHO E IGOR SPACEK

Catalisadora cultural localizado em Atibaia/SP, promove editais de fomento à cultura, exposições abertas e atividades culturais diversas na cidade para ler e conhecer UrbEX - Urban Exploration

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mural na avenida 23 de maio (apagado em 2017), são paulo, Kobra, foto: uol notícias


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NOTAS 1. O cantor João Gilberto realizou uma apresentação em 20 de agosto de 2000, no Credicard Hall em São Paulo, e interpreta a canção “Saudosa Maloca”. Enquanto a plateia cantava em coro a música, o intérprete para a canção e faz questão de chamar a atenção de todos para a letra complexa, especialmente para o trecho que diz respeito à apreciação da demolição da própria casa. (GARCIA, 2012)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura: São Paulo no meio do século XX. Bauru: EDUSC, 2001. CAMPOS JUNIOR, Celso de. Adoniran: uma biografia. São Paulo: Globo, 2010. FRITH, Simon. Music and Identity. In: HALL, Stuart e DU GAY, Paul. (Org.). Questions of Cultural Identity. Londres: SAGE Publications, 1996. GARCIA, Walter. Cordialidade, melancolia, modernidade. In:GARCIA, Walter (Org.). João Gilberto. São Paulo: Cosac Naify, 2012. MEYER, Regina Maria Prosperi. Metrópole e Urbanismo: São Paulo anos 50. Tese de Doutorado em Arquitetura e Urbanismo, São Paulo: Universidade de São Paulo, 1991. MORAES, José Geraldo Vinci de. Arranjos e timbres da música em São Paulo. Vol. 1. In: PORTA, Paula. História da cidade de São Paulo: A cidade colonial 1554-1822. São Paulo: Paz e Terra, 2004. —. Metrópole. In: Sinfonia: história, cultura e música popular na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. PESAVENTO, Sandra J. Muito além do espaço: por uma história cultural do urbano.In: Revista Estudos Históricos. Vol.8, n. 16 (1995): 279-290. ROCHA, Francisco. Adoniran Barbosa: o poeta da cidade: trajetória e obra do radioator e cancionista: os anos 1950. Cotia: Atelie Editorial, 2002.

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sofriam com as desigualdades urbanas. Ele era um artista do rádio, que morava em uma casa confortável com sua esposa e seu amado cachorro Peteleco, e era um boêmio convicto. Mas o que fez de sua obra tão representativa para a compreensão da cidade é o fato dele ser um grande ouvinte e observador das histórias cotidianas de São Paulo, de muitos Jocas e Mato Grossos, que andavam pela cidade, assim como ele, assustados com as transformações incessantes e avassaladoras. Ficava difícil para qualquer um estabelecer laços com o passado, quando seu passado estava em um edifício que poderia ser desmanchado. O fato de grande parcela da população ser composta por imigrantes só fazia dificultar a criação de laços, e após desembarcarem no porto de Santos, ou largar a vida no campo no interior do país, muitos se viam obrigados a construir uma vida nova longe de casa e de seus entes queridos. Adoniran não tinha fugido da Guerra na Itália, pois nasceu no Brasil, mas seus pais e sua família sim. E esse ato de ouvir as histórias alheias e transformá-las em canções, com as quais grande parcela da população se identifica até hoje, faz com que o processo de tradução de significados seja tão complexo e mereça ser ouvido com atenção.

Adoniran em 1980 Foto: Pedro Martinelli/DEDOC

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yara boscolo bragatto . os dois lados do mesmo disco

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Analisar essas e outras canções compostas por Adoniran Barbosa e seus parceiros auxilia na construção de um ponto de vista sobre a cidade de São Paulo que não era tão ufanista como se esperava que fosse. Ter receio que o progresso possa ter alterado tanto um espaço a ponto de não ser possível se reconhecer e se encontrar nele faz parte de um fenômeno exclusivamente urbano e metropolitano que está em constantes mudanças, muitas vezes avassaladoras. Ignorar o passado e derrubar um velho palacete para a construção de um grande edifício pode não ser considerada uma preocupação metropolitana, mas apenas mais um palacete dentro dos muitos que ali existiam e que dariam lugar aos mais variados e altos edifícios. Mas então porque Adoniran estaria tão incomodado? O que fez com que eles se sentisse tão atingido pelas transformações a ponto de compor diversas canções tratando de como a cidade havia mudado?

QUANDO O DISCO ACABA É sempre possível ouvir novamente, e sempre surgirão novos ouvidos dispostos a compreender o que está lá para ser tocado repetidas vezes. O paralelo que este trabalho traça entre a historiografia convencional e as canções de Adoniran é apenas uma maneira de ouvir a história e buscar compreender diversas questões que podem não ter resposta correta. Afinal, nada nos impede de começar a ouvir um disco pelo lado B, certo? As questões levantadas anteriormente talvez não possuam respostas concretas, pois apenas Adoniran Barbosa (ou João Rubinato) poderia dizer se o que ele via acontecer no cotidiano da urbe paulistana de fato impactava tanto assim na sua vida pessoal. É sabido, por meio de fontes que tratam da sua biografia que Adoniran nunca morou numa maloca, nem mesmo em Jaçanã onde chegava o famigerado Trem das Onze. Ele também não fazia parte da massa de trabalhadores industriais que revista rasante nº 02 . 2018 . corpos diversos lugares

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Adoriran observando as mudanças da Praça da Sé no final dos anos 70. Foto: Pedro Martinelli/DEDOC

A música foi uma das últimas canções registradas por Adoniran e conta o momento de remodelação de um importantíssimo marco urbano na cidade de São Paulo. A Praça da Sé passou por uma reestruturação, que incluiu a construção da estação do metrô, o que fez com que o local ficasse cercado por tapumes e fechado para uso público.

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Adoniran começa a canção se referindo a praça como uma “madame”, título que era comumente utilizado para designar mulheres ricas e importantes na sociedade, ou seja, além de personificar o espaço público, ele também ganha gênero e status social. Ele segue dizendo que a praça de antigamente, que ele havia conhecido não está mais igual, e sente as mudanças que ocorreram de maneira não tão positiva. Conta que ela está irreconhecível, e enumera uma sequência de fatores (que podem ser estendidos) sobre como era boa e feliz a convivência com a praça de antigamente. Acaba por nomear um responsável pelas mudanças, o “progresso”, capaz até de interferir no clima da cidade. O aviso que o autor dá sobre tomar cuidado para que as pessoas não se percam na nova praça, tamanhas as transformações do local, pode ser entendido como um alerta de quem já passou por essa situação, e de quem já não se reconhece mais no espaço urbano transformado.

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Outra canção de Adoniran sobre algumas transformações na cidade de São Paulo, porém não teve tanta fama como a anterior, mas que talvez seja uma das mais significativas no que diz respeito aos sentimentos em relação às transformações urbanas. Praça da Sé (1978)

Praça da Sé / Praça da Sé / Hoje você é / Madame Estação Sé / Quem te conheceu / Há alguns anos atrás / Como eu te conheci / Não te conhece mais / Nem vai conseguir / Te reconhecer / Se hoje passa por aqui / Alguém que já faz / Algum tempo que não te vê / Pouca coisa tem que contar / Pouca coisa tem que dizer / Vai pensar que está sonhando / É natural / Nunca viu coisa igual / Da nossa Praça da Sé de outrora / Quase que não tem mais nada / Nem o relógio que marcava as horas / Pros namorados / Encontrar com as namoradas / Nem o velho bonde / Dindindindindindin / Nem o condutor / Dois pra Light e um pra mim / Nem o jornaleiro / Provocando o motorneiro / Nem os engraxate / Jogando caixeta o dia inteiro / Era uma gostosura / Ver os camelô / Correr do fiscal da prefeitura / É o progresso / É o progresso / Mudou tudo / Mudou até o clima / Você está bonita por baixo / Só indo lá pra ver / Mas não vá sozinho, / Meu senhor / Que o senhor vai se perder / Praça da Sé / Praça da Sé / Hoje você é / Madame Estação Sé. Praça da Sé, 1940 Foto: Hildegard Rosenthal / acervo IMS

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muito pelo contrário, Adoniran não escrevia assim por ser esse seu maior grau de erudição. Tanto que, existem diversas músicas do autor que, apesar da linguagem não ser complexa, no sentido de fácil entendimento e uso de palavras corriqueiras, não há desvios da norma culta de linguagem, o que demonstra que o uso de tais expressões era opção do próprio autor, que acreditava que dessa maneira seria mais fácil de atingir seu público alvo.

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Outra relação importante diz respeito ao fato da apropriação do espaço – particular, no caso – mas que estava desocupado, e então as personagens passaram a fazer dele seu lar, onde foram construídas memórias e laços afetivos, a ponto da sua demolição causar grande dor em seus moradores. A relação hierárquica também fica clara quando na letra aparecem “os homens co’as ferramenta” pois o dono da casa havia mandado derrubála, ou seja, se tratando do espaço particular da residência, o proprietário estaria acima de todos. Talvez o momento mais complexo e contraditório da letra esteja no trecho “[...] Peguemo tudas nossas coisas / E fumus pro meio da rua / Apreciá a demolição […]”, visto que, assim como comenta João Gilberto 1, seria impossível apreciar a demolição da própria casa, pois o ato de “apreciação” envolveria prazer ou satisfação, ou até mesmo contemplação, sentimentos esses impossíveis de se relacionar com a perda da própria moradia. Mas pode-se interpretar que o ato de apreciação nesse caso, envolveria tamanha perplexidade e até certo temor, que nada mais lhe restaria a não ser apreciar o que parecia ser inevitável. O aparente conformismo surge na letra mais evidente quando a personagem que canta diz “[...] Só se conformemos / Quando o Joca falou: / Deus dá o frio / Conforme o cobertor [...]”, apelando também para as forças divinas, que seriam as únicas capazes de consolar e fazê-los compreender o que estava se passando. E a canção termina com o coro que insiste em cantar para esquecer suas tragédias, mesmo que cantando sobre elas.

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Saudosa Maloca (1955)

Se o sinhô não tá lembrado / Dá licença de contá / Que aqui onde agora está / Esse edifício arto / Era uma casa veia / Um palacete assobradado / Foi aqui seu moço / Que eu Mato Grosso e o Joca / Construímo nossa maloca / Mas um dia nem quero me lembrar / Chego os homes co’as ferramenta / O dono mandou derrubar / Peguemo tudas nossas coisas / E fumus pro meio da rua / Apreciá a demolição / Que tristeza, que nóis sentia / Cada tauba que caía / Doía no coração / Mato Grosso quis gritar / Mas em cima eu falei / Os homis está co’a razão / Nós arranja outro lugar / Só se conformemos / Quando o Joca falou: / Deus dá o frio / Conforme o cobertor / E hoje nóis pega paia / Nas grama do jardim / E pra esquecê / Nós cantemos assim: / Saudosa Maloca, maloca querida / Dimdim donde nóis passemo / Dias feliz di nossa vida. A música composta por Adoniran já foi interpretada na voz de diversos artistas, e sempre dando características únicas a ela. Por essa maneira, o presente trabalho não analisa canções com sua musicalidade, nem tampouco com a interpretação ou gravações especiais. Analisa-se aqui, o conteúdo da letra como crônica urbana. E como tal, a letra de “Saudosa Maloca” traz uma complexidade que pode gerar várias interpretações distintas. Ao analisar em um primeiro momento têm-se a relação de perda do espaço habitado, por conta de forças maiores, que impedem a permanência na habitação tão estimada. O que resta a quem sofre com a perda é se conformar e aceitar as mudanças. Porém outras análises podem trazer interpretações mais profundas sobre a letra. Ao começar pela grafia do texto e a escolha cuidadosa das palavras que fogem da norma culta de linguagem e se aproximam de um linguajar falado e popular, muitas vezes até, indicando falta de estudo. A fala que foge da norma culta não é ocasional, revista rasante nº 02 . 2018 . corpos diversos lugares

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[...] percebe-se uma cidade convulsionada pelo binômio demolição-construção. Ao mesmo tempo, nota-se como gradativamente foram se desentranhando desse cotidiano efervescente e turbulento as noções inventadas de “São Paulo, a cidade que não pára” ou de “cidade do futuro”, nas quais presente e futuro confundem-se permanentemente. Parece mesmo que os paulistanos gabavam-se desse clima de agitação e das numerosas construções existentes na cidade [...]. (MORAES, 2000. P. 133) O ano de 1954 marca as comemorações do IV Centenário da cidade, e tudo que foi feito para celebrar essa data só deixava mais evidente que a cidade estava se modificando e estava sempre voltada para o futuro. As mudanças eram claras nos mais variados setores da sociedade e no espaço urbano em si, mesmo que desiguais e descompassadas. O ritmo das transformações aparentava ser harmônico e coerente, isso porque muitas vezes outros sons eram abafados pela banda que tocava. 25 leste

SOBRE O OUTRO LADO DO DISCO Várias eram as temáticas abordadas por Adoniran em suas canções, mas o que chamou a atenção deste trabalho e de outros correlacionados a ele é a questão da maneira como Adoniran aborda a cidade de São Paulo. As temáticas podem variar de relações lírico-amorosas, há canções que tratam da demolição de um edifício, e curiosamente, não seguem uma linha teórica de produção, ou seja, não é possível separar as canções em fases, e quase sempre as temáticas estão presentes em todas as canções. Uma das canções mais famosas de Adoniran é “Saudosa Maloca”, de 1955, e relação com a cidade fica muito clara.

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processo de modernização pelo qual a cidade passava. Após a crise do café no início da década de 1930, a cidade se viu passando por transformações que iam desde setores econômicos e políticos até remodelações urbanas e sociais. As mudanças geradas com a crise econômica deram origem as transformações como o intenso crescimento industrial na cidade de São Paulo. A industrialização deu origem a um grande e irreversível incremento populacional que mudou o território urbano, que naquele momento passava a conhecer novas línguas e culturas com a chegada de um grande número de imigrantes vindo de diversas partes do mundo, em especial de regiões da Europa afetadas pelas guerras mundiais. Refletindo este processo, a cidade crescia para os lados e para cima, e se modernizava. A industrialização trouxe consigo o espírito de modernidade que passaria a fazer parte do coletivo urbano, que via no progresso um caminho sem volta para o crescimento da cidade. Transformações no tecido urbano, com a abertura de novas avenidas, aumento do transporte rodoviário fizeram com a cidade se expandisse horizontalmente e ampliasse seus limites geográficos. Muito embora mantivesse as características de um centro fortemente desenvolvido e uma periferia que funcionava muitas vezes como última alternativa para seus moradores, os novos traçados de São Paulo deixavam claras as intenções de ser uma cidade sempre disposta a crescer e se transformar. A verticalização também fazia parte do cotidiano da cidade. Durante a década de 1930, os edifícios começaram a surgir no centro de São Paulo sempre trazendo consigo significados de progresso e desenvolvimento, características essas, que agora já faziam parte da ideia que a cidade se empenhava em propagar.

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diz respeito ao número de analfabetos que viviam na cidade, e que com o rádio conseguiam ter acesso à cultura, informação e entretenimento, sem que precisassem saber ler ou escrever. De maneira geral, o rádio foi um meio de comunicação bastante democrático, e sua popularidade atingiu uma imensa parcela da população com a extensa variedade de programação (MORAES, 2000). A popularização do rádio também chegava com as mais diversas apresentações musicais, de cantores de samba à música sertaneja e caipira, boleros e orquestras, que lotavam teatros e os auditórios, e representavam, muitas vezes, o momento de encontro da população com seus ídolos. Além disso, o rádio também perpetuou mudanças nas dinâmicas sociais da cidade, visto que muitas famílias se reuniam em torno dos aparelhos para ouvir músicas, novelas e programas de conteúdos variados.

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A preferência pela música nacional nesses programas se explica, porque era nesse momento que o cidadão comum podia ver ou rever de perto seus ídolos, cantores ou cantoras, interpretando suas canções favoritas. (MORAES, 2000. P. 79)

SOBRE UM LADO DO DISCO A história da cidade de São Paulo é deveras complexa e extensa. No que diz respeito ao período em que Adoniran Barbosa compôs e registrou suas canções (meado de 1950 até o final da década de 1970), as mais variadas transformações aconteceram na capital paulista, que já nesse período possuía o status de metrópole e buscava se comportar e parecer como tal. O intenso processo modernizador pelo qual a cidade passou fez com que a mentalidade de seus habitantes também devesse ser moldada para encaixar com o que se pretendia para a urbe. As desocupações e demolições na cidade de São Paulo eram comuns desde a década de 1930 decorrentes do intenso

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como na aparição no programa “Fino da Bossa”, apresentado por Elis Regina. Psiu...Adoniran. Escuta. É verdade que você estava com medo de se apresentar no programa da Elis Regina? Medo bobo, velho. Viu o negócio como foi? Tinha gente no poço da orquestra. Tinha gente estendida na passarela, enroscada nas escadas, no chão, sentada, acocorada. Vi até gente de joelhos aplaudindo você, Adoniran. [...] Pensa um pouco, Adoniran. Naquelas mil e tantas pessoas gritando seu nome. Rindo das “Mariposas” e do “Trem das Onze”. Mede o significado. Mede a sua simplicidade e vê que é igual ao entusiasmo daquele público. Vê que não precisava ter medo. [...]. (NEGRÃO, Walter, 1965, apud CAMPOS JUNIOR, 2010. P. 403. O texto do repórter foi publicado no jornal Última Hora, na edição de 20 de julho de 1965, após a atuação do cantor no programa Fino da Bossa apresentado por Elis Regina.) Adoniran possuía uma linguagem muito característica para compor suas letras, muitas vezes fazia uso de desvios da norma culta de linguagem, e se utilizava de vocabulário bastante popular para a época. Ele mesmo acreditava que assim era mais fácil de cantar, e que dessa maneira estaria se aproximando de seus ouvintes, que muitas vezes também eram de camadas mais populares da população. Ele tinha como inspiração para suas canções eventos cotidianos da cidade, história que ele mesmo vivia ou ouvia de amigos. Durante os anos de 1950 no Brasil, o rádio passou por um período de grande difusão, e muitos fatores foram responsáveis por tal expansão, entre eles, o fato de grande parte da população da cidade ser imigrante, ou seja, não falavam a mesma língua, e possuíam dificuldades ainda maiores de compreender as mídias escritas, como jornais, por exemplo. Outro elemento relevante

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entregador de marmitas, vendedor, varredor, mas não conseguia se distrair de seu real objetivo que era trabalhar na rádio. Depois de algumas audições em programas de calouros, conseguiu se fixar na rádio Record, onde conheceu um de seus grandes parceiros e influenciadores, o produtor Osvaldo Moles, que criava personagens específicos para Adoniran interpretar nos programas de humor, e ele os fazia com maestria. Também compunham sambas em parceria, mas a maioria das canções estão hoje registradas apenas como o nome artístico de Adoniran Barbosa. O grupo de samba Demônios da Garoa foi um dos grandes intérpretes das composições de Adoniran, e ele só foi gravar seus álbuns na década de 1970. Teve três álbuns completos gravados, com algumas canções em parceria com outros intérpretes. Adoniran se casou duas vezes e teve uma filha no seu primeiro casamento, que foi criada pela sua irmã. Mesmo com toda sua fama, adquirida ao longo dos anos que trabalhava na rádio como ator, com todas as suas composições premiadas, ele ainda ficava tímido para dar entrevistas ou cantar para grandes públicos, Adoniran Barbosa em 1978 Foto: Pedro Martinelli/DEDOC

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Mesmo elas sendo diferentes, os dois lados do disco compõe a obra musical. Para ouvir a obra completa é necessário erguer a agulha e virar o disco, para só então descobrir o que o outro lado revela. É certo que algumas músicas ficam mais famosas, e que podemos preferir um lado do disco a outro, mas é somente fazendo o exercício de virá-lo e ouvir o outro lado por completo é que poderemos ter conhecimento para discutir o que nos agrada ou não. Com a história das cidades acontece o mesmo movimento: muitas vezes só escutamos algumas versões, algumas músicas mais tocadas, aquelas reproduzidas à exaustão e que de tão ouvidas acabam passando batidas. E se virássemos o disco da história, e nos atrevêssemos a ouvir o outro lado e aquelas músicas que aparecem como faixa bônus? E se ousássemos ouvir o que não estamos acostumados e por consequência encontrarmos algo tão significativo que mude a nossa percepção a respeito de todo o disco? Pois bem, viremos o disco.

SOBRE QUEM CANTA Quando se pensa em samba paulistano, quase que naturalmente remete-se a figura de Adoniran Barbosa. É através da obra desse compositor muito famoso que se buscou conhecer melhor a história da cidade de São Paulo. O processo vai da análise de algumas de suas canções para compreender do que ele estava tratando. Adoniran Barbosa era na verdade o nome artístico de João Rubinato (1911-1982), filho de imigrantes italianos, que foram para o interior de São Paulo, e depois para a capital. João Rubinato não era frequentador assíduo da escola e sua irmã mais velha acabou ficando responsável por parte da educação do garoto que cresceu e se tornou um jovem que também não era muito fã do trabalho pesado. Teve vários empregos, como

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Ao olhar para a história de uma cidade, é comum olharmos apenas sob uma perspectiva, um ponto de vista. Mas o que indaga e motiva essa investigação é a possibilidade de enxergar a história da mesma cidade com outro olhar. Claro que, dentro de uma história existem diferentes pontos de vista, e selecionar apenas um pode excluir os demais. Mas quando a opção que se faz é de justamente enxergar com os olhos daqueles que quase nunca são lembrados, a história ganha outra dimensão. Trata-se de realizar uma leitura a contrapelo da história, onde é possível ouvir e dar voz àqueles que nem sempre possuem espaço na historiografia tradicional. São as conversas dos bares, as músicas populares e todas as manifestações que quase nunca aparecem nos livros acadêmicos, que podem ser utilizadas como fonte de interesse para investigar o outro lado da cidade. Ouvir quem faz parte da cidade, mas que quase nunca tem sua vez, ou não é levado a sério trata-se de uma chave de leitura que pode revelar outra visão sobre o cotidiano urbano. 31 leste

Mas qual manifestação cultural urbana pode ser usada para compreender a cidade? No presente trabalho, a escolha é pela música popular, mais especificamente, o samba. Sabe-se que as definições acerca de temas como “popular” são demasiadamente complexas e, portanto, não será o foco desta discussão. Utilizase aqui de conceitos que tangenciam o senso comum, e que colocam a definição de “música popular” no lugar onde se encontram as canções que tocam nas rádios comerciais, que vendem discos e que flertam com a lógica comercial da indústria fonográfica. E parar para ouvir e analisar essas canções pode ser uma experiência surpreendentemente positiva. Neste processo de análise se traça um paralelo com um elemento que caiu em desuso no mundo atual, e que agora se restringe a itens de colecionadores e entusiastas. Quando se escuta um disco de vinil sabe-se que haverá músicas dos dois lados.

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São Paulo, 1949. Avenida Jabaquara esquina com rua Guaraú.

para ler e assistir dá licença de contar, pedro serrano, 2015

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YARA BOSCOLO BRAGATTO Mestranda em Arquitetura e Urbanismo pelo IAU Usp

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Assim, a ideia de que as fotografias são como janelas, um vislumbre de outro lugar, foi a ideia que levou ao cartão postal, um objeto de afeto, um souvenir de lugares que gostamos ou gostaríamos de estar. Nos postais, também estão identificadas informações do ônibus urbanos que passam por aquele local, para promover melhor o senso de mobilidade coletiva entre as pessoas.

No total, foram escolhidas 96 imagens que reapresentam Campinas para sua população, sendo a realização plena do projeto mostrar uma cidade na qual seus habitantes tenham vontade de explorar novos lugares e vivenciar novas experiências.

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O projeto “Janelas que dão para outras Campinas”, realizado pelas fotógrafas Yasmin Pinheiro e Marilia Sucena, teve como intenção inicial promover lugares da cidade, ressaltando suas belezas, cenas cotidianas e pontos principais com um olhar sensível e artístico. Proporcionando aos seus cidadãos uma nova maneira de ver Campinas, instigando-os a ter a vontade de conhecer melhor o lugar em que vivem, mas que, com o cotidiano e a rotina, tornam-se despercebidos.

Para buscar elementos de destaque na cidade, que pudessem fazer parte da produção fotográfica, foi fundamental a ajuda dos próprios habitantes. A partir de um mapa afetivo, as pessoas elegeram seus locais favoritos de acordo com suas funcionalidades referentes ao lazer, descanso, paisagem, uma experiência pessoal e diversão.

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JANELAS QUE DÃO PARA OUTRAS CAMPINAS YASMIN PINHEIRO Fotógrafa e graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela Unicamp

para ler e assistir visages villages, agnès varda e jr, 2017

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descrição do espetáculo

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LATERRATERAL é uma companhia belga de dança vertical e aérea, criada a partir do encontro de três artistas circenses especialistas em ‘aéreos’. Este jovem grupo criado em 2017 desafia e propõe uma emocionante viagem: tocar as paredes, dançar entre terra e ar. Os artistas se jogam no seu caminho favorito de pensamento: as questões sociais e culturais. A primeira criação diz respeito às percepções de gênero.

Suspensos através de uma corda, eles podem atingir até 60 metros de altura como fios de chumbo, eles se ancoram nas fachadas dos edifícios. Os dançarinos jogam com a gravidade. Através de um impulso a´reo, eles transformam arquitetura em espaço cênico. Os marcos da linha do horizonte se inclinam verticalmente.

Suba e voe. Surpreendentemente, pela utilização do patrimônio arquitetônico como espaço cênico, assim é seu ritornelo. Eles desenvolvem criações em três dimensões. O gesto circense sobre as paredes revisita as normas. Ela permite apreciar estilos diferentes de movimento. Esse gesto revela outras perspectivas dos corpos no espaço. Os três artísticas desafiam a imaginação do público por seu indescritível fluxo de energia que começa a vibrar nas paredes e transborda o espectador.

Num ar cheio de leveza, o público é convidado a perder o rumo, a desalinhar-se e a flutuar

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pelo visual na vertical. Nossos três personagens, meio-mulher e meio-homem, evoluem acrobaticamente em uma coreografia aérea inspirada no Mito dos Andrógenos.

Vamos nos aproximar de Platão em “The Banquet”, discurso de Aristóteles: “Nos velhos tempos a natureza humana era muito diferente do que é hoje. Primeiro, havia três tipos de homens: os dois sexos que ainda existem e um terceiro que se misturava com os dois e era chamado de andrógeno. Todos os homens tinham uma forma redonda: eles tinham as as costas e as costelas dispostas em círculo, sem que tivessem necessidade de se virar para pegar todos os caminhos que eles queriam. Quando queriam ir mais rápido, apoiavamse sucessivamente em seus oito membros e avançavam rapidamente através de movimentos circulares, como aqueles que, com os pés no ar, fazem a roda. A diferença que existe entre essas três espécies de homens vem da diferença de seus princípios. Eles mantiveram esses princípios em sua forma e sua maneira de se movimentar”.

As performances planejadas para o exterior estão agradavelmente infiltradas no espaço urbano. O espetáculo também pode ser transportado para ambientes fechados tanto de dia como de noite. Ele é adaptável a quaisquer condições particulares desejadas pelo organizador. De acordo com o pedido, uma representação tem de 1 a 6 passagens no máximo.A duração média de uma passagem é de 5 a 12 minutos.

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Comment les gens reagissent à votre presentations? Quels sont les feedbacks?

Como as pessoas reagem às suas apresentações? Quais são os feedbacks?

Os adultos acham os espetáculos muito visuais, eles ficam muito

Les adultes trouve les spectacles très visuels, ils sont impressionnés même si

impressionados mesmo que muitos imaginem que é mais simples

beaucoup imagine cela plus simple qu’il ne parait et veulent juste prendre notre

do que parece e queiram tomar nosso lugar! As crianças se atentam place ! Les enfants sont beaucoup plus à l’écoute du message que l’on veut faire

mais a mensagem que queremos passar e não se dão conta do passer , il se rendre pas compte du danger ! Et c’est le but !

perigo. Esse é objetivo!

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Quels sont votre difficultes pour s’installer dans un pays où il pleut bonne partie de l’annee?

Quais são as dificuldade de se encontrar um lugar para se instalar em um país onde chove boa parte do ano?

Para trabalhar em condições ideias, precisamos estar no exterior.

Pour travailler idéalement , il nous faudrait être en extérieur. En belgique ou il

Na Bélgica, onde chove praticamente o ano todo, é complicado

pleut presque toutes l’année c’est compliqué et l’hiver il fait vraiment trop froid

e faz muito frio no inverno, seria perigoso para nossos corpos e

ca serait dangereux pour notre corps et cela userai le matériel très vite! Dans

gastaria o material muito rápido. Em condições ideais, precisamos

l’idéal il nous faut un pendule de 10 mètre donc il faut 11 mètres de hauteur pour

de um pêndulo de 10 metros, portanto, 11 metros de altura para

un bâtiment sinon on frôle le sol. Mais en spectacle on est vite à 10 mètres du sol

o edifício senão encostamos no solo. Durante o espetáculo, nós

et c’est completement differents pour le cerveau de jouer à 1 mètre du sol ou a 10

somos rápidos à 10 metros de altura e é completamente diferente

metre même si la longueur de corde reste la même! Ce quie est important aussi si

para o cérebro dançar à 1 metro do solo ou a 10 metros mesmo se o

la longueur de la corde change nos timming change et le défis de garder les mêmes

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comprimento da corda for o mesmo. O que é importante também rythme est plus difficiles .

é que se o comprimento da corda muda, nosso timming também muda e os desafios de manter o mesmo ritmo são mais difíceis.

Vídeo do espetáculo Androjeans

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Quelle est l’importance de conquerir les espaces dans les villes en ce qui concern la pratique artistique?

Qual a importância de conquistar os espaços na cidade em relação à prática artística?

Tudo que é visível é acessível e marca o espírito, os anunciantes Tout ce qui est visible est accessible et marque les esprits, les publicitaires

entendem isso! Se a arte, que existe desde a antiguidade, para

l’on bien compris ! Alors si l’art, qui existe depuis l’antiquité ,en tant que

divertimento e ensinamento sabe se apropriar da rua, ela se

divertissement et enseignement sais se réapproprier la rue , il devient un

tornou uma forte maneira de comunicação, uma maneira de

moyen de communication fort, il devient un moyen de rêve et de bonheur

sonho e felicidade.

Quoi essayez-vous de transmettre à travers de la danse?

O que você tentam transmitir atraves da dança?

Para este espetáculo, nós nos inspiramos

Dans ce spectacle on s’inspire de questionnement

nos questionamentos de gênero,

sur le genre ,en s’appuyant sur un texte de platon

utilizando como apoio um texto de Platão qui parle des androgynes.

que fala sobre os andrógenos.

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Pourquoi pensez-vous que les villes ne veulent pas laisser vous utilisez les bâtiments?

Por que vocês acham que as cidades não deixam vocês utilizarem os edifícios?

Isso demanda obviamente conhecimento afiado de técnicas de

CEla demande clairement des connaissances technique pointu en accrochés, en

suspensão e conhecimento sobre resistência dos materiais. Nós

connaissance de la résistance des matériaux . On accroche nos vie à une simple

penduramos nossas vidas em uma simples corda, não se esqueçam! corde ne l’oublions pas!

E sobre a questão do porquê as cidades não deixam usar os

Et à la sous questions pourquoi les villes ne veulent pas nous laisser de bâtiments

edifícios… Infelizmente, a não autorização aos edifícios resulta

… alheureusement le non accès aux bâtiments découle d’un cocktail suivant: Le

do seguinte coquetel: o fato de que não somos reconhecidos

fais que l’on soit pas reconnu nationalement .qu’il faille moulte autorisations pour

nacionalmente; que é necessário autorização para utilizar o

utiliser le patrimoine architecturale , et le peu d’intérêt de certaines personnes

patrimônio arquitetônico e o pouco interesse de algumas pessoas

haut placé pour l’art !Se savant mélange ,est notre défi quotidien contre lequel

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de alta posição pela arte. Essa mistura é nosso desafio cotidiano nous travaillons, pour créer des espaces d’entraînements et de spectacles.

no qual estamos trabalhando para criar espaços de treinamento e espetáculo.

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Espetáculo Androgeans. Escola de Circo Eccivol- Bruxelas - Bélgica. Foto: ManuGo

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Pourriez-vous parlez un peu sur cette attitude de defi? Pourquoi faites-vous ça? Comment choisissez-vous les bâtiments et quel lieu est le plus interessant?

Você poderia comentar um pouco sobre essa atitude de rebeldia? Por que vocês fazem isso? Como vocês escolhem o edifício e o lugar que e mais interessante?

Há sensação mais bela que se jogar sobre a gravidade, retomar

N’y a t’il pas plus belle sensation que de se jouer de la pesanteur, de retourner

nossos hábitos e de perturbar nosso olhar sobre a linha do

nos habitudes et de perturber notre regard sur la ligne d’horizon? Pourquoi on

horizonte? Por que praticamos a dança vertical, por que eu pratico

fait de la danse verticale, pourquoi je fais de la danse verticale ? Pour le plaisir de

a dança vertical? Pelo prazer de se superar, pelas novas sensações

se surpasser , pour les nouvelles sensations que cela procure ( enfin les envie de

que consigo com ela (as vontades de vomitar e as dores no ombro

nausée et les douleurs du baudrier, ne sont pas à prendre en compte jajjaja , ca

não são levadas em consideração hahaha vale a pena contar à

c’est pour vous pas la peine de le dire !), pour faire populariser cette discipline, et

vocês), para popularizar essa modalidade e pelo prazer do vôo e da pour le plaisir du vol et de la hauteur !

altura!

Le choix du lieu ca reprends la question d’avant … tous les bâtiments sont

A escolha do lugar remete à questão anterior… Todos os edifícios

intéressant et attrayants … même si pour le moment on joue sur des bâtiments

são interessantes e atraentes, mesmo que neste momento nós

ancien, église ,tour de château, bâtiment en ruine ou reconstruction. On a très

dancemos nos edifícios antigos, igrejas, torres de castelos, edifícios envie un jour de se lancé un défi de jouer sur un bâtiment vitré mais il nous

em ruína ou em reconstrução. Nós temos muita vontade de nos faudrat plus de temps d’adaptation sur place pour jouer avec les reflets !

jogarmos um dia sobre um edifício vidrado mas isso necessita mais tempo de adaptação no local para dançar junto com nossos reflexos! revista rasante nº 02 . 2018 . corpos diversos lugares

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Les villes sont le scenario de votre danse: où choisissez-vous danser? Vous m’avez dit “on peut dire la raison pour laquelle on choisit d’utiliser certains bâtiments, mais, en effet, on utilise ceux que la ville ne laisse pas”. Ça qualifie votre danse comme un type de protestation?

As cidades são o cenário da dança de vocês: onde vocês escolhem dançar? Você me disse “nós podemos dizer a razão pela qual nós escolhemos usar alguns edifícios mas, na verdade, nós usamos aqueles que a cidade não nos deixa”. Isto qualifica sua dança como um tipo de protesto?

Na verdade, nós não escolhemos os edifícios, nós conversamos

On ne choisit pas forcément notre bâtiments on discutes avec les organisateurs

com os organizadores do evento sobre as restrições artísticas e

d’événement sur les contraintes artistiques et techniques ! Une fois que tout le

técnicas! Uma vez que todos afirmam suas ideias, nós três tomamos

monde a fait valoir ces idées on prend une décision tout les 3 ,de la réalisation

uma decisão juntos sobre a realização do espetáculo, já conhecendo

d’un spectacle , en connaissance de l’espace de jeu disponible ,du danger ,de l’état

o espaço de ‘jogo’ disponível, o perigo, o estado do edifício… mas,

du bâtiment…. mais en générale chaque nouveau défi d’installation pour nous est

em geral, cada novo desafio de instalação para nós é um pequeno 63 leste

un petit plaisir personnel en plus du spectacle.

prazer pessoal, além do próprio espetáculo.

J’ai commencé la danse verticale avec un spectacle de protestation pour la

Eu comecei a dança vertical com um espetáculo de protesto pelo

fermeture d’un bâtiment. Mais aujourd’hui on le fait plus pour une mise en valeur

fechamento de um edifício, mas hoje nós fazemos mais para

du bâtiment que pour une protestation directement en lien avec le bâtiment .Mais

valorizar o prédio do que por um protesto ligado diretamente ao nous tenons à avoir une idée ou un message à faire vehiculer au passage.

edifício. Porém, nós permanecemos querendo ter uma ideia ou uma mensagem para fazer circular.

Espetáculo Androgeans. Escola de Circo EccivolBruxelas - Bélgica. Foto: CirK en StocK


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Aviez-vous une besoin prealable d’intervenir dans la ville ou il a ete une consequence de la danse?

Vocês tinham uma necessidade previa de intervir na cidade ou isto foi uma consequência da dança?

Os edifícios são para nós uma maneira extra de sermos vistos. O Le bâtiment est pour nous un moyen supplémentaire d’être vu. La gestuelle

gesto circense nos muros revisita as normas. Ele faz diferentes

circassienne sur un mur revisite les normes. Elle donne à apprécier différents

estilos de movimentos serem apreciados. Esse gesto mostra outras

styles de mouvements. Cette gestuelle fait apparaître d’autres perspectives sur le

perspectivas sobre os corpos no espaço. corps dans l’espace.

Eu acho sempre importante levar a arte à rua. Todos os artistas

J’ai toujours trouvé important de ramener l’art dans la rue, Les artistes de la

da companhia têm essa preocupação, essa vontade. Através

compagnie on tous ce soucis ,cette envie. Avec cette discipline visuel on souhaites

desta disciplina visual, nós desejamos misturar a arte do circo

mélanger l’art du cirque contemporain et l’événementiel en créant un spectacle

contemporâneo e o entretenimento, criando um espetáculo visual

visuel avec une idée de scénario et de message à faire passer. D’autres perspectives

com uma ideia de cenário e de uma mensagem a transmitir. sur le corps dans l’espace.

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Espetáculo Androgeans. Escola de Circo Eccivol- Bruxelas - Bélgica. Foto: ManuGo


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{ C

omment le groupe a ete cree?

omo surgiu o grupo?

Depois de voltar da Argentina, eu tive muita vontade de

De retour d‘Argentine, j’avais très envie de continuer la danse verticale en

continuar a dança vertical na Bélgica. Esteban Vin, um amigo

belgique. Esteban VIN un ami circassien (spécialisé en aérien) à eu une demande

do circo (especialista na dança aérea) recebeu um convite para

pour faire un spectacle sur un clocher d’église en flandre (parte de Belgica que

fazer um espetáculo em uma torre de igreja em Flandre (parte

habla flamengo). De la il a proposé à Sara MOLON qui fait de la corde lisse dans

da Bélgica que fala flamengo). Lá, ele sugeriu à Sara Molon, que le cirque.

pratica corda lisa no circo. Où est-ce que vous avez vous rencontre?

De onde vocês se conhecem?

Nós nos encontramos todos diretamente em um muro, 65 leste

On c’est donc rencontrer tous les trois directements sur un mur accrocher à une

pendurados em uma corda em uma sala de escaladas, em

corde à bruxelles dans une salle d’escalade. bien que Esteban connaissait déjà

Bruxelas. Estaban já conhecia Sara de um centro de treinamento

Sara d’un lieu d’entraînement de cirque . Noé et esté on voulait depuis longtemps

no circo. Nóe e Estaban tinham vontade havia muito tempo de travailler ensemble sur un projet aérien.

trabalharem juntos em um projeto aéreo. Pourquoi dansez-vous sur les murs et les bâtiments dans les villes?

Por que vocês dançam sob os muros e edifícios?

A resposta não será muito diferente para cada um de nós três.

La réponse sera peut être différente pour chacun de nous 3. Pour tous c’est l’envie

Para nós, é a vontade de adaptação ao espetáculo na rua porque é

d’adaptation du spectacle de rue,c’est une nouvelle possibilité d’espace scénique,

uma nova possibilidade de espaço cênico, uma criação adaptável

c’est une création adaptable et unique à chaque fois. C’est agréable de mettre

e única a cada vez. É agradável colocar a sua arte à serviço da

son art au service d’une architecture pour le mettre en valeur .pour Moi, c’est

arquitetura para valorizá-la. Para mim, é para encontrar um

pour trouver un lien artistique avec l’aérien qui ne m’est pas impossible du à ma

espaço artístico com o aéreo, onde não me é impossível devido blessure.

ao meu ferimento. arte à rua. noémia mérmim . cia laterrateral

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Espetáculo Androgeans. Foto: CirK en StocK

CIA LATERRATERAL

BÉLGICA

ENTREVISTA RASANTE BRUNO GERALDI MARTINS colaboração e traduções : THAYS GUIMARÃES

CIA LATERRATERAL NOÉMIA MÉRMIN

Integrante da companhia belga de dança aérea e vertical explica como jogam ao ar questões sociais e culturais através de seus corpos suspensos.

para ler e ouvir moonlight grenade, jason yang e jake moulton


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Festival Diagonales, La Plata, 2014. Foto: Ian Neumann

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Depois da Parede no Festival Habana Vieja - Ciudad en Movimiento Plaza de Armas, Habana, Cuba

Entrevista para o projeto Geografias de Cena

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Festival Diagonales, La Plata, 2014. Foto: Nata Neumann

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Festival Diagonales, La Plata, 2014. Foto: Nata Neumann


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“Dançar o Depois da Parede me conecta a um dever e me desprende desse chão. Limpa meus pés da cidade que cerca e coloniza.”

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Festival Diagonales, La Plata, 2014. Fotos: Ian Neumann

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E foi na cidade que essa dança provocou a lembrança de uma determinada história na área externa do Teatro Argentino, na cidade de La Plata, em 2014.

O momento em que me coloquei sobre um parapeito, apoiado a uma das paredes do teatro (foto à direta), remeteu os frequentadores do lugar à lembrança de um garoto que havia cometido suicídio dias antes, se projetando do mesmo local.

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Nos 6 anos dessa dança, passando pelas cidades de Guarulhos, Lençóis Paulista, São Paulo, Havana - Cuba e La Plata – Argentina, diversas histórias emergiram na relação com o público e fizeram meu corpo se entender anti-colonial.

Por mais que a cidade nos imponha limites, por mais racista e inflexível que ela seja.

O corpo que dança, se move em relação ao que veio antes dele, é um ato ancestral de resistência à colonialidade, uma resistência à cidade.

felipe cirilo . ensaio depois da parede

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Festival Diagonales, La Plata, 2014. Foto: Nata Neumann

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‘O mundo colonial é um mundo dividido em compartimentos. Sem dúvida é supérfluo, no plano da descrição, lembrar a existência de cidades indígenas e cidades europeias, de escolas para indígenas e escolas para europeus, como é supérfluo lembrar o apartheid na Àfrica do Sul’ FANON, Frantz. Os condenados da Terra. 2005 trad. Enilce Rocha e Lucy Magalhães, Juiz de Fora: UFJF, 2005

revista rasante nº 02 . 2018 . corpos diversos lugares


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ESSE É O MOMENTO EM QUE

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A DANÇA EXIS TE DESDE MU ITO ANTES DO QUE A HISTÓR TERMO ARTE IA COMPREEN EXISTIR, DESD D E A NOSSA VIDA ANTES, A DAN E NA TERRA. O C ÇA VEIO ANTE ORPO VEIO S DA CIDADE. MAS A CIDAD E É COLONIAL E NEGA O NOSS O CORPO. UM CORPO NE

GRO QUE SE M

O DEPOIS DA P AREDE ESTAV A NA CIDADE.

OVE PARA TRA NSPOR UM OB STÁCULO, PARA SUPERA R AQUILO QUE O BLOQUEIA.


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A CIDADE

COLONIZA O SEU CORPO

ELA DETERMIN A, DE CIDADE NÃO IM FORMA CONCRETA, COMO V OCÊ DEVE AGIR PORTA O QUE VOCÊ VIVEU A . PARA A ELA O NOSSO NTES DESSE M CORPO NÃO IM OMENTO, PRA PORTA.

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E NESSE CONT EXTO ESTÁ A HISTÓRIA DE U DEPOIS DA PA MA DANÇA QU REDE. E SE CHAM

A

ESSA DANÇA FOI CRIADA IN ICIALMENTE P UM TEATRO, M RA ACONTECE AS, NO ENDAR DENTRO DE ENCONTRO DE EM 2012, A CO D A NÇA DE GUAR MISSÃO DE SE ULHOS, LEÇÃO DOS TR ANGELA NOLF A B A LHOS, FORMA , DIOGO GRAN DA POR ATO E LUIS LO ACONTECESSE UIS, PROPÔS NA ÁREA EXT QUE A ESTREIA ERNA DO TEAT NEUMANN E E RO, A DIRETOR U TOPAMOS. A NATA revista rasante nº 02 . 2018 . corpos diversos lugares


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Festival Diagonales, La Plata, 2014. Foto: Nata Neumann

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O CORPO VEIO ANTES.

CONVIDO VOCÊ A LEMBRAR AGORA DE UMA SITUAÇÃO EM QUE


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A DANÇA É O RELATO VIVO DE UMA HISTÓRIA. DANÇAR É UM ATO DE RELAÇÃO COM TUDO QUE VEIO ANTES. ASSIM CORPO E CIDADE ATRITAM, SE NEGAM, SE RECUSAM E A CIDADE AGRIDE O CORPO.

A CIDADE AGREDIU O SEU CORPO,

UM MOMENTO EM QUE A ESTRUTURA URBANA TE OBRIGOU A VIVER ALGO QUE VOCÊ NÃO DESEJAVA...


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felipe cirilo . ensaio depois da parede

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Nis et perum cus, ut ut quia sum, si consequamusa ducimus. Onet ped qui sitisincto odi asperepro ommolupta velentisqui ut que pari apellabo. It eria nullecu llenditat et desequa tiaspie ndissus volorum quatibus, voluptaspe veligenis acepuda voluptatis re pelit, oditian ientur, sum qui alitatemo ipsam ipsae ento quam resti officit inveles perovidit, il innesequi cus quunt, cuptis audio enis si necusap erfero expquos alignamenda sam apidus ilibus dem etusannosaperferem exceptium, non rempos assitae solore pro blaut aut ut rera sum im venduciendem que eturem volum doluptas qui ut imolupt atusam, ipienlorio nsequiaes im rem doluptam est eum autemodigeni sit mosam fugitec tiandaescias mo maximpost, temped quaernam excerum quam sum inusciatur acipsam, occumquis eos si quaspit ventia qui ulpa doloraes inia volum nimporem si tem voloreh enimaxi moloria duntiost volupta tquunt lamus, quae esendi od moluptatius quae volorepudaFELIPE velit que eligendem res que eari imustem “Este ensaio é pra CIRILO dus. dizer que

Negro, artista do corpo, a cidade é uma emetdança pela FPA aut officabo. Ditatessint. Obitlicenciado et enimod adis maximus ferramenta - Faculdade Paulista de Artes. Erovide mpellabo. Dae etnoaut es duciiscolonial. maiorem Atua como performer NICdebitatiatia adi adio. Nam facere em officiamus.Ex Núcleo Improvisação Contato. earibus, venimus quo venim quo omnimen derumqu oditatur?

Ihilita tissendesed qui aut idundebit aut ad utem vent. Temoluptae num hit, ulluptaturio tectas nonsernat volupid qui a ad maximusam repeditate incitiur si rae aligenisOsapici toribea tureper ferumquunto qui volupta temodios quis eat veleserias mollam, conem quae re nam laccum fugit odionse ndigentota doluptatur reicia praesciatur aspiscillab ius dendi derrum arisFugit qui ut volorpor moluptae ex et officiePis eum nonsectem ut volor a corepre quiate porem rest harum et para ler assistir vellaut eturis doluptur autaepratem qui ate aut et am rem okinosmóv - um ballet nada russo, núcleo luz

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Festival Diagonales, La Plata, 2014. Foto: Nata Neumann

autoria . titulo

ensaio: DEPOIS DA PAREDE

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acervo livre, the british library



Duplinhas 04 Felipe Abreu oeste Elefante Branco: discutindo a insolubilidade da precariedade urbana atraves do cinema 36 Rafael Baldam oeste Planejador Regional e Lourdes 44 Gabriel Villas Boas oeste Vellum Nave 72 Helena Magon oeste Corpos Desobedientes: práticas tangíveis para compor no cimento 88 Fausto Ribeiro oeste A Cartografia Feminina 90 Thays Guimarães oeste


78 Ensaio depois da Parede leste Felipe Cirilo 66 Entrevista: Laterrateral leste NoĂŠmia Janelas que dĂŁo para outras 56 Campinas leste Yasmin Pinheiro 32 Os dois lados do mesmo disco leste Yara Boscolo Bragatto 16 Entrevista: Incubadora de Artistas leste Vitor Carvalho 06 Duplinhas leste Felipe Abreu

acervo livre, the british library


LUGARES DIVERSOS CORPOS Seu aqui é o lá de alguém Corpos reagem distintamente aos lugares. Ao passo que passam pela cidade, o que passa neles? Um corpo lembrado em um lugar esquecido. Naquele corpo ficaram rastros de outros lugares. O passo que constrói o caminho, que faz o desvio, que leva ao cais. A presença e o querer que transformam espaços em locais. No corpo, pinta, na cidade, tinta.

Thalita Castro, Bruno Geraldi Martins, Rafael Baldam

No território, lugares são feitos onde há apenas espaço. A memória, vivências subjetivas, desejos e pesadelos, são alguns instrumentos que trabalham nesse sentido: dotam de significado a cidade. No entanto, é preciso olhar para o agente, que desenha com tinta invisível uma urbe subjacente. O corpo carrega-se um universo dentro de si, e quando pisa no chão, este já não é mais o que foi; quando olha para o horizonte, este já possui outra cor. É luta pelo direito de pôr o próprio corpo onde se bem entende, sabendo que o espaço público é feito de conflitos, de estranhamentos. Presença. Contudo, é preciso estar presente para compreender um lugar, um espaço? A que distância começa a ausência? É fato que o corpo-agente transforma o território, mas não sem que este aplique sobre a pele o peso da urbanização (desigual), do passado rasgado da página, do rastro da vivência. Entre as marcas e pisadas, cada forma e corpo define uma ação. Na pausa, o olhar se inverte. Na mira, a busca por remarcações. Olhar e ser olhado, no espaço público todos são produtores de narrativas, musicadas, desenhadas, silenciosas, explosivas. Para todo corpo, obstáculos; para uns muros, paredes, para outros, livre passagem. A Revista Rasante n02 te convida para os infinitos meridianos dos sentidos opostos e complementares. Leia com seu corpo, a cidade, a revista.

Via de mão única movimentos peristálticos. Na calçada, qual a regra que vale? Caber no lugar que te cabe? Ver para crer? Estar para ser? Como olhar de longe e sentir de perto? Os dias de sarjeta alargam as rugas. Um corpo esquecido em um lugar lembrado. Naquele lugar ficaram rastros de outros corpos. Onde a uns, lar, a outros, algoz. Lugares reagem distintamente aos corpos.

Seu lá é o aqui de alguém

CORPOS DIVERSOS LUGARES


Thalita Castro Bruno Geraldi Martins Rafael Baldam Equipe de Colaboração

Yumi Neder Camila Torato Thais Andressa Luana Espig Regiani Thays Guimarães Camila Miki Ana Paula Oliveira Nasc. Igor Augusto Leite Andrey Marcondes

A Revista Rasante é uma publicação quadrimestral que propõe debates nas intersecções entre as artes e a cidade. Entendese aqui que a cidade é feita não só de sua materialidade, mas também de todos os sonhos, encontros e desencontros e poesias que a preenchem. Analisar a cidade a partir da ótica das representações artísticas, como o cinema, música, teatro, etc, é abrir possibilidades de leitura para o espaço vivido. A Revista Rasante é uma publicação independente, e conta com o aval de seu corpo editorial e dos autores para divulgação de seu conteúdo. Quer publicar na Rasante? Entre em contato conosco via Facebook, e-mail ou site.

Projeto Gráfico

Thalita Castro Bruno Geraldi Martins Rafael Baldam Autoras e Autores dessa Edição

Natan Ferreira, capa E-mail Laterrateral (Noémia), entrevista revistarasante@gmail.com Incubadora de Artistas (Vitor Carvalho), entrevista Facebook Yara Boscolo Bragatto, artigo https://www.facebook.com/ Helena Magon, artigo revistarasante/ Fausto Ribeiro, artigo Issuu Rafael Baldam, artigo https://issuu.com/revistarasante Yasmin Pinheiro, portifólio Site Felipe Abreu, portifólio https://revistarasante.wixsite.com/ Felipe Cirilo, portifólio artecidade Thays Guimarães, reflexão Endereço Gabriel Villas Boas, reflexão Rua Eugênio Leardine, 214, Itatiba/SP

ISSN 2594-8946

acervo livre, the british library

E XPEDIENTE

Corpo Editorial


revista rasante interseçþes entre arte e cidade

abril, 2018


natan ferreira



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