rasante
nÂş 4 . dezembro . 2018
intersecçþes entre arte e cidade
encontrar o outro
revista rasante interseçþes entre arte e cidade
dezembro, 2018
expediente CORPO EDITORIAL Thalita Castro Bruno Geraldi Martins Rafael Baldam
EQUIPE DE COLABORAÇÃO Camila Torato Thais Andressa Luana Espig Regiani Ana Paula Oliveira Nascimento Igor Augusto Leite Andrey Marcondes Fausto Ribeiro Telma Moura Rodrigo Vicente
PROJETO GRÁFICO Rafael Baldam
AUTORAS E AUTORES DESSA EDIÇÃO Laura Figueiredo, capa Marcelo Sousa Brito, entrevista Amir Haddad, entrevista Rafael Goffinet, ensaio Fábio Lopes, ensaio Anelise de Freitas, ensiao Lídia Oliveira, portifólio Juliana Maffeis, portifólio Adailtom Alves, reflexão
Revista Rasante n04 . Encontrar o Outro Dezembro, 2018 A Revista Rasante é uma publicação quadrimestral que propõe debates nas intersecções entre as artes e a cidade. Entende-se aqui que a cidade é feita não só de sua materialidade, mas também de todos os sonhos, encontros e desencontros e poesias que a preenchem. Analisar a cidade a partir da ótica das representações artísticas, como o cinema, música, teatro, etc, é abrir possibilidades de leitura para o espaço vivido. A Revista Rasante é uma publicação independente, e conta com o aval de seu corpo editorial e dos autores para divulgação de seu conteúdo. ISSN 2594-8946 Quer publicar na Rasante? Entre em contato conosco via Facebook, e-mail ou site.
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encontrar o outro editorial
É raro encontrar o outro na cidade. Raro, não como um evento que acontece com pouca frequência; mas raro como um momento singular e improvável. Atrás de cada um, um caminho empurra para o próximo encontro. Esse caminho, invisível, mas protagonista do imprevisto. Do amor à primeira vista à repulsa. Encontrar o outro é um choque, como se as diferenças entre nós chegassem antes das semelhanças. Ou então, as colocamos a nossa frente, um escudo. Mas um muro é sempre um muro, e o outro sempre está além dele. O caminho em direção a fora de si, mirando o encontro, é descoberta. É se entranhar nos sertões de uma pessoa. Conhecer alguém é como conhecer uma floresta, ou uma cidade. No encontro com a alteridade o mundo se faz maior. Maior do que o círculo que delimitamos ao nosso redor, maior do que nosso tempo. No outro está o passado, estão todos os futuros. Nesse choque, o tamanho do indivíduo é colocado na sua escala real, justaposto a outros indivíduos vê-se a grandeza do coletivo.
No outro está o segredo, que separa, que une. No outro a cidade se faz cidade, múltipla nas histórias que a levaram até ali. No entanto, a tarefa é árdua. Atravessar os muros exige ferramentas. Ferramentas de ver. Óculos, telescópios, microscópios, lupas, se acharem melhor. Propomos a construção dessas lentes a partir da representação do mundo: lentes de metáfora. A Rasante n04 faz o encontro do teatro de rua com os mapas que desenhamos dentro da gente; percebemos o que é a casa, o que ela esconde da rua? também a ardência da rua se faz presente; encontrase também o artista no contato com a cidade, em dois movimentos. Esta edição da Rasante lembra e reforça que não somos iguais, nossas diferenças são potências de soma, basta saber olhar.
Rafael Baldam
disputar a cidade e disseminar o afeto ADAILTOM ALVES hallazgos: mapas narrativos JULIANA MAFFEIS
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a casa se constrรณi na rua ANELISE DE FREITAS
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eu te amo, cidade em brasa LÍDIA OLIVEIRA amir haddad e a arte pública MARCELO SOUSA BRITO o olhar de dan graham para a cidade RAFAEL GOFFINET e FÁBIO LOPES
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disseminar o afeto
Disputar a Cidade ADAILTOM ALVES TEIXEIRA Professor no Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de RondĂ´nia; Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da UNESP; Ator e diretor teatral do Teatro Ruante; Articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.
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para ler e ouvir vamos pra rua, maglore
disputar a cidade e disseminar o afeto . adailtom alves
A sociedade não é una, mas sim um conglomerado, dividida por diversos grupos sociais. Por não estarem apartados de seu mundo e de seu tempo histórico, os artistas carregam valores de seu corpo social, ao mesmo tempo em que sonham e agem por meio do espetáculo, buscando criar uma nova cidade e uma nova sociedade.
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A arte, por sua vez, é valorada de acordo com o lugar e com o grupo social que a pratica ou a quem se destina.
Logo, apresentar-se para camadas populares, do ponto de vista de quem cria o imaginário dominante, não tem o mesmo valor, a mesma importância, daquelas obras e artistas que ocupam os espaços ditos consagrados, como os grandes teatros destinados à burguesia. Por isso o estético é condicionado historicamente, seja devido aos sujeitos que o produzem, seja devido às condições materiais de que dispõem esses sujeitos para sua produção.
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Dito isso, cabe destacar um ponto importante que diz respeito ao lugar, ao território e aos pedaços que o teatro de rua ocupa nas cidades, sejam elas grandes ou pequenas. Ainda que esses três conceitos tenham significados e conotações diferenciadas no campo das ciências sociais, aqui eu os utilizo como sinônimos, na acepção de espaços relacionais, identitários e de reconhecimentos dos grupos sociais. Se território e lugar implicam limites definidos, o pedaço diz respeito a uma rede relacional; implica sociabilidade, portanto, borra esses limites físicos. Assim, o pedaço torna-se móvel, pode ser transportado, por exemplo, da periferia para o centro e vice-versa, graças aos sujeitos que ocupam determinado lugar e estabelecem relações entre eles. E é nesse contexto que o teatro de rua entra na disputa do imaginário e de uma nova sociabilidade.
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era uma vez joão e maria...e ainda é, foto: leonardo valério
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O espetáculo teatral de rua, via de regra, proporciona a participação do indivíduo, não só como um receptor passivo, mas como alguém que age e interage com a obra, com o artista, com o espaço e com outras pessoas do público; ao mesmo tempo, essa modalidade teatral cria o sentido de festa coletiva, isto é, faz com que os sujeitos ali presentes se reconheçam enquanto cidadãos, enquanto grupo social e, por fim, Po são r isso como espécie, homens e de cap me mulheres que têm sua s a s a s c orga zes mo importância e sua im onv niza de força social. c po en r
ria sta çõe rem s e s ou de tra s.
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De que maneira? Ora, a própria apropriação de um espaço, que foi criado apenas para o ir e vir e o escoar de mercadorias, passa a ser um espaço de fruição da arte, realizando uma nova significação para os sujeitos envolvidos, ao mesmo tempo em que gera afetividade, isto é, atribui significados àquele lugar. Se os espaços da cidade e as determinações impostas pelas mesmas implicam relações de poder, apropriar-se de alguns desses
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lugares já é disputar a cidade e lhe dar novas significações. Ou seja, quando um grupo teatral forma uma roda, ele desorganiza para organizar; desorganiza o sentido e inicial lhe dando outro para os transeuntes, que, ao se relacionarem com o espetáculo criam vínculos afetivos com aquele espaço da cidade; ao tornar a passar pelo espaço o verá de outra forma.
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O que é a roda senão a criação de um território simbólico?
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Durante uma apresentação em roda, parte da cidade é reconfigurada, novos significados são criados para as pessoas que ali participam e que, portanto, criam afeto em relação àquele lugar da cidade, ao mesmo tempo em que podem fruir a obra e ver os demais à sua volta, criando certa comunidade, ainda que transitória, isto é, vendo e reconhecendo-se nos demais ali presente. Nesse momento há certa territorialização, relações e afetividades são criadas entre os sujeitos, com a obra e o lugar, criando novas significações e novas possibilidades de se imaginar a cidade. Ao trazermos o lugar de onde somos em nossas mentes e corpos, nessas trocas simbólicas, relacionais, ampliamos nossos seres; complementamo-nos com o outro, ao mesmo tempo em que podemos vislumbrar uma nova sociabilidade.
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Todos esses elementos complexos estão envolvidos em uma apresentação teatral de rua. Daí a importância também de, ao criar, se saber com quem queremos dialogar, bem como pensar em como será esse diálogo com o público, não de forma determinada, mas como Todos esses elementos complexos estão obra aberta, porosa, para que envolvidos o espectador possa ser um em uma apresentação teatral de rua. Daí a importância também de, ao criar, se saber cocriador. com quem queremos dialogar, bem como pensar em como será esse diálogo com o público, não de forma determinada, mas como obra aberta, 16 porosa, para que o espectador possa ser um cocriador.Todos esses elementos complexos estão envolvidos em uma apresentação teatral de rua. Daí a importância também de, ao criar, se saber com quem queremos dialogar, bem como pensar em como será esse diálogo com o público, não de forma determinada, mas como obra aberta, porosa, para que o Todos esses elementos espectador possa ser um cocriador. complexos estão envolvidos em uma apresentação teatral de rua. Daí a importância também de, ao criar, se saber com quem queremos dialogar, bem como pensar em como será esse diálogo com o público, não de forma determinada, mas como obra aberta, porosa, para que o espectador possa ser um cocriador.
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para ler e ouvir quiet city, aaron copland
mapas narrativos revista rasante nยบ 04 . 2018 . encontrar o outro
JULIANA MAFFEIS Escritora e arte-educadora. Mora em Porto Alegre, RS. É licenciada em Letras, especialista em Teoria e prática na formação do leitor e mestranda em Escrita Criativa (PUCRS). É autora de Solitária Companhia de Teatro (Editora Patuá, 2017).
As colagens a seguir fazem parte de uma série de mapas narrativos que acompanham Quando comigo, ficções breves em processo de construção. Descobri na cartografia afetiva uma representação de superfície para pensar o caminho de minhas personagens. Nas dobras do papel colado, ouvi as vozes de mulheres comuns, que não estão nas revistas ou na TV nem são descritas nos livros. Compondo narrativas visuais – através do encontro de imagens – enxerguei conflitos sobrepondo desejos, neuroses encontrando legendas, vozes escondidas de si mesma. Ao tentar libertar imagens velhas de sentidos viciados, inventei um roteiro para compreender por onde querem andar minhas personagens. Chamei as colagens de mapas e os mapas de hallazgos, palavra que pode significar descobertas ou achados e, pra mim, fala um pouco desse sentimento que envolve a concepção do momento. Nesse processo, duvido da essência de tudo que vejo. Passo a questionar o que é um texto, o que é uma imagem, do que falam todos quando falam dessas coisas? Questionei a unidade de sentido como especificidade de cada área para construir o texto-imagem, uma vez que passei a entendê-los como membros de um mesmo discurso. Ao incorporar para a experiência narrativa a artesania própria do corte, da sobreposição, da justaposição, do vazio, da interrupção, do encaixe: passei a interpretar os ruídos urbanos que gritam socorro (ou seria liberdade?) do alto de um arranha-céu.
hallazgos: mapas narrativos, juliana maffeis
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ANELISE DE FREITAS Doutoranda em Estudos Literรกrios pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Atua como docente, poeta, pesquisadora, revisora e tradutora. Atualmente, pesquisa a performatividade da casa nas poesias brasileira e argentina. para ler e assistir dogville, lars von trier, 2003
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INTRODUÇÃO
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Para um arquiteto a casa pode ser apenas um espaço para proteger as pessoas e seus corpos, um lugar da ordem do comum. Um arquiteto poderia não pensar sobre o conceito de casa, porque a casa é (ou a casa é onde se vive, simplesmente). Até a Revolução Agrícola (ou Revolução Neolítica, como a chamam alguns historiadores), que aconteceu mais ou menos entre 9000 e 7000 aC, as culturas humanas praticavam o nomadismo, isto é, não estabeleciam um ponto fixo para demarcar sua moradia, vivendo entre um lugar e outro à procura de alimentos. Alguns povos, na atualidade, ainda praticam o nomadismo, mas a partir da domesticação dos reinos vegetal e animal o ser humano tornou-se sedentário. Com a fixação em um ambiente determinado para a moradia, não só a alimentação do ser humano passou por mudanças, mas também seu corpo, sua arte, sua política e, claro, sua arquitetura. Ali começava a se estabelecer os princípios da propriedade privada, onde o homem começava a demarcar o que era ou não seu, o que estava externo ao seu espaço; uma casa e uma rua prototípicas. O homem que precisava caçar e mudar-se constantemente para buscar o que comer não tinha outros objetivos que não o de sobreviver. Entretanto, a partir da dominação das técnicas de cultivo e armazenamento dos alimentos e da construção de instrumentos, abundava tempo para engenhar outras atividades sociais. Assim, talvez seja certo dizer que enquanto era essencialmente nômade, o ser humano buscava apenas sobreviver, mas quando passa a residir em um lugar fixo e dominar a natureza, desenvolve suas ciências e, consequentemente, galga outros sustentáculos que não só sobreviver. A casa parece uma dessas coisas sobre as quais não pensamos a respeito, porque são dessas coisas que, aparentemente, estão postas no mundo justamente para não demandarem uma reflexão. Embora a topoanálise seja habitual no campo da literatura, poucas vezes pensou-se esse espaço da casa como uma construção performática no
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pensamento crítico. Isso porque a casa, na literatura, parece estar nesse lugar do trivial, afinal, todo texto literário se passa em um espaço e esse espaço, normalmente, é a casa (ou um cômodo, ou alguma outro lugar fechado). Além disso, a casa é sempre o espaço onde vive a burguesia aristocrata, e não pega bem, em tempos da ascensão dos estudos literários e de seu abertura a novos campos do conhecimento, falar sobre um espaço de tamanha opressão (para mulheres, negros, crianças, e demais minorias), porque uma coisa é certa: a casa nunca é um espaço de tranquilidade. Entretanto, a literatura é um modo de pensar a sociedade; e a casa pode ser um modo de pensar a literatura. A concepção de sujeito do século XX, começa a partir dos impactos da sociedade moderna. Não se pode mais resguardar o sentido de sujeito do século XIX, pois no século XX as duas grandes guerras e o surgimento das teorias pós-coloniais e pósestruturalistas, por exemplo, criam inúmeros problemas do sujeito. A modernidade, por exemplo, marca, sobretudo, uma transição do pensamento cartesiano - operado por Descartes para o pensamento da autonomia da razão. Essa mudança de pensamento, sublinhada pela Revolução Industrial, tem seus pilares na passagem para o sistema capitalista. Quando a poesia do simbolista Charles Baudelaire começa a se marcar pelo movimento crescente das ruas de Paris e sua atitude de flâneur, isto é, de caminhante daquela cidade, o colocam em uma relação com a rua, a recente industrialização da cidade parecia colocar o espaço da casa como um lugar menor, pois a sociedade passava a acontecer no externo. As sociedades modernas tendem a constante mudança, característica própria do processo de modernidade, além da rapidez e fluidez fiéis. Entretanto, mais recentemente, a casa é um lugar em voga justamente porque o desenvolvimento do sistema capitalista colocou as pessoas cada vez mais dentro desse espaço, já que a rua se tornou um lugar hostil. Assim, a casa se tornou um instrumento da propriedade privada e um espaço comumente relacionado à segurança.
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Com o passar do tempo, esse sujeito começa a sentir os impactos do mundo moderno e a noção idealizada de sujeito – como um ser autônomo – começa a se romper. O século XX surge e com ele inúmeros problemas do sujeito vem à baila. O impacto dessa modernidade se define por um esfacelamento desse sujeito. O trabalho de Marx é redescoberto e a definição de sujeito choca-se com a acepção marxista de que a história não é feita somente por um indivíduo, mas pelas condições que esse indivíduo possui. Afirmações como essa implica que o sujeito não agencia a sua individualidade. Outro grande marco do esfacelamento desse sujeito é a violência da primeira metade do século XX, materializada nas duas grandes guerras mundiais.
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É também com a Revolução Industrial que nasce a classe operária e a classe trabalhadora, isto é, toda aquela classe que vende sua força de trabalho e está em oposição à força capitalista. Assim, o próprio conceito de casa se modifica conforme a classe social e, principalmente, conforme a própria sociedade. (Aqui poderíamos definir entre uma grande massa ocidentalizada - a partir de um visão eurocêntrica - e os povos do oriente - tais como os chineses, japoneses, indianos, os países de África, etc. Não é objetivo deste ensaio definir o que é oriente e ocidente, mas, brevemente, aponto que o ocidente é uma grande massa, porque se impõe sobre ele uma cultura que coloca a Europa como um grande centro produtor de cultura. Sabe-se que a América Latina, por exemplo, é uma região repleta de cultura e repertórios próprios, mas impõe-se sobre ela a cultura européia colonizadora e, posteriormente, o imperialismo estadunidense.) A casa aparece, via de regra, em contrapartida a uma família: A casa é, então, a “materialização” da família, o espaço ritual onde seus membros interagem; é, também, o locus da reprodução da força de trabalho de seus membros individuais, na medida em que a família é uma estrutura de reprodução (Fausto Neto, 1978), e ainda, como coloca Macedo (1979),
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é no seu interior que as famílias constroem o seu mundo próprio e, através dele, se relacionam com o mundo externo. Ou, como me foi dito em Brasília, “o pobre só é gente dentro da casa dele”. (WOORTMANN, 2018, p. 120) A casa é “uma entidade definida com extrema precisão social no caso brasileiro e portanto sujeita a uma série de atenções altamente conscientes – ritualizadas e solenes” (DAMATTA, 1985, p. 09), o que explicaria a cerimônia que fazemos para receber outras pessoas em nossas casas, sempre criando desculpas; recebemos visitas em nossas casa, via de regra, pela sala, que (junto ao jardim e a porta de entrada) é o que liga o interno e o externo (ou a casa e a rua). A casa é um palco onde nossos corpos performam no encontro com esse espaço, isto é, a casa é espaço para abrigar não uma família, mas uma sociedade. A organização nuclear clássica dessa casa (excetuando-se as novas formações familiares, claro) é feita, básica e historicamente, sobre dois pilares: “o pai de família” e a “dona de casa”. O pai é aquele que vai para o mundo externo vender sua força de trabalho, enquanto a mãe gerencia a casa a partir da força de trabalho vendida pelo homem. Essa organização é mais que o próprio núcleo da família que se reúne em casa aos domingos para o almoço em família, mas sim uma tendência ideológica. Dessa forma, por mais que encontremos outras composições familiares, não será difícil encontrar ainda essa estrutura ideológica, onde alguém assume o papel do pai de família, enquanto outra pessoa assume o papel da dona de casa. Entretanto, na contemporaneidade do sistema capitalista, a “dona de casa” assume, muitas vezes, outras funções e se confunde com a posição ideológica do “pai de família”, mas uma coisa é certa: a casa não deixará se estar sob seus cuidados. O movimento feminista promoveu diversas mudanças sociais.. A literatura, como esse bem simbólico e social, acompanhou essas
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mudanças. A partir do século XX, a literatura tem um apelo pelo corpo e por seu lugar na sociedade. Assim, o código linguístico social e literário se articulam cada vez mais em prol de um fortalecimento das experiências de linguagem do ser transformado. A casa, nesse campo, tem atuado como uma metáfora para o corpo. Quando falo que o discurso da casa é um discurso em relação com a rua, creio que essa relação só seja possível porque as mulheres, principalmente a partir da tomada organizativa do século XX, transformaram-se de antagonistas em protagonistas da história e buscaram seu lugar de legitimação no discurso da rua. Entretanto, factualmente, a mulher nunca saiu da casa.
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A literatura é uma maneira de idealizar o mundo, não se produz literatura dissociada da sociedade. O que parece certo é afirmar como o território toma a regência da identidade, isto é, aquilo que somos perpassa o contato com as paisagens habitadas. O sujeito cartesiano era um ser mental, enquanto na contemporaneidade o corpo (ou a matéria) começa a esquadrinhar seu lugar, seu espaço identitário. O corpo é uma preocupação desse sujeito e, principalmente, o espaço que esse corpo habita. No que diz respeito ao estudo histórico e social da sociedade brasileira, a casa aparece como um lugar de privilégio. Entretanto, esse espaço da casa, ao contrário da dicotomia público e privado - onde o público é o espaço da sociedade, enquanto o privado é o espaço do indivíduo - expõe uma dinâmica social e as suas mazelas. A casa só faz sentido na oposição, no contraste ou, como prefiro chamar, na relação. Assim, não é possível falar sobre a casa ou a rua, pois esses lugares não atuam de maneira dissociada, então o certo seria falarmos sobre a casa e a rua. O espaço é como o ar que se respira. Sabemos que sem ar morremos, mas não vemos nem sentimos a atmosfera que nos nutre de força e vida. Para sentir o ar é preciso situarse, meter-se numa certa perspectiva. [...] Do mesmo modo, para que se possa “ver” e “sentir” o espaço, torna-se necessário situar-se. (DAMATTA, 1985, p. 25) revista rasante nº 04 . 2018 . encontrar o outro
Há uma expressão que diz que nunca se começa a construção de uma casa pelo teto, a construção de uma casa deve começar sempre por sua base, sua fundação. A construção de uma casa necessita também de buracos que liguem o interno e o externo, como as janelas e as portas; a porta é esse deslocamento da casa. A cidade tem sempre sua demarcação espacial, dividida de maneira hierárquica entre o centro e a periferia. Não se pode falar de espaço sem falar de tempo. Somente as sociedades mais individualizadas vêm tempo e espaço de forma dissociada. Enfim, os poemas que se dedicam à casa não tratam esse espaço como um lugar de supremacia da identidade e da segurança; e a questão da linguagem é premente, como se ela própria e o corpo por onde percorre fossem essa espécie de lugar da casa. Embora lide com um lugar normalmente relacionado ao imóvel e a algo parado, a casa demonstra que na contemporaneidade expressa-se nessas poéticas como uma mobilidade, pois elas lidam diretamente com esse corpo presente em constante deslocamento. Ainda mais contundente é a observação de Saint-Hilaire que nos visitou em 1816 e 1822. Falando do espaço das casas diz este viajante: “Nas casas dos pobres, assim como nas dos ricos, existe sempre uma peça denominada sala, que dá para o exterior. É aí que se recebem os estranhos, e se fazem as refeições, sentados em bancos de madeira em torno de uma mesa comprida. A gente abastada tem o cuidado de reservar na frente de sua casa uma galeria ou varanda, formada pelo teto que se prolonga além das paredes, e é sustentado por colunas de madeira. Fica-se geralmente nessas galerias e, em todas as estações, aí se respira um ar fresco, igualmente ao abrigo da chuva e do ardor solar. O interior das casas, reservado às mulheres, é um santuário em que o estranho nunca penetra, e pessoas que me demonstravam a maior confiança jamais permitiram que meu criado entrasse a cozinha para secar o papel necessário
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à conservação de minhas plantas; era obrigado a acender o fogo fora, nas senzalas ou em algum alpendre. Os jardins, sempre situados por trás das casas, são para as mulheres uma fraca compensação de seu cativeiro, e, como as cozinhas, são escrupulosamente interditados aos estrangeiros”. (DAMATTA, 1985, p. 44 apud p. 96, 1975)
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Para o sociólogo, nas sociedades ocidentais, capitalistas e majoritariamente protestantes, há um predomínio do individual pelo coletivo. Assim o problema está sempre no coletivo, no todo, na sociedade. Nas sociedades em que impera o sistema coletivo, o problema está, justamente, na individualização. Para DaMatta, o “sistema ritual brasileiro” é uma maneira de “propor uma relação permanente e forte entre a casa e a rua, entre “este mundo” e o “outro mundo”” (DAMATTA, 1985, p. 52), isto é, as práticas relacionais da festa, o cerimonial, o ritual e o momento solene são separadas e complementares da mesma sociedade e, assim, compõe o mesmo sistema. O que percebemos como o destoante da nossa sociedade seria apenas uma outra faceta da sociedade, um outro ponto de vista, um outro sistema. É justamente por isso que a relação entre a casa e a rua é extremamente complexa; desde cedo relacionamos certas práticas à casa e outras à rua.
A CASA COMO UM CORPO QUE HABITA A RUA (OU A RUA COMO O CORPO QUE PERPASSA A CASA) O que marca a noção de história é a escrita. Tudo o que aconteceu antes é conhecido como pré-história. O período no qual os seres humanos desenvolveram as primeiras ferramentas, ferramentas essas fundamentais para toda a posteriori do ser humano e seu próprio corpo, ferramentas rudimentares como instrumentos de corte feitos com lascas de pau ou pedras, ficou registrado como pré-história. Ou seja, é algo que antecede o que conhecemos como história. O que o corpo diz deveria ser a história primeira, pois é ele, entre pré-história
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e história, o elemento imutável. O corpo pode ser analisado pela história, pela psicanálise, pela biologia. Esse corpo do texto é o corpo das textualidades poéticas como produção de pensamento. Se não há história que valorize o corpo, talvez seja o momento de pensar a sua história. Talvez nenhuma outra época tenha valorizado tanto o corpo como a Grécia Antiga. No período que abrange de 1 100 a.C. a 146 a.C., o corpo era tão valorizado quando a mente, e isso fazia parte dos princípios da época. Em suas próprias casas os meninos começavam a exercitar seus corpos desde muito; muitas academias de ginástica da época se desenvolveram perto de academias filosóficas, pois uma coisa não poderia estar dissociada da outra (GUMBRECHT, 2010). O pensamento que se desenvolveu junto à Idade Média chegou cerceando o corpo e o colocando em um lugar de imundície. E até o século XIX a ideia de corpo se formou a partir de um ponto de vista cartesiano. A definição da filosofia platônica, que dividiu corpo e alma em uma dicotomia maniqueísta, influenciou o pensamento ocidental, que viu o corpo como um pecado, como algo impuro. [...] compreendiam “o corpo” como matéria inerte que nada significa ou, mais especificamente, significa o vazio profano, a condição decaída: engodo e pecado, metáforas premonitórias do inferno e do eterno feminino. (BUTLER, 2017, p. 223-224) A história do corpo é a história da civilização. Nosso corpo conta a história evolutiva de nossa espécie. O austríaco Erwin Wurm, na exposição O Corpo é a Casa, propõe uma interlocução lúdica entre os objetos comuns, a fim de inverter a lógica da sociedade de consumo através de um exagero de suas próprias formas. Aquilo que vai se tornando inadequado, onde a casa expulsa os objetos porque atinge um sentido maior que o arquitetônico. A casa expele como um corpo coloca fora as impurezas. Uma das relações
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possíveis entre a casa e o corpo seria justamente o fato de que esse lugar pode assume um sentido metafórico, no qual a casa e corpo ganham uma dimensão comparativa. Agindo como uma casa, ao corpo se atribui certos sentidos por analogia. No que tange à literatura, o corpo tem se manifestado porque o estudos literários têm se aberto à novas metodologias. Assim, o corpo presente tem estado em voga nos estudos de recepção, por exemplo. Entretanto, o corpo do leitor tem sido ainda uma entidade sem subjetividade. Muito se fala sobre o corpo sem que se deixe o corpo atuar. O corpo é o instrumento de sentir o mundo; coberto pelo maior órgão, a pele, o corpo é o lugar de contato entre o dentro e o fora. Isso não se distancia da experiência estética, para Zumthor (2014) a natureza do poético advém da percepção sensorial.
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Melhor seria intervir o movimento: partir empiricamente do que poderia ser ponto de chegada (a percepção sensorial do “literário” por um ser humano real) para poder induzir alguma proposição sobre a natureza do poético. (ZUMTHOR, p. 27, 2014). O corpo também exerce papel fundamental na recepção e leitura do literário, pois é ele que percebe e reage à presença. O corpo materializa, determina a relação com o mundo; o possuímos, somos o corpo. Ou seja, “o corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos” (ZUMTHOR, p. 27, 2014). O corpo não é totalmente recuperável; é indomável. Quando só existe aparência não existe corpo. Ele nunca está ligado totalmente ao grupo nem ao eu; isso tange a operação de leitura. O corpo é uma preocupação desse sujeito e, principalmente, o espaço que esse corpo habita. O estudo da casa como um topos representa pensar questões da identidade através do corpo, isto é, o corpo atuaria como o fio condutor da experiência e isso seria diretamente relacionado ao processo identitário. Nessas poesias contemporâneas, o corpo apresenta-se como um lugar na construção das poéticas porque
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também é ele que pode dar conta da linguagem, que reduziria tudo ao lugar do significante. Pizarro diz que de todas as mudanças que aconteceram com o avanço dos estudos de gênero ao longo das últimas décadas, o “tránsito de las perspectivas” (PIZARRO, 2001, p. 144) é o que se possibilitou de mais importante. Principalmente, porque essa mudança de perspectiva organizou os traços dos problemas enfrentados pelas mulheres latino-americanas. Essa mudança possibilitou averiguar as condições da mulher nos setores econômicos, laborais e de saúde, por exemplo; isto é, a mulher passou a ser vista como um sujeito. A autora faz uso da teoria dos campos, do sociólogo francês Pierre Bourdieu, ao utilizar um exemplo de uma empregada e uma patroa que assistem ao mesmo programa, mas fazem leituras distintas porque os capitais simbólicos estão cruzados pelo histórico de acesso à cultura. Ou seja, nosso continente é classista e as mulheres galgarão de diferentes maneiras os pilares culturais. [...] la subordinación de la mujer aparecería allí como producto, por una parte, de factores culturales tradicionales; por otra, de factores modernos, insertos ambos en un contexto de dependencia económica y política (Savané, 1982:1-1). Esta situación específica condiciona su participación y sus expectativas, su mirada sobre el mundo y su imagen de sí misma, condiciona la dimensión simbólica de su existencia. (PIZARRO, 2001, p. 144). A racionalidade e o afeto, quando falamos de mulheres, são variáveis que estão permanentemente se cruzando. Para a autora, seria melhor se conseguíssemos ver os feitos culturais das mulheres (coletiva ou individualmente) como textos que se organizam em “estructuras simbólicas” (PIZZARO, 2001, p. 145). Pizarro volta sua reflexão sobre as mulheres na América Latina, mas tem ciência do trabalho dificultoso que é tentar definir uma totalidade sobre as mulheres latino-americanas, porque falar em totalidades é sempre
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um desafio na América latina, e esse próprio conceito não cansou-se de significar uma pluralidade, ou seja, é um conceito em evolução. El espacio de la casa, en cambio, que genera un discurso específico, es un espacio de mucha mayor complejidad y condiciona un discurso por lo tanto con mayores determinaciones, asentado en un ámbito que es fundamentalmente privado, pero que está interferido en distintos niveles y en distintos grados, dependiendo de variables de clase, área geográfico-cultural, ubicación étnica, inserción en ámbitos rurales o urbanos, tradicionales o modernizadores, de acuerdo a las líneas diferenciadoras que situábamos más arriba, por el espacio de la calle. (PIZARRO, 2001, p. 148).
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No discurso da casa, ainda hoje em dia, pode se notar que a violência e a loucura são símbolos frequentes. Assim como pragmaticamente a violência e a loucura afetam a vida das mulheres. A América Latina é hoje o lugar mais perigoso para ser mulher, onde mais se mata mulheres fora das regiões em conflitos de guerra. E a loucura é sempre atribuída às mulheres que fogem do padrão social do que é ser mulher ou àquelas que denunciam os casos de assédio e violência de gênero sofridos.
A CASA E A RUA COMO OPERADORES PERFORMATIVOS NA POESIA O que objetivei até aqui, no decorrer dessas linhas que tangenciei, é mostrar que a casa pode ser uma maneira de ler poesia contemporânea a partir do século XX, porque mesmo que a rua passe a fazer parte da escrita poética (e, principalmente, dos agenciadores de leitura dessa poesia) é a casa um espaço muito presente nesses textos. E isso não acontece porque a casa se tornou um lugar propício ao aconchego, enquanto a rua se converteu no lugar da desordem. Talvez essa seja uma leitura possível, pois o caminhante da cidade percebe-a como um lugar conflituoso e inseguro. Entretanto, a casa não atua
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como o lugar oposto ao da rua, sendo lugares complementares. Isto é, não é possível falar de casa ou rua, mas sim de casa e rua, pois esses espaços se comunicam de maneira simbiótica. A essa maneira de ler a poesia chamo de performatividade da casa. Entretanto, esse conceito de performance é de difícil definição, pois ela possui um caráter de complexa compreensão: a sua permanência. Muitos dos que pensaram a performance usaram seu caráter efêmero como um dos critérios para sua definição, mas para Taylor (2013) esse é um caráter político. Pensadores como Judith Butler criaram novos termos derivados da performance, tais como a performatividade. É por causa de sua interdisciplinaridade que a performance se estabelece como esse elemento que liga os circuitos e preenche os espaços. Como “os estudos da performance oferecem, então, um modo de repensar o cânone e as metodologias críticas” (TAYLOR, 2013, p. 59), é imprescindível repensar os estudos culturais a partir das textualidades, ou seja, a partir da expansão desses materiais (escritos ou não). O que Taylor propõe é a performance incorporada, essa prática que se mantém como um repertório, capaz de perpassar a memória – uma memória que se desenvolve no corpo – e não uma memória arquival, isto é, aquela que se desenvolve pelos documentos e textos. O espaço da casa, assim, converte-se em um espaço performático dentro da escrita poética. Na poesia, normalmente, há uma busca da imagem da casa em contraposição a rua. Se ela não é um lugar seguro e ameno, a rua é menos ainda. A cidade surge como esse elemento que une a casa e a rua. O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade tem, comumente, sua obra relacionada a um certo posicionamento do eu perante o mundo, isto é, segundo alguns que se debruçaram sobre sua obra, há uma fase - como no livro “A Rosa do Povo”, por exemplo - em que Drummond estaria buscando em sua obra o esfacelamento da identidade do eu dentro de um mundo cercado pelo tecnicismo e pelas violências do capitalismo de mercado
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do século XX. Essa análise, obviamente, não é de toda equivocada, entretanto, há nos poemas do mineiro uma acepção do espaço da casa. No poema “Morte de Avião”, por exemplo, o corpo cansado de ser apenas uma parte da engrenagem da sociedade capitalista sem sentido e que não vê razão para o viver, já que o corpo se assemelha a uma máquina - em que desgastada, troca-se - busca ali no final do dia a sua morte. Tomado por uma leitura literal, ao final, no último verso, o corpo da voz do poema vai confundir-se com um avião que cai (“caio verticalmente e me transformo em notícia”); mas lido de uma maneira metafórica, esse corpo chega exausto à casa todos os dias, pois repete-se dentro de um sistema que não o enxerga. Ali, entre o mundo e a casa, morre cotidianamente, pois a casa de seu espírito e de suas vontades - seu corpo - é um objeto que engendra a máquina, sem completá-la.
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O homem que volta à casa para se limpar, porque a casa é o lugar da purificação. Mas tal qual o aeroporto, é feita de vidros, aço e cimento. Assim, esse homem não encontra sossego em casa e é dela que alça voo rumo à morte. Ao embarcar para a viagem de avião à negócios (a partir dessa leitura literal do poema), o corpo morre também na partida para a segunda morte. Assim, o corpo ganha contorno metafórico de uma avião porque o avião é máquina, por essência, mas rompe os blocos de ar. O corpo e a máquina convertem-se para romper a lógica dos números. O avião, massa de ferro no ar, máquina perfeita que rompe o céu, é um corpo-espaço que agora cai verticalmente, como um corpo que cai da janela de um apartamento. Nesse afã de buscar sempre uma rua que se contraponha à casa (e sem paradoxos) a casa representa um lugar também de mobilidade. E isso não faz desse deslocamento um movimento mais fácil. O caso de Eduardo Jorge e Ana Martins Marques é um exemplo desse tipo de deslocamento que se dá entre cidades e também dentro da cidade. Jorge viajou a Paris, onde ficaria durante um mês e, enquanto isso, cedeu seu apartamento, no edifício JK, em Belo Horizonte, à
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Marques. Um fato interessante é que a poeta também era residente da capital mineira e trocou simplesmente de apartamento, mas não de cidade. Os dois, a partir dessa experiência, escreveram um pequeno compêndio de poemas intitulado Como se fosse a casa. Outro fato interessante é que ambos escolhem, principalmente, a imagem da casa para construir a arquitetura de seus poemas. Isto é, ao contrário do flâneur baudelairiano, esse flâneur contemporâneo se espanta com a imagem da casa - que pode até levar à rua - mas não com o caminho que leva a ela. Assim como na poética de Drummond, há um corpo metaforizado, no caso de Ana Martins Marques e Eduardo Jorge se metaforiza na própria casa. E esse corpo supre as vezes da casa, ou melhor, da casa como esse lugar de identidade. O corpo performa um habitar “como se casa fosse / a casa, como se a casa fosse / fóssil, casca, espaço físsil” (JORGE, 2017, p. 25) e no jogo de linguagem em aliteração há uma casa-corpo. “Este erro eu, a casa, lar, ele pensa” (JORGE, 2017, p. 25) a casa como uma morada, mas a casa-eu é um erro. Não no sentido de um equívoco, mas como um desvio. As casas abandonam a si mesmas fogem de si mesmas um dia você retorna e a casa não está lá está apenas seu molde casca ou carcaça sai então à caça da casa em viagem ou fica lá onde já não está (MARQUES, Ana Martins, 2017, p. 45)
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A casa e o corpo convertem-se em uma coisa só; buscar a casa perdida é buscar-se a si mesmo. Como se fosse a casa, o corpo já não está porque ele muda constantemente e deslocar-se é buscar esse corpo, isto é, a casa é um lugar não-fixo, mas sim um lugar de deslocamento, de desreterritorializar-se. A casa, por si só, já é um lugar de subalternidade, onde comumente habita o privado, o secreto. A casa funciona como uma indexação (e é importante ressaltar que as práticas indexárias mudam conforme muda a sociedade). O casa, no Brasil, teve sempre a conotação do lugar elitizado, da aristocracia, enquanto a rua seria o lugar das classes, onde a sociedade se desenvolvia. Entretanto, o importante é compreender que a sociedade se estabelece na interlocução entre essas faces: casa e rua. Assim, essa experiência da casa convertida em corpo é o que de mais premente há nessa poesia contemporânea brasileira; e a casa e a rua nunca andam sós, mas sim operam na escrita e na leitura dessa poesia de maneira performática e associada.
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porque os caminhões nos atropelam e ainda saímos vivos sempre estou lá para tirá-lo das ferragens e chorar de perto as dores que elas lhe causam porque eu sonhei com caminhões que vinham com tudo para cima de nós e me assusta o fato de eu ter gritado eu te amo, eu te amo é tão estranho como acordar chorando por tê-lo visto sorrindo depois da queda eu te amo é tão estranho quanto esperar a dor passar você entre as ferragens uma infestação de formigas nas folhas em que você escreve estamos presos entre ferragens e levantar caminhões para dizer eu te amo é tão estranho
eu te amo
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houve um dia em que você disse sobre como a cidade fica mais quente à noite quando ninguém sai de casa, além de nós eu sempre tive medo da cidade dos carros e da fumaça mas nunca dos seus dedos e de como eles se encaixam nos meus quando você passa o cigarro para mim tudo se desloca o fogo, a fumaça e a pele o segundo que existe entre seu dedo e o meu numa tensão clandestina * as luzes da cidade não são um filme com nossos corpos à distância saímos de madrugada de dentro um do outro nossas línguas não se cruzam nossas pernas em compasso em cima da ponte, em cima de nós seus cílios em cima dos meus olhos de cima dos muros nos vemos buscamos as mãos sua voz dentro da minha boca um inferno que não cicatriza
cidade em brasa * você guarda o isqueiro no bolso de trás (o fogo nas nossas mãos) manuseá-lo para que tudo pareça um precipício andar no meio fio e saber que a queda é inevitável eu olho para você e digo, sem abrir a boca, ficar tão perto é difícil a gente não sabe se despedir a casa se constrói na rua . anelise de freitas
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poemas por 48
25 anos, é Mestre em Literatura e Memória Cultural pela Universidade Federal de São João del-Rei e publica seus poemas no blog Beija-flor-de-lis (http:// beijaflordelis.blogspot.com/)
para ler e ouvir motoboys, girassóis, etc e tal, maurício pereira
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lĂdia oliveira 49
fotografias por
german lorca a casa se constrĂłi na rua . anelise de freitas
AMIR AMIR HADDAD HADDAD EE sete estímulos para pensar o artista e sua obra
para ler e ouvir suíte paulista, hermeto pascoal
A A ARTE ARTE PÚBLICA PÚBLICA entrevista por MARCELO SOUSA BRITO Ator e diretor baiano. Doutor e Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, autor dos livros “O teatro que corre nas vias” (EDUFBA 2017) e “O teatro invadindo a cidade” (EDUFBA 2012). Atualmente é bolsista PNPD da Capes para estágio de Pós Doutorado no mesmo Programa com a pesquisa “Narrativas Cartográficas”.
Em setembro de 2013 eu desembarcava na cidade do Rio de Janeiro para um encontro com o ator, diretor e pensador no campo da arte pública Amir Haddad. O encontro foi agendado com a ajuda carinhosa do amigo Lindolfo Amaral do grupo sergipano Imbuaça. A ideia era entrevistar o artista para minha tese de doutorado que após ser defendida em 2016 foi transformada no livro “O teatro que corre nas vias” (EDUFBA/2017) no qual, vocês, leitores e leitoras podem encontrar a entrevista que segue dialogando com outros/as artistas. Além da entrevista que aconteceu na varanda de sua casa no charmoso bairro de Santa Teresa com vista para a baía de Guanabara, eu também tive a oportunidade de acompanhar um dia de ensaio do grupo “Tá na rua” dirigido por Haddad, com sede no bairro da Lapa.
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Amir Haddad nasceu em Guaxupé-MG, no dia 2 de julho de 1937, dia da independência da Bahia, dia de saudar o caboclo e a cabocla, dia de ocupar as ruas, questionar a história e tentar corrigir algumas injustiças sofridas por índios e negros. Amir é assim, meio cacique, meio xamã, meio bruxo, visionário sensível a seu tempo porque seu tempo é agora. Incansável na arte de reger ação e discurso de corpos sedentos por justiça, liberdade, amor e arte. Encontrar com esse ser é estar diante de uma divindade que te abraça como quem te diz: “a luta é nossa, a cidade é nossa e o teatro é nossa arma!” Eu utilizei o mesmo roteiro para todos/todas entrevistados/as. Mais do que um questionário, elaborei um roteiro com estímulos para que cada artista refletisse sua vida e obra a partir de sua relação com os lugares que marcaram sua existência e contribuíram seus processos criativos. Boa leitura!
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Usando as cidades como guia, desde a cidade em que nasceu até a cidade que vive hoje, gostaria que você se apresentasse e qual a importância dessa (s) cidade (s) em sua vida como artista e como cidadão. amir haddad e a arte pública . marcelo sousa brito
Interessante como apresentação. Eu tenho vontade de dizer de cara que eu sou natural do Rio de Janeiro. Nasci e cresci aqui, aqui eu me criei e aprendi tudo que eu faço e sei. O meu contato com essa cidade que me deu identidade. Isso é a primeira coisa que eu teria para te dizer, mas eu não nasci no Rio de Janeiro (risos). Eu nasci para o mundo em Guaxupé (Minas Gerais), mas eu não cresci em Guaxupé. Eu cresci no interior do estado de São Paulo, onde eu fiquei até os quatorze, quinze anos de idade quando eu terminei o ginásio e fui para a cidade de São Paulo estudar, fazer o curso clássico, o curso de Humanidades. Eu não sabia o que eu queria, mas eu sabia que eu não queria Matemática nem Ciências Exatas. Eu queria as coisas mais obscuras. Em São Paulo eu comecei a ser tocado pelas coisas, o movimento desenvolvimentista trazido pela era Kubitschek, o crescimento avançado do Brasil, a indústria automobilística, o avanço da criação de uma burguesia nacional, até todo mundo querendo que houvesse uma burguesia nacional. São Paulo crescendo, a cidade com um milhão e meio de habitantes, inquieta culturalmente. Eu, jovem garoto nascido em Minas, criado no interior de São Paulo caio neste lugar com quinze anos de idade. Aí, inevitavelmente fui estudar num bom colégio, uma escola pública, na época todas as escolas públicas eram escolas de referência e essa especialmente era um colégio renomado, por isso eu nunca paguei pela minha escolaridade.
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Nunca paguei um tostão pela minha faculdade, nem pelos colégios. Frequentando as escolas públicas que veio a minha liberdade e inquietação de voo também. O contrato que se fazia entre mim e a escola era mais confortável. Eu cheguei em São Paulo pensando em fazer uma carreira diplomática qualquer ou qualquer coisa que não doesse, eu achava que não ia doer (risos). O primeiro espetáculo de teatro que eu vi foi no pátio do meu colégio com atores como o Sérgio Brito, a Eva Wilma com o John Herbert, jovens, bonitos representando uma comédia amorosa. No pátio do meu colégio onde a gente ficava nos intervalos. Quando eu vi já estava metido com o teatro. Depois de um tempo acabei com o Zé Celso fundando o grupo de teatro Oficina. Então São Paulo tem uma importância definitiva. Chegar foi definitivo na minha vida. Essencial. Agora sair de São Paulo foi absolutamente imprescindível. Foi outro nascimento.
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Uma amiga me chama para trabalhar no Norte, em Belém do Pará, lugar distante demais. Eu não pensei duas vezes e aceitei o convite. Fui. Parecia que isso estava previsto. Saí do lado mais desenvolvimentista do país (São Paulo) para o lado mais obscuro (Belém). A Amazônia ainda fechada no início da década de 1960. Sobrevoei a floresta e aterrissei numa cidade antiga, pequena encravada no meio da floresta equatorial. Lá eu tive que encarar todas as coisas, eu fui para lá para ensinar. Eu mal sabia como é que eu ia ensinar, mas eu fui para lá para ensinar. O pouco que eu soubesse eu iria passar para aquelas pessoas. Eles precisavam de gente lá, ninguém queria ir. Me diziam: “como você vai ensinar teatro em Belém do Pará? Aquela região não tem condições sociológicas para fazer teatro. Nesse momento só havia três escolas de arte dramática no Brasil. E eu fui. São Paulo foi importante também porque eu fiz vestibular para teatro na Escola de Arte Dramática Alfredo Mesquita e não passei o que me precipitou violentamente para dentro do teatro. No momento em que me disseram “não” um “sim” gigantesco se fez dentro de mim. Eu me juntei ao Renato Borghi e o Zé Celso e desse
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“não” nasceu um “sim” poderoso que é o teatro Oficina. Depois eu me afasto como tinha que ser mesmo. Cada qual no seu lugar, o Zé Celso fez o caminho dele eu fiz o meu. Bom que tenha sido assim. Bom, voltando a Belém do Pará que é o oposto de tudo isso. Uma pessoa reacionária do Sul diz que lá não tem condições sociológicas para fazer teatro e eu fui ver o que significava isso. Para mim o Brasil não ia além do restaurante que eu comia com os artistas de teatro. Eu tinha referência, sabia que o Rio de Janeiro era uma cidade sedutora, mas não ia além disso.
EU EU FUI FUI VIVER VIVER A A FALTA FALTA DE DE CONDIÇÕES CONDIÇÕES SOCIOLÓGICAS. SOCIOLÓGICAS. FOI FOI AI AI QUE QUE EU EU COMECEI COMECEI A A CONHECER CONHECER O O BRASIL. BRASIL. Belém do Pará me revelou uma outra possibilidade, um outro país, aquele contato com muitas coisas, outros modos de vida. Com a miséria e a riqueza do Brasil, da Amazônia. Uma cidade antiga, bonita preservada por ser abandonada. Muita coisa foi destruída mas muita coisa foi salva. Mas naquela época ela era inteira, quase que como na época da borracha mas com a decadência das famílias. Mas o clima da cidade estava todo lá e eu adorava aquilo. Eu andava de madrugada pelos casarões antigos da cidade velha. O que me deu tempo para estudar, pensar, amadurecer, avançar minhas ideias. Eu tinha tempo para estudar e poder ensinar. Eu só fazia isso com um salário razoável que eu nunca tive na vida e com tempo para ler o que eu quisesse, todas as peças. Eu comecei a nascer ali, ou a me gestar definitivamente. Saí de lá com o advento da Ditadura que aí não tinha mais clima de trabalho e começou a
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ficar sufocante. Lá fiquei quatro anos e sou muito grato à Amazônia. Tenho boas ligações com Belém do Pará, com o Acre, Rondônia. O verde da Amazônia já pegou por baixo de mim muitas vezes nos aviões que eu passava por cima dela. É uma região integrada dentro de mim.
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FOI FOI LÁ LÁ QUE QUE EU EU ME ME COLOQUEI COLOQUEI NA NA POSIÇÃO POSIÇÃO DE DE PROFESSOR, PROFESSOR, DE DE LIDAR LIDAR COM COM O O OUTRO, OUTRO, A A FORMAÇÃO FORMAÇÃO DE DE ATORES. ATORES. NOBRES NOBRES QUESTÕES QUESTÕES QUE QUE SE SE COLOCAM COLOCAM DIANTE DIANTE DE DE UMA UMA PESSOA PESSOA QUE QUE ÉÉ INTERESSADA INTERESSADA NO NO FENÔMENO, FENÔMENO, NA NA MANIFESTAÇÃO MANIFESTAÇÃO TEATRAL TEATRAL NÃO NÃO SÓ SÓ NO NO RESULTADO RESULTADO HISTRIÔNICO HISTRIÔNICO PARA PARA AGRADAR AGRADAR OU OU DESAGRADAR, DESAGRADAR, MAS MAS QUE QUE PENSA PENSA O O TEATRO TEATRO COMO COMO UMA UMA TOTALIDADE TOTALIDADE COMO COMO UM UM BOM BOM DENTISTA DENTISTA PENSA PENSA UMA UMA BOCA, BOCA, NÃO NÃO PENSA PENSA UM UM DENTE. DENTE. Eu voltei para São Paulo que foi de onde eu tinha saído. Minha escala fazia uma passagem pelo Rio de Janeiro, Sérgio Mamberti, amigo meu morava aqui me disse: “faz uma escala no Rio, fica um dia inteiro aqui e volta pra São Paulo na segunda feira”. Eu aceitei. No domingo umas pessoas vieram me convidar para participar de um espetáculo e segunda feira eu já estava ensaiando. (silêncio) Nunca mais eu voltei para São Paulo. Tudo que eu tinha colocado dentro
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de mim: São Paulo, Amazônia, a Escola de Teatro, o contato com outro Brasil isso tudo juntou porque o Rio de Janeiro junta tudo isso e aqui eu senti que era o meu lugar. Eu juntava minhas inquietações, o que eu queria ser, eu juntava minha origem, a parte mediterrânea, árabe com os mitos da igreja católica dentro de mim, o encanto pela religião afro-brasileira, os índios. E facilmente eu incorporei o Nordeste que passou a ser a fonte permanente de alimentação para mim. O Nordeste complementou a minha formação. No Rio de Janeiro juntando tudo isso eu comecei a formular uma possibilidade de linguagem, de horizontalidade, de encontro e de representação. Eu comecei a sair para trabalhar na rua, mas ainda era uma coisa intuitiva. Um dia eu estava de passagem pelo Nordeste e conheci um ator que hoje é meu amigo, o Júnior Santos que era do grupo “Alegra Alegria” representando um Pedro Malazarte e quando eu vi aquilo imediatamente o Nordeste começou a entrar dentro de mim. Eu nasci no Rio de Janeiro e completei minha formação no Nordeste e se você der uma olhada isso passa pelo Brasil inteiro. Mas a coisa mais importante é o fato de eu ter nascido no Brasil. É ser brasileiro. As minhas fontes estão no lugar onde eu vivo! Eu sou privilegiado de ser brasileiro e morar no Rio de Janeiro. É muita coisa! Para quem ama esse país, para quem gosta desse povo, para quem sabe que futuro nós poderemos um dia trazer para a humanidade é um privilégio. Sua pergunta é muito legal! Você me obrigou a uma viagem, um retorno e a uma síntese que eu achei muito legal. Todos esses lugares são importantes na minha vida. Espero que esses lugares estejam sempre vivos dentro de mim.
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Qual a importância de sua relação com a cidade na composição de seus personagens?
A cidade é o objetivo final é o plano final. A utopia é o lugar da chegada. A cidade radiosa, a cidade feliz é o sonho. Isso é uma cidade que se constrói no dia a dia, no contato. A vida artística e cultural da cidade pode propiciar um avanço da melhoria das relações, da cidadania, do encontro. Então nunca é possível você ir para o espaço aberto e querer retroceder para a idade média. O que significa ser menestrel agora?
TOM
A QUER DIZER IR PARA IR PARA FRENTE. IR PARA A RUAAQUER RUA Quando eu comecei a ir para a rua eu pensei que era apenas uma questão de espaço depois eu fui vendo que era mais que isso, que era a relação de espaço, ator, público. Quando eu vi tinha gente na rua, tinha o povo o que me pegou de surpresa e o povo sem distinção nenhuma. Eu estava acostumado com uma plateia homogênea de classe média que frequentava igualmente, da primeira à última fila o meu teatro. De repente eu vi uma variedade humana inesperada e eu tive
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que aprender a dialogar com aquela coisa. Entendi porque Shakespeare escrevia tão bem porque escrevia para essa plateia, o Molière também porque tinha uma visão de interior e exterior muito bem definida e queria atender a essa necessidade. Escrevia para todos!
NA RUA EU TIVE QUE BAIXAR O TOM M DE ARTISTA BRANCO DE CLASSE MÉDIA.
R QUER DIZERDIZER IR PARA IR PARA IR FRENTE. PARA FRENTE. A RUA QUER Era uma questão ética descobrir como me colocar diante daquele cidadão que estava na minha frente, como dialogar com ele, com esse público. O ator não pode vestir as vestes do poder. O espetáculo pode ser a representação da utopia, onde o tempo, abstração física, desaparece.
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Não. Eu observo a cidade, o cotidiano pensando nas minhas dificuldades, minhas reflexões. Nunca olho como um fenômeno artístico. Já olhei. Passava numa praça e dizia: “nossa, a gente ira adorar subir nessa estátua!” Quando comecei a fazer teatro de rua era assim, todo lugar que passava eu pensava no teatro. Depois eu fui perceber que a cidade inteira é propícia ao teatro. Mas sempre estou de olho na cidade porque isso me afeta diretamente.
Você costuma observar o cotidiano da cidade pensando em seus personagens?
D IPAR C I T R OMO PA
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, DA O X LU OF
S, A I ÉR RT A S
Á
VOCÊ NÃO TEM C DAS VEIAS DA CIDADE SEM SE DEIXAR CONTAMINAR POR UER COISA Q UE PA QUALQ SSE NUMA ARTÉRIA DES PO SA C RA LI. O E U Q G U N E A T S M Á AL VO I. UM CÊ A NÃ C Para mim isso é direto. Pensar O FL como está a cidade e como eu UI estou na cidade. A cidade é
PRO T EG IDO DO
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A UL PS
para quem vive nela ou para quem vive dela? O que é uma cidade?
Você já encontrou algum personagem seu na rua? Eu acho difícil porque nós somos todo mundo e ninguém ao mesmo tempo. A arte do teatro, principalmente trabalhando em lugares abertos é o lugar do genérico. Não é da marca nem do particular. Nós trabalhamos mais com a formação de conteúdo que qualquer atitude mimética. A gente trabalha com máscara. Por exemplo, eu sempre faço os vilões, os patrões, os opressores violentos. Eu sou o diretor do grupo e faço esses personagens. Então eu já me vi fazendo coisas horríveis como o patrão de uma empregada e o cara do meu lado dizendo: “eu sei que você não pensa assim.” Eu acho essa a melhor leitura, entender o que está se passando.
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isso que eu estou falando. EU TRABALHO A POSSÍVEL EXPRESSIVIDADE DE CADA UM, MAS NÃO ME SUBMETO A NENHUM PROCESSO. O TRABALHO NA RUA É PERMANENTE. VOCÊ ESTÁ SEMPRE MUDANDO.
EU TRABALHO A POSSÍVEL EXPRESSIVIDADE DE CADA UM, MAS NÃO ME SUBMETO A NENHUM PROCESSO. O TRABALHO NA RUA É PERMANENTE. VOCÊ ESTÁ SEMPRE MUDANDO.
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Você é um narrador, um animador, um condutor da ação.Quando eu trabalho com texto eu me debruço sobre o texto para entender o que aquelas palavras estão querendo me dizer. (Se perde um pouco no raciocínio e depois de uma pausa retoma) Eu quero que todos façam a mágica comigo. A minha experiência de ator, de cidadão eu trago como reflexão, mas não a procura de uma forma, uma fórmula para representar. Eu quero que tudo saia com propriedade. Eu não sou vaidoso, mas sou ambicioso. Eu acho que o teatro é um lugar de manifestação impressionante. Para mim os atores são profetas porque revelam coisas que ainda não aconteceram que poderão acontecer. Revelam novas possibilidades, abrem horizontes, fazem explodir diante do espectador coisas inimagináveis. A possibilidade humana é muito maior do que uma representação cotidiana pode estar oferecendo. Eu não tenho medo do mistério da vida. Às vezes o personagem quer ir além do racional. revista rasante nº 04 . 2018 . encontrar o outro
processos de criação
Como se desenrolam os Não, (enfático) tudo que você sabe a esse seus respeito apague! Nada vai se aplicar a tudo
? ? ?
Se teatro faz você, que tipo de puder definir você? Eu faço teatro. Eu faço teatro sem arquitetura, dramaturgia sem Se você puder definir, que literatura e ator sem papel. Meu teatro é o teatro aberto, o teatro das possibilidades, o teatro da cidade. Minha arte é a arte pública. tipo de teatro você faz? É a possibilidade de convívio urbano. A dramaturgia dos grandes acontecimentos populares que sinalizações o ser humano dá quando Se definir tipo, que teatro sai nas ruas. Eu estou pensando no mundo. Nosso espetáculo propõe organizar o mundo ele não é organizado pelo mundo. você você faz de puder?
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Você vê diferenças entre teatro de rua, teatro na rua, intervenção urbana e teatro em espaços não convencionais? Se sim, quais?
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intransponíveis, irremovíveis, insubstituíveis vão para o chão na hora. As paredes das casas que foram construídas com muito tijolo, elas ruem. A questão na rua ou não na rua se resume na ideologia. Na sala fechada é um grupo social, na rua não tem grupo social. Aberta, franca, espacial. Essa era a estética que começava com a ida do teatro para a rua. O cenário era a rua, a própria cidade. A linguagem é determinante. Mudar o espaço não significa que você mudou a linguagem. Se você muda a linguagem você pode fazer interferência em todos os espaços. Eu faço um rompimento com a linguagem. O conteúdo só adquire forma depois que ele é manifestado. O nosso espetáculo não depende da forma. A gente precisa de conteúdos vivos, de movimento.
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muito tempo representamos para essa classe social que quando se sentou na plateia ela sabia muito bem o que ela queria ver e de que jeito queria ver de acordo os valores novos de prosperidade material. Essa burguesia ficou sentada nos teatros. Inevitavelmente passamos trezentos anos atendendo os interesses dessa classe. Não tem como você fazer teatro e não se adaptar às necessidades do seu público que está diante de você. O teatro se fez nas salas fechadas com propostas muito claras de uma representação ligada aos valores da ética e da estética da burguesia. E quando você vai para a rua a primeira coisa que você entra em choque é saber que não é a burguesia que está ali. Ali, diante de você está uma complexidade social muito grande e que aqueles valores que você acreditava eternos, herméticos,
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Essa é uma discussão que fica toda hora indo e vindo e ela é recorrente, cansativa porque é difícil você esclarecer totalmente, mas tem uma diferença. A diferença não é porque um é na rua e outro não é na rua. A diferença, que é mais difícil de entender é que o que é feito dentro de uma sala fechada é produção de uma classe social. Quem desenvolveu essa linguagem que está ali foram as classes médias da burguesia. Esse teatro não tem a classe popular que molière e shakespeare tinham. Esse teatro passa a servir uma classe que começa a frequentar os teatros públicos que não eram nem palácio do rei e nem na praça pública. São teatros públicos para onde a burguesia protestante vai assistir seus espetáculos. Sem a algazarra das ruas, a promiscuidade e a imoralidade. Teatro público onde em tese todo mundo pode ir, mas que o populacho não frequentava. Durante
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para ler e ouvir into the city, brad mehldau
autoria, data
O olhar de Dan Graham para a cidade
sob o prisma da crĂtica cultural1
FÁBIO LOPES DE SOUZA SANTOS Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela FAU.USP (1980), Master of Arts pelo Royal College Of Arts (1984) e doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela USP (2000). Realizou diversas exposições de artes plásticas. Atualmente é professor doutor efetivo do IAU.USP-São Calos, integrando o Núcleo de Pesquisa das Espacialidades Contemporâneas.
RAFAEL GOFFINET DE ALMEIDA Graduado e Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo IAU.USP-São Carlos, doutorando no mesmo Instituto, explorando questões sobre o artista norte-americano Dan Graham: a participação (e suas formas de envolvimento do público, do controle do comportamento e da experiência social) como uma questãochave na produção do espaço contemporâneo.
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homes for america, 1965
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Em 1965, o artista norte-americano Dan Graham iniciou sua trajetória artística com a publicação de Homes for America, uma espécie de obra/artigo intervindo em revistas especializadas em arte. Nela estão presentes muitas das questões que definem toda a sua produção posterior e que também configuram um desenvolvimento particular da arte contemporânea, sobretudo em relação às pesquisas estéticas que buscaram superar as convenções, os códigos e as categorias que até então regiam a produção e o pensamento de arte. A obra seminal de Graham pode ser descrita, à primeira vista, como uma crítica à arte minimalista (produção de ponta naquele momento) e também à própria instituição de arte: o conteúdo apresentado intercala uma série de fotografias do artista sobre as habitações típicas dos subúrbios americanos (fenômeno que eclodira no país durante o pós-guerra) com textos descrevendo a lógica de produção e de organização espacial e formal das unidades, associando dessa maneira, o ideário estético do minimalismo (a objetividade e literalidade formais) com um contexto social real; e, ao mesmo tempo, ao direcionar sua produção para o suporte das revistas, o artista também colocava em questão todo um aparato de circulação e valoração das obras de arte, trazendo à tona o funcionamento do espaço expositivo das galerias e museus como um sistema mais amplo. O que nos leva a uma segunda perspectiva de análise relacionada mais especificamente aos significados políticos e ideológicos que intervenções como Homes for America são capazes de revelar em relação à cultura, seja ela uma corrente estética (como o minimalismo), um dispositivo de circulação/exibição de conteúdos culturais (como o museu ou mesmo as revistas especializadas) e, como discutiremos adiante, os espaços construídos. Tais questões podem ser inicialmente inscritas no que Miwon Kwon descreveu como o desenvolvimento de uma prática discursiva de arte. Em seu livro “One place after another”, publicado em 2002, a autora discorre sobre como um novo modelo de produção e de inserção de arte, a partir da década de
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1960, tornou latentes preocupações como a superação das “limitações das linguagens tradicionais, como a pintura e escultura, tal como seu cenário institucional”, realocando “o significado interno do objeto artístico para as contingências de seu contexto” e que motivou, entre tantos outros desdobramentos, a atenção para o espaço ou o lugar de inserção da obra (KWON, 2002, p. 168). Tal como pode ser observado em Homes for America, Kwon salienta que o tratamento do espaço expositivo não se deu somente em seus aspectos físicos, mas em seu “disfarce institucional”, isto é, todo um conjunto de discursos que de alguma maneira estabelecem uma “convenção normativa de exposição a serviço de uma função ideológica”(KWON, 2002, p. 169). Em um determinado momento, dimensões distintas do espaço e do lugar, como as funções econômicas, os significados sociais ou os efeitos psicológicos, passaram a informar a produção dos artistas, ao que o termo “expansão dual da arte na cultura” sintetiza a ideia do deslocamento promovido pela expansão espacial dos trabalhos. O fato de Graham lidar com o empreendimento comercial de habitações ou encontrar na mídia impressa das revistas de arte um
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local de intervenção não é um ponto fora da curva. Como bem aponta a autora, muitos artistas contemporâneos passaram a se infiltrar em vários âmbitos da vida cotidiana, sejam eles os “espaços das mídias, como o rádio, o jornal, a televisão” (KWON, 2002, p.171) e, de fato, uma das características que marcam o desenvolvimento da produção de Graham posterior a Homes for America é seu interesse cada vez maior sobre as dinâmicas de produção, consumo e circulação da chamada “cultura de massa”. Ao longo das décadas de 1970 e 1980, Graham produz vários textos em que investiga o universo popular do cotidiano urbano norte-americano, através de análises sobre programas televisivos, a indústria musical do rock e sua contraversão punk, o universo da contracultura hippie, além do ideário político referente ao Liberalismo. Como uma extensão de sua produção artística, as questões tratadas através destes textos estão presentes no desenvolvimento de suas performances, videoinstalações e em suas propostas mais recentes em que passa a intervir
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diretamente sobre espaços e situações urbanas, refletindo sobre como o artista enxerga a cidade contemporânea, abordada pelo artista através de suas amplas dimensões: política, econômica, social e cultural.
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Para o historiador e crítico de arte, Hal Foster, uma maneira de entender tais transformações no interior da produção artística contemporânea é a de percebê-las como uma “crise na representação estética”, que teria motivações de ordem “local” (por exemplo, a expansão para o espaço a partir das propostas minimalistas, conforme salientada por Miwon Kwon), quanto de ordem “global”, como um reflexo de transformações mais amplas e sistêmicas. Foster defende que o desenvolvimento da arte a partir da década de 1960 deva ser analisado sob a perspectiva da configuração de uma nova ordem socioeconômica em curso e que trouxe como um paradigma inédito a centralidade da cultura para as novas formas de produção capitalista. Neste sentido, o autor relaciona a dispersão “da arte autônoma por um campo ampliado da cultura” e sua consequente “combinação com os signos da cultura de massa” a “um desvio qualitativo na dinâmica capitalista de reificação”, seguindo em grande parte o deslocamento que Fredric Jameson fez da teoria da reificação para o campo da estética e da cultura (FOSTER, 2014, p. 79). Em seu texto “Reificação e Utopia na Cultura de Massa”, escrito em 1979, Jameson parte da refutação das teorias que até então operavam a oposição entre “alta cultura” e “cultura de massa”. Para o autor, o tratamento desta modalidade de produção da cultura essencialmente em termos de valor impede o desenvolvimento de análises mais sistemáticas, capazes de atingir as relações dialéticas que ela estabelece com a totalidade da ordem produtiva, em termos sociais, econômicos e políticos. Entender a “cultura de massa” como uma questão baseada “na pura quantidade de pessoas a ela exposta” (JAMESON, 1994, p. 1) ou do valor social daí decorrente – caindo em uma dimensão “populista” –, em suma, insistir na oposição entre uma produção “elevada” e seu revés “popular” seria volver-se em um esquema
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demasiadamente limitado e redutivo para a compreensão do que tem se tornado a produção cultural na contemporaneidade. Em contrapartida, Jameson recorre aos conceitos de reificação, de instrumentalização e mercantilização da cultura desenvolvidos através das teorias da Escola de Frunkfurt para estender suas análises em uma nova direção. Ainda que tais teorias apresentem resquícios daquela oposição, traduzida em pessimismo crítico que acaba valorizando a produção do “alto modernismo”, elas são capazes de apontar as transformações no cerne da organização produtiva e social que ajudam a construir um entendimento mais adequado sobre por que e como surgem tais formas de produção e de manifestação cultural. A teoria de reificação, em linhas gerais, remete ao problema central do “fetiche da mercadoria” (originalmente trabalhado por Karl Marx no primeiro livro de “O Capital”), descrevendo o processo de abstração impulsionado pelas formas de produção capitalistas que suspendem da mercadoria qualquer valor que não seja o de troca e, desse modo, fazendo com que o trabalho tenha única e exclusivamente um único “fim”: as relações de troca. A reificação da mercadoria cancela qualquer relação de significado que a prenda a um lastro histórico, cultural ou social, para apresentar-se em uma espécie de unidade hermética de valor abstrato e universal, condição fundamental para que ela possa ser trocada, de maneira indiferenciada, com qualquer objeto – inclusive o dinheiro. Neste sentido, decorre a observação de Jameson de que: “A qualidade das várias formas de atividade humana, seus ‘fins’ e valores únicos e distintos, foi devidamente isolada ou suspensa pelos sistemas de mercado, deixando todas essas atividades livres para serem implacavelmente reorganizadas em termos de eficiências, como meros meios ou instrumentalidade” (JAMESON, 1994, p. 2).
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A extensão ou aplicação da reificação da mercadoria ás obras da cultura representa para o autor um processo que se configura em ao menos dois sentidos. Primeiramente, pela própria estrutura ou condição do objeto de arte, tradicionalmente “uma unidade sem um fim” (JAMESON, 1994, p.3), de modo que a sua reificação aponta para o consumo, nem tanto para a forma de produção ou atividade. Se em Marx a mercadoria e a reificação da mercadoria descreviam a abstração dos meios e a suspensão dos “fins”, as obras de arte refletem como também os “fins” sofrem essa abstração. A consequência última é que a arte como mercadoria faz com que ela seja “reduzida a um meio para seu próprio consumo” (JAMESON, 1994, p. 3), quando várias formas de atividades perdem suas satisfações intrínsecas e imanentes enquanto atividades em si mesmas e tornam-se meios para uma satisfação mercantil. O problema de “como uma narrativa pode ser consumida em proveito de sua própria ideia” (JAMESON, 1994, p. 4) é identificado pelo autor no processo de transformação da estrutura do objeto cultural em um instrumento extremamente eficaz para projeção de signos, predominantemente na forma de imagens, passíveis de serem consumidos pelo público ou observador. Algo extremamente original neste trabalho de Jameson está também relacionado ao fato de que esta estrutura reificada do objeto não é exclusividade dos produtos da “cultura de massa”, mas também pode ser identificada nos objetos culturais proveniente dos circuitos mais elevados da “alta cultura”. Como afirma Jameson, ambas estão “objetivamente relacionadas e dialeticamente interdependentes”, ocorrendo inseparavelmente dentro da “fissão da produção estética sob o capitalismo”, de forma que somente a partir dessa compreensão é que se torna possível descortinar “um campo totalmente novo para o estudo da cultura”. Entender a inter-relação entre tais modalidades de produção cultural permite enfocar a “situação social e estética – o dilema de uma forma e de um público – compartilhada e enfrentada tanto pelo modernismo quanto pela cultura de massa”, ainda que de maneiras “antitéticas” (JAMESON, 1994, p.7-8).
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Este é o tema que corre de fundo em sua crítica aos espaços institucionais da arte presente na obra “Homes for America”. No entanto, dentro dessa série de obras/artigos, “Income: (outflow) piece”, de 1969, consegue ser ainda mais explicita. O formato de um “anúncio publicitário”, presente na primeira, mimetiza, dessa vez, os anúncios típicos das páginas de classificados de qualquer jornal para pôr à venda os serviços da companhia “Dan Graham Inc”. A obra assinala um humor anárquico ao simular um sistema de marketing para captação de recursos para o artista, semelhante à de ações na Bolsa de Valores (a galeria vende a “assinatura” do artista), questionando a sua condição similar a uma marca, sua “brand”, ao mesmo tempo em que revela a dependência do circuito de arte de interesses econômicos. Graham borra os limites que aparentemente definiam o isolamento dos espaços da arte, apontando para uma relação profunda entre instâncias convencionalmente mantidas estanques: arte e práticas comerciais e, no limite, cultura e economia. Esta problemática será aprofundada em outro texto, escrito em 1981, intitulado “The End of Liberalism”. Nele, Graham traça uma aproximação antagônica entre as prerrogativas estéticas e visuais levadas a cabo por toda uma tradição modernista – em defesa de uma autonomia da arte através de uma linguagem abstrata – com o desenvolvimento da publicidade e da propaganda – que se valiam dos mesmos métodos e das mesmas técnicas de produção da imagem, porém para aplica-las em um contexto social e econômico específico: a geração de valor simbólico através da diferenciação da mercadoria. Segundo Graham: “Quando o produto se voltou inseparável de sua imagem publicitária, a marca corporativa (por exemplo, o florido logotipo da Coca-Cola) funcionou como um arquétipo psicologicamente dominante. Duas influencias essenciais no desenho corporativo, evidentes em logotipos e gráficos de ‘alta tecnologia’, foram o racionalismo da Bauhaus e a psicologia fascista” (GRAHAM, 1981 quoted in WALLIS, 2008, p. 79). o olhar de dan graham para a cidade . rafael goffinet e fábio lopes
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O artista também é ciente da contradição que esta diferenciação simbólica implica dentro da dinâmica de reprodução capitalista e da própria mercadoria. Ela é, vale dizer, o ponto de partida para sua reflexão. Afinal, essa necessidade de “diferenciação” dos produtos compete com a “universalização” fundante do modo produtivo industrial, responsável por expandir e maximizar os lucros através da massificação do trabalho e também das mercadorias produzidas. Há, portanto, uma operação de ordem subjetiva em curso, quando se faz necessária alterar a percepção do consumidor e não exatamente a estrutura da mercadoria. Decorre daí toda ideia da imagem como instrumento para a produção de desejos, abstraindo cada vez mais a concretude do objeto a ser consumido através da fabricação de um aparato que gera prazeres simbólicos.
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Retomando as discussões de Jameson, convém destacar como a atenção para transformações também de ordem subjetiva, a partir do processo de reificação (tanto com relação à mercadoria quanto aos indivíduos), tomam grande parte do desenvolvimento de suas análises e teorias. Em seu livro “Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio” (1991), o autor insiste na importância de um aporte sobre os “elementos psicológicos que acompanham a produção” (JAMESON, 1991, p.319) para poder entender o que é a relação entre o indivíduo e o objeto reificado, quando o primeiro torna-se incapaz de reconstituir os vínculos sociais e históricos que conceberam o último.
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A sequência do texto “Reificação e Utopia”, em que Jameson começa, então, a explorar a inter-relação entre “alta cultura” e “cultura de massa” – e o próprio conceito de reificação da cultura –, traz entre os fenômenos ou problemas analisados justamente a configuração de uma nova condição subjetiva ou sensível dos produtos culturais, bem como de sua relação com seus públicos. Dentre eles, convém destacar o problema da “manipulação” discutida por Jameson como um caminho para investigar o impacto da produção cultural na vida cotidiana, tornando-se ela, no limite, o “elemento-chave da própria sociedade de consumo” (JAMESON, 1994, p. 14). Para Jameson, a proliferação de imagens no capitalismo voltado ao consumo faz com que “as prioridades do real tornam-se, no mínimo, invertidas, e tudo [passa a ser] mediado pela cultura, até o ponto em que mesmo os ‘níveis’ político e ideológico devem ser previamente desemaranhados de seu modo primário de representação, que é cultural” (JAMESON, 1994, p. 14).
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No cerne dessa problemática, portanto, reside uma condição estética que estava também sendo explorada na produção de muitos artistas neste mesmo momento. Em “The End of Liberalism”, Dan Graham a identificou, com maior grau, no desenvolvimento da arte moderna norte-americana, através do Expressionismo Abstrato, consagrado e acolhido como a “nova arte estadunidense”. Para o artista, através da inauguração de novas técnicas de pintura, como a action painting de Jackson Pollock – transferindo a ação do artista para dentro das telas, agora de proporções amplas e “heroicas” e sempre através de formas abstratas – os artistas estavam configurando uma espécie de “abstração subjetiva”: exatamente um tipo de impacto visual que detém o público em um estado de contemplação capaz de eliminar a percepção de todo contexto a sua volta, fixando-o no ato e no momento estrito de sua relação com a obra. Esta novidade estética trouxe implicações sociais relevantes: “Tal como o observador de uma pintura expressionista abstrata, o espectador da nova forma publicitária se inseria
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em um espaço psicologicamente ambíguo em que a ausência de sentido objetivo permita ao ‘eu’ inconsciente projetar um significado ‘pessoal’. Como observa Laura Mulvey em seu ensaio ‘O prazer visual e o cinema narrativo’, esta nova situação gerou um ‘sujeito alienado, desgarrado em sua memória imaginária por um sentido de perda, pelo terror de uma falta de potencial de sua fantasia’” (GRAHAM, 1981 quoted in WALLIS, 2008, p. 81). O fato do expressionismo abstrato, e dos próprios artistas, terem sido agraciados por todo um circuito midiático, das instituições de arte aos veículos de comunicação de massa, como Graham sugere, demonstra como as pesquisas estéticas desenvolvidas pelo “alto modernismo” (abstrato e pretensamente autônomo) respondiam às suas demandas e expectativas. O apelo visual simbólico presente nos elementos mais banais do cotidiano das grandes cidades, como cartazes, letreiros, as embalagens dos produtos que consumismos, as revistas que lemos e também o conteúdo televisivo que assistimos diariamente, de fato conduziram a estrutura subjetiva da pintura heroica produzida naquele momento em imagens espetaculares, desprovidas de significados para além do prazer visual imediato. Neste sentido, Graham faz convergirem os produtos da “alta cultura” e da “cultura de massa” demonstrando como ambos cumprem uma mesma função ideológica a partir de uma mesma estrutura reificada. Boa parte da produção de Graham que se seguiu ao longo da década de 1970 estava relacionada às investigações sobre os processos de percepção do observador diante das obras de arte. Neste momento, o artista volta sua atenção para o próprio espaço expositivo, explorando suportes bastante diversificados como performances, instalações com o uso de vidro, vídeo e espelhos para intervir sobre a estrutura que define a relação criticada em seus textos entre objeto, público e também o próprio espaço das galerias e museus. o olhar de dan graham para a cidade . rafael goffinet e fábio lopes
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Nestes conjuntos de trabalhos, matéria, espaço e tempo são os suportes que irão permitir um envolvimento distinto do público, tendo como horizonte as formas de alterar sua percepção, consciência e o comportamento, lançando mão de meios técnicos, como projeções e vídeos, para provocar efeitos nos modos de representação da imagem e destes no tempo. A exemplo de Performer/Audience/ Mirror, realizada em 1975, a figura do artista/performer aparece dominando o palco de um auditório que separava a plateia de um enorme espelho posicionado às suas costas. Sua presença funcionava como um mediador do público em confronto com sua própria imagem: dividida em quatro blocos de cinco minutos, “o artista se descrevia; depois descrevia o público; depois, virando para o espelho, descrevia sua imagem seguida por uma análise da imagem refletida do público” (COLOMINA et al., 2000). Através dessa articulação entre espaço e imagens (visuais e orais), Graham colocava a (auto-) percepção do público em constante alteração, sendo construída e reconstruída, confrontando-se com um mecanismo de construção de subjetividade pautado pelo espaço expositivo. 82
Estava claro para o artista que uma forma de se esquivar dos procedimentos perpetrados pelo “cubo branco” – de construção de uma subjetividade, da programação do que e de como deve ser apreendido – seria justamente promover tensões nas disposições convencionalmente determinadas pelo espaço, mostrando “as pessoas percebendo a si mesmas como elas se percebem no lugar do objeto de arte” (GRAHAM, 1990 quoted in SALVIONI, 1990, p. 143). Aos poucos, as experiências com as performances, permitiram-no amadurecer o mecanismo que ativa a “recepção” da obra de arte a ponto de conduzir à investigação da própria condição do espectador. O passo seguinte foi construir situações que dispensassem a presença do artista durante este processo, de modo que a própria presença do público ativasse as relações de intersubjetividade. Trata-se de suas “instalações”, determinando percursos espaciais pontuados por vídeos, reflexos de espelho e da transparência do vidro mantendo o
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enfoque sobre a percepção e a reação do visitante, individualmente e coletivamente. Em Public Spaces/Two Audiences, produzida em 1976, através da articulação entre paredes opacas, planos de vidro e de espelhos, o artista construiu duas salas onde o visitante, ao percorrê-las, se deparava com a exibição de sua própria imagem sobreposta às imagens ou mesmo à presença dos demais observadores naquele instante. Separadas por um plano de vidro com certo grau de opacidade e transparência, além dos planos espelhados localizados ao fundo de cada sala, encerrando-as, estes ambientes promoviam forte abalo na dimensão temporal e, sobretudo, espacial percebida pelo observador, amplificando seus modos de apreensão, de apropriação e de interação.
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Esta obra representa a descoberta de Graham de um campo de pesquisa sobre o comportamento e os modos de percepção do público a partir de elementos e dispositivos próprios da arquitetura. Não tardou para que Graham percebesse estas instalações como projetos de espaços onde se tornava possível lidar não somente com o desempenho social do público como também do próprio dispositivo espacial. A esta altura, tomava consciência de que os elementos constitutivos do espaço também exercem grande influência sobre os modos como o público irá se relacionar, guardando uma carga de propriedades objetivas e significados subjetivos responsáveis por condicionar a experiência daqueles ali presentes. Tal como se depreende das análises de Jameson, a cultura está presente na totalidade do campo social, de modo que os processos de reificação por ele observados envolvem também a construção do próprio espaço. É neste sentido em que podemos remeter aos estudos do autor sobre a produção arquitetônica e à conformação das cidades contemporâneas. De fato, grande parte de sua atenção sobre estes campos incide sobre como as novas formas de organização produtiva estão também redefinindo novas categorias de espaço em seus múltiplos aspectos: funcionais, formais e também psicológicos. Aos olhos de Jameson,
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a arquitetura que vem sendo produzida globalmente e a cidade que se edifica a partir dela manifestam uma nova percepção e sensibilidade contemporâneas. Algo que se torna muito claro em seu artigo “A Cidade do Futuro”, publicado em 2003, ao analisar o livro “Project on the City” organizado por Rem Koolhaas (um dos principais nomes da arquitetura nos dias de hoje) enquanto professor da Harvard School of Design. Seu interesse nos estudos desenvolvidos por Koolhaas decorre de ao menos dois aspectos bastante esclarecedores neste momento: primeiramente, devido à mescla de distintos campos disciplinares que caracteriza a metodologia de análise presente no livro, o que para Jameson poderia ser incluído dentro da categoria dos “estudos culturais” e que sugere uma estratégia mais adequada para lidar com a complexidade de temas e questões envolvendo os processos de transformação das cidades contemporâneas; uma metodologia que levou a análise de objetos e fenômenos distantes dos estudos convencionais da arquitetura e urbanismo, sendo a principal delas as galerias comerciais dos “shopping-centers”. A atenção sobre estes espaços representa para Jameson uma metáfora capaz de esclarecer o que é a cidade contemporânea no tempo do consumo globalizado, dos espaços fechados e editados para esta única atividade comercial. O significado por trás da construção dos imensos shopping-centers, conclui, “está no fato de que o ‘ir ás compras’ não exige que você compre, e que a forma do shopping é uma performance que pode ser realizada sem dinheiro, desde que os espaços adequados a ela, em outras palavras o ´junkspace´, tenham sido providenciados” (JAMESON, 2010, p. 25). Uma experiência espacial e, sobretudo, urbana que também estava sendo investigada por Graham através das obras Video Piece for Shop Windows in na Arcade e Alterations to a Suburban House. Ambas de 1978, elas marcam o momento em que a cidade e seus elementos constitutivos tornam-se meio específico e origem de questões, enfocando as formas e os mecanismos pelos quais os componentes, elementos, dispositivos e outros recursos
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arquitetônicos e/ou espaciais incidem sobre a experiência dos espaços e situações confrontadas no cotidiano das cidades. A primeira obra previa uma intervenção sobre vitrines de duas lojas de departamento em uma galeria comercial, articulando planos espelhados, câmeras e monitores de vídeo. Graham buscava intervir nos mecanismos de percepção ativados pelo dispositivo visual da vitrine, rearticulando o processo de apreensão e interação em que o observador é envolvido e revelando-a enquanto elemento mediador e simbólico para um “estado de alienação e incompletude” entre mercadoria e a consciência do consumidor (COLOMINA et al., 2000, p. 57). Alterations to a Suburban House consistia em um modelo apresentando uma proposta de intervenção em uma típica residência dos subúrbios norte-americanos: substitui-se a fachada em alvenaria por um imenso pano de vidro, abrindo para a rua a visão da sala de estar como algo semelhante a uma vitrine; ao mesmo tempo, um espelho instalado ao fundo desta mesma sala, paralelo ao plano de vidro, traz para dentro da intimidade do lar a presença do espaço externo. Graham explora a integração dos espaços interno e externo definidas por essa configuração arquitetônica específica, pondo em questão o estilo de vida dos subúrbios americanos através de tensões entre níveis socialmente aceitos na relação entre público e privado, inclusão e exclusão e, no limite, entre sociedade/cidade/paisagem. Graham interfere na interface da residência com a rua, em outras palavras, entre o domínio privado cultural e socialmente definido pela intimidade doméstica e o domínio público compreendido pelo seu contexto urbano imediato: a privacidade configurada pela opacidade de planos, paredes e fachadas são revertidas em máxima exibição pela transparência e reflexão do vidro e do espelho. Graham dispara contra o observador as formas de percepção e de comportamentos, bem como um estado psicológico, naturalizados no cotidiano das grandes cidades. O desenvolvimento de propostas
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explicitamente urbanas expande as estratégias críticas frente aos processos de reificação do objeto cultural e estético, muitas vezes trazendo à tona a preocupação de Jameson sobre a pertinência da utopia dentro das transformações sistêmicas que analisa. No texto “Reificação e Utopia” ela aparece mais claramente quando Jameson aponta para um campo de intervenção e de ação dentro da própria estrutura dialética que envolve o processo de reificação. Se a realidade se converte em imagem e se essa é a última forma da reificação, é exatamente no domínio do cultural e do simbólico onde podem acontecer os enfrentamentos necessários contra suas contradições. “Toda a obra de arte contemporânea”, diz, “contém como impulso subjacente (...) nosso imaginário mais profundo sobre a natureza da vida social” e “em meio a uma sociedade privatizada e psicologizada, obcecada pelas mercadorias e bombardeada por slogans ideológicos dos grandes negócios” desponta como uma tarefa urgente “reacender algum sentido do inerradicável impulso na direção da coletividade” (JAMESON, 1994, p. 25). 88
A evocação de uma “coletividade”, expressa enquanto manifestação cultural produzida e direcionada por um grupo social autêntico, guarda em si a busca por uma espécie de consciência de classe e que significa, fundamentalmente, uma tomada de consciência por parte dos indivíduos de maneira diametralmente oposta à condição subjetiva pautada pelas formas da cultura reificada. Algo que parece encontrar uma síntese através de “Video Projection Outside Home”, intervenção produzida por Dan Graham entre 1978 e 1996. Nela, o artista instala no exterior de uma residência suburbana, voltada para a rua, um enorme aparelho televisor que transmite em tempo real o conteúdo assistido pelos moradores. Por um lado, esta operação significaria uma exposição pública de algo praticado na intimidade do lar. Porém, a obra reflete uma relação entre as esferas pública e privada mais dialética. Graham é ciente de que o dispositivo da televisão controla, de maneira centralizada, a produção e a circulação destes conteúdos. Tal como o artista escreve
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em “Essay on Video, Architecture and Televison”, a massificação e expansão do sistema de televisão representam “uma imposição assimétrica da informação pelo capital” através da instalação de verdadeiros terminais que decidem o que e como será visto (e consumido) no interior das residências e que teria ainda o poder de construir laços afetivos e de identificação pessoal com estes conteúdos (GRAHAM, 1979 quoted in ALBERRO, 1999, p. 52). Dessa maneira, ao atentarmos para os programas e anúncios “expostos” pela intervenção, questionamos nossa própria identidade ao dar-nos conta de como fatores exteriores estão pautando nossa experiência íntima, daquilo que nos é tido como verdadeiro e real. Vistas novamente em conjunto, as estratégias político-estéticas levadas a cabo por Dan Graham podem ser descritas nos temos da “crítica da representação” de Hal Foster, isto é, como um questionamento das “categorias artísticas e dos gêneros documentais, dos mitos da mídia”, pedindo ao observador para “olhar através de suas superfícies criticamente” (FOSTER, 2014, p. 140). No entanto, é certo que, tanto para Jameson quanto para Foster, não é possível dizer que a arte contemporânea tenha encontrado uma solução para as contradições em que está imersa (e talvez esta seja uma tarefa demasiadamente pretenciosa). Foster alerta para o fato de que a circunstância socioeconômica que as inscrevem é um processo contínuo e incompleto e que obriga a arte e a cultura como um todo a um esforço permanente de redefinição. Por outro lado, Jameson lembra que também para os artistas “a coruja de Minerva alça seu voo ao crepúsculo”, isto é, “também para eles, o teste da inevitabilidade histórica é sempre após o fato e eles tanto quanto a nós só podem ser avisados do que é historicamente possível depois que tenha sido tentado” (JAMESON, 1994, p. 15). De todo modo, as investigações de Dan Graham, ao percorrerem a dispersão para o campo ampliado da cultura, explorando a inter-
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relação com os produtos da “cultura de massa”, partilham muitos dos princípios presentes no cerne do desenvolvimento teórico de Fredric Jameson. Eles apontam para a investigação de um novo modo de percepção, moldado sob o contexto do capital financeiro, a partir da crítica cultural e de suas relações e implicações para a contemporaneidade – incluída aí os diversos produtos culturais, além do próprio espaço construído. Ao invés de insistir na “resolução dos conflitos sociais ou ideológicos em uma bela obra de arte”, a contribuição de Graham estaria em propor uma prática artística em que “a obra de arte dirija atenção para as costuras existentes entre as diferentes representações ideológicas”, explorando tanto um “código popular” como de uma “análise política” através delas (GRAHAM, 2009, p. 57).
NOTAS 90
[1] Este ensaio é uma revisão do artigo apresentado durante o e publicado nos anais do XVI ENANPUR, realizado em 2015, na cidade de Belo Horizonte, quando pudemos apresentar parte dos resultados preliminares da pesquisa de mestrado intitulada “Arte, Espaço e Cultura nas investigações de Dan Graham”, defendida em 2016, junto ao programa de pós-graduação do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU.USP-São Carlos).
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revista rasante interseçþes entre arte e cidade
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