Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo
Ano 9
Nยบ 9
Arquivo Nacional Dezembro de 2012
Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo
Ano 9
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Arquivo Nacional Dezembro de 2012
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Grande Otelo e Elke Maravilha no filme O bar찾o Otelo e o barato dos bilh천es (1971), de Miguel Borges. Correio da Manh찾
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Copyright © 2012 Arquivo Nacional Praça da República, 173 20211-350 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel. (55) 21 2179 1286 | (55) 21 2179 1253
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Agradecimentos Cláudia da Natividade (Zencrane Filmes)
Virginia Lane caracterizada como o personagem Carlitos de Charles Chaplin, na peça Tem bububú no bobobó, encenada por Walter Pinto no Teatro Recreio (RJ, 1959). Correio da Manhã
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cine Apresentação
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Comédia no cinema mudo: linguagem que suplanta o efêmero
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Renata dos Santos Ferreira Everton Luiz Sanches
Riso amargo
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Uma risada invisível: a comédia alemã de Schünzel e Lubitsch
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Seth e Luiz Sá, imagens de humor na imprensa e no cinema brasileiro
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O personagem Carlitos, do diretor Charles Spencer Chaplin, do cinema mudo para o falado Edmundo Washington Lobassi
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Frank Capra e o american dream
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O direito de rir ou a palhaçada como vocação
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Riso e resistência: o cinema de Dercy Gonçalves
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Entre o humor e a melancolia: Jacques Tati e seu cinema lírico
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Carlos Manga e o universo cômico das chanchadas
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Billy Wilder, ardiloso articulador do riso
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Mazzaropi: o humor popular como forma de libertação
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Carlos Roberto de Souza Roberto Acioli de Oliveira Antônio Moreno
Wagner Pinheiro Pereira Silvia Oroz
Virginia Maisano Namur
Meize Regina de Lucena Lucas
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Edmilson Felipe da Silva Ana Lúcia Andrade Glauco Barsalini
Arquivo e memória: algumas reflexões
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Arquivo em movimento: o uso de imagens de arquivo nas oficinas de vídeo do REcine
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Na comédia ou em qualquer gênero, não faltam diversidade, ousadia e audácia no cinema brasileiro
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“Quebrando o gelo” da Guerra Fria: humor e política em Os russos estão chegando e Doutor Fantástico
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As coisas nossas: o humor popular no Brasil dos anos 1970
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Estômago (2007): o humor antropófago vai ao cinema
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Marcelo Nogueira de Siqueira
Antonio Laurindo dos Santos Neto e Mariana Lambert Passos Rocha
Entrevista com João Luiz Vieira
João Paulo Putini Flávia Seligman
Sonia Cristina Lino
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Final do século XIX, inúmeros desafios impunha a modernidade no Ocidente ‒ transformações políticas, econômicas, sociais e tecnológicas em curso. A fumaça nas ruas, a correria, os rígidos horários nas fábricas, o trabalho repetitivo, a rudeza do mundo urbano cheio de angústias, incertezas e pequenas tragédias cotidianas. As cidades inchavam, recebiam cada vez mais migrantes vindos não só do campo, mas de outras cidades, de outros países, em busca de uma sobrevivência digna. Novas sociedades se formavam, novas formas de entretenimento eram criadas. Enquanto tudo isso acontecia, em diversos países realizavam-se experiências que anunciavam uma das mais importantes invenções daquele século: o cinema. Quando os irmãos franceses Louis e Auguste Lumière escreveram seus nomes na História, ao criarem o cinematógrafo, em 1896, começava a era do entretenimento de massa. Enquanto a burguesia parisiense assistia o nascimento do cinema em salões refinados, nos Estados Unidos as pessoas se reuniam em galpões insalubres e sem conforto para assistir, ao preço de um níquel, aquelas imagens em movimento, fascinadas pela mágica da luz que reproduzia situações simples e muitas vezes engraçadas na tela improvisada numa parede qualquer. Por alguns minutos, esqueciam o trabalho duro, a fome, a pobreza, a falta de esperança e, no caso dos imigrantes, as dificuldades em se adaptar ao novo país, para mergulhar no universo daqueles filmes, rir do ridículo e banal da vida. Naqueles anos do final do século XIX nasciam também os primeiros artistas da comédia cinematográfica, os geniais pioneiros capazes de levar multidões a rir de suas peripécias na telona. Eram Charles Chaplin, Buster Keaton, Max Linder, Harold Lloyd, André Deed, só para citar os mais famosos astros, pois boa parte deles acabou esquecida nas estantes de cinematecas ou de colecionadores. O primeiro grande comediante do cinema mudo foi o francês Gabriel-Maximilien Leuvielle. Nascido em 1883, adotou o nome Max Linder para evitar o preconceito dos colegas do teatro, que consideravam o cinema uma diversão sem valor artístico. Porém, o sucesso de seus filmes foi tão estrondoso que logo o teatro é que perderia
importância para Linder. Em 1910, quando os franceses lideravam a produção e distribuição de filmes no mundo, através da empresa PathéFrères, Max Linder já era reconhecido como o maior ator cômico do cinema. Seus fi lmes conquistaram a Europa e chegaram aos Estados Unidos e ao Brasil. O personagem criado por ele, um elegante, simpático e falido vigarista, de cartola, bengala e bigode, inspirou Charles Chaplin na elaboração do seu Carlitos. A carreira de Max Linder, no entanto, sofreria um revés após sua participação nos combates da Primeira Guerra Mundial ‒ ferido gravemente, ficou com sequelas físicas e psicológicas, e mesmo tendo ido filmar nos EUA, não conseguiu manter o sucesso do início da carreira. Devastado pelo alcoolismo, cometeu suicídio juntamente com sua esposa em 1925, aos 41 anos de idade, deixando para a história do cinema um legado indiscutível, embora pouco lembrado e difundido nos dias de hoje. No decorrer das duas primeiras décadas do século XX os americanos iam aniquilando a concorrência e ganhando a preferência do público – seus primeiros astros e estrelas já arrebatavam milhões de pessoas mundo afora. O declínio econômico europeu e a devastação causada pela Primeira Guerra só facilitariam o complexo processo de expansão da indústria cinematográfica americana. No meio disso tudo, um fracassado cantor de ópera chamado Mack Sennett dava os primeiros passos na carreira de ator, produtor e descobridor de talentos. O estilo que Mack Sennett desenvolveu, a comédia pastelão (slapstick), que abusava da agilidade na montagem, roteiros com situações absurdas, tombos, perseguições e tortas na cara, promoveu vários comediantes, como Roscoe “Fatty” Arbuckle (conhecido no Brasil como Chico Boia), Hank Mann, Edgar Kennedy, Minta Durfee etc., e garantiu plateias lotadas e às gargalhadas sem precisar pronunciar uma palavra. Mas Sennett acabaria lembrado principalmente por sua maior descoberta, um belo jovem britânico, que não seria apenas mais um galã naquela incipiente Hollywood: Charles Chaplin, o criador do personagem mais marcante do cinema, o vagabundo Carlitos.
Stan Laurel e Oliver Hardy (que interpretavam os personagens O Gordo e o Magro). Correio da Manhã
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Se fôssemos narrar a trajetória do cinema nas primeiras três décadas do século XX, três cômicos certamente sustentariam a maior parte da história: Charles Chaplin, Buster Keaton e Harold Lloyd. Sem eles, talvez a popularidade do invento dos irmãos Lumière não tivesse sido tão elevada. Começaram suas carreiras no teatro de variedades, no circo, no music hall, como tantos outros, e graças ao cinema, conseguiram chegar ao grande público. O começo não fora fácil, pequenos papéis, figurações em filmes, mas nada que o talento extraordinário desses três e a habilidade física acrobática não pudessem superar. Naqueles loucos anos, não lhes faltaria companhia: Stan Laurel e Oliver Hardy (O Gordo e o Magro), Ben Turpy, Harry Langdon, Hector Mann, entre outros. O momento era de descoberta de uma linguagem, o público sedento de novidades logo consagraria os atores da comédia pastelão, que chegavam a arriscar suas vidas ao fazer suas peripécias para as câmeras. Tais aventuras poderiam ser entendidas como uma espécie de antídoto contra o mecanicismo e a disciplina massacrante do mundo moderno. Intelectuais europeus como Siegfried Kracauer e Walter Benjamin atribuíam aos comediantes do cinema uma importância política por subverterem nos filmes a ordem vigente e o discurso enaltecedor da tecnologia. Veio então o cinema sonoro e os astros da comédia silenciosa entrariam em franca decadência. Chegava a vez de outros comediantes tomarem seu lugar na galeria de estrelas: os Irmãos Marx, Abott & Costello, Os Três Patetas, Jacques Tati, Totó, Jerry Lewis, Dean Martin, Peter Sellers. O dom da comicidade agora poderia se expressar nos diálogos, a exemplo da agilidade verbal de um Groucho Marx. Ou até prescindir deles, como fez Jacques Tati em seus filmes, satirizando a incomunicabilidade e a alienação dos tempos modernos. Juntem-se a eles diretores como Billy Wilder e Frank Capra, que realizaram algumas das melhores e mais premiadas comédias cinematográficas. No Brasil, infelizmente, não sobraram muitos filmes que possam identificar talentos cômicos na fase muda do nosso cinema. Mas a partir da
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década de 1930, percebeu-se que a fórmula para atrair o público para as fitas brasileiras incluía o humor. As comédias musicais produzidas pelos estúdios da Cinédia revelaram alguns dos maiores humoristas que o Brasil já conheceu, nada menos que Oscarito, Grande Otelo, Dercy Gonçalves e Mesquitinha. Já nos anos 40 e 50, as chanchadas carnavalescas, realizadas pela Atlântida, Cinedistri, Herbert Richers, entre outras produtoras, embora vistas com reserva pela crítica especializada, bateram recordes de público, basta lembrar as filas quilométricas que se formavam nas bilheterias das salas de exibição. Com o declínio das chanchadas nos anos 60, que tinham como cenário na maioria das vezes a cidade do Rio de Janeiro, Mazzaropi reinou com folga na comédia cinematográfica brasileira, graças a seu personagem caipira e sua capacidade de expressar tão bem aspectos da condição humana em mais de trinta filmes, em que, além de atuar, produzia, dirigia e escrevia os roteiros.
A ARTE DO HUMOR NO CINEMA
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Para felicidade do grande público, muitos desses talentos cômicos trabalharam na televisão e fizeram rir brasileiros de todas as idades por um longo período. Influenciaram também muitos artistas que vieram depois e, pelo que se pode ver nas recentes produções cinematográficas nacionais, continuam sendo inesgotável fonte de inspiração. São tantos os nomes da comédia no cinema brasileiro e internacional que, obviamente, esta edição da Revista REcine em algumas dezenas de páginas não conseguiria fazer justiça e prestar homenagem a todos que a merecem. O leitor que se dispuser a conhecer um pouco da história e da obra dos atores e diretores aqui retratados, os estilos de comédia, a poesia contida no riso, provavelmente vai se dar conta de que sobre a arte do humor no cinema ainda há muito para se estudar e compreender. E, principalmente, rir!
Renata dos Santos Ferreira Editora
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Harold Lloyd pendurado no ponteiro do relรณgio na clรกssica cena de O homem mosca (Safety last!, 1923), de Fred Newmeyer. Correio da Manhรฃ
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Everton Luís Sanches Doutor em História e Cultura Social pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Professor do Centro Universitário Claretiano de Batatais, SP. Dramaturgo, ator e diretor de teatro. Autor do livro A vida é sua, o mundo é nosso (Martin Claret, 2000). Pesquisador do significado social da obra de Charles Chaplin.
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Comédia no cinema mudo: linguagem que suplanta o efêmero
Charles Chaplin e Edna Purviance no filme Idílio campestre (Sunnyside,1919), do próprio Chaplin. Família Ferrez
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A ARTE DO HUMOR NO CINEMA
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Reginald Denny e Ruth Dwyer na comédia muda da Universal Pictures Entre o amor e o dever (The reckless age, 1924), de Harry A. Pollard. Família Ferrez
Escrever sobre o cinema remete a um sem-número de assuntos possíveis, envolvendo aspectos da montagem, do roteiro, das estratégias narrativas, das suas relações com outras modalidades artísticas, dos atores, diretores, da evolução técnica, dos diversos gêneros ou estilos, das teorias do cinema etc. De um ponto de vista histórico e sociocultural, podemos traçar ainda o papel do cinema no cotidiano, a sua interferência nas práticas sociais, a revisão e promoção de padrões de comportamento que foram realizadas por diversos filmes. Conforme escreveu Andrew,1 “[...] a maioria de nós pensa no cinema, não como um modo sagrado de estar com o mundo, mas como outro modo, diferente, de ser humano, diferente de – mas relacionado a – coisas como literatura, ritual religioso e ciência”. Todavia, podemos tratar o cinema como uma das coisas indispensáveis para a vida atual, tão pertinente quanto as demais modalidades artísticas, a ciência ou a religião. O seu entendimento, portanto, pode ser tomado como parte do desafio de viver com mais consciência de si mesmo e dos construtos sociais que nos rodeiam. E, de maneira complementar, um pouco do entendimento do cinema passa pelo entendimento do universo do homem moderno, suas angústias, aspirações, sonhos e dissabores; seus erros, acertos e utopias.
O momento histórico em que o cinema nasceu e se formou correspondeu à construção de um mundo urbanizado no limite do possível com o impossível, do incrível e do efêmero. Em outras palavras, podemos tratar a realização de “um mundo fenomenal – especificamente urbano – que era marcadamente mais caótico, fragmentado e desorientador do que as fases anteriores da cultura humana”.2 A mobilidade social, as mudanças constantes nos postulados científicos, a busca de novas formas de organizar a sociedade, a instabilidade econômica e a afirmação do poder dos estados nacionais, assim como a velocidade do automóvel e do trem a vapor são alguns exemplos daquilo que compunha a transitoriedade e a belicosidade do período. Assim, relações de continuidade e descontinuidade entre o final do século XIX e o início do XX marcaram o contexto de criação do cinema. Relações essas que foram caracterizadas pelo entusiasmo da ideia de progresso vinculado ao avanço da tecnologia e pela fragmentação da compreensão do cotidiano, pelas grandes e violentas rupturas: Segunda Revolução Científica, a criação do avião, Guerra Mundial, Revolução Russa, a criação da linha de montagem etc. Podemos considerar que “o otimismo, a expansão das conquistas europeias e a confiança no progresso pareciam ter atingido o seu ponto mais alto”, porém “graças aos novos
1 ANDREW, J. Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989. p. 16. 2 SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, Leo; e SCHWARTZ, Vanessa R. (Orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2001. p. 116.
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Comédia no cinema mudo: linguagem que suplanta o efêmero
recursos tecnológicos produziu-se um efeito de destruição em massa; nunca tantos morreram tão rápido e tão atrozmente em tão pouco tempo”.3 Desse modo, da mesma maneira que a busca humana levava ao otimismo orientado pelo avanço técnico – no qual o surgimento do cinema pode ser relacionado –, a continuidade, o progresso se dilacerava diante dos seus resultados inesperados, do malgrado da aceleração e falta de compreensão do ritmo da vida, do esforço bélico, dos separatismos políticos e sociais que eram incluídos no pacote. No universo das cidades do final do século XIX e início do século XX, com os odores emitidos pelas chaminés das indústrias, o movimento agressivo dos automóveis e a competição entre os estados nacionais, o cinema captava e compunha imagens do cotidiano. Essas imagens em movimento, naturalmente, como é característico do cinema, passavam por um processo de tratamento, escolha, seleção. Por meio do recorte realizado pelo filme, foram projetados fragmentos de uma vida fragmentada em si mesma. Conforme afirmou Capuzzo, “o homem autorregistrou-se, à semelhança de uma visão idealizada, uma complexa e nem sempre bem-sucedida busca da perfeição, sonhada de acordo com sua ótica”.4 Em meio a tal conjuntura, o cinema mudo caracterizou-se por diversos estilos de filmagem e recursos narrativos, formulando o início da arte do cinema. Daí parecer dispensável falar mais sobre sua importância, ao menos para os conhecedores da sétima arte. Assim, podemos considerar de certo modo redundante falar em cinema mudo, quando este é, a bem da verdade, a manifestação cinematográfica por excelência, aquela que define em sentido mais estrito o que podemos chamar de cinema, contrapondo-se ao universo atual dos domínios do audiovisual. Podemos tomar o
cinema, cine, como aquela modalidade artística pictórica, composta essencialmente pela imagem em movimento. De acordo com Rittner: “A palavra cinematógrafo, que é de origem grega (de ‘kinema’, movimento, e ‘ghaphein’, registrar), foi assim reduzida para cinema, e depois para cine. A partir de suas raízes formadoras, portanto, a palavra cinema quer dizer registro do movimento”.5 Contudo, a valorização do cinema foi forjada gradativamente. De acordo com Ferro,6 no início do século XX, o cinema era considerado “um passatempo de iletrados, de criaturas miseráveis exploradas por seu trabalho” ou uma espécie de “máquina de idiotização”, e o filme era uma “atração de quermesse”. O cardeal, o deputado, o general, o professor e o magistrado, por exemplo, não gastavam seu tempo precioso com esse “espetáculo de párias”. Um dos primeiros desafios da história do cinema, enfrentado pelo mudo, foi demonstrar sua autonomia, traçando o seu campo discursivo, definindo a sua linguagem, suas características, diferenciando-se, sobretudo, do teatro. As primeiras teorias do cinema, na década de 1910, traçavam o seu escopo particular, de modo que em 1915 dizia-se que o cinema poderia ser definido, que havia alcançado sua maturidade; que a imagem em movimento afirmava sua autonomia linguística.7 O teórico Vachel Lindsay foi o primeiro norteamericano a publicar uma teoria do cinema (The art of the moving picture, 1916), tendo defendido que este se apoiou nos atributos de todas as artes. Na França, muitos ensaios publicados entre 19121915 preocuparam-se em diferenciar o teatro do cinema, e o líder da vanguarda do cinema francês dos anos 1920, Louis Deluc, enfatizou que “o cinema é fotografia, mas fotografia elevada a uma unidade rítmica e que, em troca, tem o poder de gerar e ampliar sonhos”.8
3 SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 15-16. 4 CAPUZZO, Heitor. Cinema, a aventura do sonho. São Paulo: Nacional, 1986. p. 14. 5 RITTNER, Maurício. Compreensão de cinema. São Paulo: Buriti, 1965. p. 1. 6 FERRO, Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 83. 7 ANDREW, J. Dudley, op. cit. 8 Ibidem, p. 21-22.
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Tentando concluir a discussão, o alemão Hugo Munsterberg acreditou que a tecnologia usada nos filmes de 1915 era suficiente para que o cinema cumprisse a sua finalidade. Para ele, a base do cinema reside na vida mental, não na tecnologia, e a voracidade da sociedade por informação, educação e entretenimento é que traduziu o cinema no que se pôde ver. A técnica, portanto, serviu para a maquinaria do cinema, mas a sua vivacidade deveu-se à dinâmica da sociedade.9 Assim, podemos relacionar de maneira singular no cinema cômico da era do mudo, que nas perseguições, nas trapalhadas, em meio às acrobacias e na insensatez mostrada nos filmes desse gênero, foi contemplada a dinâmica da sociedade do período. Temos, portanto, um pouco a mais a analisar sobre o cinema mudo e a construção dos recursos narrativos que constituíram a base fundamental para a arte do cinema: o risível enquanto mecanismo equilibrador da dinâmica social. Nessa perspectiva, podemos analisar os filmes cômicos e o cinema mudo considerando que: Para compreender o riso, impõe-se colocá-lo no seu ambiente natural, que é a sociedade; impõe-se sobretudo determinar-lhe a função útil, que é uma função social. [...] O riso deve corresponder a certas exigências da vida em comum. O riso deve ter uma significação social.10
sa profunda, e relacioná-los a certo desvio fundamental da pessoa, como se a alma se tivesse deixado fascinar, hipnotizar, pela materialidade de uma ação simples.11
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Todavia, podemos traçar algumas respostas. Na visão idealizada promovida pelo cinema cômico mudo, todos os erros parecem estar perdoados: a sociedade ali aparece com uma atmosfera fragmentada que se alia no risível, nas boas gargalhadas proporcionadas pela inadequação das pessoas, pelo descaso ou simplesmente pelo grosseiro e indócil. Em Hollywood, por essa via podemos compreender o trabalho do ator cômico Buster Keaton, considerado um dos maiores gênios do cinema mudo, ao lado de Charles Chaplin. Conhecido como o homem que não ria, Buster Keaton teve de respeitar uma cláusula de seu contrato que o impedia de rir nos filmes e em público,12 tendo em vista que o sucesso de tal inadequação dos personagens de Keaton, a seriedade insólita dos mesmos, provocava riso e aumentava a bilheteria. Em meio às intempéries cotidianas, a plateia se entreteve vendo no cinema a elaboração fílmica das situações, tipos humanos dos absurdos experimentados em situações de medo, pânico e agonia – imagens identificáveis na vida em sociedade, no dia a dia de trabalho e nas relações familiares.
Desse modo, podemos indagar ainda qual era a significação social das comédias do cinema mudo e qual a sua importância para aqueles que o assistiam frequentemente. Para responder a essas questões, devemos considerar ainda que:
Buster Keaton, o homem que nunca ria, um dos maiores talentos cômicos na fase do cinema mudo. Família Ferrez
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Automatismo, rigidez, hábito adquirido e conservado, são os traços pelos quais uma fisionomia nos causa riso. Mas esse efeito ganha em intensidade quando podemos atribuir a esses caracteres uma cau-
9 Idem. 10 BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983. p. 14. 11 Ibidem, p. 21-22. 12 SADOUL, Georges. O cinema: sua arte, sua técnica, sua economia. São Paulo: Casa do Estudante do Brasil, 1956.
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Comédia no cinema mudo: linguagem que suplanta o efêmero
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Frank Keenan e Irene Rich na comédia distribuída pela Pathé, Todd of the times (1919), de Eliot Howe. Família Ferrez
Nesse universo é importante destacar ainda a genialidade de Charles Chaplin, cujo uso da própria linguagem do mudo nos remeteu a uma maneira humanista de ver as coisas, uma perspectiva de entendimento centrada na graça extraída do erro e na repercussão do erro. As correções atitudinais são feitas, nos filmes de Chaplin, na medida em que o ambiente social que cerca os personagens os permite. Ou seja, ainda que o público possa deleitar-se, deixando de lado as agruras cotidianas e rindo das desgraças presentes no mundo – porém não mais no mundo experimentado, mas no mundo do personagem Carlitos –, não podemos dizer que se trata de mero momento de alienação, já que, por trás da permissividade do personagem é articulada a sutil compreensão das pressões sociais que cercam o espectador. Considero, todavia, este breve relato dos principais assuntos abordados na obra de Charles Chaplin como possibilidade de analisarmos o alcance de seu cinema: primeiramente, ele abordou as relações cotidianas, no ambiente íntimo. A mulher volúvel e os homens atirados, a lascividade aparece e, a partir dela, os conflitos que se configuram;
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o bêbado, o ladrão e o vagabundo antagonizam com o sóbrio, o magnata e o cidadão de respeito. O personagem Carlitos vai se traçando em sua luta com a sociedade e, ao adquirir maior maturidade, uma segunda fase é definida, em que o cineasta busca a sua identidade fílmica, a sua elaboração mais madura da linguagem fílmica na era do mudo. Suas histórias passam a incorporar aspectos dramáticos e às vezes trágicos, mesclando o riso desavisado com a melancolia e o gosto sutil das emoções. Com seu personagem definido e sua concepção artística elaborada conscienciosamente, vem a manifestação mais clara de quem é o autor de seu pensamento, de suas opiniões quanto à vida e a sociedade. Nessa fase, a terceira, Chaplin responde a diversas perguntas de âmbito político que foram feitas ao longo de sua trajetória no cinema norte-americano, além de adequar-se, de maneira calma e gradativa, ao cinema sonoro – mas não sem defender abertamente a permanência do cinema mudo. Quando Carlitos fala, defende as ideias de Chaplin. Podemos dizer que Carlitos sempre foi um instrumento de Chaplin para dizer o que ele sentia.
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Charles Chaplin, tendo aposentado o personagem Carlitos e ressentido com as reações da política norte-americana aos seus posicionamentos, desfecha a sua obra longe de Hollywood, debatendo a nova sociedade, a era da propaganda televisiva, do audiovisual e do ritmo midiático que as pessoas assumiam em suas vidas, em Um rei em Nova Iorque (A king in New York – Inglaterra, 1957; dir. Charles Chaplin). Contudo, em seu penúltimo filme, Luzes da ribalta (Limelight – EUA, 1952; dir. Charles Chaplin), ele homenageia os artistas que, ao contrário dele próprio, permaneceram no anonimato, lutando com a vida em busca de sobrevivência e, quando possível, algum reconhecimento artístico. Mas aqui, extrapolamos o cinema mudo. E apesar de avançarmos no tempo, ao tratar do cinema falado e da abordagem de Chaplin sobre a situação do artista cômico, podemos relacionar novamente o próprio Buster Keaton, um artista que, mesmo
diante de todo o seu sucesso, permaneceu vários anos num asilo para alienados.13
A ARTE DO HUMOR NO CINEMA
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Nesse sentido, quem quiser contar a história do cinema, ou mesmo entender o cinema e sua atualidade, precisará incluir em sua lista de assuntos o cinema mudo de comédia e, naturalmente, os seus grandes nomes. Sei que neste breve ensaio não fiz justiça a todos eles, mas tentei elencar a partir do cinema cômico e de dois de seus maiores nomes as etapas esquecidas da construção, afirmação e defesa da sétima arte. Charles Chaplin e Buster Keaton, cada qual à sua maneira, elaboraram no cinema cômico, no mudo, os condicionamentos indissociáveis do universo hostil e rude da contemporaneidade. Eles suplantaram o curto espaço de exibição do filme, ou o espaço um pouco maior do sucesso do cinema mudo, e participaram da construção da linguagem do cinema, da sua elaboração do risível – e, muitas vezes, da crítica às misérias da sociedade contemporânea.14
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Harold Lloyd e Mildred Davis em cena de Agora ou nunca (Now or never, 1921), de Fred C. Newmeyer e Hal Roach. Família Ferrez
13 SADOUL, Georges, op. cit. 14 Ver também: SANCHES, Everton Luís. O pensamento humanitário de Charles Chaplin: os interlocutores não-excluídos. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista, Franca, 2008.
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Carlos Roberto de Souza Doutor em Ciências da Comunicação e mestre em Artes pela Universidade de São Paulo. Funcionário licenciado da Cinemateca Brasileira e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos. Bolsista de pós-doutorado da Fapesp. Criador e curador das cinco primeiras edições da Jornada Brasileira de Cinema Silencioso.
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Interior do Cinema Pathé Palácio, na Cinelândia, Rio de Janeiro, na época da inauguração, em 1928. Fotografia Arno Kikoler. Família Ferrez
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a arte do humor no cinema
15 A comédia muda americana All wrong (1919), de Raymond B. West e William Worthington, distribuída pela Empresa Pathé de cinema e estrelada por Bryant Washburn. Família Ferrez
“Numa terra radiosa, vive um povo triste” são as primeiras palavras do clássico Retrato do Brasil, de Paulo Prado.1 Segundo este autor, a tristeza arraigada no caráter nacional brasileiro fora constituída, desde a ocupação do território pelos europeus, pela ação da díade sensualismo desenfreado e cobiça. O primeiro era responsável pelo “enfraquecimento da energia física”, pela “diminuição da atividade mental” que redundara no “desenvolvimento da propensão melancólica”. A cobiça, por sua vez, a sede de ouro e riquezas, constituía uma entidade mórbida, uma doença do espírito, com seus sintomas, suas causas e sua evolução. [...] Entre nós, por séculos, foi paixão insatisfeita, convertida em ideia fixa pela própria decepção que a seguia. [...] No anseio da procura afanosa, da desilusão do ouro, esse sentimento é também melancólico, pela inutilidade do esforço e pelo ressaibo da desilusão.
E, com minuciosa erudição, Paulo Prado demonstrava as manifestações das duas forças – ou fraquezas – na história da nação que se formou entre os séculos XVI e XIX e que chegou ao XX como um “corpo anêmico, atrofiado, balofo”, sobre o qual “tripudiam os políticos”. Publicado em 1928, Retrato do Brasil é a radiografia do país nos estertores da República Velha, período em que nasceu e claudicou o cinema silencioso brasileiro. Claudicou, aliás, não solitariamente, mas em companhia de boa parte da indústria, da agricultura, da educação etc., tão capengas quanto a produção cinematográfica nacional. Afinal, como ser diferente num país em que analfabetos
eram mais de três quartos da população e, como escreve ainda Paulo Prado, o analfabetismo corre parelhas com a bacharelice romântica do que se chama a intelectualidade do país. Sem instrução, sem humanidades, sem ensino profissional, a cultura intelectual não existe, ou finge existir em semiletrados mais nocivos do que a peste. [...] Ciência, literatura, arte – palavras cuja significação exata escapa a quase todos?
Refletir sobre o humor no cinema brasileiro dos primeiros tempos (o que vai até meados da segunda década do século passado) demanda exercício de arqueologia cinematográfica eivado de amargura. Não apenas devida à melancolia do brasileiro desse tempo, mas pela absoluta inexistência de filmes. Está bem. As poucas pesquisas de fontes primárias indicam que o primeiro filme de ficção brasileiro foi Nhô Anastácio chegou de viagem (1908), pequenina fita que contava as aventuras e desventuras de um matuto no Rio de Janeiro, a capital federal. Impossível saber como eram mostradas as peripécias, porque o filme não existe mais. Mas não foi essa “comédia” que constituiu o primeiro sucesso de público do cinema brasileiro, mas os filmes de crime, da mala e de estranguladores. Morbidez que reafirma o espírito nacional do tempo. Alinhar títulos como Amor e... piche, Aqui não! Não pode (crítica à Guarda Civil) ou Zé Bolas e o famoso telegrama nº 9 (sátira política) também não leva a nada. Que tipo de humor caracterizaria esses filmes curtos dos quais conhecemos os títulos, às vezes uma linha de enredo, esporadicamente uma fotografia? E em que avançamos no seu conhecimento quando procuramos nas eventuais
1 PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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Genésio Arruda, ator e cantor, estreou no cinema em Vocação irresistível (1924), de Luiz de Barros, filme dado como desaparecido. Foi um dos primeiros a representar o caipira brasileiro no cinema e inspirou Mazzaropi. Correio da Manhã
descrições publicadas pela imprensa sinais de racismo, preconceitos etc.? Está bem, ainda. Sabemos do grande sucesso que foram os filmes cantantes (cantados atrás da tela), entre os quais alguns satirizando acontecimentos políticos e sociais, à moda das revistas de ano apresentadas nos teatros. Desses temos pelo menos algumas fotografias, mas ainda não um talento arqueológico que consiga, a partir delas e de um fiapo de enredo, tecer uma interpretação coerente de sua interpretação ideológica do mundo próximo a elas.
Do conjunto da filmografia silenciosa brasileira pesquisada, menos de dez por cento chegaram ao século XXI. Percentagem em termos de títulos, e não de metragem ou duração efetivas, pois de muitos filmes sobreviveram apenas fragmentos. Desse total, a efetiva maioria foi produzida a partir de 1920. Do período anterior, menos de uma trintena de títulos, documentários em sua quase totalidade. A visão desses registros choca por sua sisudez e melancolia. Homens sérios, poucas mulheres, todos vestidos à europeia, com tecidos aparentemente não adequados ao clima tropical. Os meninos, sobretudo, espantam pela pouca infância, na verdade miniaturas de adultos com terninhos e chapéus, muitos chapéus. Curiosamente, um filme doméstico feito pelo pioneiro Aristides Junqueira, de Belo Horizonte, traz em imagens de 1909 um momento de humor. Não a comicidade involuntária que emana, por exemplo, de um Caça à raposa, realizado por Antônio Campos na São Paulo de 1913, no qual um cortejo de membros da elite cafeeira sai a cavalo da mansão de dona Olívia Guedes Penteado e passa solenemente pela avenida Tiradentes, todos vestidos à inglesa para caçar uma raposa (na verdade um serviçal com um lenço branco no chapéu) nos campos do Barro Branco. O cômico mineiro é diferente: após a família Junqueira posar como para uma fotografia no pomar de sua casa na rua Bahia, um jovem irreverente deixado para trás pula e faz micagens para a câmara. Algumas cenas depois, outro rapaz, na frente da casa da mesma rua Bahia, diverte crianças, fantasiado de Carlitos, o que indica que as imagens são posteriores a 1915, quando a personagem criada por Charles Chaplin havia conquistado o público cinematográfico planetário. A menção a Carlitos provoca uma última citação de Paulo Prado. Sem laivos de xenofobia. Ao abordar o Brasil de seu tempo, o autor detecta o império do que chama “vício de imitação”. Constata, cheio de evidências, que à sua volta
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tudo é imitação, desde a estrutura política em que procuramos encerrar e comprimir as mais profundas tendências da nossa natureza social até o falseamento das manifestações espontâneas do nosso gênio criador. [...] Imitação quer dizer importação. Nesta terra, em que quase tudo dá, importamos tudo: das modas de Paris – ideias e vestidos – ao cabo de vassoura e ao palito.
Em Retrato do Brasil poderíamos inclusive, com algum de esforço, detectar um anseio pela produção cinematográfica nacional quando o autor, criticando a evasão de divisas provocada pela
importação, acusa a remessa de ouro “para as fitas dos inúmeros cinemas que pululam como sanguessugas até os confins dos sertões”. A crítica, entretanto, refere-se especificamente ao depauperamento econômico nacional. Nenhuma restrição às fitas da Gaumont, Pathé, Cines, Nordisk, Edison e Vitagraph que, entre outras, formaram as plateias cinematográficas brasileiras e certamente conformaram o estilo dos filmes brasileiros dos primeiros tempos. Cinco minutos de um filme gaúcho com duração de pelo menos o dobro, produzido em 1913 na progressista cidade de Pelotas, é o que nos resta como exemplo de um humor nacional desse período. Um menino sapeca provoca desequilíbrio na paz do lar doméstico ao pintar as lentes do pincenez do avô que, julgandose cego, faz chamarem o médico. Isso é o que contam as pesquisas. Nas imagens existentes, bem articuladas narrativamente, vemos apenas o traquinas quebrar um vaso numa sala burguesamente mobiliada, ser perseguido pela mãe e refugiar-se junto ao avô no quintal, e o médico, chamado ao telefone pelo pai do garoto, chegar de charrete na frente da casa dos protagonistas. Engraçado? (O filme chama-se Os óculos do vovô, da Guarany Films.) Interessados por cinema brasileiro poderiam argumentar que este panorama é um pouco lúgubre, tendo em vista as chamadas comédias da Cinédia da década de 1930 e as chanchadas da Atlântida, Herbert Richers e outras
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Há registro de um filme chamado Um senhor de posição (1925), com Procópio Ferreira. Outra obra com o mesmo título e mesma produtora, classificada como comédia, teria sido realizada em 1917. Ambas estão desaparecidas. Correio da Manhã
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dos anos 1940 e 50. Pergunto-me: seria o humor brasileiro pós-Revolução de 30 possível porque eminentemente falado, apoiado na graça dos chistes e trocadilhos verbais? Não respondo porque não cabe nesta contribuição (além de demandar revisões e reflexão).
No mais – e ultrapassando os limites temporais que me foram fixados –, o humor que os filmes silenciosos sobreviventes nos permitem contemplar confirma a melancolia proposta por Paulo Prado. Exemplo regenerador (José Medina, 1919) parece um drama curto italiano ao descrever um desacerto conjugal salvo pelo estratagema de um mordomo em plena avenida Paulista. O riso que provoca é contido, discreto, ideologicamente burguês.
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Fachada do cinema Pathé Palácio da Cinelândia, o primeiro em estilo arquitetônico art déco no Rio de Janeiro. Família Ferrez
O humor cinematográfico silencioso brasileiro parece-me no momento extremamente composto e constrangido. Uma exceção como Maluco e mágico (William Schocair, 1927) escapa desses adjetivos por motivos inexplicáveis: surreal malgré lui, talvez pela própria precariedade de realização que provoca fascínio que ultrapassa fronteiras (Paolo
Cherchi Usai utilizou um trecho desse filme no seu inacessível Passio, de 2007), ou futurista, como postula Mariarosaria Fabris.
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Essas anotações me foram solicitadas num período em que minha alegria de viver estava reduzida a bem poucos elementos. Mas rememoro e verifico que nenhum dos filmes citados provocou-me gargalhada equiparável às que acompanharam a visão de fitas de Max Linder, Chaplin, Buster Keaton ou comédias americanas de Ernst Lubitsch, para mencionar apenas algumas.
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Penso que o humor cinematográfico silencioso brasileiro provoca pouco riso, em geral amargo. FF.FMF.6.1.0.7.2.4
Em Raízes do riso – a representação humorística na história brasileira: da belle époque aos primeiros tempos do rádio,2 publicado em 2002, Elias Thomé Saliba esmiúça caricaturistas e pasquins à cata da que seria a principal função do humor: a libertária. Aqui e ali encontra suas manifestações. Salvo bem-vindas contradições, não encontro correspondente no cinema silencioso brasileiro. O negro Benedito, de O segredo do corcunda (Rossi Film, Alberto Traversa, 1924), supostamente fica mais engraçado quanto mais se embriaga, numa caracterização circense. Rozendo Franco, em filmes cataguasenses de Humberto Mauro, encarna tipos cômicos e, sobretudo em Sangue mineiro (1929), sua graça existe na linguagem bacharelística empolada que os intertítulos transcrevem. Pouco ou muito pouco humor nas imagens, a essência do cinema silencioso.
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Foto do interior do Cine Pathézinho, no segundo endereço onde funcionou, no Rio de Janeiro [1913-1930]. Família Ferrez
2 SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso – a representação humorística na história brasileira: da belle époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
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Roberto Acioli de Oliveira Doutor e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de artigos nos catálogos das mostras Filmes libertam a cabeça – Rainer Werner Fassbinder, do Centro Cultural Banco do Brasil (RJ/SP, 2009), e Luis Buñuel, o fantasma da liberdade, da Fundação Clóvis Salgado (MG, 2012). Contribui para as revistas on-line dEsEnrEdoS e RUA (Universidade Federal de São Carlos). Mantém os blogs Cinema Europeu e Cinema Italiano.
Uma risada invisível: a comédia alemã de Schünzel e Lubitsch “O cinema alemão não produziu comédia que se possa considerar clássica.”
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Carole Lombard era uma das mais populares atrizes de Hollywood quando estrelou Ser ou não ser (To be or not to be, 1942), seu último filme, um grande sucesso de Lubitsch. Correio da Manhã
Lotte Eisner
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A cena da gargalhada de Greta Garbo no filme Ninotchka (1939) se tornou uma das mais marcantes da história do cinema. O diretor Ernst Lubitsch acabou ficando com o crédito de ter feito rir a circunspecta heroína de dramas românticos. Correio da Manhã
Ramon Novarro, ator mexicano e um dos primeiros latin lovers do cinema mudo. O galã trabalhou com Lubitsch em O príncipe estudante (The student prince in old Heidelberg, 1927), onde contracenava com Norma Shearer. Correio da Manhã
1 EISNER, Lotte H. A tela demoníaca: as influências de Max Reinhardt e do Expressionismo. Trad. Lúcia Nagib. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p. 216.
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Muita gente não se dá conta de que a maioria absoluta das referências ao cinema alemão anterior à Segunda Guerra Mundial menciona apenas um punhado de filmes expressionistas. Faz sentido que uma indústria cinematográfica com a pujança da alemã na década de 20 do século passado tivesse produzido tão poucos filmes? Além do mais, é realmente razoável pensar que apenas os elementos estéticos e existenciais do Expressionismo traduzam a alma alemã? Conhecido como República de Weimar, o período compreendido entre 1919 e 1933 não se restringe às pérolas expressionistas, muitas comédias também foram produzidas. De fato, desde a chamada Alemanha Guilhermina (1895-1919) já se realizavam comédias satirizando o próprio cinema. Sabine Hake cita especialmente2 O fotógrafo desempregado (Der stellungslose photograph, 1912), Como o cinema se vinga (Wie sich das kino räch, 1912), A primadonna do filme (Die filmprimadonna, 1913) e Onde está Colette? (Wo ist Coletti?, 1913).3 Poucos conhecedores da história do cinema parecem conceber a hipótese de que os alemães também são capazes de rir, fazer rir ou rir de si mesmos! Logo após a Segunda Guerra Mundial, houve uma tendência à valorização do cinema expressionista alemão enquanto “arte”. O objetivo era “vender” outra imagem da Alemanha depois da derrota e do Holocausto.4 Seria um dos motivos do obscurecimento do registro histórico da comédia nos primórdios do cinema alemão?
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Forbidden paradise (1924), com Pola Negri e Rod La Rocque, filme americano da fase muda de Ernst Lubitsch. Correio da Manhã
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Entre 1914 e o final da década de 1930 havia um cinema popular na Alemanha, tão relevante (especialmente em termos mercadológicos) quanto o cinema dito “de arte” – curiosamente, muito tempo depois, em 2001, uma comédia será a maior bilheteria de todos os tempos de uma produção alemã na Alemanha (11 milhões de ingressos), Der schuh des manitu (dir. Michael Herbig), ainda que Hake o defina como uma sátira pueril da série Winnetou dos anos 60, o faroeste alemão.5 Santo de casa não faz milagre: Reinhold Schünzel Considerado pelos críticos da década de 20 do século passado como um grande cineasta e um gênio da comédia, Reinhold Schünzel (1886-1954) era bastante reconhecido pelo público alemão. Thomas Elsaesser acredita que, tendo sido apresentado aos primórdios do cinema alemão através dos escritos de Lotte Eisner (em seu livro A tela demoníaca) e de Siegfried Kracauer (em De Caligari à Hitler: uma história psicológica do cinema alemão), é compreensível que a maioria de nós não sinta falta de referências a ele. De fato, Schünzel é desconhecido internacionalmente e pouco lembrado até mesmo por historiadores alemães do cinema. 6 Schünzel dirigiu 45 filmes entre 1918 e 1941, tendo atuado em 140 entre 1916 e 1953. Começou como comediante no Volkstheater (Teatro do Povo) em 1912, apresentando-se também com
2 É do autor a tradução dos títulos que não foram lançados no Brasil. 3 HAKE, Sabine. German national cinema. 2. ed. London/New York: Routledge, 2008. p. 18. 4 PEHNT, Wolfgang. To the brothers of the planet Earth. Expressionism – a German chapter?! In: BELL, Ralf; e DILLMANN, Claudia (Eds.). The total artwork in Expressionism: art, literature, theater, dance and architecture, 1905-25. Ostfildern: Hatje Cantz Verlag, 2011. Catálogo de exposição. p. 376. 5 HAKE, Sabine, 2008, op. cit., p. 204. 6 ELSAESSER, Thomas. Weimar cinema and after: Germany’s historical imaginary. New York: Routledge, 2000. p. 295-310.
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uma trupe itinerante de teatro. Apresentar-se-á em filmes de educação sexual (Sittenfilme) para o cinema a partir de 1916. Era ator, diretor e produtor na tradição de comediantes como Charles Chaplin, Buster Keaton e Harold Lloyd – embora algumas vozes da crítica da época questionassem tais comparações. A partir de meados da década de 20, Schünzel cria uma “persona alternativa” essencialmente cômica – o malandro inútil das ruas de Berlim –, transformando um personagem “local” de reputação duvidosa num tipo reconhecido nacionalmente. Muitas vezes Schünzel, que se dizia uma pessoa do povo, representou personagens das classes baixas (criados, garçons, artesãos sem trabalho), difundindo fantasias de mobilidade social. O público-alvo era justamente a classe ascendente de artesãos que se tornavam funcionários de escritórios. O enredo favorito dele nas comédias envolvia imitações, identidades trocadas, inversão de papéis, engano e dissimulação, escolhas que se conectam com seus outros papéis de vilão. Elsaesser acredita que o desconhecimento em relação à comédia e a Schünzel se justifique em função de pelo menos três fatores: 1) poucas cópias dos filmes sobreviveram; 2) o preconceito da elite cultural de Weimar em relação ao filme de arte e ao cinema popular norte-americano (notadamente a comédia pastelão); 3) a crença de que o cinema alemão nunca foi capaz de produzir boas comédias, com exceção de Ernst Lubitsch (que emigrou para os Estados Unidos). Internacionalmente, Schünzel só ficaria famoso a partir do advento do cinema sonoro na década de 30, quando dirigiu algumas das mais sofisti-
cadas comédias, como Vitor e Vitória (Viktor und Viktoria, 1933),7 O casamento inglês (Die englische heirat, 1934) e Amphitryon (1935). Também atuou em sucessos internacionais como A ópera dos três vinténs (Die 3-Groschen-Oper, dir. G.W. Pabst, 1931). Mesmo sendo judeu por parte de mãe, os filmes de/com Schünzel eram tão populares que Josef Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, ansiava por mantê-lo trabalhando mesmo depois de 1933.8 Elsaesser alerta para o fato de que naquela época não era incomum que um ator também tivesse que ser diretor. Sendo assim, no que diz respeito à Schünzel, sua carreira de ator-cineasta-produtor não significa necessariamente que ele era um gênio apenas porque acumulou vários cargos. Enquanto cineasta, Schünzel era elogiado, como ator era acusado de maneirismo – embora tenha sido comparado à Conrad Veidt, o que constitui um grande elogio. O ano de 1926 foi bom para ele, realizou Hallo Caesar! e passou a ser levado a sério como cineasta. Nesse mesmo ano, sua carreira de ator cômico se consolida. Mas Schünzel seria um talento, um criador ou apenas um ator de quadros cômicos? Elsaesser procura iluminar essa questão traçando um paralelo com Lubitsch. Nos filmes em que Lubitsch dirigia e também protagonizava, como em Meyer de Berlim (Meyer aus Berlin, 1916), “Meyer” era um personagem familiar do teatro de revista e das histórias em quadrinhos dos jornais alemães. Nos Estados Unidos, esse aproveitamento do conhecimento prévio do público já acontecia e formava a base de personagens como o Carlitos de Chaplin – assim como de Buster Keaton, Al St. John e
7 Em 1982 seria realizada uma refilmagem com a atriz Julie Andrews. 8 Quase metade dos longas-metragens produzidos durante o Terceiro Reich (1933-1945) foram comédias: musicais; familiares; com elementos regionais; sofisticadas e românticas. Sempre com finais felizes, exceto pelas comédias de colarinho branco, que mostravam certa consciência dos problemas sociais e econômicos, contrapondo mulheres competentes a homens pequeno-burgueses inseguros. As comédias regionais bávaras não aderiram às teorias raciais nazistas, mas insistiram em seu próprio provincianismo e xenofobia. Em 1938, em plena Alemanha nazista, Carl Froelich realiza a comédia romântica As quatro companheiras (Die vier gesellen), com Ingrid Bergman. HAKE, Sabine, 2008, op. cit., p. 84, 87-88, 91. A atriz Lilian Harvey protagonizaria muitas comédias durante o período nazista. Durante a década de 70, um desses filmes, Crianças felizes (Glückskinder, 1936), chegaria a ser considerado “talvez a melhor comédia alemã de todos os tempos”. RENTSCHLER, Eric. The ministry of illusion: Nazi cinema and its afterlife. Massachusetts: Harvard University Press, 1996. p. 118. Para Sabine Hake, embora o cinema fosse desconsiderado pela elite, o grande número de cineastas e produtores judeus atesta a ausência de hierarquias profissionais e preconceitos sociais na Alemanha da época. Ibidem, p. 16-17. Tendo realizado um filme por ano durante o Terceiro Reich, Robert A. Stemmle dirige A balada de Berlim (Berliner ballade) em 1948. Entre as ruínas bem reais da capital do país, ele tentou fabricar ironias que pudessem levar os alemães a rir e refletir sobre sua situação catastrófica.
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Harry Langdon. Temendo que Meyer fosse um tipo muito restrito geograficamente, Lubitsch o abandona e se concentra na direção. O receio era que um personagem como este, ainda que popular na Europa, não fosse exportável. Schünzel só chegaria nesse ponto durante a década de 30, quando sua reputação internacional cresceu com Vitor e Vitória, que dirigiu seguindo a tradição da fase norte-americana de Lubitsch. De acordo com Alice Kuzniar, na Alemanha das décadas de 20 e 30 havia um interesse insaciável por comédias de troca de sexo, travestismo ou identidades trocadas. Além de Vitor e Vitória, que Kuzniar considera um clássico do gênero, poderiam ser citados Der fürst von Pappenheim (1927), de Curt Bois, e Eu não quero ser homem (Ich möchte kein mann sein, 1918), de Lubitsch.9 No caso do filme realizado por Bois, onde ele próprio aparece como rainha transformista, Kuzniar afirma ser parte do jogo que a plateia tentasse adivinhar a identidade sexual dos intérpretes.10 Com exceção de Vitor e Vitória, na maioria das comédias com travestis a heterossexualidade triunfa no final.11 Para Elsaesser, a indústria cinematográfica alemã na década de 20 não foi capaz de produzir comediantes de grande apelo como o francês Max Linder, o norte-americano Ben Turpin, o inglês radicado nos Estados Unidos Charles Chaplin, entre outros. Existiram comediantes alemães de destaque (os nomes de Siggi Arno, Curt Bois e Victor Janssen são exemplos), a questão é que seus nomes por si só não garantiam bilheteria. Harry Liedtke e Harry Piel protagonizaram filmes de enorme sucesso, seus nomes eram sinônimos de seus papéis, mas eles incorporavam apenas um tipo de herói (o aventureiro audacioso), e não o anti-herói. Schünzel era uma promessa, entre o ator de papéis cômicos
e um comediante-estrela, para competir com a popularidade de Chaplin.
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Um filme como Hallo Caesar! (1927), que Schünzel produziu, dirigiu, protagonizou e foi responsável por parte do roteiro, é considerado por Elsaesser como uma pequena fenda luminosa na opinião comumente aceita de que o cinema alemão préHitler é um espelho negro da alma da nação e de seus traços autoritários. É provável que Chaplin seja o modelo para o personagem de César – uma comédia que exige muito do físico, com elementos do pastelão e enredo simples e sentimental. Elsaesser conta que os filmes, e a fama, de Chaplin chegaram relativamente tarde à Alemanha. Curiosamente, ele se tornaria o parâmetro do filme de “arte”, e não da comédia. Em 1924, o crítico Hans Siemsen disse que Chaplin era muito necessário para sacudir a prostração dos alemães em relação ao status social e a autoridade política – opinião compartilhada por Bertold Brecht. Além da obra de Chaplin, uma série de situações de Hallo Caesar! remetem à influências da escola norte-americana da comédia pastelão de Mack Sennett. Com esse filme, Schünzel estaria imitando certos gêneros populares de Hollywood, enquanto tornava o enredo e os personagens reconhecíveis para os alemães. Naquele momento, isso fazia com que Schünzel fosse percebido como um cineasta sem ambições no mercado norte-americano, mas proporcionando o mesmo tipo de entretenimento ao público alemão. De certo modo, conclui Elsaesser, isso mostra (muito mais claramente do que os filmes de arte de Weimar) até que ponto o gosto popular e o mercado alemão estavam americanizados em meados da década de 1920. Elsaesser chama atenção também para o fato de Hallo Caesar! ser um filme orientado para a atua-
9 Durante a República de Weimar, heterossexuais lotavam teatros de revista que apresentavam números com travestis. KUZNIAR, Alice A. The queer german cinema. Stanford: Stanford University Press, 2000. p. 2, 31-33, 43-44, 47, 49. 10 Uma sequência de Pappenheim foi utilizada pelos nazistas no filme antissemita O judeu eterno (Der ewige jude, direção de Fritz Hippler, 1940), como ilustração de uma sexualidade judia não natural e decadente. Ibidem, p. 46. 11 Em Vitor e Vitória, a mulher tira a roupa de homem e o homem veste a da mulher. Contudo, sugeriu Kuzniar, a verdadeira “vedete” seria o personagem do outro homem, aquele que se apaixona por Vitória antes de saber que ela não é homem. É significativo que, desde a descriminalização da homossexualidade na Alemanha em 1994, na maioria das comédias de relacionamento sua função é resolver a crise da heterossexualidade e afirmar o casal monogâmico (para qualquer opção sexual) como o fundamento da sociedade – o que rompe com a defesa dos diretos dos homossexuais por cineastas alemães como Rosa Von Praunheim e Monika Treut. HAKE, Sabine, 2008, op. cit., p. 204.
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ção e carregar um traço populista evidenciado na “saudação” ao herói (protagonizado pelo próprio Schünzel). Esse tipo de filme pertence à categoria do “cineasta como espetáculo”. Nessa tradição se enquadram figuras como Georges Méliès nos primórdios do cinema francês, Buster Keaton e, no panorama posterior à Segunda Guerra Mundial, Jacques Tati na França, Federico Fellini na Itália, Jerry Lewis e Woody Allen nos Estados Unidos. Figuras cujo talento foi enriquecido com base em tradições não narrativas como circo, teatro de revista, cabaré e stand-up comedy. No contexto alemão, a influência veio também da opereta, já denunciada em 1913 como o pior inimigo da arte teatral – isso explica porque a sétima arte demorou a dar frutos naquele país, sendo considerada uma ameaça ao teatro e à literatura. Ernst Lubitsch: a fase alemã do “Americano de Berlim” No que diz respeito à obra de Ernst Lubitsch (1892-1947), infelizmente não possuem cópia conhecida 27 dos 62 títulos relacionados numa filmografia divulgada em 1982.12 Ele seria muito citado por suas comédias hollywoodianas leves, como Ninotchka (1939), onde mostrou Greta Garbo rindo (fato raro que foi utilizado na propaganda do filme), mas também por Ser ou não ser (To be or not to be, 1942),13 quando satirizou Adolf Hitler – o filme foi muito elogiado por Vinícius de Moraes no ano de lançamento.14 Antes de trocar a Alemanha pelos Estados Unidos, em 1922, o cineasta já contava em seu currículo com muitas comédias – Lubitsch também realizaria dramas históricos.15 Foi em sua fase alemã, entre 1914 e 1922, que começou a construir aquilo que será chamado de “toque Lubitsch”. Partindo da ope-
reta, não apenas apontou para um novo padrão na relação entre gêneros (misturando tragédia e farsa) e classes sociais, como realizou um comentário cáustico sobre a relação neurótica do cinema de Weimar em relação à visão e a visibilidade. A fama do cinema de Weimar, especialmente o expressionista, gira em torno da paranoia em relação a estar sendo vigiado e à incerteza quanto a quem está olhando. Entretanto, Lubitsch não identificava isso com o Estado terrorista (como Kracauer, que viu aí o germe do nazismo). Para Elsaesser, os filmes de Lubitsch invertem esse padrão ao apostar na cumplicidade da plateia (mais do que no sinistro do filme de terror), em conjecturas e conclusão (mais do que em surpresa e choque), levando o espectador a mudar seu foco: do olho traumatizado à mente hipnotizada.16 Em vez de falar da ansiedade de estar sendo vigiado e dos poderes perversos envolvidos, os filmes de Lubitsch falam sobre os prazeres de uma boa atuação. Já no final da década de 1910, a popularidade de Lubitsch lhe rendeu o apelido de “o diretor americano de Berlim”. De acordo com Hake, Lubitsch foi o primeiro cineasta a utilizar a câmera como instrumento para o comentário irônico. O modelo de muitas comédias românticas e sofisticadas posteriores é tributário direto do ponto de vista de Lubitsch. Seu profundo ceticismo em relação à natureza humana era compensado pela compreensão dos defeitos e fraquezas do indivíduo. O “toque Lubitsch” deriva da sua capacidade de captar as diferenças entre o comportamento público e o privado. Como tantos nomes famosos do primeiro cinema alemão, ele se juntou ao teatro de Max Reinhardt em 1911. Dois anos depois estreava
12 EISENSCHITZ, Bernard; e NARBONI, Jean (Orgs.). Ernst Lubitsch. Paris: Cahiers du Cinéma, 2006. p. 250. 13 Com relação a esse título, a primeira coisa que vem à lembrança é Shakespeare ou uma referência à função do ator e suas máscaras. Contudo, em 1941, um ano antes da estreia do filme, Josef Goebbels se referiu ao cinema utilizando a mesma expressão: “Uma arma na luta total de nosso povo, na batalha existencial total de toda uma nação, na qual devemos lutar até o amargo fim, onde a principal questão é ser ou não ser”. RENTSCHLER, Eric, op. cit., p. 203. 14 MORAES, Vinícius de. O cinema de meus olhos. Organização de Carlos Augusto Calil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 163. 15 Gilles Deleuze inclui toda a obra de Lubitsch (comédia e drama) no conceito de “forma pequena da imagem-ação”. Forma que chamou de “comédica”, onde é a ação que desvenda a situação. Contudo, mesmo depois que certa atitude de um personagem define o sentido de uma situação, a ação não será capaz de eliminar a dúvida em relação a todos os elementos da sequência. Em Ser ou não ser, Lubitsch teria alcançado a perfeição desse mecanismo. DELEUZE, Gilles. Cinema 1 – a imagem-movimento. Trad. Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 200-202. 16 ELSAESSER, Thomas, op. cit., p. 207-211; HAKE, Sabine, 2008, op. cit., p. 36.
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no cinema em Meyer no campo (Meyer auf alm), o primeiro numa série de “filmes Meyer” que o tornariam popular. Personagem judeu cômico desastrado, o charme implacável de Meyer sempre lhe rende a filha do chefe no final. Hake vê similaridades entre o humor de Lubitsch e as peças de teatro Yiddish do século XIX, especialmente as peças Purim (Purimshpil ou Purim spiel), mais próximas dos espetáculos populares do que do teatro burguês. Originalmente um feriado judaico, as peças Purim, ainda que baseadas na Bíblia, sempre incluem palhaços e bobos da corte com suas piadas irreverentes e comédia pastelão. Os personagens de Lubitsch remetem também às figuras padrão da commedia dell’arte italiana, e às figuras alemãs picarescas Hanswurst e Picklehering. Similaridades com as peças Shrovetidas (teatro de caráter burlesco na Europa central/oeste do século XV) também podem ser encontradas. 17 Algumas das primeiras experiências de Lubitsch na direção, como em O orgulho da firma (Der stolz der firma, 1914) e Palácio do sapato Pinkus (Schuhpalast Pinkus, 1916), ameaçavam confinálo a esse meio e suas fantasias de ascensão social, mas o sucesso propiciou contatos que lhe permitiram uma mudança de rumo. Um exemplo da capacidade de Lubitsch em falar de assuntos como o suicídio (um tema recorrente em seus filmes) deslocando-o para uma atmosfera cômica já se fazia sentir nessa época. Em O orgulho da firma, primeiro ele cai da escada e lemos no intertítulo: “Parece que estou morto!”. A seguir, tendo perdido o emprego, ele pensa em se afogar, mas antes resolve ir fazer uma refeição. Em Sumurun (1920), um filme histórico com toques cômicos, o próprio Lubitsch atuou como um corcunda que bebe veneno, mas não morre. Em A boneca (Die puppe, 1919), o senhor Hilarius evita um suicídio ao reclamar que o aprendiz estava tentando beber uma tinta muito cara. Enquanto filmava curtas-metragens
de comédias e paródias para o mercado alemão, Lubitsch também realizou uma série de dramas de época e filmes históricos. Foi quando realizou as comédias que lhe deram uma passagem para Hollywood: A princesa da ostra (Die austernprinzessin, 1919), A boneca 18 e A gata montanhesa (Die bergkatze, 1921).
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O famoso “toque Lubitsch” de sua futura carreira nos Estados Unidos também podia ser percebido na utilização discreta da informação visual, dando ao espectador o prazer de imaginar o resto. Em sua fase alemã, Lubitsch também trabalhou com alusão indireta e conclusão, explorando também a reação em cadeia de uma situação levada ao absurdo. Segundo Elsaesser, um dos melhores exemplos do toque “alemão” de Lubitsch está em A princesa da ostra, uma sátira da moda dos Estados Unidos em Weimar e das fantasias de abundância, alimentadas por anos de penúria e hiperinflação. Nessa adaptação livre da opereta The dollar princess (1907), satirizando o esnobismo do dinheiro norte-americano em relação aos títulos de nobreza europeus, Nucki (o nobre com quem a mimada e milionária Ossie pretende se casar) está falido e não passa de outro Meyer. Mas para Elsaesser, o gênio do primeiro Lubitsch vai além da sátira ao comportamento judeu, ele também parodiou os “filmes de autor” expressionistas. Os filmes Meyer parodiam o tema da ascensão social, que ocupa importante posição nos filmes de Paul Wegener sobre estudantes, aprendizes e funcionários (O estudante de Praga – Der student von Prag , 1913). A boneca parodia não apenas todas as histórias de E.T.A. Hoffmann (1776-1822) sobre autômatos e duplos, mas também as relações (que remetem ao gótico alemão do século XIX na literatura) entre Caligari e Cesare em O gabinete do dr. Caligari (Das kabinett des dr. Caligari, dir. Robert Wiene, 1920). A gata montanhesa faz piada do orientalismo e do cenário expressionista.
17 Hake chamou atenção aqui para a semelhança praticamente literal em relação a Escritores criativos e devaneios, publicado por Freud em 1907, sobre as influências das fantasias infantis nos devaneios dos adultos – especialmente essa tendência a desejar se casar com a filha do patrão. HAKE, Sabine. Passions and deceptions: the early films of Ernst Lubitsch. New Jersey: Princeton University Press, 1992. p. 29, 39, 44. 18 De acordo com Revault D’Allonnes, A boneca é um exemplo raro de comédia com iluminação expressionista. La lumière au Cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, 1991. p. 30, nota 20.
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As mulheres de Lubitsch Um dos projetos não realizados de Lubitsch em 1920 foi Mephistophela.19 Sátira em torno da lenda de Fausto, onde a mulher é o diabo. Uma dica da misoginia do cineasta? Juntamente com A boneca e A gata montanhesa, A princesa da ostra compõe uma “trilogia da feminilidade” que, na opinião de Sabine Hake, desafia o cinema expressionista alemão num momento de transição entre o primitivo e o clássico cinema mudo – atravessando diferentes tradições literárias (grotesco, farsa, contos de fadas), modos de representação (narrativa, espetáculo) e estilos cinematográficos (animação, realismo). Hake explica que espetáculo, fantástico e disfarces são resíduos de tradições mais antigas da representação cinematográfica cruciais para qualquer estudo da feminilidade e da narrativa nos primórdios do cinema. São também indicadores das diferenças da relação sujeito-objeto que distinguem as primeiras comédias de Lubitsch (com uma sensibilidade pré-edipiana) em relação às sofisticadas comédias da década de 20, como Eu não quero ser homem. Nas estórias de Lubitsch, a liberação feminina acontece num contexto brincalhão, como em Eu não quero ser homem. Protagonizado por Ossi Oswalda, primeira descoberta de Lubitsch, para quem atuaria em vários filmes como uma meninamulher agressiva e ingênua – podemos vê-la também em A boneca e A princesa da ostra. Pola Negri, atriz que protagonizou dramas de época realizados por Lubitsch, era mais conhecida como uma vamp perigosa, mas é possível vê-la num papel cômico em A gata montanhesa. Henny Porten, a primeira estrela das telas alemãs, atuou em alguns papéis cômicos para Lubitsch, mas essa parceria não foi adiante. Com sua atmosfera urbana moderna, A prisão alegre (Das fidele gefängnis, 1917) foi a primeira comédia do cineasta a explorar de forma sutil a relação entre consumo e erotismo, iniciando a transição das comédias regionais para as sofisticadas. Baseada na opereta Die fledermaus, de Johann Strauss, a trama do filme antecipa as complicações
maritais das comédias que Lubitsch realizará nos Estados Unidos. As personagens femininas fortes de Lubitsch não chegam a contradizer a crise da identidade masculina apresentada pelo cinema expressionista, mas não reproduzem a aura de respeitabilidade que este procurou imprimir ao tema. De fato, as comédias do primeiro Lubitsch estavam muito mais próximas das diversões populares do século XIX. Para Hake, com essas mulheres independentes e espirituosas, torna-se possível uma representação do desejo feminino.20 A trilogia da feminilidade é fruto de uma “cultura da garota” que se desenvolveu a partir da década de 20 do século passado em função das mudanças no status econômico e social das mulheres. No cinema de Lubitsch, sugeriu Hake, a androginia de certos papéis femininos (Eu não quero ser homem), além do próprio tipo físico de algumas atrizes (Asta Nielsen, Pola Negri e Lya de Putti), permitem que essa “nova mulher” nascente teste os limites do padrão tradicional dos atributos femininos (beleza, sexualidade, sociabilidade). O detalhe é que Lubitsch fez isso através da paródia e do exagero. Combinando habilidosamente o humor da velha comédia pastelão com uma nova sofisticação, A princesa da ostra foi lançado em plena crise política e econômica na Alemanha. Falando de consumismo e identidades trocadas, a relação dos europeus sem dinheiro com o novo rico norte-americano foi sucesso instantâneo. Troça com o fetichismo da mercadoria e, pelos exageros (de clichês, de encenação), remete a uma comédia grotesca e ao carnavalesco rabelaisiano. A boneca, por sua vez, foi lançado na mesma época e remete à O gabinete do dr. Caligari – mundos imaginários, relação entre criador e criatura (Caligari e o sonâmbulo, o fabricante de bonecas e sua criação) e o tema do duplo (a mulher e a boneca feita à sua imagem). Se Caligari é a ilustração da história de um narrador, em A boneca acompanhamos o próprio Lubitsch montando o cenário do filme. A dife-
19 EISENSCHITZ, Bernard; e NARBONI, Jean, op. cit., p. 298. 20 HAKE, Sabine, 1992, op. cit., p. 47, 55, 81-84, 89, 92, 94, 96-97, 103, 108-109, 112.
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cine A atriz polonesa Pola Negri foi a primeira europeia a ir para Hollywood, em 1921, levada por Ernst Lubitsch. Com o advento do som no cinema e a aposta em papéis extravagantes, a vamp teve sua carreira nos EUA encerrada abruptamente no final dos anos 20, devido ao seu sotaque e à censura do Código Hays. Correio da Manhã
Henny Porten, estrela do cinema mudo alemão. Correio da Manhã
vive entre bandidos na floresta. O galã, um tenente, entre soldados na fortaleza. A “tarefa” dele é se casar com a filha do comandante, deixando para trás uma multidão de mães solteiras inconsoláveis – cena recorrente em Lubitsch. Hake aponta uma série de elementos cenográficos e de atmosfera que remetem ao Expressionismo, mas A gata montanhesa é ignorado pelos historiadores do cinema, ainda que Rudolf Kurtz (em seu muito citado livro de 1926, Expressionismus und film) louvasse Lubitsch pelo primeiro filme de arte (Stilfilm) alemão realizado de forma consequente. Mas Hake não está afirmando que se trate de um filme expressionista – além de farsa e fantasia, ela também percebeu ali elementos do Futurismo e do Surrealismo.
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A comédia morreu?
rença é que ao invés de reproduzir um universo claustrofóbico, A boneca apresenta o paraíso da infância feliz. As mulheres protagonistas na trilogia, de resto em toda a obra de Lubitsch, tendem a resolver as coisas em seus próprios termos – o que não quer dizer que elas vençam sempre; em A boneca, a protagonista convence um solteiro relutante a se casar (mas a mulher perfeita é um robô). Também são característicos de Lubitsch fortes laços entre pais e filhas (ou homens mais velhos e poderosos e mulheres jovens).
Em seu livro sobre o Expressionismo no cinema alemão, Lotte Eisner se referiu a Lubitsch de forma preconceituosa, como alguém muito ligado a “uma certa grosseria muito ‘Europa Central’” e um “espírito berlinense” (que era realista antes da chegada de Hitler, sempre à espreita do ridículo e dado a comentários cortantes, e com a tendência judaica para os subentendidos que se desdobram em duplos sentidos) que estão na base do “toque Lubitsch”, mas que se refina apenas após sua mudança para Hollywood.21 Elsaesser acredita que essa referência de Eisner está mais correta do que ela imaginou, a associação ao mundo da moda dá unidade (socioestilística) não apenas à obra alemã de Lubitsch, mas ao próprio cinema de Weimar.
Em A gata montanhesa, uma mulher prefere viver na montanha selvagem e evitar as armadilhas da civilização, incluindo o amor romântico – ao contrário dos outros dois filmes, não há final feliz, o amor não “pacifica” a mulher e termina numa afirmação da diferença. Antimilitarista, ele foi realizado logo após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Rischka, a “gata”,
Críticos como Eisner argumentam que “a roupa faz o homem” é um ponto de vista cínico, que só justifica preocupações com disfarces, aparência e fraude. Para Elsaesser, ao contrário, os primeiros filmes de Lubitsch mostram que no interior das estruturas de autoridade baseadas no culto das aparências, motivos materiais como dinheiro, sexo e valores superficiais como roupas e moda
21 EISNER, Lotte, op. cit., p. 57-58.
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permitem uma reversão das relações de poder.22 Na opinião de Hake, com a partida de Lubitsch para os Estados Unidos em 1922, estancou-se o desenvolvimento de uma tradição especificamente germânica da comédia no cinema. Schünzel e Ludwig Berger continuaram fazendo comédia após a partida de Lubitsch, até que eles mesmos emigrassem para os Estados Unidos na década de 30. 23 Entre o escapismo e o trágico “O clássico cinema de Friedrich W. Murnau, [Fritz] Lang, Ernst Lubitsch e outros nada parece dizer aos novos cineastas germânicos [...]” Glauber Rocha (O Cruzeiro, 1968)24
De acordo com Lotte Eisner, os melhores cineastas alemães do cinema mudo optaram por filmes trágicos, insistindo na vulgaridade de suas comédias – citou Romeu e Julieta na neve (Romeo und Julia im schnee) e As filhas de Kohlhiesel (Kohlhiesels töchter), realizados por Lubitsch em 1920, As finanças do grão-duque (Die finanzen des roßherzogs, 1924), de Murnau, e Sonho de valsa (Ein walzertraum, 1925), de Ludwig Berger. Para Eisner, o cinema alemão não produziu uma comédia clássica. Tartufo (Herr Tartüff, 1925), realizado por Murnau, seria mais uma tragicomédia, e Cinderela (Der verlorene schuh, 1923), de Berger, um conto de fadas. Eisner cita O leque de Lady Windermere (Lady Windermere’s fan,
1925) como resultado da mudança de postura de Lubitsch, nos Estados Unidos, quando afirmou: “Adeus palhaçada e bom dia indolência”.25 De qualquer forma, não se pode negar o tom irônico em Tartufo e A última gargalhada (Der letzte mann, dir. Murnau, 1924), Sumurun e Asfalto (Asphalt, dir. Joe May, 1929). No que diz respeito às comédias musicais, Eric Rentschler aponta o entretenimento escapista buscado pela indústria cinematográfica alemã em suas primeiras três décadas. Ainda que constituam um terço da produção total de filmes da República de Weimar, as comédias alemãs são muito menos conhecidas do que as francesas e norte-americanas do mesmo período, além de consideradas menos relevantes do que os filmes expressionistas. Apesar disso, Sabine Hake resgata o nome de Karl Valentin, conhecido na década de 1920 como o Chaplin alemão.26 Cômico de Munique, cantor e artista de cabaré, falava das incongruências da vida em comédias grotescas como O casamento de Karl Valentin (Karl Valentins hochzeit, dir. Ansfelder, 1912) e Mistérios de um salão de cabeleireiro (Mysterien eines frisiersalons, dir. Bertold Brecht e Erich Engel, 1922).27 Embora não se possa confundir quantidade com qualidade, Rentschler insiste que constitui um equívoco identificar o cinema de Weimar com as obras expressionistas, que não somam mais do
22 “Fé nessa reversibilidade faz Lubitsch ver as situações trágicas do cinema ‘expressionista’, como as mostradas em Cacos (Scherben, dir. de Lupu Picki, 1921) e A última gargalhada (Der letzte mann, dir. F.W. Murnau, 1924), também enquanto cômicas, dando a elas a virada da ‘opereta’. Talvez seja por isso que a Revolução Francesa (em Madame Dubarry) tenha provado ser um tema tão promissor, e a ascensão de uma costureira de uma butique de moda à posição da mais poderosa mulher na França pareça (a Lubitsch) a mais interessante revolução dentro da Revolução”. ELSAESSER, Thomas, op. cit., p. 211. 23 Na Alemanha, apenas Carl Froelich continuaria fazendo comédias escapistas (intercaladas com épicos nacionalistas) durante toda a década de 30 (juntou-se ao Partido Nazista em 1933 e se tornou um figurão da indústria cinematográfica de Hitler em 1939). RENTSCHLER, Eric, op. cit., p. 142; HAKE, Sabine, 1992, op. cit., p. 57. 24 Glauber deixaria de ter razão em função de alguns filmes de Werner Herzog e Wim Wenders a partir da década seguinte. Mas talvez estivesse certo em relação à Lubitsch. ROCHA, Glauber. O novo cinema no mundo In: O século do cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 349. Rainer Werner Fassbinder, cineasta mais lembrado por seus filmes alemães sérios, contemporâneo de Herzog e Wenders, realizaria algumas comédias: Rio das mortes (1970), A cafeteria (Das kaffeehaus, 1970), Cuidado com a puta sagrada (Warnung vor einer heilingen nutte, 1970), Como um pássaro no fio (Wie ein vogel auf dem draht, 1974) e O assado de Satã (Satansbraten, 1976). Fassbinder fez um uso irônico do melodrama hollywoodiano. WATSON, Wallace Steadman. Understanding Rainer Werner Fassbinder: film as private and public art. Columbia: University of South Carolina Press, 1996. p. 83-84, 97, 128, 144, 165. 25 EISNER, Lotte, op. cit., p. 216. 26 Colega de trabalho de Valentin, o dramaturgo Bertold Brecht considerava que Charles Chaplin e a comédia muda norte-americana eram um tipo de vitória simbólica bem humorada do trabalhador simples das favelas sobre as instituições urbanas opressivas. Esse tipo de abordagem, afirmava Brecht, era uma das coisas que faltava no cinema da Alemanha da República de Weimar. SOARES, Marcus. Brecht e cinema. Entrevista nos extras do DVD Brecht no cinema, lançado pela distribuidora Versátil Home Vídeo, 2010. 27 No pós-guerra, Herbert Achternbusch retomaria a tradição do humor anárquico de Valentin em Olá Bavária (Servus Bayern, 1977) e Foi para o Tibete (Ab nach Tibet, 1994). HAKE, Sabine, 2008, op. cit., p. 21, 91, 182.
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zo pela eficácia da comédia. Independentemente das pressões de Hollywood, e apesar de retomada no pós-guerra,31 os próprios alemães talvez sejam os maiores responsáveis por apagar a comédia da história de seu cinema, desvalorizando-a enquanto elemento capaz de traduzir a alma germânica.
Rentschler elencou três preocupações que nortearam as discussões sobre as comédias alemãs do início do cinema falado. Em primeiro lugar, suspeita generalizada em relação ao cinema sonoro. Temia-se que o realismo deslocasse o poder da imagem e enfraquecesse o cinema enquanto arte. Béla Balázs chegou a sugerir que o som poderia educar os ouvidos, assim como a imagem durante o cinema mudo educou nossos olhos – mas voltou atrás. Em segundo lugar, acreditava-se que o advento do som intensificasse o caráter de distração escapista das comédias, fazendo delas um instrumento político partidário de anestesia do povo. A terceira objeção é ainda mais política, a UFA (conglomerado cinematográfico alemão) era cada vez mais dominada pela ultradireita. Embora a história do teatro de língua alemã registre comédias desde o século XVI, William Grange mostra que o gênero sempre recebeu pouco crédito.30 Parece vir de longe certo despre-
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O ator e cineasta alemão Ernst Lubitsch. Seus filmes eram sinônimos de humor sutil, sofisticação e sagacidade, “o toque Lubitsch”. Correio da Manhã
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que um punhado num universo de 3.500 filmes, produzidos entre 1920 e 1933.28 Rentschler denuncia que, com exceção de Lubitsch, Schünzel e Ludwig Berger, nenhum cineasta alemão da década de 20 que tenha trabalhado com comédias recebe qualquer reconhecimento. Apenas graças à presença de um artista famoso no elenco uma comédia alemã da época poderá ser citada.29
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28 No ano de 1932, em plena depressão econômica, as comédias eram pragmáticas e incitavam uma atitude positiva. Em suas primeiras comédias sonoras, Schünzel fazia comentários irônicos e insinuações sexuais à maneira de Lubitsch, mas eram apenas fantasias de sobrevivência. Muitas comédias de colarinho branco da década de 30 mostravam locais de trabalho para inspirar histórias de persistência. A preocupação com a aparência, especialmente em situações de dificuldade pessoal e profissional, sobressai nas comédias de travestismo. O florescimento da comédia nos primeiros anos do cinema falado provocou um retorno do humor judaico – elemento básico do cinema alemão que imprime uma atitude sofisticada, irônica e urbana, através de atores como Arno Gerron, Curt Bois e Schünzel. Contudo, Hake acredita que não se pode separar dessa celebração da cultura judaica alemã os estereótipos antissemíticos. Ibidem, p. 58-59. 29 RENTSCHLER, Eric. The situation is hopeless but not desperate. In: KARDISH, Laurence (Org.). Weimar cinema, 1919-1933: daydreams and nightmares. New York: MoMA, 2010. Catálogo de exposição. p. 47-50, 57, nota 4. 30 GRANGE, William. Comedy in the Weimar Republic: a chronicle of incongruous laughter. Westport: Greenwood Publishing Group, 1996. p. 7. Disponível em: http://www.amazon.com/Comedy-Weimar-Republic-Incongruous-Contributions/dp/0313299838#rea der_0313299838. Acesso em: 26 mar. 2012. 31 A tentativa de resgate da história alemã pelos alemães a partir de uma reavaliação do conceito de terra natal/lar (Heimat) interessaria a alguns cineastas nas décadas de 70 e 80 do século passado. Vários deles seriam lembrados por sua identificação com situações humorísticas, absurdas e bizarras associadas ao tema. Na década de 80, Rudolf Thome apresentou comédias românticas com homens e mulheres comuns no ambiente de Berlim, antes e depois da reunificação do país. Também durante a década de 80, Doris Dörrie direcionou as convenções da comédia romântica para tentar diagnosticar as complicações no relacionamento homem-mulher a partir de uma perspectiva pós-feminista. Na década de 90, haveria outra ressurgência da comédia romântica, Sherry Hormann apresentou muitos casamentos com problemas, relacionamentos românticos e triângulos amorosos. Katja von Garnier questionou as demandas da mulher emancipada diante do amor. Típico das comédias românticas dos anos 90, a mulher jovem deseja tudo: amantes, amigos, filhos e uma carreira de sucesso. Ao mesmo tempo em que promovem uma versão do amor moderno, essas comédias evocam uma sociedade sem a carga da ideologia, da política e da história (temas muito problemáticos naquele país), unida em função da busca desenfreada por dinheiro e status. HAKE, Sabine, 2008, op. cit., p. 182, 184, 196, 200-202.
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Antônio Moreno Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Cineasta, pesquisador e professor associado do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense. Autor dos livros A personagem homossexual no cinema brasileiro (EdUFF, 2001), Cinema brasileiro, história e relações com o Estado (EdUFF, 1994), A experiência brasileira no cinema de animação (Artenova/Embrafilme, 1978).
Seth e Luiz Sá, imagens de humor na imprensa e no cinema brasileiro Pelo mesmo processo passei agora para comentar imagens de humor recuperadas do passado, algumas das primeiras décadas do século XX. De imagens grafadas por artistas brasileiros do bico de pena e nanquim e do lápis que deixaram marcas profundas na história da caricatura brasileira, criticando de forma humorada costumes sociais e políticos.
Charge de Luiz Sá para o cinejornal Esportes na Tela. CTAv
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No trabalho de pesquisa iconográfica para dois livros meus, A experiência brasileira no cinema de animação, de 1978, e Cinema brasileiro, história e relações com o estado, de 1994, foram imprescindíveis as consultas de livros, fotos, cartazes, folders, filipetas, revistas, jornais e filmes, principalmente pelo desejo de trazer e resgatar imagens de uma determinada época, com seu aspecto formal e teor do seu foco discursivo. O quê, por tabela, nos remete para a importância e necessidade da existência da ideia de preservação e conservação destes materiais. Principalmente pela ampla janela de divulgação e acesso possibilitada pela biblioteca virtual que nos oferece a internet, em seus milhões de materiais e assuntos digitalizados de diversos tipos e aspectos de abordagens, tornando possível visualizar imagens, críticas e costumes de mais de cem anos atrás. Esta disponibilidade facilita penetrarmos num campo maior de maleabilidade de reflexão, comparação, constatação de evolução ou retrocesso do pensar humano, de comunidades particulares, dos dogmas ou valores de fenômenos antropológicos ou políticos professados por elas.
A caricatura se define como um tipo de desenho ou pintura satírica, grotesca, ou até cruel, que deforma ou acentua determinados detalhes de uma pessoa, ou mesmo de uma paisagem, como, por exemplo, associar duas montanhas juntas aos seios de uma mulher. Charge é a palavra francesa para caricatura. Cartum é palavra abrasileirada do inglês cartoon, que, na mesma linha da charge, notabiliza-se por ser um desenho humorístico que registra e critica pessoas, situações ou acontecimentos, reais e imaginários, constituindo-se numa anedota gráfica, e está impregnado pela caricatura no seu estilo de desenho. O que torna comum se referir a este tipo de desenho tanto como caricatura, charge ou cartum. E no modo formal, a caricatura é polimorfa, podendo ser um desenho isolado, uma tira desenhada, uma tela pintada ou um desenho animado, um animated cartoon. Com certeza, a presença dos desenhos de cartum na imprensa pode representar uma espécie de diário visual e crítico de acontecimentos políticos e comportamentos sociais de uma época. Eles, com seu humor negro, debochado ou mesmo cáustico, abrem uma janela crítica de possibilidade de cruzarmos estes acontecimentos e comportamentos daquele momento ou contexto com a ideia, tema ou objeto de enfoque do cartum.
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Foto de Seth de 1942. Cinearte/ CTAv
Algumas publicações brasileiras dos séculos XIX e XX, até meados da década de 1960, se notabilizaram pela publicação do humor gráfico, do desenho de caricaturas tanto em forma de anúncios, especialmente de remédios, como em charges ilustrando algum texto ou isoladas, de cunho político, imperdoáveis nas gafes políticas, e de crítica aos costumes sociais, aos estereótipos comportamentais do dia a dia do brasileiro. Como a Revista Ilustrada, O Tagarela, A Avenida, Para Todos, Fon-Fon, Careta, O Malho e O Tico-Tico. Pelas suas páginas trafegaram diversos artistas da caricatura, onde se notabilizaram e fizeram história. Ângelo Agostini, J. Carlos, Max Yantok, Luiz Sá e tantos outros. Ou ainda, se tornaram símbolo da publicação, como é o caso de J. Carlos para com a revista Careta, para a qual trabalhou intensamente, inclusive desenhando as capas, deixando uma verdadeira crônica em forma de caricatura do Rio de Janeiro e do Brasil. Artista que apenas cito no presente texto, mas que, longe de desmerecê-lo, faz jus a estudo maior e isolado entre um tanto que já existe sobre ele.1 Embora sejam muitos os nomes merecedores de atenção, vou me concentrar aqui apenas numa pequena amostra da produção de Seth e Luiz Sá, destacando a diversidade deles como desenhistas de humor atuando em diversas áreas, como caricaturistas em jornais impressos e cinematográfi-
cos, revistas de humor, histórias em quadrinhos e, ambos, também, no desenho animado. E da produção gráfica deles destacarei as realizadas no jornal A Noite, diário carioca com variedade grande de cartuns políticos publicados; na revista O Malho, de teor fortemente político, dirigida ao público adulto, à classe trabalhadora; e na revista O Tico-Tico, publicação ilustrada com histórias em quadrinhos dirigida ao público infanto-juvenil.
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Seth, pseudônimo de Álvaro Marins Seth, como era conhecido Álvaro Marins,2 foi, com certeza, um marco da caricatura brasileira, especialmente política, com um sem número de charges publicadas no jornal carioca A Noite desde o começo do século XX, que, além de ilustrar artigos e anúncios de remédios publicados em revistas e jornais, foi o autor do primeiro desenho animado brasileiro e o primeiro animador a ter um curta exibido nos cinemas do grande circuito. Comentarei algumas de suas charges.
A vassoura atrás da porta (1917),‒ charge política de Seth. Biblioteca Nacional
Uma vassoura atrás da porta. Um costume brasileiro, tipo simpatia, para afastar os maus agouros trazidos por uma visita ou ação para que a visita chata e demorada encerre logo a sua estada. Assim é uma caricatura política de Seth, do ano de 1917, se referindo à sucessão presidencial que se aproximava,3 satirizando o desejo e sentimento dos novos candidatos, e quiçá do povo, para com o presidente em fim de mandato.
1 Recomendo o artigo recém-publicado Os leitores de caricaturas da Belle Époque brasileira: o caso da revista ilustrada Careta (1908-1922) – The readership of caricatures in the Brazilian Belle Époque: the case of the illustrated magazine Careta (1908-1922), de CORRÊA, Felipe Botelho. Artigo in Patrimônio e Memória, São Paulo, Unesp, v. 8, n. 1, p. 71-97, jan./jun. 2012. Disponível em: http://www.cedap.assis. unesp.br/patrimonio_e_memoria/patrimonio_e_memoria_v8.n1/artigos/the-reader-ship-of-caricatures.pdf. 2 Pode-se perceber a gozação de Seth ao adotar este pseudônimo que em nada tem a ver com o seu nome real, Álvaro Marins, e pelo fato de Seth ser o nome de um antigo deus egípcio do mal, cruel e poderoso, que se valia da feitiçaria para conseguir seus objetivos. 3 Era presidente Wenceslau Braz, de 15/11/1914 a 15/11/1918; o vice-presidente Delfim Moreira assumiu de 15/11/1918 a 16/7/1919, no lugar do reeleito Rodrigues Alves (sua presidência anterior fora de 15/11/1902 a 15/11/1906), que, adoentado, morreria em 1919; Epitácio Pessoa, de 26/7/1919 a 15/11/1922, terminou o mandato de Rodrigues Alves.
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Charge de Seth sobre a vitória da marinha britânica (1918). Biblioteca Nacional Charge de Seth de 1917 sobre pão. Biblioteca Nacional
Também publicado em 1917, o cartum de Seth exibia a figura do diabo mostrando um pão com uma das mãos enquanto segurava uma cesta repleta com a outra. A que faria alusão, o preço do pão está pela hora da morte? O pão que o diabo amassou? O preço do pão está caro como o vendido pelo diabo no inferno? Numa charge política de 1916, trabalhando com elementos bem pontuais e diretos de desenho e texto, como cemitério, cruz, túmulo e um recorte do noticiado sobre o assunto no próprio jornal A Noite, Seth satiriza a extinção pelo prefeito e pelo Supremo Tribunal Federal de um Conselho Municipal de 1916 e induz a necessidade de julgamento de seus membros. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito? Uma CPI? Ou esquecer o fato e aguardar o juízo final quando todos ressurgirão e serão julgados os vivos e os mortos?
Cena de O kaiser, desenho animado de Seth (1917) – Guilherme II e o Globo Terrestre. CTAv
Publicada em 1917, em plena Primeira Guerra Mundial, a charge de Seth ironizava os sonhos do kaiser Guilherme II, provocador da guerra, de vencer a marinha britânica, mostrando-o preso numa garrafa. Personagem que também vai ser ironizado no seu primeiro desenho animado.
Seth é o autor do primeiro curta de animação brasileiro, intitulado O kaiser, com exibição também noticiada no mesmo jornal A Noite, no ano de 1917.4 Nesse desenho, Seth seguia a mesma linha de crítica e sátira política de seus cartuns. Das imagens que restaram do filme – não existe sequer um fragmento do filme, só foto de jornais –, presume-se que era composto por uma série de quadros, ou sketches à moda do teatro ou dos primeiros filmes, um tanto imitativo do teatro. Pois numa foto do filme mostrava a presença de Guilherme II, motivo forte de atenção da guerra de 1914-1918, colocando um capacete no mundo, como se tivesse domínio sobre ele militarizandoo, mas o mundo começava a crescer e terminava por engolir o Kaiser.5 Noutra sequência de fotos 4 Seth foi motivo de reportagem em 1942 no periódico D. Casmurro, dentro da série O Século Boêmio, escrita por Rubem Gil, onde afirmava que “nos antigos cinematógrafos Odeon e Pathé, da avenida, nos anos de 1917 e 1918, em produções do Laboratório Marc Ferrez, Seth teve exibidas diversas e recomendáveis películas caricaturais”. 5 O kaiser Guilherme II (1859-1941) foi imperador germânico de 1888 a 1918. Militarista, foi o pivô da Primeira Guerra Mundial. Idealizava vencer a marinha britânica. Mas, derrotado em 1918, abdicou e se exilou na Holanda, onde morreu.
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era mostrada a figura de Nilo Peçanha6 desmanchando-se numa enorme gargalhada. Seth, que era também excelente ilustrador, dedicou-se ainda por longo tempo ao desenho de propaganda, anunciando, por exemplo, novos sistemas de telefonia automática. E, na década de 1930, publicou um livro só de desenhos feitos a bico de pena mostrando imagens, quase como um instantâneo fotográfico, de momentos políticos marcantes, de paisagens, de modas e costumes sociais brasileiros.7 Os bonecos redondos de Luiz Sá Luiz Sá, bem prolixo na sua produção de caricaturas em jornais impressos e cinematográficos, revistas de humor, histórias em quadrinhos, desenho animado e nas artes plásticas, pela popularidade e empatia que alcançou nas diversas camadas de público, é um perfeito exemplo de motivo de reflexão e/ou diferenciação que possa existir entre a arte erudita e a popular. O cearense Luiz Sá chegou ao Rio de Janeiro em 1929. Numa de suas primeiras exposições, antes de ficar famoso como caricaturista em jornais e revistas, mostrava em suas telas em traços caricaturais e curvas costumes de sua terra, rendeiras de almofadas, vaqueiros perseguindo rês, paisagens do agreste repletas de cactos, jumentinhos, ruas de pedras e lampiões a gás.
Com seu desenho original de bonecos redondos, de grande popularidade, mas considerados pela crítica por muito tempo como primitivos, ingênuos ou naif, passou por uma releitura a partir dos anos de 1970, e seu trabalho é hoje considerado como experimental ou underground. Mas, embora seja uma marca surrealista de Luiz Sá dar vida ou voz a objetos inanimados, em muitos trabalhos abria margem para ser visto como ingênuo ao tomar ao pé da letra ditos populares: como “dor de cotovelo” desenhar dois cotovelos gritando “Ai! Ai!”.
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Luiz Sá em foto de 1946. Cinemin, no 74
Luiz Sá, após desenhar para a revista Eu Vi, que surgiu para suprir o fechamento de O Malho pela Revolução de 1930, firmou-se na revista O Tico-Tico, criada em 1905, da mesma empresa de O Malho, lá permanecendo por trinta anos, até seu fechamento em 1960. Foi nesta revista que lançou em 1931 seus personagens mais famosos:
Capa da revista O Tico-Tico desenhada por Luiz Sá (1953). Uneb
6 Nilo Peçanha (1867-1924) foi governador do Rio de Janeiro (1903-1906); eleito vice-presidente em 1906, assumiu a presidência do Brasil (1909-1910) pela morte do presidente Afonso Pena. Único mulato a chegar à presidência, foi alvo de muitos insultos racistas por parte de políticos e da imprensa. 7 Tive esse livro nas mãos nos anos de 1970 num exemplar tomado emprestado por um aluno da Biblioteca do Exército, que fica ao lado da Central do Brasil, no Rio, e inclusive fotografou algumas páginas que pedi. Fiquei de voltar a esse livro e fotografá-lo todo, mas no corre-corre da vida terminei até por esquecer de anotar o seu título. Um dia volto a localizá-lo e tentarei digitalizá-lo. Acho o livro uma obra de arte que todos deveriam ter acesso através da internet. Aliás, a obra de Seth merece, com certeza, ser resgatada e mostrada para todos os amantes do desenho e da caricatura.
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Reco-Reco, Bolão e Azeitona, protagonistas de suas histórias em quadrinhos infanto-juvenis. Criou outros, como Louro, Totó, Catita, Detetive Pinga-Fogo, Maria Fumaça e o papagaio Faísca, precursor do Zé Carioca, da Disney, baseado num personagem de J. Carlos.
Nessa atividade para os jornais cinematográficos causou polêmicas. Foram muitas as reclamações sobre suas interpretações caricaturais, como a de um deputado, pelo fato de Luiz colocar deputados dormindo sobre suas bancadas numa matéria sobre a Câmara.
Apesar de colaborar intensamente para diversos jornais fazendo anúncios de remédios, caricatura de atores, charges políticas, ficou realmente famoso quando o público viu seu trabalho no cinema, suas charges que entremeavam as notícias dos jornais da tela, que arrancaram estrondosas gargalhadas. Primeiro para o Globo Esportivo, do Cineac, e depois Esporte na Tela e Notícias da Semana, da companhia Atlântida de Luiz Severiano Ribeiro, indo da década de 1930 até 1964, quando acaba esse tipo de jornal cinematográfico substituído pela televisão. O próprio Luiz Sá aparece ao fundo de um número musical desenhando cenas cariocas no filme da Atlântida O camelô da Rua Larga, 1958, de Eurides Ramos.
O próprio Luiz Sá, numa inesquecível entrevista ao cartunista Fortuna, para a revista O Bicho,8 diz que o problema era fazer a piada, quando o jogo empatava. Mas uma vez o deputado Evaldo Lodi chegou e disse: “Olha, seu Luiz. Você fez uma charge aí sobre a Câmara dos Deputados, um sujeito lá dormindo. Mas a Câmara dos Deputados não é aquilo”. Eu digo: “Eu sei que não é aquilo, doutor. Mas acontece isso, não acontece?” Ele disse: “Acontece. Pois aconteceu”. Ele riu, acabou rindo.
Outro fato hilário, narra Luiz Sá na mesma entrevista, foi sobre uma reportagem paga a respeito de um industrial que dera um banquete de trezentos talheres, e que mandou uma carta reclamando da
Reco-Reco, Bolão e Azeitona, os personagens mais famosos de Luiz Sá. A. Moreno
8 Luiz Sá, cheguei com meus bonecos redondos. Entrevista de Luiz Sá ao cartunista Fortuna na extinta revista O Bicho, n. 3, Rio de Janeiro, 1975.
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caricatura que antecedia a matéria do jornal da tela dizendo: “Como é? Um banquete de trezentos talheres e eu tinha um sujeito, com uma lente, olhando um prato com um grão de feijão?”9 Ou seja, Luiz Sá estava era criticando o fato da abastança do industrial frente à dificuldade da gente do povo. Nem assim o industrial entendeu, pois seguia em sua carta dizendo que, ao contrário, seu banquete tinha sido muito farto. Exemplo claro do que passei a chamar de “alienação de contexto”, sintoma muito comum nas pessoas abastadas em quem não há nenhum sentimento que acione a ideia da existência de pessoas pobres que não têm, dias seguidos, nada para comer. No desenho animado, por volta de 1938 e 1939, Luiz Sá realizou uma incursão traumática neste campo cinematográfico. Foram dois desenhos realizados. O primeiro foi perdido no laboratório na hora de revelar e o segundo, intitulado As aventuras de Virgulino, não encontrou espaço para exibição. Era um curta de cerca de cinco minutos e tinha uma historinha clássica: bandido rouba mocinha e mocinho vai no encalço a libertando e terminando com ela.10 Com este filme ele tentou junto ao Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo (DIP) uma entrevista para mostrá-lo a Walt Disney, que aqui estava em plena campanha como embaixador americano da Política da Boa Vizinhança. O DIP interceptou seu contato com Disney justificando que o filme dele era muito primitivo e pobre. Ou seja, outra vez problemas de comunicação, de esquecimento do contexto, do sentido do tal programa de política
pública. Resumindo, ausência de entendimento do espírito que deveria ter a tal Política da Boa Vizinhança: interar os povos das Américas através da troca de conhecimento das diferentes culturas, das diferentes formas de expressão, próprias de cada povo.
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Esses fatos o levaram a vender a única cópia de As aventuras de Virgulino para o dono de uma loja que vendia projetores de 16 mm. Que cortou o filme em pedacinhos e ofereceu de brinde aos fregueses para treinarem como carregar filme no projetor. Luiz Sá é ainda o autor do Bonequinho do jornal O Globo, que indica a cotação crítica dos filmes em exibição. Teve o layout modificado por Marcelo Monteiro e está até hoje entre nós nas páginas do mesmo jornal. Luiz Sá e Seth estão no passado agora. Mas deixaram em volta de cada caricatura que desenharam perceptíveis processos de conhecimento, de entendimento pelo que adicionaram à sua linguagem. Ao exagerarem, contraporem realidades e acentuarem particularidades, abriram novos canais cerebrais que possibilitaram maior velocidade de percepção e interpretação da mensagem e do discurso contido numa imagem, num desenho, numa charge. Processo que continua evoluindo nos trabalhos dos cartunistas de hoje e podemos verificar. É só olhar para um jornal de hoje. A caricatura que lá estiver impressa pode acionar em você a compreensão ou interpretação crítica imediata de um fato do momento ou acontecido no passado.11
Fotogramas de As aventuras de Virgulino (1939), desenho animado de Luiz Sá. CTAv
9 Idem. 10 Existem dois documentários com o mesmo título, Luiz Sá, e ambos produzidos pela extinta Embrafilme, e até há algum tempo arquivados no CTAv da Funarte. Um fala especificamente do trabalho de Luiz como caricaturista, de José Fantini Valério, 1971/72, e outro de Roberto Machado Júnior, 1975, onde está um fragmento de cerca de dois minutos de As aventuras de Virgulino, que fora identificado pelos desenhistas Fortuna e Mário Parrot, em 1975, com aval do próprio Luiz Sá. 11 Outras referências bibliográficas: LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. 4 v. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963. p. 15851587; MORENO, Antônio. A experiência brasileira no cinema de animação. Rio de Janeiro: Artenova/Embrafilme, 1978; MURUCI, Lúcio; e MORENO, Antônio. Luiz Sá. Cinemin, Rio de Janeiro, Editora Ebal, n. 74, p. 28-29, nov. 1991.
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Chaplin e Edna Purviance em Carlitos nas trincheiras (Shoulder arms, 1918). FamĂlia Ferrez
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Edmundo Washington Lobassi Mestre em Comunicação Contemporânea pela Universidade Anhembi Morumbi. Publicitário, consultor de marketing e palestrante. Autor dos artigos Com o som morre o personagem Carlitos e nasce o ator Chaplin e A ideologia nos filmes de guerra: o cinema como meio (ambos publicados na RUA – Revista Universitária do Audiovisual – UFSCAR), O personagem Carlitos (publicado em RuMoRes – Revista Online de Comunicação, Linguagem e Mídias – ECA-USP).
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O personagem Carlitos, do diretor Charles Spencer Chaplin, do cinema mudo para o falado
Carlitos nas trincheiras (Shoulder arms, 1918). Família Ferrez
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Charles Chaplin, como Carlitos, na comédia muda Vida de cachorro (A dog’s life, 1918). Família Ferrez
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39 Em fevereiro de 1936, Chaplin assina o contrato de realização do filme Tempos modernos (Modern times). Família Ferrez
O objetivo deste artigo é analisar a transição do personagem Carlitos do cinema mudo para o falado e comprovar que o filme O grande ditador (1940) foi um marco para o diretor e ator Charles Spencer Chaplin, afinal, “com o som morre o personagem Carlitos e nasce o ator Charles Chaplin”,1 tema de minha dissertação de mestrado.
Western Electric, o Vitaphone, para garantir o som sincrônico nos filmes, através de cabos que ligavam o toca-discos que trazia o som do filme ao projetor. A intenção da Warner era, uma vez levando ao público a melhor tecnologia da época, ganhar espaço no mercado e, com este diferencial, competir com os estúdios maiores.
O som no cinema
A estreia do Vitaphone da Warner ocorreu em 6 de agosto de 1926, com a exibição de alguns curtas-metragens, seguidos do longa Don Juan. Com a obtenção do sincronismo dos ruídos e da música, que entrava nos momentos certos, o Vitaphone alcançava o sucesso esperado, porém, ainda apresentava limitações.
Para falar sobre o processo que culminou com a inclusão do som nos filmes, é preciso ressaltar que a busca do cinema sonoro foi, na verdade, um enorme esforço, por parte da indústria cinematográfica norte-americana, que tinha como objetivo maior desenvolver a tecnologia que permitisse o sincronismo da voz dos atores, já presentes pela imagem. Tal início acarretou em uma série de questões e dúvidas que estão relacionadas ao papel secundário que alguns teóricos, realizadores, dirigentes da indústria cinematográfica e parte da imprensa reservaram ao som em suas análises, já que o cinema era mudo. A seguir, um breve histórico a respeito da evolução tecnológica que culminou com o sincronismo do som à imagem. Até 1925, o som não era sincronizado, utilizavamse pianistas na sala de projeção para a execução de músicas de acompanhamento das imagens, o cinema era mudo. A partir de 1925, a Warner Brothers investiu no aparelho desenvolvido pela
A exclusividade da Warner durou pouco, pois, no final do mesmo ano, a Western Electric oferecia seus serviços às outras grandes companhias, e em fevereiro de 1927 era assinado um acordo para a utilização do Vitaphone pelos cinco maiores estúdios de cinema americanos. Em 6 de outubro de 1927 estreava O cantor de jazz (The jazz singer) e seus quatro números cantados por Al Jolson, com o sincronismo entre sua voz e sua imagem, o que faria do filme o maior sucesso do ano.2 Paulo Emílio Sales Gomes lembra que, em 1928, no ano seguinte ao sucesso do cinema falado nos Estados Unidos, agentes de companhias cinematográficas norte-americanas visitaram o Brasil, preparando o terreno para a inserção do som. Os executivos da Paramount tiveram por
1 LOBASSI, Edmundo Washington. A morte de Carlitos: O grande ditador, um marco entre o cinema mudo e falado do diretor Charles Spencer Chaplin. Dissertação (Mestrado em Comunicação Contemporânea) – Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, 2009. Disponível em: http: //www.anhembi.br/publique/media/dissertacao_edmundo_washington_lobassi.pdf. 2 GOMERY, Douglas. The coming of sound: technological change in the american film industry. In: WEIS, Elisabeth; e BELTON, John (Orgs.). Film sound: theory and practice. New York: Columbia University Press, 1985. p. 5-20.
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O personagem Carlitos, do diretor Charles Spencer Chaplin, do cinema mudo para o falado
Chaplin e o famoso viralata de Vida de cachorro (A dog’s life, 1918). Família Ferrez
objetivo averiguar as condições para a utilização do Vitaphone. Em abril de 1928, São Paulo assistia à primeira exibição brasileira de um filme falado: Alta traição (The patriot), de Ernst Lubitsch. Dois meses depois, no Rio de Janeiro, estreava Melodia da Broadway (Broadway melody), de Harry Beaumont, precedido, na sessão inaugural, de um curta-
metragem em que o cônsul do Brasil em Nova York introduzia o espetáculo da noite novaiorquina. Sua voz foi a primeira a ser ouvida pela plateia carioca, sendo, após inúmeras tentativas anteriores, inaugurado o cinema sonoro de forma definitiva.3 Nos Estados Unidos, paralelamente ao processo do som gravado em discos, outra forma de unir
3 AUGUSTO, Sérgio. Este mundo é um pandeiro: a chanchada de Getúlio a JK. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 75-76.
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o som à imagem era desenvolvida. A Fox Film Corporation mostrava interesse nos esforços do cientista Theodore Case, que desde 1913 vinha trabalhando em um sistema que gravava o som na própria película, diferente da gravação em disco que separava o som da imagem até o momento de sua execução conjunta. Em fevereiro de 1927, a Fox finalmente fazia a primeira demonstração pública de seu aparelho, o Movietone. Outro estúdio, a RCA (Radio Corporation of America), pesquisava o desenvolvimento da mesma tecnologia. Em parceria com a General Electric, a RCA desenvolveu, entre 1922 e 1923, a gravação do som na película de imagem de forma que ela ocupasse apenas 1,5 mm na borda do filme de 35 mm, o que permitia facilmente a inclusão, no mesmo suporte físico, da imagem pelo som. Em fevereiro de 1927 acontecia a primeira exibição pública do Photophone. Começava a competição pelo mercado dos dois sistemas que davam fim à impossibilidade do som estar unido à imagem nos filmes. Em 1929, a RCA, através da RKO, sua subsidiária criada para cuidar exclusivamente dos filmes, lançava seus primeiros filmes falados.
1 – Atender a demanda de mercado, posto que o público queria ouvir a voz dos atores; 2 – Capitalizar o desejo dos espectadores por parte da indústria cinematográfica norte-americana, que no espaço de dois anos já havido preenchido os filmes com vozes do começo ao fim; 3 – Melhoria das deficiências técnicas que contribuíram para a divisão do espaço destinado à voz no som dos filmes; 4 – Promover a liderança de Hollywood no cenário internacional.
Tornara-se claro para os estúdios americanos que o fator que levava o público aos cinemas era a voz sincronizada, e não os outros elementos sonoros dos filmes, música e ruídos. Havia uma demanda do público de ter certeza de que se ouvia o que se via na tela, ou seja, se os lábios dos atores se moviam, deveria se ouvir o som correspondente. Se tal fenômeno não ocorresse, a plateia sentirse-ia enganada.
A inclusão do som, vozes e ruídos na película do filme conquistou um maior espaço no mercado de entretenimento, não só pela tecnologia desenvolvida, como também por tornar-se a maior exportadora de filmes e produções para o mercado consumidor internacional, mantendo assim diferenciais competitivos para a indústria cinematográfica americana, em particular Hollywood, conquistando, como mostra a história, a liderança do mercado cinematográfico.
Em janeiro de 1929, a Paramount lançava o primeiro filme falado do início ao fim, Lights of New York. Três meses depois, a Paramount produzia apenas filmes totalmente falados, em oposição aos musicais com os quais o cinema sonoro tinha sido introduzido. Em setembro do mesmo ano, todos os estúdios já haviam completado essa mesma transição e produziam filmes em que os diálogos estavam presentes o tempo todo. Ao transformar a inovação tecnológica, com a inclusão da voz sincronizada dos atores na trilha sonora dos filmes, a indústria cinematográfica teve por objetivos de mercado:
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O cinema, e em particular Chaplin, frente à transição do cinema mudo para o falado A mudança do cinema mudo para o falado foi traumática, pois estrelas do cinema perderam seus papéis e empregos, e os estúdios tiveram de investir pesadamente em pesquisas, parcerias e equipamentos para se adaptar à nova tecnologia. Diretores, atores e roteiristas foram forçados a recriar seu trabalho com a novidade tecnológica e inovadoras possibilidades em seus filmes.
Charles Chaplin era um artista que, como muitos outros, Alfred Hitchcock incluído, também detestava o som quando ele surgiu, pois além de mudanças, representava romper com seus personagens e a linguagem cinematográfica. Chaplin tinha motivos de sobra para não gostar do som. Afinal, seu personagem mais popular, Carlitos, teria de aposentar a linguagem corporal, que seria substituída, ou acrescida, pela interpretação do ator e o poder da voz. Nesta rápida revisão da passagem do cinema mudo para o cinema sonoro, vale ressaltar que
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O personagem Carlitos, do diretor Charles Spencer Chaplin, do cinema mudo para o falado
Charles Chaplin, ator e diretor de Idílio campestre (Sunnyside, 1919). Família Ferrez
desde o nascimento do cinema pretendeu-se que o som estivesse unido às imagens. Essa união só não existiu desde o início por conta de limitações técnicas, e não por falta de tentativas ou de interesse. É importante acentuar este argumento quando se diz que o período do cinema mudo durou por volta de trinta anos, já que isso pode levar a crer que a inclusão do som não era desejada pelo público, quando, na verdade, se verifica o oposto. O advento do cinema sonoro, quando finalmente aconteceu, cunhou um modo de unir os sons e as imagens, e deu margem ao argumento de que o som seria um mero acompanhamento, pois a ima-
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gem continuaria, na teoria e na análise dos filmes, sendo o elemento mais importante do cinema. Gunning observa que, nos primórdios do cinema, o que ele chama de uma “obsessão pelo realismo” era uma preocupação que tinha reflexo na expectativa do público, que, em geral, respondia bem à representação nas imagens de fatos cotidianos, dos quais o cinema em seu início é recheado de exemplos, desde a própria chegada do trem à estação, dos Irmãos Lumière, até os filmes de Edison, nos quais temos, só para citar um caso, a série de filmes com a bailarina Annabelle. Daí, Gunning desvenda uma situação paradoxal: quanto mais
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reais eram essas ilusões, mais suas deficiências ficavam evidentes, como, por exemplo, as faltas da cor e do som.4 O teórico do cinema Nöel Burch ratifica a evidência da falta que o som fazia nesse momento inicial do cinema. Burch comenta que parte dos realizadores e do público haveria constatado rapidamente a “necessidade de um acompanhamento sonoro (musical) para as imagens, cujo silêncio parecia insuportável”.5 Testemunho da frustração que o mutismo do registro da realidade causava encontra-se em um texto, escrito em 1896, por um célebre espectador das primeiras sessões dos Irmãos Lumière; Máximo Gorki comenta o registro do cotidiano das cidades, com automóveis que passam pela câmera e pedestres que atravessam as ruas, que lhe foi apresentado: É tudo estranhamente silencioso. Tudo se desenvolve sem que ouçamos o ranger das rodas, o barulho dos passos ou qualquer palavra. Nenhum som, nem uma só nota da sinfonia complexa que acompanha sempre o movimento da multidão. Sem barulho, a folhagem cinzenta é agitada pelo vento e as silhuetas das pessoas condenadas a um perpétuo silêncio. Seus movimentos são plenos de energia vital e tão rápidos que mal são percebidos, mas seus sorrisos nada têm de vibrante. Ver-se-ão seus músculos faciais se contraírem, mas não se ouve seu riso.6
O grande ditador – 1940 As pesquisas de minha dissertação de mestrado7 marcam relações entre Chaplin, o personagem Carlitos e o confronto com a opressão dos ditadores e as ideologias fascista e nazista da Segunda Guerra Mundial, demonstrando que o filme O grande ditador é, definitivamente, um marco entre o cinema mudo e falado de Chaplin e o fim do personagem Carlitos.
Esse filme de Chaplin é, por um lado, um alerta contra os grandes ditadores do mundo, mas também a evidência da intencionalidade pessoal do diretor em mostrar sua posição contra Hitler e registrar para a história sua oposição a tudo que seja contra a liberdade de expressão e a pessoa, independente de sua etnia, cor ou credo.
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Uma série de coincidências marcam as figuras de Chaplin e Hitler, ambos exibiam entre si diversas semelhanças, o mesmo físico, o mesmo bigode, exatamente a mesma idade, distando entre o nascimento de um e de outro apenas uma semana. Em O grande ditador, há a denúncia dos crimes de Hitler e, na cena final, já não temos nem o barbeiro nem o ditador, mas uma fusão entre personagem e autor, diante das câmeras, num discurso longo, em que expõe firmemente as suas ideias. O personagem Carlitos já havia atacado anteriormente a mística da guerra com Ombro armas ou Carlitos nas trincheiras (1918), comédia preferida dos soldados americanos na Primeira Grande Guerra, em que Chaplin mostra um herói tão heroico que, sozinho, obtém a vitória para os aliados. Outros filmes foram produzidos nos Estado Unidos em 1940, no início dos conflitos da Segunda Guerra Mundial: Tempestade mortal, de Franklin Borzage; O correspondente estrangeiro, de Alfred Hitchcock; e Confissões de um espião nazista, de Anatole Litvak; porém, sem a mesma intencionalidade de O grande ditador, de Charles Chaplin. Assim, é possível identificar o filme O grande ditador (1940) como um marco de passagem entre o cinema mudo e falado, evidenciando que, com o adendo do som, morre o personagem Carlitos e sua pantomima burlesca, e nasce o ator Chaplin. No filme O grande ditador, Chaplin optou em não apresentar uma abordagem simplista do bem e do mal, mas algo mais complexo do que isso. Por
4 GUNNING, Tom. Fotografias animadas: contos do esquecido futuro do cinema. In: XAVIER, Ismail (Org.). O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 39-40. 5 BURCH, Nöel. Práxis do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 115. 6 GORKI, Máximo. No país dos espectros. In: PRIEUR, Jerôme. O espectador noturno: os escritores e o cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. 7 LOBASSI, Edmundo, op. cit.
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O personagem Carlitos, do diretor Charles Spencer Chaplin, do cinema mudo para o falado
mais que o personagem Adenoid Hynkel aparente ser uma figura absolutamente terrível, sua imagem é a de um homem inseguro e até bastante ingênuo. Ou seja, nem o barbeiro é totalmente mau, nem o outro personagem central do filme é exatamente a melhor pessoa do mundo. Aliás, todo o filme é construído quase num jogo de paralelismos que, de certa forma, aproximam, e também afastam, esses dois personagens. A dualidade é como uma assinatura de Chaplin em vários de seus filmes, os duplos constantemente são construídos em seus roteiros, e nesse filme, sobretudo, encontramos a dupla interpretação, os dois personagens, os dois ditadores, os dois Chaplins, os dois “X”. Em O grande ditador foi possível evidenciar, em primeiro lugar, a montagem como forma de organizar o conjunto de planos e detalhes com a estratégia de despertar sensações através dos efeitos de fusão das cenas de arquivo, com o objetivo de traçar uma linha narrativa envolvendo a ameaça real e o imaginário Hynkel. Em segundo lugar, o som como complemento à mímica, ou seja, a linguagem corporal do personagem Carlitos, enquanto que o ator Chaplin, pela interpretação, o poder da voz, assume seu papel principalmente no discurso final. A maquiagem que completa o personagem, aliada ao envelhecimento do ator, tornam difícil sua caracterização de Carlitos. Chaplin escreveria num artigo publicado pouco antes da estreia de seu filme: O grande ditador poderia ser o título de uma comédia, de uma tragédia ou de um drama; eu quis fazer um coquetel de todos esses gêneros e traçar um perfil, ao mesmo tempo grotesco e sinistro, de um homem que acreditava ser um super-herói e pensava que a sua opinião e a sua palavra eram as únicas com valor.8
O grande ditador teve sua estreia simultânea em dois cinemas de Nova York, o Astor e o Capitol. Manteve-se em cartaz por quinze semanas, e,
como se verificou depois, foi o de maior renda entre todos os filmes mudos de Chaplin, um sucesso junto ao público e a garantia do retorno do investimento de dois milhões de dólares, dos recursos pessoais de Charles Spencer Chaplin. As críticas da imprensa divergiam, em grande medida, fizeram objeções à fala final. O Daily News disse que Chaplin havia apontado para a plateia o dedo do comunismo. Embora a maioria dos críticos fosse desfavorável ao discurso e dissesse que destoava do personagem, o público em geral foi favorável, e Chaplin recebeu numerosas cartas elogiando o seu discurso final.9 O personagem Carlitos O personagem Carlitos aparece pela primeira vez em A estranha aventura de Mabel, de 1914, filme que inaugurou a silhueta e os trajes de um príncipemendigo que se tornaria lenda. Sustentou-se por muito tempo que o comediante tinha vestido o personagem pela primeira vez em Carlitos se diverte, mas esse filme precedeu o outro apenas em sua data de estreia nas salas, não na filmagem. A imagem de Carlitos permanece uma das mais reconhecidas do mundo – basta o bigodinho e o chapéu, ou a silhueta de bengala, e as pessoas o identificam. A difusão em DVD e TV a cabo renovou o interesse por seus filmes e tornou-o conhecido também entre as novas gerações. Carlitos é a caricatura séria de um homem inocente. E é justamente a partir de seu ridículo e de sua alienação que se começa a refletir sobre o semelhante. Muitos artistas, escritores e intelectuais, inclusive brasileiros, chegaram bem perto de decifrar a charada representada pela força do mito de Carlitos. O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, inicia um poema nos informando que “as crianças do mundo saúdam o Vagabundo”. Oferece uma boa pista: Chaplin criou um personagem com a lógica das crianças;
8 CHAPLIN, Charles. Minha vida. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p. 250. 9 Ibidem, p. 459.
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como numa brincadeira, os filmes de Carlitos transformam qualquer coisa em outra coisa, sempre pela ação inesperada de seu herói. A montagem é determinada pela persona do personagem, e a afirmação dessa persona é mais importante do que as considerações usuais da montagem. Mesmo nos filmes de Charles Chaplin a montagem é primitiva e, invariavelmente, as cenas transcorrem em planos gerais. Dizia Chaplin, “As tomadas de vida em planos gerais são indispensáveis para mim: quando interpreto, represento tanto com as pernas como com os pés ou o rosto. Sou um tipo fora do comum, por isso não preciso ser visto de ângulos esquisitos”.10
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O cineasta Chaplin é um dos que acreditam na imagem, no humor puramente visual e físico, no poder da interpretação e imagem universal do personagem Carlitos, que transmite ao seu público a capacidade de transformar simples objetos em novas formas de comunicação e expressão de ideias. Os objetos perdem sua função utilitária, parece que os objetos só aceitam ajudar Carlitos à margem do sentido que a sociedade lhes atribui. Com o advento do som no filme O grande ditador, morre o personagem Carlitos.12
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Para André Bazin, existiram duas atitudes a propósito da representação fílmica, encarnadas
por dois tipos de cineastas: os que “acreditam na imagem” e os que “acreditam na realidade”, em outras palavras, os que identificam na plástica da imagem e nos recursos da montagem a essência do cinema e aqueles que subordinam a imagem a uma restituição o mais fiel possível da realidade.11
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Chaplin e Edna Purviance em Carlitos nas trincheiras (Shoulder arms, 1918). Família Ferrez
10 Ibidem, p. 165. 11 BAZIN, Andre. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. 12 Ver também: LOBASSI, Edmundo Washington. Com o som morre o personagem Carlitos e nasce o ator Chaplin. Revista RUA: Revista Universitária do Audiovisual, UFSCAR, São Carlos, ago. 2008. Disponível em: http://www.ufscar.br/ rua/ site/?p=160; O personagem Carlitos. RuMoRes: Revista Online de Comunicação, Linguagem e Mídias, ECA-USP, São Paulo, n. 9, jan./jul. 2011. Disponível em: http://www3.usp.br/rumores/visu_art2.asp?cod_atual=248 10; A ideologia nos filmes de guerra: o cinema como meio. Revista RUA: Revista Universitária do Audiovisual, UFSCAR, São Carlos, jul. 2008. Disponivel em: http://www.ufscar.br/ rua/site/?p=3.
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Wagner Pinheiro Pereira Doutor e mestre em História Social pela Universidade de São Paulo. Professor adjunto de História da América do Instituto de História e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do Núcleo de Estudos de História das Américas e da Europa (NEHAE), vinculado ao Laboratório de Estudos do Tempo Presente (TEMPO/UFRJ).
Frank Capra e o american dream1 “Maybe there really wasn’t an America, maybe it was only Frank Capra.”2 John Cassavetes
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Frank Capra no set de filmagem de Os viúvos também sonham (A hole in the head, 1959), estrelado por Frank Sinatra. Correio da Manhã
1 Texto baseado na pesquisa realizada para a minha dissertação de mestrado, Guerra das imagens: cinema e política nos governos de Adolf Hitler e Franklin D. Roosevelt (1933-1945), orientada pela Profª. Drª. Maria Helena Rolim Capelato e defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCHUSP), em 2003. A versão final do texto encontra-se com a publicação no prelo. Ver: PEREIRA, Wagner Pinheiro. O poder das imagens: cinema e política nos governos de Adolf Hitler e Franklin D. Roosevelt (1933-1945). São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2012. 2 Talvez realmente não houvesse uma América, talvez fosse apenas Frank Capra.
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Nas décadas de 1930 e 1940, período em que as plateias americanas encontravam-se abaladas pela Grande Depressão Econômica e pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945), não havia outro cineasta mais premiado e admirado que Frank Capra, responsável por capturar como ninguém o espírito otimista do projeto político-econômico do New Deal (Novo Acordo), empreendido pelo governo do presidente Franklin Delano Roosevelt (1933-1945). Os filmes de Frank Capra falavam de pessoas comuns, que esqueciam as diferenças para se unirem em torno de um mesmo ideal. Talvez possam ser considerados até um pouco ingênuos nos dias atuais, mas esses filmes são um retrato inegável da democracia americana em seu melhor estado, transmitindo uma sensação de segurança e otimismo em sua crença na força dos valores democráticos, na liberdade de expressão e no desejo americano de progresso. Seus filmes mais representativos da política do New Deal expressavam os ideais do American Way of Life (estilo de vida americano) e do American Dream (sonho americano), apresentando como temas centrais a confiança no poder do homem comum e empreendedor (self-made-man) – personificado de maneira ideal por Gary Cooper e James Stewart –, que vence as dificuldades através do seu caráter moral e determinação; a exaltação das virtudes do regime democrático americano; e a denúncia da corrupção dos poderosos e do capitalismo desonesto. Embora alguns críticos de época considerassem que muitos desses filmes fossem piegas, o cineasta acabou criando um conjunto fílmico que disseminava os ideais, princípios e valores fundamentais da identidade nacional coletiva americana e que buscava configurar um projeto de monumentalização da História dos Estados Unidos da América.
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47 Claudette Colbert interpreta a jovem Ellie Andrews em Aconteceu naquela noite (It happened one night, 1934), o primeiro filme a receber os cinco principais prêmios do Oscar. Correio da Manhã
Frank Capra e a América: os anos de formação Frank Capra nasceu em 18 de maio de 1897 e era o sexto dos sete filhos de Salvatore e Sara Nicolas Capra, camponeses sicilianos da aldeia de Bisaquino, perto de Palermo. Seis anos mais tarde, mudou-se com os pais e os três irmãos mais novos para os Estados Unidos da América, onde se juntaram ao primogênito da família em Los Angeles. A família instalou-se no bairro pobre de Little Sicily, que ele sempre detestou. Frank Capra vendia jornais desde os seis anos nas ruas de Los Angeles, mas ao contrário dos irmãos, frequentou a escola e matriculou-se na faculdade, cujos estudos conseguiu financiar através de bolsas e de diversos trabalhos realizados em tempo parcial. Em 1918, formou-se em Engenharia Química e logo depois serviu durante um breve tempo como instrutor de balística em São Francisco. Incapaz de arranjar emprego como engenheiro químico na depressão do pós-guerra, viu-se obrigado a regressar a Little Sicily, para junto da mãe e da irmã mais nova que aí tinham voltado em 1917, depois de um período de dois anos fora do bairro a que a morte acidental do pai veio pôr termo. Nessa altura, sofreu uma grave doença que a mãe, descrente no tratamento médico, cuidou em casa. No período de convalescença, trabalhou ocasionalmente com o irmão e como tutor da família Baldwin, o que lhe proporcionou o primeiro contato com um meio social economicamente próspero. Nos três anos seguintes, passou perambulando pelos estados do Oeste, ganhando a vida, entre outras coisas, como vendedor ambulante. Em dezembro de 1921, Frank Capra ingressou no mundo do cinema convencendo um diletante
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Barbara Stanwyck atuou em cinco filmes de Frank Capra, especialmente dramas românticos, mas o maior sucesso da dupla é a comédia Adorável vagabundo (Meet John Doe, 1941), com Gary Cooper. Correio da Manhã
produtor de curtas-metragens em São Francisco de que vinha de Hollywood. A estreia fez-se como realizador, quando Capra dirigiu de improviso uma adaptação do poema de Rudyard Kipling, The ballad of Fisher’s Boarding House, com a habilidade suficiente para conseguir vender o filme aos estúdios da Pathé. Nos dois anos seguintes em São Francisco empenhou-se em aprender tudo o que pôde sobre a profissão, primeiramente como assistente num laboratório fotográfico, depois como aderecista, montador e argumentista para Bob Eddy, produtor de Hollywood, na altura a filmar comédias naquela região. A ligação com Eddy levou Capra de novo a Los Angeles, onde conseguiu o trabalho como escritor de gags para a série Our Gag, de Hal Roach, em 1924. Seis anos mais tarde, mudou-se para o estúdio de Mack Sennett, onde, depois de um breve período de aprendizagem, foi promovido a argumentista principal, trabalhando especialmente em comédias para Harry Langdon e Ralph Graves. Em 1926, quando Langdon abandonou Sennett para produzir seus próprios filmes, levou Frank Capra consigo para dirigir suas produções independentes. Frank Capra teve bastante êxito, pois os longasmetragens que dirigiu para Harry Langdon – Va-
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gabundo, vagabundo, vagabundo (Tramp, tramp, tramp, 1926), O homem forte (The strong man, 1926) e Pintocalçudo (Long pants, 1927) – colocou o comediante de cara de bebê na linha de frente da comédia muda, ao lado de Charles Chaplin, Buster Keaton e Frank Lloyd. Até que Harry Langdon, exasperado com mexericos de Hollywood, segundo os quais o cineasta era o principal responsável pelo seu êxito, despediu-o. Dali por diante, Harry Langdon perdeu rapidamente a posição de destaque que até então ocupara, enquanto que Frank Capra regressou, em 1927, ao grupo de argumentistas do estúdio de Mack Sennett. Por essa altura, divorciou-se da atriz Helen Howell, que conhecera durante a filmagem de Ouro e maldição (Greed, dir. Erich von Stroheim, 1925) em São Francisco e com quem estivera casado durante quatro anos. Antes do final do ano, foi contratado pela Columbia Pictures, um estúdio marginal e independente dirigido por Harry Cohn, que lhe deu total liberdade de ação para dirigir filmes de baixo orçamento. Na época de sua chegada ao estúdio da Columbia Pictures, Harry Cohn, impressionado pela competência e versatilidade do novo membro da equipe, entregou-lhe a realização de Submarine (1928), primeiro filme de grande orçamento da Columbia, cujas filmagens tinham sido iniciadas por Irving Willat. O sucesso do filme garantiu a Capra a proteção de Cohn, que incumbiu ao jovem cineasta a responsabilidade de supervisionar a transição da Columbia para o cinema sonoro em 1929, primeiro com a inserção de passagens de diálogos no melodrama mudo The younger generation, e depois com a realização do primeiro filme totalmente sonoro do estúdio, The Donovan affair. À medida que a Columbia se posicionava na estratégia de um maior reconhecimento, Cohn entregava a Capra produções mais ambiciosas e promovia campanhas publicitárias para os seus filmes: Flight teve, já em 1929, uma prestigiada distribuição e Dirigible foi o primeiro filme da Columbia a ter pré-estreia em Los Angeles no Grauman’s Chinese Theatre. Seus filmes, populares e rentáveis, ajudaram a manter o estúdio ileso durante todo o período da Grande Depressão e lhe realçaram a reputação quando o sucesso de suas produções elevou os
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estúdios da Columbia da pobreza ao status de grande produtora cinematográfica. Sobre o papel político do cinema americano no cenário da Grande Depressão Econômica é curioso perceber, conforme aponta Robert Sklar, em História social do cinema americano, que de determinados ângulos e a certas luzes, o craque da Bolsa de Valores de 1929 e a Grande Depressão da década de 1930 podem ser apresentados como um maravilhoso golpe de sorte para os cineastas norteamericanos. Durante toda uma geração eles haviam sido censurados e caluniados como subversores dos valores da classe média. Depois, como que por um ato da Providência, veio de improviso o desastre social e econômico, confundindo e dispersando seus inimigos, os defensores da herança cultural norteamericana. Escancaram-se os portões celestiais e o cinema dos Estados Unidos, como proclamaram universalmente os seus cronistas, ingressou na sua idade de ouro: Hollywood passou a ocupar o centro do palco da cultura e da consciência da América, fazendo filmes com uma força e um ímpeto até então desconhecidos e que depois disso nunca mais se viram. As fitas de cinema não somente divertiram e entretiveram a nação enquanto durou sua mais severa desordem econômica e social, mantendo-a coesa por sua capacidade de criar mitos e sonhos unificadores, mas também a cultura cinematográfica dos anos 30 passou a ser uma cultura dominante para muitos norte-americanos, proporcionando novos valores e ideais sociais em substituição às velhas tradições feitas em pedaços.3
A Grande Depressão Econômica foi contemporânea de uma verdadeira idade de ouro: mais de quinhentos filmes foram produzidos em 1930, apesar do aumento dos orçamentos imposto pela nova técnica. A sociedade americana questionava seus valores e encontrava nas salas de cinema um refúgio à altura de sua confusão. Uma nova geração impôs uma profunda renovação dos gêneros que se preocuparam em captar a grande
transformação de que eram contemporâneos. Edificaram-se novos valores, proporcionando aos Estados Unidos o substrato de esperança que Franklin Delano Roosevelt saberia traduzir em termos políticos.4
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Frank Capra e a Era Roosevelt: os anos triunfais Em meados da década de 1930, quando o governo Roosevelt começou a colocar em prática as medidas que caracterizavam o New Deal, a indústria cinematográfica estava totalmente recuperada da crise gerada pela Grande Depressão, provocada pela quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. Tal recuperação despertou o interesse do governo, que tentou tirar partido das salas lotadas pelos espectadores em busca de entretenimento para esquecer, pelo menos por alguns momentos, as grandes dificuldades que os esperavam lá fora. Portanto, o cinema hollywoodiano, em consonância com as políticas públicas levadas a cabo pelo governo, começou a produzir filmes cujos roteiros tentaram disseminar a confiança e o otimismo na recuperação econômica dos Estados Unidos.5 Em paralelo a esta situação econômica tão peculiar, assistimos a uma forte preocupação social no cinema americano que foi se desenvolvendo ao longo das décadas de 1930 e 1940. Desta maneira apareceram filmes que, com formas muito distintas, plasmaram algumas das ideias defendidas pelo presidente Roosevelt durante seu governo nos Estados Unidos da América. Antes mesmo da chegada de Franklin Delano Roosevelt à presidência dos Estados Unidos, Frank Capra começou a realizar alguns filmes que discutiam temas políticos e sociais desse período conturbado da história americana. Nesse sentido, Loucura americana (American madness, 1932) foi a primeira produção cinematográfica a tratar o tema da Grande Depressão nos Estados Unidos e a ter o dinheiro (inicialmente o seu título era para ser
3 SKLAR, Robert. História social do cinema americano. São Paulo: Cultrix, 1978. p. 189. 4 PEREIRA, Wagner Pinheiro, op. cit., p. 225. 5 Sobre o tema ver: PEREIRA, Wagner Pinheiro. 24 de outubro de 1929: a quebra da Bolsa de Nova York e a Grande Depressão. São Paulo: Companhia Editora Nacional/Lazuli, 2006. Especialmente p. 3-33.
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Priscilla Lane é a estrela de Este mundo é um hospício (Arsenic and old lace, 1944), considerada uma obra menor de Capra. Correio da Manhã
Money) como matéria dramática. Na trama, Thomas Dickson, o presidente de um grande banco, começa a ser criticado pela diretoria quando institui uma política de empréstimo aos menos favorecidos e dá emprego a um ex-presidiário como relator chefe. Com a ajuda inconsciente de Phyllis, a descontente esposa de Dickson, o desonesto executivo Cyril Cluett realiza um roubo para saldar dívidas de jogo. Sob o contexto
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da Grande Depressão e com a disseminação de informações especulativas sobre a quantia real de dinheiro roubada do banco, a população entra em pânico e corre desesperadamente para retirar suas economias, devido à possibilidade iminente de falência daquela instituição bancária. No final, antes de ser obrigado a decretar falência, o presidente é salvo pelas pessoas que haviam sido beneficiadas com a sua política de empréstimo,
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que conseguem, milagrosamente, convencer a multidão a continuar acreditando na segurança daquela instituição bancária. O que se viu nesse filme foi o pensamento que seria expresso por Roosevelt durante os anos 1930 na sua campanha de combate à Depressão. Thomas Dickson é a representação do bom americano que não perdera a sua fé. Seu caráter ainda é impregnado pelo otimismo e autoconfiança. A moral que Capra quer deixar é clara: o povo não pode se render ao medo. Seu filme é uma forma de incentivar o americano a superar aquele momento. Sem dúvida, quem ia às salas de cinema para ver esse filme, saia de lá com alguma esperança de que tempos melhores viriam. Seguindo-se a Loucura americana, Frank Capra produziu suas duas comédias fantasiosas de maior sucesso: Dama por um dia (Lady for a day, 1933) e Aconteceu naquela noite (It happened one night, 1934). Segundo Robert Sklar, esses dois filmes, sobretudo o último, têm sido equivocadamente descritos como “comédias amalucadas” (screwball comedies). No entanto, é importante apontar a distinção: nas comédias amalucadas, os amalucados são os ricos, que, às vezes, recrutam os menos abonados (como no filme Irene, a teimosa – My man Godfred, onde o homem pobre, na realidade, é um homem rico disfarçado) e, às vezes, inspiram as pessoas comuns a derrotá-los em seu próprio jogo (como em Midnight). Nas fantasias cômicas de Frank Capra, a imaginação vem de baixo e requer o reconhecimento e a participação dos ricos ou poderosos para fazer com que os sonhos do “homem comum” se realizem. O filme Aconteceu naquela noite é modelar neste sentido, como atesta a sua trama. Escapando à vontade do pai milionário e a um casamento arranjado com o aviador playboy King Westley, a voluntariosa e mimada Ellie Andrews foge do iate da família ao largo de Miami, nada até a terra e viaja sozinha para Nova York. No ônibus encontra o jornalista Peter Warne, que a reconhece, oferecendo-lhe ajuda em troca de poder escrever uma matéria sobre o seu “louco voo para a felicidade”. Durante uma tempestade, os dois perdem o ônibus e, como estão com pouco dinheiro, alugam um único
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quarto, que dividem ao meio com uma corda e lençóis, para passar a noite. No final da viagem, Ellie aprendeu muito sobre o modo de vida das pessoas menos privilegiadas financeiramente e, mais do que isso, apaixonou-se pelo autoconfiante Peter. O pai acaba por aceitar a escolha dela. Na noite de núpcias, Ellie e Peter voltam a utilizar a corda e o lençol no meio do quarto de hotel, mas, desta vez, para o derrubarem, já que agora são casados. Nesse sentido, segundo apontou Robert Sklar, Aconteceu naquela noite é a clássica expressão cinematográfica de um importante subgênero do entretenimento popular americano: o amor e a comédia bem-educados e recatados. Trata-se de uma fantasia de mobilidade social ascendente: a moça rica renuncia à liberdade pelo herói, o rapaz pobre casa sua vitalidade e sua visão com a classe social dominante. Este gênero obteve sucesso perante os críticos e o público de cinema, fazendo com que Aconteceu naquela noite fosse o primeiro filme a receber todos os cinco prêmios principais da Academia de Arte e Indústria Cinematográficas: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator, Melhor Atriz e Melhor Roteiro.
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Mais uma vez ambientado no contexto da Grande Depressão Econômica, Frank Capra produziu o filme Dama por um dia, que conta a história de Annie Maçã (Apple Annie), idosa vendedora de maçãs e uma das mais populares mendigas da Broadway, que durante anos escreve à filha, que mora na Espanha, fazendo-a crer que pertencia à alta sociedade nova-iorquina. Quando a filha visita os Estados Unidos com o noivo e o pai dele, membro da aristocracia espanhola, Annie tem que fazer passar-se por uma mulher rica e de uma posição social muito superior à sua. Para tal, recorre à ajuda de Dave, o pouco escrupuloso, mas solidário, gângster almofadinha Dude, a quem uma vez vendeu uma maçã da sorte. Através dele, arranja um luxuoso apartamento, roupas a condizer e um grupo de “figurantes” entre os seus amigos para tornar crível a encenação. Devido à insistência do conde espanhol em conhecer os amigos da família, Dude organiza uma festa para Annie receber seus convidados. Depois de um susto devido à ausência forçada dos “figurantes”, a verdadeira aristocracia nova-iorquina vem em socorro de Apple Annie, e a recepção é um grande sucesso. Os noivos
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partem de barco para a Espanha certos do seu futuro e de que Annie se juntará a eles mais tarde. Dessa forma, mais uma vez, pessoas detentoras de poder e autoridade fazem que o final feliz do conto de fadas se concretize. Essas intervenções são mágicas num sentido muito semelhante ao dos primeiros desenhos animados de Walt Disney. No entanto, Frank Capra queria alcançar efeitos sócio-políticos mais significativos. Nessa época, Frank Capra conquistara uma importante posição no interior do sistema de estúdios, desenvolvera estreitas relações de trabalho com pessoas do estúdio, possuía a reputação de conseguir manter uma boa atmosfera de trabalho durante as filmagens, bem como uma excelente relação com os seus atores, e podia exercer o controle sobre a escrita, o casting e a montagem de seus filmes. Foi, no entanto, também neste período, depois de enfrentar problemas com a realização de seu filme seguinte, A vitória será tua (Broadway Bill, 1934), que sofreu uma grave crise pessoal, motivada pela angústia de um possível futuro fracasso, que acabou deixando-o hospitalizado com depressão profunda. Foi nesse momento, segundo recordaria anos mais tarde o cineasta em sua autobiografia, Frank Capra: the name above the title (Frank Capra: o nome acima do título, 1971), que um homem calvo, usando óculos de lentes grossas, entrou em seu quarto, enquanto ele estava de cama muito doente e, sob o som de um discurso de Adolf Hitler transmitido pelo rádio ao fundo, chamou-o de covarde por abandonar, num momento em que o mundo estava em crise, sua responsabilidade de disseminar uma mensagem de esperança, e não empregar seus talentos criativos de modo que servisse melhor aos propósitos de Deus e da humanidade: “Você pode falar com centenas de milhões, por duas horas – e no escuro”. Mesmo depois de conseguir recuperar-se dessa doença de foro psíquico, o impacto da experiência foi marcante e ficou evidente num artigo que Capra escreveu para a Esquire, intitulado A sick dog tells where it hurts, onde atacava o sistema de estúdios da indústria cinematográfica e defendia o cinema como arte liderada pelos cineastas, ligando o valor estético e social dos filmes à expressão pessoal, ou seja, defendendo a autonomia do cineasta no processo de realização de um filme.
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A partir desse momento, Frank Capra começou a realizar uma série de filmes com conteúdo político-social, pautados pelo lema da reconciliação da consciência social e da ambição pessoal, sendo provavelmente o único cineasta daquele período a buscar construir em seus filmes um modelo em larga escala da sociedade americana. Quando passou da fantasia para uma versão idealizada das relações sociais, Frank Capra não precisou alterar radicalmente sua maneira de ver as coisas; em lugar disso, tornou a arrumar e a enfatizar os elementos do seu estilo anterior. O herói imaginativo continuou essencial à sua fórmula, conquanto se tornasse mais parecido com o povo, mais bucólico e idealista. O papel da imprensa e da publicidade continuou a ser importante, e as figuras revestidas de autoridade continuaram a ter participação significativa na validação do conto de fadas. As principais mudanças referiam-se aos ricos: as jovens ricas tornavam-se inadequadas ao herói e o poder dos homens abastados, mais sinistro do que benigno, tema de redenção ou, quando isso falhava, de oposição. No coração do herói, o lugar da moça rica é ocupado por uma mulher que trabalha; em vez de receberem a ajuda da riqueza e do poder, os sonhos do herói são ajudados pelo “povo” que se congrega atrás dele. Para poder concretizar-se, o mito social de Frank Capra exige o reconhecimento e a participação do povo comum; é um mito em que se assegura ao público que este também terá um papel para representar. O primeiro exemplo do novo cinema político de Frank Capra foi O galante Mr. Deeds (Mr. Deeds goes to town, 1936). Neste filme, Longfellow Deeds, um interiorano idealista vai para Nova York para receber uma herança de vinte milhões de dólares. Na cidade grande, ele se envolve em um romance com uma esperta jornalista e se torna alvo da imprensa sensacionalista, de implacáveis homens de negócio e de parentes ambiciosos. Por causa das matérias sensacionalistas, uma tremenda multidão de desempregados fica em frente a sua casa, acusando-o de esbanjar milhões enquanto eles passam fome. Desiludido com a sociedade, Deeds resolve abandonar toda a sua fortuna, por
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Refilmagem de um grande sucesso de 1933, Dama por um dia (Pocketful miracles, 1961) contou com Bette Davis no papel principal. Correio da Manhã
esta trazer-lhe muita encrenca. No entanto, no momento de sua partida, ocorre a sua conversão social: um velho camponês desempregado invade a sua casa e ameaça matá-lo por achar que Deeds é um milionário arrogante (o mesmo tipo de intervenção que Capra alega ter sofrido na passagem citada de sua autobiografia). Comovido pela situação miserável desse homem, Deeds resolve utilizar a sua fortuna em benefício dos necessitados, dando-lhes lotes de terra e dinheiro. É
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a concretização do ideal da política econômica do New Deal de ajuda aos desempregados da Grande Depressão. Assustados com a estranha decisão do milionário e com receio de não tirar proveito da fortuna, seus sócios e parentes internam-lhe num hospício. Dessa forma, para poder continuar realizando seu projeto, Deeds terá de enfrentar políticos profissionais, burocracia, corrupção e o alto mundo dos negócios, numa batalha judicial sobre sua sanidade mental.
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Frank Capra e o american dream
O galante Mr. Deeds estreou em 12 de abril de 1936, e fez um grande sucesso entre o público e a crítica. Deu lucros superiores a um milhão de dólares para a Columbia Pictures, mais o prêmio de Melhor Filme do National Board of Review e o Oscar 1936 de Melhor Diretor. Após o sucesso de O galante Mr. Deeds, Frank Capra decidiu investir na produção do seu projeto mais audacioso – Horizonte perdido (Lost horizon, 1937), que conta a história de um grupo de pessoas muito diferentes entre si, cujo avião cai nas montanhas do Himalaia. Em busca de ajuda, eles acabam encontrando o mundo mítico e maravilhoso de Shangri-Lá, onde ninguém envelhece mais. A paz, a serenidade e a sabedoria de seus habitantes ensinam-lhes o verdadeiro valor da vida, enquanto se apaixonam pelo estilo de vida do lugar. Horizonte perdido é considerado uma exceção entre os filmes de Frank Capra, por causa de seu desvio da temática “americana”, no entanto, é neste filme que fica mais perceptível os valores da democracia idealizados pelo cineasta. Elogiado pelos críticos e adorado pelo público, o filme foi indicado para as sete principais categorias do Oscar, vencendo nos quesitos de Melhor Direção de Arte e Melhor Montagem. Durante a Segunda Guerra Mundial, uma nova edição do filme atenuou a mensagem pacifista e inseriu um conteúdo de propaganda antinipônica no enredo. No ano seguinte, Frank Capra retorna à temática (You can’t take americana em Do mundo nada se leva (You it with you, 1938), filme ganhador dos Oscars de Melhor Filme e Melhor Diretor de 1938, além de acumular outras cinco indicações. Essa comédia acompanha as maluquices da família Vanderhof, que segue uma filosofia de vida muito curiosa: faça tudo o que você quiser, desde que você esteja se divertindo. Na trama, a protagonista Alice Sycamore, uma pessoa estável que encabeça uma família liberal, se apaixona por Tony Kirby, o filho muito decente e centrado do magnata Anthony P. Kirby. Devido a uma confusão, as duas famílias conhecem de novo os prazeres simples e as alegrias da vida: o amalucado Martin Vanderhof faz o magnata Kirby recordar sua humanidade, deixando de ligar tanto para o lucro. Kirby cancela o negócio que teria arruinado a possibilidade de
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amor e felicidade de seu filho com Alice Sycamore, a neta de Martin Vanderhof. No final do filme, os Kirbys compartilham do calor humano e do reconhecimento da família Vanderhof. Já o filme A mulher faz o homem (Mr. Smith goes to Washington, 1939) é considerado pelos críticos como a maior obra-prima populista do cinema americano. Tendo recebido 11 indicações ao Oscar, o filme conta a história de Jefferson Smith, líder de escoteiros de uma pequena cidade, que é escolhido para ocupar uma cadeira vaga do Senado americano, pois os políticos corruptos do estado estavam seguros de que esse jovem ingênuo e idealista poderia ser facilmente manipulado pelo corrupto senador Paine. No entanto, quando Smith apresenta um projeto de lei para a construção de uma área de acampamento para todas as crianças e jovens dos Estados Unidos, no mesmo lugar em que os políticos corruptos precisavam para realizar suas atividades ilegais, eles tentam, de qualquer forma, destruir a reputação do jovem senador. Percebendo a corrupção à sua volta, mas ainda mantendo a convicção de seus ideais de democracia, liberdade e justiça, Smith, com a ajuda de sua secretária Sanders, leva esse caso de corrupção ao Senado, na esperança de que ele possa despertar os princípios de honestidade e humanidade que ainda restam aos outros senadores. Dessa forma, nesse filme, ao invés de apresentar as instituições americanas positivamente, como puras e dignas de elogios, Frank Capra elogia os valores americanos da nação, da honestidade do homem simples e do self-made-man, criticando os próprios jogos de bastidores urdidos numa instituição com o prestígio do Senado. No fundo, ficam salvaguardadas as virtudes das instituições democráticas, desde que se apoiem em “homens novos”, que devem ser aqueles a quem compete construir a “Nova América”. Até o final da década de 1930, os filmes de Frank Capra obtiveram 28 indicações da Academia e conquistaram seis Oscars. Capra assumiu igualmente um papel de relevo na defi nição da política dos estúdios. Como presidente da Academy of Motion Pictures Arts and Sciences, cargo para que fora eleito em 1935, opôs-se à tentativa de utilização daquela organização como
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uma company union. Em maio de 1938, foi eleito presidente do emergente Directors Guild e, no ano seguinte, para tentar obter o reconhecimento da união, protagonizou uma ameaça de greve e um possível boicote à atribuição dos prêmios da Academia. Depois de uma disputa com Cohn que o levou a tentar a organização de uma companhia independente com os cineastas William Wellman, Gregory La Cava e Wesley Ruggles, em 1937, e cumprindo o contrato com a Columbia ao término de A mulher faz o homem, Capra abandonou aquele estúdio no verão de 1939 para formar com Riskin, a Frank Capra Productions. Negociou um acordo de produção e distribuição com a Warner Bros., a Vitagraph e o Bank of America. A primeira produção, já sob o contexto da Segunda Guerra Mundial, foi Adorável vagabundo (Meet John Doe, 1941), que conta a história de uma jornalista que, sob o pseudônimo John Doe (“João Ninguém”), escreve uma série de cartas em que anuncia o seu suicídio na noite de Natal, como protesto contra toda a miséria, hipocrisia e corrupção que existem no mundo. Transformado em herói popular, o fictício “John Doe” ganha um corpo e voz na pessoa do mendigo Long John Willoughby. Ao ser colocado para discursar na rádio de D.B. Norton, “John Doe” prega a filosofia de ajuda e amor ao próximo, e daí para frente, são criados “Clubes John Doe” em todos os estados do país. A partir de então, o ambicioso capitalista de tendência fascista D.B. Norton financia e encoraja a organização dos “Clubes John Doe”, lançando uma convenção na qual pretende que “Doe” o nomeie candidato à presidência dos Estados Unidos, através da criação de um “Terceiro Partido” nos moldes nazifascista. Contudo, “John Doe” se recusa a participar da trama de Norton, e este o denuncia como um farsante. Enredado numa situação que não pode controlar, sendo desacreditado pela opinião pública e vendo-se impotente em face do poder econômico e do controle dos meios de comunicação de massa exercido por Norton,
Long John Willoughby decide cumprir a falsa promessa de suicídio de “John Doe”. No entanto, quando estava preste a concretizá-la, Long John é persuadido por Ann a não saltar, pois ele deveria reerguer os ideais do movimento “John Doe” e lutar contra o poder corrupto de D.B. Norton. Contudo, Adorável vagabundo é o primeiro filme de Frank Capra sem um “final feliz” (happy end), importante característica do cinema clássico de Hollywood. O que demonstra o complicado quadro político-ideológico que o mundo vivia naqueles anos da Segunda Guerra Mundial.
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Após o ataque japonês à base americana de Pearl Harbor, a direção da propaganda política ficou sob a responsabilidade do general George C. Marshall e do presidente Franklin D. Roosevelt. O poderoso general tomou a iniciativa de convidar para participar dos projetos do governo e das Forças Armadas, Frank Capra, o cineasta mais premiado de Hollywood, sugerindo-lhe a produção de documentários: “Eu nunca fiz nenhum documentário”, disse-lhe Capra. “E eu nunca fui general de cinco estrelas”, respondeulhe Marshall.6 Assim, sob a égide do Ministério da Guerra dos Estados Unidos e liderada pelos cineastas Frank Capra, Anatole Litvak e Anthony Veiller, foi iniciada a produção da série Por que nós lutamos? (Why we fight?, 1942-1945), composta de sete documentários, que deveriam prioritariamente explicar à sociedade americana o porquê da participação dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, já que até aquele momento o discurso oficial (de caráter isolacionista) havia a considerado um “conflito europeu”. A série buscou também guiar as emoções para o alistamento dos americanos nas forças armadas e simultaneamente esclarecer a opinião pública americana sobre os principais acontecimentos da guerra. O primeiro documentário, Prelúdio à guerra (Prelude to war), tratava o tema da ascensão do Fascismo
6 CAPRA, Frank. The name above the title: an autobiography. Nova York: Da Capo Press, 1997. p. 327. É importante lembrar que antes do ingresso de Frank Capra na produção de cinema de propaganda americana da Segunda Guerra Mundial, ele realizou o filme Este mundo é um hospício (Arsenic and old lace), produzido em 1941, mas somente exibido em 1944. A trama deste filme, considerado por alguns críticos como uma produção menor, “de subsistência”, centrava-se na história do crítico teatral Mortimer Brewster, que se casa e decide dar a notícia para suas tias, duas amáveis velhinhas que moram perto de um cemitério. Ao visitá-las, descobre o hábito peculiar que as senhoras cultivam há anos: matar homens idosos e solitários por caridade, servindo-lhes vinho com arsênico.
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na década de 1930 na Itália e no Japão; o segundo, A ameaça nazista (The nazis strike), tratava da ascensão do Nazismo na Alemanha e da preparação dos nazistas para a guerra, terminando com o ataque alemão à Polônia; o terceiro, Dividir e conquistar (Divide and conquer), narrava a história dos primeiros anos da guerra. Os três seguintes eram expressões de solidariedade com a resistência na Inglaterra, Rússia e China: A Batalha da Inglaterra (The Battle of Britain), A Batalha da Rússia (The Battle of Russia) e A Batalha da China (The Battle of China). O sétimo e último documentário da série, A guerra chega à América (War comes to America), tratava com quem, o que, onde, porquê e como se formou a nação americana, “a maior república democrática”, e explicava qual a importância que desempenharia os Estados Unidos com sua entrada na Segunda Guerra. O trabalho de Frank Capra na produção de filmes de propaganda de guerra rendeu-lhe algumas honrarias importantes, tais como a Ordem do Império Britânico, concedida pelo primeiro-ministro inglês Winston Churchill em 1943, e uma medalha pelos serviços prestados, concedida pelo General Marshall em 1945. Frank Capra e o pós-Segunda Guerra Mundial: os anos finais Frank Capra regressou a Hollywood no verão de 1945. Dois meses antes da sua saída do Exército, formara com Samuel Briskin (antigo produtor da Columbia e seu produtor executivo na unidade de cinema durante a guerra) a Liberty Films, um estúdio cinematográfico independente de Hollywood, que contaria ainda com os cineastas William Wyler e George Stevens como membros fundadores. Em 1946, firmaram um acordo com a RKO: cada um deles realizaria cinco filmes, a RKO garantiria facilidades de produção e distribuição para os quinze projetos. Frank Capra retomou, então, a causa da reforma da indústria cinematográfica proclamada em 1936 e voltou a escrever um artigo, desta vez para o New York Times Magazine: Breaking Hollywood’s “pattern of sameness”. A primeira produção do novo estúdio foi o filme A felicidade não se compra (It’s a wonderful life, 1946), baseado no conto The greatest gift, de
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Philip Van Doren Stern. Considerado o último grande trabalho de Frank Capra, uma espécie de testamento dos ideais do New Deal do presidente Franklin Delano Roosevelt, o filme conta a história de George Bailey, uma pessoa que sempre pensou primeiro no próximo e sacrificou seus sonhos em benefícios de outros, e que está à beira do suicídio, em razão das maquinações financeiras de Henry Potter, o homem mais rico da região. Mas tantas pessoas oram por ele que Clarence, um anjo que há 220 anos espera cumprir uma missão que lhe permita ganhar asas, é mandado à Terra para tentar fazer George mudar de ideia, demonstrando sua importância através de momentos importantes do seu passado (visualizado cinematograficamente a partir de recursos de flashbacks). O aspirante a anjo foi encontrá-lo na véspera de Natal, à noite, prestes a saltar de uma ponte nas águas geladas. Fazendose visível e identificando-se, falou de sua missão e comentou que seria um desperdício, porque ele vinha sendo importante para muita gente. Ante o ceticismo de seu protegido, que se sentia um fracassado, o amigo espiritual mostrou-lhe várias situações que teriam acontecido se ele não tivesse nascido. A morte do irmão, a tristeza da esposa que ficaria solteira, a situação lastimável de sua cidade etc. Seus princípios otimistas em relação ao homem conseguem fazer do sofredor um herói, que mesmo em momentos difíceis não sucumbe às armadilhas de um mundo hostil. Ao final, surge a recompensa: todos da cidade se reúnem para angariar a quantia de dinheiro necessária para pagar a divida de George Bailey. Nessa noite mágica, George Bailey, sua família e amigos celebram o Natal, enquanto o anjo finalmente ganha as suas asas. Mesmo tendo sido realizado após o final do governo Roosevelt e da Segunda Guerra Mundial, A felicidade não se compra representa o encerramento do ciclo dos filmes populistas de Frank Capra, sintetizando o legado das tramas cinematográficas dedicadas ao homem novo americano da Era Roosevelt. Apesar do sucesso desse filme, a Liberty Films enfrentou dificuldades financeiras já no ano seguinte, e acabou sendo vendida por um bom
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preço à Paramount, para onde os quatro sócios foram trabalhar a seguir à distribuição de Sua esposa e o mundo (State of Union, 1948), terminado por Capra na MGM, e do filme de George Stevens, I remember mama. No período posterior ao governo Roosevelt, Frank Capra perdeu seu ímpeto político, produzindo, contra sua vontade, uma série de filmes comerciais para os grandes astros-produtores Bing Crosby, Frank Sinatra e Glenn Ford, tais como: Nada além de um desejo (Riding high, 1950), Órfãos da tempestade (Here comes the groom, 1951), Os viúvos também sonham (A hole in the head, 1959) e o remake Dama por um dia (A pocketful of miracles, 1961). Percebendo que, nas décadas de 1950 e 1960, Hollywood estava sendo controlada por “astros produtores” e que o cineasta havia perdido a sua posição de destaque na idealização e realização de filmes, Frank Capra rescinde o contrato com a Paramount em 1951 e retira-se com a família para um rancho em Fallbrook, Califórnia, para um período de autoexílio de Hollywood, participando em várias comissões pela luta por causas locais. O ressentimento de Frank Capra quanto ao rumo assumido pela sua carreira fazia também eco dos acontecimentos políticos, já que, no período de histeria da Guerra Fria, o cineasta fora rotulado como pessoa de risco. Apesar de nunca ter tornado pública as suas convicções políticas, descobriu em 1952 que fora identificado como simpatizante do Partido Comunista Americano: em 1937 visitara a União Soviética; em A mulher faz o homem trabalhara com o argumentista Sidney Buchman, membro do Partido Comunista Americano “listado” na famigerada blacklist,, a cuja existência em Hollywood, para cúmulo, Capra se tinha oposto; esse mesmo filme tinha circulado na Rússia depois da guerra para ilustrar a corrupção política americana; durante a guerra, Capra tinha utilizado excertos de filmes soviéticos em A Batalha da Rússia;; um jornalista acusou o filme Sua esposa e o mundo de ser uma obra de propaganda comunista.
distribuição em escolas, que o levou novamente a Los Angeles. No final da série tentou retomar a sua carreira: em agosto de 1957 assinou um acordo de coprodução com Frank Sinatra para Os viúvos também sonham e, enquanto esperava que Sinatra ficasse disponível para as filmagens, regressou brevemente à Columbia, a convite de Harry Cohn, para trabalhar na adaptação de Joseph and his brethren, de Thomas Mann, que seria cancelado com a morte de Cohn alguns meses depois. O seu regresso à atividade cinematográfica foi também marcado, em 1959, pela sua reeleição como presidente do Directors Guild, vinte anos após o seu primeiro mandato. Outro projeto com Frank Sinatra, Bing Crosby e Dean Martin, sobre a biografia de Jimmy Durante, falhou em 1960, quando Frank Capra percebeu que o controle da produção lhe escapava. Aliouse, então, a Glenn Ford para um remake de Dama por um dia (1961), cuja produção seria, no entanto, pouco pacífica. Nos 12 anos seguintes, tentou colocar em andamento alguns projetos, sem que conseguisse realizar nenhum deles. Em 1967, depois de ter passado três anos preparando Marooned sem filmar uma única cena, decidiu aposentar-se definitivamente.
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Entre 1969 e 1970, Frank Capra dedicou-se à redação de sua autobiografia Frank Capra: the name above the title (1971), que após ser publicada lançou o cineasta numa carreira de conferencista, fazendo-o encontrar no público estudantil americano uma nova audiência. Nesses anos, foi alvo de numerosas homenagens, recebendo um título honorário pela Universidade de Wesleyan, em 1981, e o décimo American Film Institute’s Life Achievement Award, em março de 1982. Quatro anos depois do falecimento de sua segunda esposa, Lucille Reyburn, com quem casou-se em 1932 e tivera quatro filhos, Frank Capra morreu em 1991.
Nessa fase, Frank Capra aceitou uma proposta da Bell Telephone para trabalhar numa série de documentários científicos para televisão e futura
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Silvia Oroz Doutora em Notório Saber pelo Centro Coordinador y Difusor de Estudios Latinoamericanos (México) e mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília. Especialista em cinema latino-americano e meios de comunicação na América Latina.
O direito de rir
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ou a palhaçada como vocação
Oscarito na peça de teatro Amoresque (1965), sob direção de Léo Jusi. Correio da Manhã
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Nos primeiros trinta anos do cinema sonoro, desenvolveu-se na América Latina uma comédia hilária e despretensiosa, como o tempo históricocultural pedia. A estrutura narrativa cinematográfica mais solta e livre na comédia do que no melodrama estava relacionada aos atores cômicos que produziam situações onde a gargalhada era o motivo do filme. Dita estrutura era deshierarquizadora, mas não menos conformada. Cômicos como os cubanos Garrido e Pineiro, os mexicanos Cantinflas e Tin Tan, os brasileiros Oscarito e Zé Trindade, entre outros, competiram com os grandes astros e estrelas do melodrama em igualdade de condições. Porém, foram os mexicanos e brasileiros que realizaram uma comédia singular no contexto, já que eles estabeleceram um gênero onde o status quo é desconstruído em grande parte do filme, porção essa que é a mais interessante. No final da história, tudo voltava ao padrão normal. O tempo fora da norma é o que faz com que a sociedade vire do avesso, e isso torna atraente o espetáculo. É aí que aparecem os desejos de vingança de um público composto por imigrantes internos, analfabetos e semianalfabetos.1 No filme El siete machos (1950), de Miguel M. Delgado, Cantinflas faz uma espécie de Robin Hood, rouba os ricos para beneficiar os pobres. O público dos filmes cômicos representava as camadas menos favorecidas da sociedade, que transformavam a sala cinematográfica em uma verdadeira “orgia” do rir.
Os festins do riso nas salas se devem a dois recursos fundamentais usados pelos atores: 1- A oralidade da piada 2- A oralidade corporal e gestual Vamos nos deter no brasileiro Oscarito e nos mexicanos Cantinflas e Tin Tan, pois eles construíram um tipo de atuação modelar e situações de desconstrução que provocaram risos e gargalhadas em um público popular. Nesse sentido, os três atores escolhidos foram mestres da palhaçada que souberam transformar seus trabalhos em obras geniais, em que as piadas oral, corporal e gestual eram ferozmente dominadas por uma forma de humor que hoje é ingênuo, mas representava os valores e convicções de uma época: os anos 40 e 50 do século passado. Os filmes consistiam em metáforas de uma conjuntura em que a sociedade era mais transparente.2 Por isso tem a ver com aquilo que Freud3 coloca como formas privilegiadas – a piada – de manifestação do inconsciente. As mentalidades das classes populares conformadas em uma sociedade linear e transparente responderam ao estímulo das películas para reir. Essas mentalidades são “o sistema e os instrumentos que um grupo humano se dá para transcrever mediante símbolos, discursos e rituais as relações de sua vida. O filme em si integra esses símbolos sociais, tais rituais coletivos e os discursos que emanam e formam as sociedades”.4 Temos que pensar que
1 Conceito de GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. 2 Conceito de VATTIMO, Gianni. Posmodernidad: ¿una sociedad transparente? In: ______ (Org.) En torno a la posmodernidad. Barcelona: Anthropos Editorial, 1994. 3 Conceito de FREUD, Sigmund. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1990. 4 TUÑÓN PABLOS, Julia. Mujeres de luz y sombra en el cine mexicano: la construcción masculina de una imagen (1939-1952). Tese (Doutorado em História) – Universidad Nacional Autónoma de México, 1993.
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a linearidade e a transparência são uma forma de estar no mundo. A commedia dell’arte, o circo, as barracas (carpas) e o rádio são a base dos atores cômicos latinoamericanos. Ou seja, espetáculos populares. Nesse sentido, podemos parafrasear Gramsci quando diz:
O comediante mexicano Mario Moreno, mais conhecido como Cantinflas, em O professor (El profe, 1971), de Miguel M. Delgado. Correio da Manhã
O mais comum preconceito é o seguinte: o de que a nova literatura deva se identificar com uma escola artística de origem intelectual, como foi o caso do futurismo. A premissa da nova literatura não pode deixar de ser histórica, política, popular: deve tender a elaborar o que já existe, não importa se de um modo polêmico ou de outro modo qualquer; o que importa é que aprofunde suas raízes no húmus da cultura popular tal como é, com seus gostos, suas tendências etc., com seu mundo moral e intelectual, ainda que este seja atrasado e convencional.5
A oralidade da piada está arraigada no circo, nas barracas, no rádio e no teatro de revista, construindo uma ampla gama de lugares próprios. Assim, Cantinflas fala o cantinflismo, uma língua que não diz nada, mas mata de rir. Para Carlos Monsivais, “Mario Moreno, Cantinflas, fala sem dizer, o público prestigia”.6 Novamente, Monsivais assinala: “É uma voz proscrita e denuncia a sua exclusão, mas em mãos de populistas e declamadores seus versos resultam em confissão da impotência (a zombaria) verbal dos marginalizados”.7 A origem humilde de Cantinflas faz dele um cômico das barracas – carpas. “Nas tendas não há mau gosto. Há luxo de intimidade e a certeza de que qualquer forma de fracasso é hilário”.8 O sucesso de público de Ahí está el detalle (dir. Juan Bustillo Oro, 1940), estrelado por Cantinflas, fez do filme o segundo campeão de bilheteria da história do cinema mexicano.
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O humorismo caótico de Tin Tan propõe na tela a subversão verbal do spanglish – a fala do pocho9 – e a sátira a uma modernidade mexicana cada vez mais perto do modelo de vida estadunidense.10 Em seu papel de pachuco,11 Tin Tan traduziu a fenomenologia da transculturalização, um problema histórico de México-EUA até hoje. “O pochismo linguístico de Tin Tan, seu caráter desmistificador, antissolene e iconoclasta, fazem deste inesquecível artista alguém único em seu gênero”.12 No filme Las mil y una noches (dir. Fernando Cortes, 1951), quando o guardião do palácio diz a Tin Tan “espere um momento”, este responde “Yes, yes”. O pochismo em funcionamento. Tin Tan é um cômico da capital e sua origem está no teatro de revista, da piada rápida e milimétrica, relacionado com a vitalidade e achados expressivos. No filme mencionado, quando começa a narrar um conto para o sultão, para não morrer, diz: “Cuenta mi tia Sherazade...” (“Conta minha tia Sherazade...”). Oscarito fala a gíria carioca do momento “estabelecendo um clima de intimidade com as plateias mais populares, tornando-se por isso um dos primeiros nomes de bilheteria de nosso cinema”.13 O ator faz parte de um tipo de comédia, a chanchada,
5 GRAMSCI, Antonio, op. cit. 6 MONSIVAIS, Carlos. Escenas de pudor y liviandad. Mexico City: Grijalbo, 1981. 7 Idem. 8 Idem. 9 Termo depreciativo atribuído nos Estados Unidos aos latinos que não sabem falar espanhol. 10 MONSIVAIS, Carlos; e BONFIL, Carlos. A través del espejo: el cine mexicano y su público. México City: Ediciones El Milagro/ Instituto Mexicano de Cinematografia, 1994. 11 Homem latino que se veste com roupas vistosas. 12 MONSIVAIS, Carlos; e BONFIL, Carlos, op. cit. 13 VIANY, Alex. Citado por DIAS, Rosângela de Oliveira em Chanchada: cinema e imaginário das classes populares na década de 50. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993.
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Oscarito é de origem circense, pisava o circo desde os quatro anos de idade. Esses atores, como a maioria deles nesses anos, tem uma origem popular. Em Nem Sansão nem Dalila (dir. Carlos Manga, 1954), o discurso que Oscarito faz como Getúlio Vargas é uma peça da imitação. E nessa cena vemos como a palhaçada é um elemento onde ele, ou eles, se movimentam com absoluta seguridade. Está nessa palhaçada, tanto oral como gestual, a empatia com um público que tinha sede de ver o mundo do avesso.
vam apenas escritas. Os atores tinham liberdade de criação na improvisação e faziam um sem-número de caretas e malabarismos com as pernas. Usavam o corpo todo para se expressar. Isso faz lembrar os cômicos cinematográficos que tinham em seus corpos e nas caretas outras formas de expressão tão importantes quanto a piada falada.
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Na commedia dell’arte os personagens estão divididos em protótipos, assim como nos filmes cômicos. Enquanto no teatro temos os patrões, serventes e enamorados, no cinema adquirem a identidade de espertos, estúpidos e ingênuos. Oscarito em Os dois ladrões (dir. Carlos Manga, 1960) tem com Eva Todor – também de origem circense – uma cena antológica do cinema cômico, com ritmo e precisão total. Nela, o ator se olha no espelho e não aparece ele, senão Eva Todor vestida como o ator, fazendo a mesma gestualidade. Oscarito e Eva; Eva e Oscarito. Cena sem par que lembra a Umberto Eco quando diz:
A oralidade corporal e gestual também está relacionada às origens desses atores, ou seja, ao circo, às “carpas” etc. É aí que a palhaçada internaliza se convertendo no elemento catalisador das atuações. O lúdico e prazeroso eram os componentes vitais dos atores, e esses fatores transformavam a sala cinematográfica em uma verdadeira orgia do riso. Os filmes de Oscarito, Cantinflas e Tin Tan têm suas origens remotas na commedia dell’arte.14 Esta data no período que vai da Idade Média à metade do século XVI, e, oriunda da Itália, se estende depois pela Europa. Foram os primeiros grupos teatrais remunerados compostos por atores populares e da aristocracia erudita em decadência. Eram proibidos de se apresentar em teatros, daí sua relação com as férias. No roteiro, as peças esta-
Nascido na Espanha, filho de pais artistas de circo, Oscarito veio para o Brasil com um ano de idade. Antes do cinema e do teatro, foi palhaço, trapezista e acrobata. Correio da Manhã
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única no mundo, e por sua vez familiar com os filmes de Tin Tan e Cantinflas no que diz respeito à desconstrução de um status quo tradicional, que é quebrado, colocando em evidência a liberdade em um mundo sem regras. Desse modo, Cantinflas em Ahí está el detalle desestrutura genialmente um juiz falando do que quer – sem sentido – e mostrando que a justiça pode ser cega. Oscarito em Carnaval Atlântida (dir. José Carlos Burle, 1952) é um fanático pela História – alta cultura. Em um momento do filme, esquece isso e baila uma rumba com a cubana Maria Antonieta Pons. É uma rumba inesquecível, e ele passa então a aceitar a cultura popular, tornando-se um homem mais flexível. Em Las mil y una noches, os guardiões do castelo não gostam do baile do merengue porque contamina a todo o mundo com seu ritmo caliente.
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14 Conceito de Débora Costa apresentado em trabalho de graduação em Cinema na Universidade Estácio de Sá.
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[...] o cômico pertence à esfera dos sentimentos (ou, se quiserem, à psicologia e à fisiologia), portanto falar dele como de categoria literária é um caso de antimetódica construção doutrinal. Ri-se certamente por infinitas razões, muitas das quais pouquíssimo risíveis, e há quem ria por vileza, quem ria por alegria.15
Cantinflas no filme Pepe (1960), do diretor George Sidney. Correio da Manhã
Na grande cena do balcão de Romeu e Julieta em Carnaval no fogo (dir. Watson Macedo, 1950), os gestos de Oscarito são perfeitos, pensados, precisos. A fala e os gestos acompanham em sintonia. O ator estava muito longe da improvisação e do acaso. Ensaiava até a exaustão e nunca estava satisfeito. Movimenta o corpo com delicadeza, como se não tivesse ossos, e o usa como outra forma expressiva vital. A palhaçada em Oscarito é a essência de um trabalho perfeccionista, minimalista, obsessivo. E genial.
Salvador Novo diz sobre Cantinflas: “Qual é a renovação humorística e linguística de Cantinflas? Talvez a vocação do pária e uma lógica que o condena e rechaça; encontrando sua quintessência em um tsunami de palavras que dão origem ao Cantinflismo”.16 Das raras autobiografias dos anos 40 do século passado do cômico, citada por Monsivais: Adotei o nome artístico de Cantinflas para evitar vergonha a minha família. Era uma família humilde, mas tinha seu orgulho. E eu era um artista de última categoria. Trabalhava nas tendas para as pessoas sem dinheiro para entrar em um teatro caro... Pouco a pouco tomou forma a aparência física de Cantinflas. Adotou a vestimenta da gente humilde, a necessidade escolheu a roupa. Camisa de algodão de mangas compridas, que alguma vez foi branca. Calças amassadas e não muito largas, sustentadas não na cintura, mas sim nos quadris. E sapatos que ficariam melhor em um hipopótamo. Sobre essa roupa vinha um pedaço de pano conhecido como gabardina...17
E diz ainda Monsivais:
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O cômico de Cantinflas: a imagem e a voz de Cantinflas; a mensagem humorística de Cantinflas; sua figura. O mito, função de memória... A classe média ilustrada abandona paulatinamente Cantinflas, mas a dívida das massas com ele é em longo prazo. Ele os fez rir e, portanto, comprometeu-se a continuar fazendo-os rir.18
Em 1953, o muralista Diego Rivera fez seu grande mural no Teatro dos Insurgentes, e Cantinflas aparece nele como o defensor dos pobres. Em seu paletó, Rivera pinta a Virgem de Guadalupe, patrona dos mexicanos. A vitalidade e os resultados significativos de Tin Tan são modernizadores. O ator não dava importância à trama nem aos diretores, e sim à sua participação. Seus filmes, uma sátira à modernidade mexicana, cada vez mais próxima dos EUA.
15 ECO, Umberto. Entre a mentira e a ironia. Rio de Janeiro: Record, 2006. 16 NOVO, Salvador. Citado por MONSIVAIS, Carlos, op. cit. 17 MONSIVAIS, Carlos, op. cit. 18 Idem.
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No Rey del barrio (dir. Gilberto Martinez Solares, 1949) leva sua ironia ao território do delírio e da farsa. Tin Tan é um cômico que utiliza, mais que Oscarito e Cantinflas, a ironia. Pensando que, para que esta ironia se produza, é necessário ver o outro. Por isso, Tin Tan não é inocente. A picardia nele tem vários sentidos. Por exemplo: Las mil y una noches, quando está por narrar o primeiro conto ao sultão, começa dizendo “em um lugar de la Mancha, de cujo nome não quero me recordar”, para depois dizer “não, isso não é daqui”. Citação de Cervantes sem dizer quem é. Entre os que reconhecem o texto e quem não, há dimensões diferentes de entendimento. Num momento do filme, Tin Tan está no mercado persa, onde vendem uma escrava. A cena segue do plano da mulher ao contraplano do cômico, e assim várias vezes. A gestualidade de seu rosto nos contraplanos é marcante. Atônito, bobo, surpreso. E quando junta as mãos parece que está rezando perante a escrava. Seus gestos se concentram no rosto, que chega a parecer elástico, é uma mina de expressões.
nacional. Somente nós rimos destas coisas, captamos o duplo sentido, o peso específico de algumas palavras, o ritmo popular.19
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Tambem diz Monsivais, “entre 1920 e 1960 o cinema é a outra família, a outra companhia desejada, o outro método de ilusões com os olhos abertos, o outro povo natal, a outra cidade onde se vive, se goza e se padece”.20 O brilhantismo dos cômicos não era obra de roteiristas ou diretores. Era inato a eles, que tinham essa aura. Seus filmes eram eles mesmos, que trabalhavam o avesso do folhetim com o mesmo apelo popular e desmistificação em uma época onde a palhaçada teve seu auge.
Oscarito. Correio da Manhã
Os comediantes latino-americanos são emblemáticos da necessidade de rir tendo ao fundo a acústica nacional e a observação aguda de tipos e personagens. Sem equipamentos nem indústria que realmente os apoie, se por algo persistem os comediantes é pela enorme identificação com os espectadores. Não há dúvida de que na América Latina o cinema de humor é um reduto vigoroso do
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Os filmes de Cantinflas, Tin Tan e Oscarito eram a revolta contra policiais, juízes, advogados pomposos, senhoras da sociedade; mas, sobretudo, o resgate da cultura popular. Dita cultura tinha mais a ver com a industrialização e o cinema, em forma de algumas das vantagens do anonimato urbano, sobretudo no social e sexual. Está-se preparando o terreno para a vida urbana; tão distante e tão próxima nas décadas de 1940-1950. Diz Monsivais, em Aires de familia:
19 MONSIVAIS, Carlos. Aires de família: cultura y sociedad en América Latina. Barcelona: Anagrama, 2000. 20 Idem.
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Massagista de madame (1958), de Victor Lima, com Zé Trindade e Aída Campos. Correio da Manhã
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Virginia Maisano Namur Doutora em Artes pela Universidade Estadual de Campinas e mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora da área de Comunicação da Faculdade de Tecnologia de São Paulo e de História da Arte das Faculdades Metropolitanas Unidas.
Riso e resistência - o cinema
de Dercy Gonçalves
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1 AMARAL, Maria Adelaide. Dercy de cabo a rabo. 5. ed. São Paulo: Globo, 1994. p. 104.
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Diferente de outros meios tecnológicos de comunicação, como o rádio e a TV, que se desenvolveram com a ajuda de publicitários e empresas estrangeiras, interessadas na formação de novas sociedades e culturas de consumo, evidentemente para dar maior vazão a sua produção industrial, o cinema nacional foi criação dos próprios brasileiros. Por ser indústria cara e pesada e de distribuição de produtos em larguíssima escala, bastando para isso a multiplicação de tecnologias de projeção, o meio não necessitava de intermediações regionais. Pelo contrário, desejava-se que para ele não houvesse concorrência interna. Fazer cinema no país foi, portanto, um sonho da burguesia local, com boa formação intelectual e, principalmente, com condições financeiras para bancar estágios no exterior e importação de equipamentos e películas, o que pode explicar tanto sua trajetória de altos e baixos, de empreendimento que nunca atingiu escala industrial nem mesmo em território nativo, como algumas singularidades de sua linguagem e produção. Adhemar Gonzaga, por exemplo, antes de criar a Cinédia na década de 1930, fez diversas incursões pelo exterior, em busca de técnica para implantar o que pretendia ser um polo de produção de filmes com qualidade compatível à dos norte-americanos. No entanto, na hora de enfrentar o mercado interno, não viu outro jeito senão lançar mão de preferências populares e apoiar-se em gêneros teatrais que já faziam sucesso na terra. No âmbito das novas mídias, a mescla entre velhas e novas linguagens, assim como entre classes e ideologias, foi uma necessidade. As tecnologias de comunicação eram símbolos de desenvolvimento
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e modernidade, mas exigiam consumidores para se justificarem. E nesse aspecto, nenhuma moeda era tão sonante quanto as que tilintavam nas bilheterias do teatro popular. O espírito empresarial não titubeou e dividiu o cinema em dois. A certa altura tinha-se a Vera Cruz, de Franco Zampari, que pretendia produções de qualidade estética mais alta e para isso se apoiava em atores e procedimentos provenientes de grupos teatrais amadores, que ele mesmo colaborara para profissionalizar. Mas também companhias como a Cinédia, de Adhemar Gonzaga, e posteriormente a Atlântida, de Moacir Fenelon e José Carlos Burle, que logo se afinaram com o grande público. Não abandonaram experiências de vanguarda, como as de Humberto Mauro, mas cediam ao melodramático e ao cômico justamente para poderem lhes fazer frente. Bem rapidamente se embarafustaram pela retórica ambígua e carnavalizada do teatro de revista, porque era esse que lotava as plateias.
Dercy Gonçalves, uma especialista na arte do improviso no cinema e no teatro. Correio da Manhã
Assim, quando a Cinédia fez pacto com o teatro de revista e com os shows de cassinos ou de rádio, rodando os primeiros musicais carnavalescos, ou quando mais tarde a Atlântida se especializou em chanchadas, não foi porque seus empresários se identificavam com a cosmovisão popular, mas porque esta lhes trazia lucros. Optaram por uma linguagem caseira e por um público cativo, despreocupado com questões estéticas tanto quanto o público norte-americano quando ia ao cinema, justamente para poder enfrentar a competitividade da indústria cinematográfica desses últimos, que já estava firmada no país. Filmes carnavalescos e chanchadas foram as primeiras fórmulas brasileiras para sustentar um cinema de massa, embora em termos de linguagem ainda apenas se
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ródia. Parodiando, não concorriam frontalmente nem com o velho teatro de revista, nem com os meios que estavam surgindo, mas se apropriavam deles, corroendo-os pelas beiradas. No Brasil, já era comprovado, quem via o original raramente deixava de ver também a sua réplica cômica. O grande nome da Atlântida era Oscarito, que formou com Grande Otelo a maior dupla chanchadeira do Brasil. Dercy Gonçalves, que estreara em 1940 na Cinédia e ali também se tornara estrela, permaneceu fiel à empresa. Eis porque, infelizmente, não temos registros das famosas cenas que esses dois excepcionais comediantes populares criaram muitas vezes para o teatro. Temos, sim, de trabalhos da atriz com Grande Otelo, com o qual esta não se dava bem pessoalmente, por conta de antigos desentendimentos de palco, ainda do tempo dos cassinos. Mas Dercy era uma profissional séria e disciplinadíssima, foi competente empresária de teatro e jamais recuou ou dificultou seu trabalho por razões pessoais, nem mesmo quando teve que contracenar no cinema com a bela Odete Lara, estopim da crise que deu fim ao seu único casamento.
Em pose de estrela na foto da década de 1950. Correio da Manhã
dispusessem a atualizar recursos populares que antes só podiam ser apreciados no único teatro comercial do país. Tomando como principal modelo a revista tradicional, bem diferente do show business no qual o gênero foi se transformando na medida em que, sob a direção de Walter Pinto, passou a enfrentar a concorrência dos musicais americanos com suas próprias e espetaculares armas, o cinema musicado nacional e a chanchada nativa se ambientavam na atualidade. E o que estava em voga no momento era exatamente o diálogo entre as velhas e as novas mídias. Por isso, geralmente tomavam como assunto o meio artístico. Dessa forma, podiam inserir nos filmes as mesmas atrações apresentadas nos quadros musicais ou de variedades do teatro de revista, que já então também dialogavam com os novos meios, como o rádio ou o cinema, mas ainda traziam para a tela um de seus principais procedimentos – a pa-
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Na Cinédia, Dercy sempre fez musicais carnavalescos e chanchadas. Teve uma só experiência com a Vera Cruz e, embora a crítica tenha sido favorável e o filme agradado até mesmo ao público mais exigente, o resultado não a satisfez por seus descomedimentos cômico-populares terem sido refreados. Voltou para a Cinédia, onde a deixavam interpretar como quisesse porque sempre lotava as plateias. No entanto, a carreira cinematográfica da atriz não foi diferente da de qualquer ator do cinema brasileiro da sua época – mal paga e cheia de imprevistos financeiros, feita às pressas e com improvisações de todo tipo, das técnicas às interpretativas. Nesse quesito, porém, Dercy era a melhor. Aprendera nos palcos mambembes e no teatro de revista que, no país, a única estética possível era a da precariedade. Tudo o mais era idealização. Os percalços da carreira já começaram na estreia, em 1940, com Romance proibido, de Adhemar Gon-
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Em fevereiro de 44, participou de Abacaxi azul, de J. Ruy e Wallace Downey, este último um norteamericano que, atraído pelo cinema carente de verbas e de técnicos, que era o do sul, se tornou coprodutor da Cinédia. O enredo do filme também era revisteiro, dessa vez da revista paulista caipira, com dois amigos do interior que resolviam ir ao Rio contratar artistas para a emissora de rádio de sua cidade. Os compères2 eram Alvarenga e Ranchinho, e no teste artístico que uma agência organiza para eles comparecem Dircinha Batista, Dorival Caymmi, Dilermando Reis e o conjunto Anjos do Inferno. Dercy exibiu um número extraído de Salada de artistas, que apresentara anteriormente com muito sucesso nos cassinos. Parodiava Carmem Miranda, cantando e requebrando em O que é que a baiana tem. Ao mexer os braços e as mãos ao modo da cantora, exagerava muito e, para espanto dos caipiras e muitas risadas do público, passava a se coçar em todos os lugares, inclusive os inadequados.
Em 48, a atriz participou de Folias cariocas, de Manuel Jorge e Hélio Thys, que misturava a exuberância exótica de Luz Del Fuego a figuras radiofônicas, como César de Alencar e sua preferida, Emilinha Borba.
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Apesar do relativo sucesso, Dercy se afasta temporariamente das telas. Envolve-se com a companhia teatral que acabara de criar para fazer teatro de bolso, em contraposição às grandes revistas de Walter Pinto, das quais ela mesma participava como diretora de elenco. Só em 1956 volta às filmagens, mas já então para fazer chanchadas. A primeira, de José Carlos Burle, parodia o bordão do colunista social Ibrahim Sued, que ao comentar as festas do high society nativo, terminava com a frase que deu título ao filme: Depois eu conto... Numa alusão crítica, se não ao próprio colunista, aos valores do mundo que o cercava, o personagem principal, interpretado por Anselmo Duarte, era um pobretão com pinta de galã, que trabalhava num posto de gasolina e à noite “emprestava”
Em 1946, Dercy já era destaque na Cinédia. Fez Rita Naftalina, contracenando com Walter D’Ávila em Caídos do céu, também de Lulu de Barros, no qual se exibem Linda Batista, Francisco Alves e Adoniran Barbosa. O filme lembra, de certa forma, se é que não lhe serviu de modelo, a novela global Deus nos acuda, de 1992, na qual também comparece Dercy.
Caracterizada para a peça Lucrécia Bórgia (1955), encenada por sua própria companhia de teatro. Correio da Manhã
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zaga, um filme revisteiro. A fita mal começou a ser rodada, foi suspensa por problemas econômicos. Só veio a ser terminada no início de 1943 e exibida no ano seguinte. Tratava de um triângulo amoroso entre duas irmãs e a atriz fazia um papel secundário, tanto que nem se encontrou no estúdio com Grande Otelo, que já era artista importante dos musicais. Dercy só veio a aparecer pela primeira vez nas telas em seu segundo filme, Samba em Berlim, de Luiz de Barros, de 1943. Com uma equipe da qual até mesmo Ziembinski participava, levava-se para a película a revista Rumo a Berlim, de Freire Júnior. Tendo como tema a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, fora montada com êxito no ano anterior pela Companhia Walter Pinto.
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2 Segundo Neyde Veneziano, em Não adianta chorar – Teatro de Revista Brasileiro...Oba! (Campinas: Editora da Unicamp, 1996. p. 31), a dupla de compère, ou ainda o compère e a comère, pertenciam à convenção das antigas revistas e tinham como função apresentar e comentar a peça, além de fazer a ligação dos quadros cômicos, musicais e de dança, garantindo assim um fio condutor.
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os carros de luxo dos fregueses para frequentar a alta roda.
um carro alegórico do que fantasia: “Balanga, madama, balanga...”
Fazendo trinca com Duarte, estavam Eliana Macedo, como a namorada pobre, e Ilka Soares, como a grã-fina na qual o rapaz tentava aplicar o golpe do baú. A personagem-tipo de Dercy era Ofélia, tia de Eliana, que desconfiava da boa lábia do rapaz e tinha como parceiros de gags Catalano e, principalmente, Zé Trindade, no papel de Armando Tampinha.
Em A baronesa transviada, com roteiro de Watson Macedo e diálogos de Chico Anysio, Dercy é Gonçalina Piaçava Vassourada, uma manicure de sobrenome “indígena” que herda grande fortuna depois de ser reconhecida pela mãe, milionária e moribunda, graças a uma indefectível marca de nascença. Com esse recurso tão velho quanto o teatro popular, a novidade estava em ter o próprio cinema como tema. Gonçalina gasta o dinheiro da herança com a produção de um filme no qual é a atriz principal. Tanto a mãe quanto a filha são interpretadas simultaneamente por Dercy, num truque inventivo no cinema da época.
Em tão boa companhia, os cacos corriam soltos. Numa de suas crônicas, Carlos Heitor Cony relembra deliciado o que chama de o episódio das calças.3 Zé Trindade tinha que abrir uma porta e desvendar um segredo, mas se enganou e abriu a porta errada. Deu com os bastidores, onde havia um varal cheio de roupas, mas com a fala já engatada, nem pestanejou, emendando: “O grande mistério das... calças!” Provocou muitas risadas e o caco foi bem aproveitado. No ano seguinte, Dercy fez nada menos que quatro filmes: Feitiço do Amazonas, uma película que se extraviou e da qual só se sabe que apresentava pela primeira vez na tela a jovem cantora Angela Maria; Uma certa Lucrécia, calcado em paródia que a atriz já fizera no teatro; A baronesa transviada, com referências paródicas ao próprio cinema; e Absolutamente certo, ambientado em programa de auditório da televisão. Em Uma certa Lucrécia, o enredo se desenrola, para variar, no carnaval. Dercy aparece como costureira, tendo Odete Lara por assistente. Às vésperas da folia, as duas estão tão atarefadas com a confecção de fantasias, que a costureira cochila sobre a máquina e sonha que é Lucrécia Bórgia, vivendo desarrazoados episódios com as personagens de seu dia a dia. O que provoca o sonho é a fantasia carnavalesca de uma cliente, que pretende desfilar naquela noite no Teatro Municipal vestida de gôndola veneziana. O sucesso do filme foi grande e nesse ano virou mote popular a frase que a comediante repetia enquanto provava na cliente a roupa estapafúrdia que mais parecia
Absolutamente certo é o filme de estreia de Anselmo Duarte como diretor, além de intérprete. E de novo, Odete Lara faz aparição relâmpago, mas notável. Critica-se a cultura descartável da sociedade de massa, com um funcionário de gráfica que de tanto imprimir a lista telefônica da cidade, descobre que sabe seus dados de cor. Estimulado pelos amigos, entra num programa de perguntas e respostas na televisão, que lhe traz aventura, dinheiro e fama. Parodiava-se a mais recente febre brasileira com O céu é o limite, primeiro programa televisivo do gênero no Brasil, apresentado desde 1955 pela TV Tupi. Anselmo constrói o filme não mais como chanchada, mas já com toques românticos e de aventura, para se aproximar do cinema americano, que depois do lançamento mundial de The rebel, traduzido no Brasil por Juventude transviada, passara a focar o comportamento dos jovens. Dercy, no papel secundário de Dona Bela, futura sogra do protagonista, desincumbe-se do fraco contraponto cômico, inaugurando um novo gênero de encenação. Absolutamente certo, que não era mais musical brasileiro, mas não deixava de contar com coreografia de Ismael Guize e orquestração de Enrico Simonetti, foi um protótipo dessa mescla de fontes e gêneros, ao qual já estava acostuma-
3 CONY, Carlos Heitor. O grande mistério das barbas. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 fev. 2003, Ilustrada, p. E16.
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do o público brasileiro. Apegava-se à música tanto para fazer humor, quanto para introduzir inovações rítmicas. Se Dercy ficava em destaque com um número bufo no qual tocava trombone e cantava Jura, de Sinhô e J. B. Silva, não faltava à fita também o pioneirismo do primeiro rock brasileiro – o Enrolando o rock, de Betinho e Heitor Carillo, inspirado no antológico Rock around the clock, de Bill Halley and his comets. Dele se incumbiu o próprio Betinho, filho de Josué de Barros, descobridor de Carmem Miranda, e o curioso é que a sanfona também fazia parte de sua ainda brasileiríssima banda de rock. Rodado na Vera Cruz e elevando o cinema às pretensões de qualidade e internacionalização, o filme deu a Anselmo Duarte e Simonetti o prêmio Saci de 1957 pela composição e roteiro. Anselmo também ganhou o prêmio Governador do Estado pela criação de Zé do Lino, o linotipista que depois de quinze minutos de fama, volta decepcionado para os braços mais estáveis da recatada noiva de subúrbio. Resgatava-se assim a distância entre a vida e as sedutoras imagens da televisão, a grande novidade da época. O cinema aproveitava para afirmar sua superioridade sobre esse novo meio, mas consagrava a cultura de massa.
uma farsesca inversão: Zezé surpreendentemente aparece como Dona Melita, a patroa, descendente dos barões de Erva Seca e representante da falida, mas ainda emproada aristocracia rural do país, e Dercy é a empregada que vem da fazenda mineira da família para servi-la na cidade. Em Minervina, mas também em Cala a boca, Etelvina, do mesmo ano e mesmo diretor, a doméstica é sempre mais esperta do que os patrões. Suplanta sua santa ignorância com tal vivacidade e inteligência, que dá muito a pensar sobre as potencialidades da energia popular. E ainda sempre acaba bem na fita, pois sua espontaneidade prática e concreta se revela muito mais racional e sensata do que as teorias sociais ou morais que a rodeiam. Nessas películas, a retórica popular é plenamente aproveitada, mostrando que a estranheza inicial com o veículo já foi superada. A comediante usa
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De volta à Cinédia, em 1958, Dercy estoura as bilheterias com A grande vedete, de Watson Macedo. Numa alegoria ao próprio teatro de revista, faz o papel de Janete, uma vedete que se acha ultrapassada, mas quando volta aos palcos percebe que jamais foi esquecida pelo público. O tema é a decadência da atriz e do gênero, mas o glamour e o otimismo são do auge do teatro de revista. Como nos velhos tempos, Dercy encarna a antivedete, parodiando estrelas que levavam muito a sério suas plumas e paetês. O ano de 1959 é da chanchada desbragada e acima de quaisquer sentimentalismos. Inaugura-se o filão das domésticas trapalhonas e engraçadas, na rota do criado cômico do teatro popular, que Dercy e Zezé Macedo foram as primeiras a explorar no cinema. Zezé, antes mesmo de Dercy, tanto que quando foi feito Minervina vem aí, de Eurides Ramos, sua figura já estava associada à personagem de criada, o que permitiu ao filme
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Dercy contracena com Evelyn Rios em Entrei de gaiato (1959), de J.B. Tanko. Correio da Manhã
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e abusa da gestualidade, com torções de braços e mãos, relacionando-se com o mundo principalmente através do corpo, que completa e compensa as deficiências de abstração da oralidade. Gestualidade e verbalização formam um continuum de trocadilhos e sugestões, compondo gags tanto sobre a rusticidade do interior, onde de vez em quando um mata o outro, mas tudo na calma (Minervina vem aí), quanto sobre a sofisticação artificialmente letrada das camadas urbanas. Com idioleto empolado, no qual aplicam – e mal – vocábulos difíceis, não só para se apropriar rapidamente da linguagem dos patrões, mas ainda para mostrar o quanto essa é excessiva e pouco funcional, Minervina e Etelvina vêm às telas para fazer rir das defasagens de instrução formal de sua classe, mas também das defasagens éticas e morais da classe dominante, à qual, porém, não se furtam a associar-se quando convidadas. No caso, obviamente, esse convite se dá não através de conivências desonestas, mas de acordos lícitos, como o casamento. Reitera-se, com isso, o mais tacanho universo feminino da época e garante-se à sociedade que não há fronteiras para evoluções sociais. Com texto de Armando Gonzaga, Etelvina viera do teatro, mais exatamente da Companhia Procópio Ferreira. Logo, era de boa cepa, capaz de satisfazer diferentes classes. O que não a livra de acabar em uma boate, com muitos números musicais e muito humor, exatamente como também ocorre com Minervina. Em Cala a boca, Etelvina, reaparece o rockeiro Betinho, dessa vez com nova banda ou “conjunto”, como se dizia à época – os Golden Boys, cujos componentes eram tão jovens que a cena teve que ser externa, não em ambiente de boate. Também há um bom jogo metalinguístico com o próprio Minervina vem aí, pois Zezé Macedo é quem substitui Dercy como criada quando sua personagem fica noiva do tio rico do patrão e ganha status. Do mesmo ano é Entrei de gaiato, filme de J.B. Tanko e Chico Anysio, com Zé Trindade novamente como parceiro da comediante. Dercy faz Anastácia da Emancipação, viúva, fazendeira
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paulista de café; Zé Trindade, o coronel Jaboatão, fazendeiro baiano de cacau. Encontram-se no Hotel Palácio, no Rio de Janeiro, em pleno carnaval. Estão lá como turistas, mas na verdade procuram milionários otários para aplicar o golpe do baú e caem um na armadilha do outro. As melhores gags se dão, obviamente, na boate do hotel, onde Grande Otelo apresenta o show e também comparece como vedete, tal como fizera em Está com tudo e não está prosa, de 1949, no Teatro Recreio. O destaque fica para as paródias musicais: Zé Trindade canta um sucesso de Sílvio Caldas e Dercy responde à sua moda com Castigo, arrasando o repertório “de fossa” de Maysa. Apesar do elenco de peso, com Evelyn Rios, Roberto Duval, Marina Amaral, Grijó Sobrinho, Chico Anysio e Procopinho, as piadas são desgastadas e há trocadilhos pouco inventivos, com Anastácia dizendo ao apresentar a sobrinha ao coronel: “É Elisa, mas não alisa!” E durante as filmagens, quase inviabilizando o projeto, Dercy e Zé Trindade brigaram feio, este chegando a puxar um revolver para a atriz que, furiosa, caiu de pancada sobre o ator e lhe arrancou a arma.4 Em 1960 vieram duas chanchadas, mas também um melodrama, este felizmente de bom ajuste cômico. Dercy fez Só naquela base, de Ronaldo Lupo, e A viúva Valentina, além de uma adaptação de Dona Violante Miranda para o cinema. Em A viúva Valentina, de Eurides Ramos, baseada em roteiro de Alex Viany, tantos eram os cacos que Dercy chegou a marcar exatamente a data da cena ao dar o endereço da personagem para
4 KHOURY, Simon. Bastidores: Dercy Gonçalves, Rubens Correa, Suely Franco, Renato Borghi. Rio de Janeiro: Letras e Expressões, 2000. p. 140.
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um médico que chamara ao telefone: rua Dois de Dezembro de 1960. A estrutura é simples e simétrica, com dois sócios de empresa ocupando salas exatamente iguais, com duas secretárias, uma morena, outra loira, servindo a cada um na mesma recepção e com dois assessores com os mesmos objetivos – comprar as ações que faltavam para desfazer essa incômoda situação de igualdade. Dercy é justamente a viúva costureira a quem pertencem tais ações, mas nem sabe que é herdeira. Como a empresa é paulista e a viúva carioca, aproveita-se para mostrar no trânsito a São Paulo industrial e progressista e o Rio de Janeiro ainda bucólico e sossegado, com vilas de construção portuguesa nos subúrbios e o Corcovado como pano de fundo. Do elenco fazem parte Herval Rossano, Mara di Carlo, Wilson Grey, Jayme Costa e Francisco Dantas, e como não podiam faltar, as cenas musicais mostram a famosa boate carioca Assirius, onde se exibem o Trio Irakitan e Nelson Gonçalves. As gags são inteligentes e a comediante está à vontade no papel da viúva inocente, mas matreira, um dos personagens mais simpáticos de Dercy no cinema.
enxerida”. Trata-se da história de um jovem e honesto fiscal da Receita Federal, casado com uma bela mulher – mais uma vez Odete Lara – que não se conforma com sua probidade. E a comediante é justamente a ex-criada do casal, que trabalhando na casa de um empresário fraudador de impostos, é incumbida por este de subornar o antigo patrão. Vence a honestidade, mas até lá a criada deita e rola com os corruptos que dependem de sua mediação.
O enredo mistura miséria nativa com contrabando internacional e tráfico de drogas, sem se deter nessas questões senão para explorar comicamente seus absurdos. Rodado num lixão da Vila Brasilândia, tem São Paulo como pano de fundo e mescla paisagens da periferia com largas tomadas de ruas e avenidas movimentadas do centro, como o Viaduto do Chá e o Túnel Nove de Julho, além de cenas de corridas de carro pela Rodovia Anhanguera. Conta a história de Dona Bisisica, proprietária de uma butique chique da cidade, que para agradar uma cliente, vai ao porto de Santos comprar uma estatueta Ming trazida num iate japonês. Em clima de aventura e suspense,
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Dercy e o diretor, ator e escritor Abílio Pereira de Almeida, autor da peça Dona Violante Miranda (1958), adaptada para o cinema. Correio da Manhã
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Com Milton Carneiro, Odete Lara, Oswaldo Loureiro, Herval Rossano, Míriam Pérsia, Moacyr Deriquem e outros, Sonhando com milhões faz parte da série de filmes de Dercy como “doméstica
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Segue-se a Sonhando com milhões quase uma década sem filmes de Dercy, que passou a se dedicar à televisão. Reapareceu em Se meu dólar falasse, de Carlos Coimbra, uma neochanchada das mais completas em plena década de 70.
Em Dona Violante Miranda repetiu-se um sucesso de teatro, apenas substituindo Palmerim Silva por Elísio Albuquerque, como parceiro cômico de Dercy. Ponto alto ainda é a paródia literária inserida no discurso de casamento da ex-cafetina, recitando entre as “pupilas” o poema Meus oito anos, de Casimiro de Abreu. Do início da década de 60 são Com minha sogra em Paquetá, de Saul Lachtermacher, e Sonhando com milhões, também de Eurides Ramos. No primeiro, duas famílias rivais e vizinhas decidem passar o dia em Paquetá, e o que ali se desenrola faz do filme uma versão diluída e suburbana de Romeu e Julieta, como os próprios personagens observam em um diálogo. O segundo é uma adaptação do texto teatral A moeda corrente, de Abílio Pereira de Almeida, que dessa vez critica a corrupção do empresariado nacional.
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anunciado já na abertura do filme com trilha sonora da série agente 007, mete-se em homérica enrascada, pois a estatueta transportava drogas. O pior é que o dinheiro recebido para a realização da transação fora jogado por descuido no lixo, junto com as caixas vazias de sua loja, e vai parar num lixão. A partir daí, Bisisica, ajudada pela filha e o namorado desta, começa uma perigosa campanha para recuperá-lo. Por um lado, tem a máfia oriental cobrando-lhe a dívida; por outro, um grupo de mendigos que vive do lixão e encontra os dólares. O enriquecimento repentino dessa controversa “comunidade” marginalizada é, portanto, um segundo núcleo narrativo. E são divertidíssimas as proezas dos novos ricos Tiziu, um mendigo sambista, feito por Grande Otelo; Comendador, um mendigo refinado, de luvas, colete, chapéu e vernáculo empolado, protagonizado por Borges de Barros; Profeta, um mendigo filósofo e anticapitalista interpretado por Sadi Cabral; além do avarento Zé Gaveta, feito por Roberto Ferreira, e da rebelde e malcriada Catifunda, interpretada por Zilda Cardoso. As melhores cenas são, novamente, as de uma boate hippie chamada Paz e Amor, onde os mendigos endinheirados se fartam com um jantar lisérgico e ao ritmo alucinante da banda Blow-up, Grande Otelo encarna Jimi Hendrix e Catifunda, Janis Joplin. Atirando para todo lado e parodiando também o gênero western spaghetti de O dólar furado, o filme ainda tem cenas que se desmancham, rodando a película ao contrário e dando chance de recontar a história, caso essa desagrade aos protagonistas. Na cena final, por exemplo, na qual a princípio todos morrem, Grande Otelo protesta, recusando-se a tal fim depois de ter trabalhado tanto pelo cinema nacional. Rebobina-se a fita e todo o elenco renasce. Após essa cinematográfica morte/renascimento, há ainda um banquete paródico de contorcionismo metalinguístico capaz de dar inveja a qualquer hermética linguagem de vanguarda. Todos os personagens se juntam para comemorar e assistir pela TV a tão ambicionada entrada de Bisisica no mundo da fama, pois ela é homenageada como personalidade feminina da semana no programa televisivo Dercy em família por haver desmantelado uma quadrilha internacional. Abre-se então o campo fotográfico e se desnuda o set, com os
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bufões plenamente identificados com seus atores. De visão coletiva e integral do começo ao fim, Se meu dólar falasse, um filme feito às pressas por Carlos Coimbra para aproveitar o fim de um contrato curto e mal aproveitado entre a atriz e a Cinedistri, de Oswaldo Massaini, coloca o melhor do humor revisteiro, radiofônico e chanchadeiro na era da televisão. Com esse trabalho, Dercy praticamente encerra sua carreira no cinema comercial. Apesar de participar, em 1971, de Cômicos e mais cômicos, documentário de Jurandyr Passos Noronha, só volta a fazer cinema na década de 80, mas estava, então, com mais de setenta anos e já era a grande dama às avessas da cena nacional. Os convites tinham mais o intuito de homenageá-la, do que fazê-la trabalhar duro. Assim, aparece faceira e impossível em Bububu no bobobó, de Marcos Farias, um filme que também reconstitui o ambiente do teatro de revista. Tendo à frente do elenco Nelson Xavier e Ângela Leal, como pai e filha que decidem retornar ao gênero na tentativa de salvar um teatro de sua propriedade, o filme aproveita para trazer à tela toda a velha guarda revisteira: Carvalhinho, Silva Filho, Colé, Ankito, Wilson Grey, Mara Rúbia, Silveirinha, Eliane Macedo e muitos outros. É chanchada com memória de palco popular e procura honrar festivamente suas fontes. Em 83, Dercy faz uma participação especial no infanto-juvenil O menino do arco-íris, de Ricardo Bandeira, surpreendentemente sobre a infância de Jesus Cristo. Estranho demais, com o menino Jesus perambulando por Jerusalém atrás do bandido Barrabás para avisá-lo que os romanos estavam em sua caça, foi estrondoso fracasso. Com Dercy estavam Paulo Autran, Dionísio de Azevedo, seu velho amigo Sadi Cabral, Lima Duarte, Antonio Fagundes, Moacir Franco, Flora Geny, Consuelo Leandro, Sérgio Migliaccio, José Vasconcelos e Eva Wilma. Na década de 90, reaparece em Oceano Atlantis, de Francisco de Paula, com Stephan Nercessian, Walmor Chagas, Antonio Pitanga, Nuno Leal Maia e Antonio Abujamra. Vivificava a memória das artes cênicas no país e sua passagem-relâmpago
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pela tela teve, portanto, enorme densidade referencial. Razão pela qual recebeu no 26º Festival de Cinema de Brasília, em 1993, seu primeiro prêmio cinematográfico. Por ironia do destino ou por pura piada da vida, que não se livra tão facilmente de heranças ideológicas e de preconceitos sociais, na categoria secundária de melhor atriz coadjuvante.
desentendimentos entre autor e roteirista, acusado de ter descaracterizado o texto, alternando cenas leves e engraçadas com drama denso e dando tom opressivo ao que deveria ser apenas uma tragicomédia pós-moderna.
Por isso, talvez também se possa vislumbrar um recado sutil na ponta que Dercy faz no filme. Sem peruca e quase sem maquiagem, representando uma velha senhora que comicamente surpreende e desarma um assaltante, a atriz centenária, mas ainda na ativa, parece avisar: cuidado, a fragilidade desse cinema é só aparente.
Cena do filme Se meu dólar falasse (1970), de Carlos Coimbra. Correio da Manhã
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Em 2005, a atriz foi, enfim, oficialmente homenageada pela Academia Brasileira de Cinema, por ocasião da entrega do Prêmio TAM.
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Boa parte da crítica rechaçou o peso do filme; outra chegou a falar em certa “aura beat” na abordagem niilista do submundo, acompanhada de trilha sonora assinada por Bortolotto e capitaneada por sua banda, Bêbados Habilidosos, e por bandas nativas independentes, como Texas Dream, Neblina, Íris, Patife Band, La Carne e outras. O fato é que, se o filme aponta para as contradições de uma sociedade que não consegue sequer emancipar-se, seu elenco congraça três gerações de cinema – a mais velha com a própria Dercy Gonçalves; a segunda com Paulo César Pereio, Marília Pêra e Jonas Bloch; a novíssima com Leonardo Medeiros, Milhem Cortaz, Maria Manoela e Maria Luísa Mendonça – e assinala o ato de resistência que sempre foi fazer essa indústria e arte no país.
Em 2000 surge na cena final do curta Célia e Rosita, de Giselle Mello, interpretado por Cleyde Yáconis e Dirce Migliaccio, duas atrizes tão carismáticas e simbólicas quanto ela, mas de tendências ou escolas opostas. Mesmo a última, que tornou célebre a graça impertinente da boneca Emília na segunda versão televisiva de O Sítio do PicaPau Amarelo, nunca teve a sua audácia popular e estava há anos-luz de seus descomedimentos. Pois numa só cena e com uma só fala, Dercy dá conta, no filme, de toda essa história. Logo após o convite sensacionalista da revista Penthouse para posar nua, aparece deitada de costas numa maca em um ateliê de tatoo, fazendo uma tribal no dorso. Enquanto lê uma revista que conta as peripécias do próprio filme, a história de duas velhas senhoras que deixam de lado as depressões da idade e saem pelo mundo aproveitando a vida, comenta irônica: “Mas que idade elas pensam que têm?!” E está dito tudo.
Três anos depois, em 2008, ano de seu falecimento, fez sua última aparição no cinema. Esta foi uma ponta em Nossa vida não cabe num Opala, adaptação de texto underground do paranaense Mário Bortolotto, Nossa vida não vale um Chevrolet, já adaptado anteriormente para o teatro com grande sucesso. Conta a história da família Castilho, que não consegue evitar a decadência depois da morte do pai. Sendo o primeiro longa-metragem de Reinaldo Pinheiro, o filme tem como roteirista o renomado Di Moretti, de Cabra cega. Como todo bom cinema brasileiro, enfrentou muitos percalços para chegar às telas. Entrou em embate com a General Motors pelo uso de uma de suas marcas no título, a Chevrolet, que acabou sendo trocada por Opala, um produto fora de linha. Também gerenciou
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Meize Regina de Lucena Lucas Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. Autora de Imagens do moderno: o olhar de Jacques Tati (Annablume, 1998).
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Humor e os tempos modernos No nascedouro do cinema, o mundo urbano constituiu tema recorrente e fértil para o humor. Ali, no discurso visual da falta de ajuste do homem ao seu novo meio, faziam-se presentes os vetores da modernidade: a velocidade, a transformação corrente da natureza e dos objetos, a mudança na concepção do tempo. O corpo do ator, em interação ou desajuste com o meio, constituía o elemento gerador do humor. Caso de Harold Lloyd, Buster Keaton e mesmo de Jerry Lewis anos depois. Jacques Tati inserese nesta mesma linhagem, mas seu personagem Monsieur Hulot, interpretado pelo próprio Tati, figura neste universo do humor de uma maneira singular. Portando um chapéu tirolês, cachimbo, capa, guarda-chuva que nunca é por ele aberto (com exceção do final em Trafic), calças curtas que deixam à mostra meias listradas e gravata borboleta, Monsieur Hulot, desde sua primeira aparição em Les vacances de Monsieur Hulot, em 1952, manteve o mesmo vestuário, modos e hábitos nos filmes seguintes. O nome,1 que o consagrou na França, manteve-se em todos os demais países em que ficou conhecido. O próprio “Monsieur” que acompanha o nome do personagem, somado às características antes citadas, confere-lhe um distanciamento que o retira de uma esfera estritamente cômica para torná-lo um ser banal, presente no cotidiano.
O personagem de modos polidos praticamente não fala, o que não significa que Hulot não mantenha comunicação com os demais personagens e com o espectador. Os filmes de Tati são filmes sonoros nos quais predomina uma economia de diálogos e uma riqueza de efeitos de sentido sonoro. No filme Mon oncle (Meu tio), de 1958, os habitantes de antiga e bucólica Saint-Maur encontram-se em frequentes conversas, incluindo Hulot, o que não ocorre no bairro moderno onde habita a família do personagem – sua irmã, casada com o dono de uma fábrica de plástico, e Gérard, seu pequeno sobrinho. Nesse espaço moderno, predomina a falta de comunicação entre seus elementos, cujo silêncio é interrompido pelo barulho das máquinas e equipamentos, tais como a televisão, a enceradeira, o fogão, os portões, o carro.
O ator, diretor e roteirista francês Jacques Tati (1907-1982). Correio da Manhã
À volta de Hulot, Jacques Tati constrói um mundo que dá sentido ao seu personagem – seja no ambiente urbano, do subúrbio ou da praia, do trabalho, do lazer ou do lar, com sua família, seus amigos ou colegas – e à compreensão do mundo em que ele, Tati, vivia. Quando uso o termo construir, emprego-o no sentido literal. Em estúdios ele construiu casas, fábricas, ruas e até mesmo um aeroporto, o de Orly, para comportar seu olhar duro sobre a contemporaneidade. Visualizações do moderno Jacques Tati focaliza, com especial ironia, o “ser moderno”, essa ordem do dia que aos poucos se
1 Laurel e Hardy, conhecidos no Brasil como o Gordo e o Magro, são Stan e Ollie nos Estados Unidos, e Dick e Doof na Alemanha; o Carlitos de Charles Chaplin atende por Charlot na França. O mesmo procedimento de alteração ocorre com grande parte dos personagens cômicos.
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Cena de Meu tio (Mon oncle, 1958), de Jacques Tati. Correio da Manhã
foi fazendo presente e imperativa nas diversas dimensões da cultura e sociedade ocidentais. A adoção de uma perspectiva moderna implicava o abandono de hábitos, costumes e comportamentos. A sociedade industrial trazia consigo não somente novos objetos, mas também valores civilizatórios, cuja repercussão pode ser percebida nos discursos da imprensa, da política, das artes e da publicidade. A materialidade desses tempos tem sua visibilidade na enxurrada tecnológica destinada aos mercados de consumo compostos pelas massas urbanas que se expandiam em ritmo vertiginoso. O rádio, o telefone, o automóvel, as máquinas de lavar, os alimentos enlatados, o cinema, os modernos fogões e os sistemas de aquecimento, os refrigeradores, as linhas de montagem, a máquina de costura, o aspirador de pó – e muitos outros elementos que eram lançados no mercado – mudaram a paisagem urbana. Se a cidade adquiria novas feições, o mesmo ocorria dentro dos lares, onde novas espacialidades, relações e materialidades tomavam forma. Para tanto, novos corpos eram forjados na experiência cotidiana da cidade. Ora, é dessa visualidade e materialidade que Tati arranca os elementos que compõem seu mundo. Ao fazê-lo, orquestrando-os junto aos persona-
gens e sons, produz uma fissura em nossa compreensão em relação ao mundo moderno.2 E já que não há objetos fora de seu uso pelos homens e de sua disposição no espaço, Tati se coloca como um observador atento desses usos e das relações humanas que são então constituídas. Mas como o mundo é plural, coloca em tela as nuances do comportamento humano. Em Mon oncle, a tecnologia determina a diferença entre os espaços: a bucólica Saint-Maur onde mora Hulot e o bairro moderno onde mora sua irmã e família, trabalha Monsieur Arpel e estuda o pequeno Gérard. Tati joga com a ausência e a presença da tecnologia e a expressa por meio da linguagem cinematográfica. A caracterização dos espaços é mostrada com riqueza de detalhes, sejam cenográficos, sonoros ou na composição dos personagens e de suas relações entre si e com o espaço. A caracterização evidencia organizações sociais distintas, que fornecem o referencial para pensar seu olhar sobre a modernidade. A ênfase é dada na presença da tecnologia no cotidiano e de como ela condiciona sujeitos, no espaço da casa, da rua ou da fábrica. A câmera evidencia os condicionamentos exigidos para os corpos. Na construção desses dois espaços, que podem ser entendidos como dois mundos, um arcaico fadado ao desaparecimento, e um moderno que avança e triunfa, ele lida com as memórias e as experiências comuns a ele e ao espectador. O mundo do passado tem uma imagem própria e foi com ela que ele trabalhou. Em relação ao mundo moderno, dele destacou alguns elementos do seu presente e, a partir daí, compôs uma imagem que escapa aos limites temporais daquele presente. Para retratar sua época, Tati colocou em choque as divergências entre dois tempos – o moderno e o arcaico – representados pela configuração de dois espaços contrários. As tensões presentes nesse filme, assim como nos demais, se encontram diretamente relacionadas com o espaço no qual se desenrola a história. De Jour de fête a Trafic, pode-se perceber, pela delimi-
2 DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003.
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à falência, pois construiu uma cidade inteira e, inclusive, o aeroporto da capital francesa, vemos uma Paris que em nada se distingue de outras cidades: são as mesmas cores presentes em lojas e ruas – o predomínio das cores frias e primárias ligadas ao aço e aos plásticos –, as linhas retas que conformam espaços e objetos e direcionam o movimento dos corpos.
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O espaço em que se desenrolam os filmes se modificou, mas a perspectiva se manteve constante: o olhar arguto sobre a sociedade industrial, com seus valores de bem-estar, conforto e funcionalidade, e sobre a paisagem emergente nestes tempos. E numa sociedade que valoriza o indivíduo, princípio da ordem liberal, a individualidade pouco conta. O humor de Jacques Tati Observador atento e meticuloso, Tati colhe com uma sensibilidade aguçada os hábitos, costumes, comportamentos, experiências, gestos e situações inusitadamente cômicas do dia a dia. Ou seja, nutre-se da banalidade do cotidiano. Em suas
A superprodução Tempo de diversão (Playtime, 1967), dirigida e estrelada por Tati (o primeiro à esquerda). Correio da Manhã
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tação do espaço, o processo de desaparecimento de um mundo antigo misturado a resíduos de uma ruralidade ancestral em favor do crescimento das grandes cidades. No primeiro filme, Jour de fête (Carrossel da esperança, 1947), na pequena Saint-Sévère, o carteiro François, interpretado por Jacques Tati, sofre com as comparações relativas à modernidade dos correios dos Estados Unidos; a praia de Les vacances de Monsieur Hulot (As férias do Senhor Hulot, 1953) é apenas um lugar de férias, no qual as pessoas não conseguem se desligar dos costumes da cidade; em Mon oncle, o antigo já sofre o processo de demolição,3 em Playtime (1967), a antiga Paris é apenas um reflexo nas vidraças de modernos prédios; Trafic (As aventuras do Senhor Hulot no tráfego louco, 1971) é tão somente um itinerário a ser percorrido, em que o campo já está separado da cidade e distante da vida. Além disso, o motivo da viagem é levar um carro para um salão de exposição, mais precisamente um camping-car, onde prevalece, para aquele que pretende voltar ao campo, o conforto da vida moderna – cama, televisão, água aquecida... Assim, vemos que o passado com suas singularidades foi desaparecendo de seus filmes. Em Playtime, filme que o levou
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3 Nas sequências finais do filme, quando Hulot é transferido para trabalhar em outra fábrica, o carro de Arpel o conduz por ruas cujas casas estão sendo demolidas.
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obras não há uma trama em torno da qual o filme se estruture definindo seu eixo narrativo. São as férias em um balneário em Les vacances de Monsieur Hulot, um tio às voltas com seu sobrinho e sua irmã que busca lhe arrumar emprego e esposa em Mon oncle, um grupo em excursão por Paris em Playtime, um automóvel em exposição em Trafic. Segundo Tati, não seria preciso um grande personagem cômico para que se estabelecesse uma situação cômica. O mundo por si só teria seu lado cômico. Sendo assim, ao chegarem à tela, os fatos observados por ele são colocados e vivenciados em situações verossímeis. Várias cenas dos filmes são situações banais. O feirante que tenta ganhar uns trocados a mais alterando a balança, o gestual e o falatório de um vendedor para convencer seu cliente, as traquinagens de crianças, brigas no trânsito, uma festa e seus incertos desdobramentos. A adoção de um ritmo lento e o uso da câmera fixa realizando tomadas de grande distância, nas quais o conjunto da ação é reunido numa única imagem, permitem ao espectador se deter no que se passa, perceber os detalhes, familiarizar-se com o ambiente em que se desenrolam as ações, dar-se conta de que, por vezes, há mais de um elemento do qual se possa rir. Ele se reconheceria e passaria a rir de si mesmo, vendo-se projetado na tela. No campo da comédia, a tendência geral até aquela época era a de os personagens cômicos vivenciarem situações por vezes estapafúrdias ou possuírem características que não lhes conferiam existência no mundo real. Na filmografia de Tati, não são as pessoas que são cômicas; elas, no mundinho cotidiano, vivenciam o cômico em suas rotinas. Assim, o espectador se dá conta do absurdo e até mesmo do ridículo de algumas situações presentes ordinariamente em sua vida. Em Trafic, Tati constrói uma sequência inteira de gags a partir da observação do comportamento dos motoristas no trânsito. Seguindo esta mesma lógica, Hulot não é o objeto central das atenções da câmera (todos os personagens são tratados igualmente) e também não concentra toda a ação, como faziam Laurel e Hardy ou Carlitos. Numa cena de Playtime,
por exemplo, a câmera enfoca quatro eixos de ação distintos por meio do enquadramento que focaliza um prédio e seus quatro apartamentos simultaneamente. Cabe ainda uma palavra sobre o personagem interpretado por Tati. O silêncio ganha no personagem uma de suas características mais marcantes – raramente pronuncia uma frase completa; mesmo seu nome, quando dito no hotel onde se hospeda no filme em que aparece pela primeira vez, como se apresentando também ao público, não passa de um balbucio quase inaudível e incompreensível, já que dificultado pelo permanente cachimbo em sua boca – associado a uma mímica primorosa4 que expressa o comportamento do personagem em face das diversas situações. Sem limitar a mímica à expressão facial, Tati trabalha com todo o movimento do corpo, em trejeitos geralmente desengonçados, o que confere ao mundo à sua volta um ritmo próprio. O mundo em que se movimenta não se destrói à sua passagem, como ocorre com os cenários dos filmes de Jerry Lewis ou de Laurel e Hardy, segundo a tradição do slapstick, nem tem suas leis subvertidas, como no mundo em que Carlitos está presente. As relações estabelecidas entre os personagens e entre estes e os demais elementos fílmicos geram um universo no qual Hulot ganha sentido (bem como seu discurso); ele só é reconhecido como personagem cômico e lírico num mundo tatiano. A gag é um produto direto dos personagens; portanto, só possui sentido quando percebida naqueles personagens específicos. O personagem Hulot, mesmo neste mundo, é incapaz de deflagrar uma situação cômica ou uma gag. Ele é um catalisador das situações nas quais estabelece o cômico e se vê envolvido nelas. Se Hulot não existe sem seus pares, alguns sobressaem em sua filmografia: as crianças e os cachorros. Presentes em vários de seus filmes, mas cujo destaque maior encontra-se em Mon oncle, eles representam a liberdade. Movem-se entre espaços diferentes, transgridem e constituem
4 A mímica foi desenvolvida desde os tempos em que Tati praticava esporte profissionalmente, experiência que posteriormente levou aos palcos como artista do music hall.
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Conclusão Inversamente ao cinema cômico dos primeiros anos, em que a euforia da modernidade era vislumbrada nas aventuras em que se envolviam os personagens e na imagem das estrelas que os interpretavam, vistas pelos espectadores de seu tempo como seres ideais que vivenciavam, na vida e na tela, o pulsar dos novos tempos,5 Tati já colocava os problemas advindos da modernidade. Hulot em seu grande corpo, vacilante e sem direção, indiferente ao tempo e à cadência exigida pela vida moderna, deu ao seu cômico um tom amargo e crítico. Por vezes, permitiu-se ainda um certo lirismo, como no final de Playtime, em que o presente dado pelo personagem à jovem inglesa que deixa Paris anuncia a imagem a ser vista: as luminárias das estradas a surgirem na forma de pequenas flores. E, ao final, a estrada transformase num gigantesco carrossel. Mas a passagem de Hulot sendo carregado pela multidão na estação de trem e sendo excluído do mundo dos Arpel e da convivência com o sobrinho, no final de Mon oncle, é igualmente impregnante como imagem. Hulot é um inadaptável à sociedade. Não se integra ao ambiente de competição, controle, normas, atualização de novos princípios e ajuste a novos objetos: sua vida não transcorre em consonância com a emergência do novo em todas as suas dimensões. Seu enorme corpo se move tal como num balé por entre os cenários e os personagens, alheio ao ritmo de cada espaço e seu silêncio, adotando perante as situações posturas expressas a partir do seu movimento: curiosidade, hesitação, inquietação e, principalmente, a polidez que orienta a maior parte das relações. A matriz discursiva
pela qual o personagem expressa seu lugar neste mundo passa pelo corpo e pelo seu silêncio: o silêncio não fala, ele significa e, portanto, tem um sentido (não confundir o não-dito com o implícito).6 E é nesta perspectiva que Hulot se torna o enunciador de uma visão da condição humana em nossa sociedade. A curta filmografia de Jacques Tati representa, por um lado, o esforço em fazer uma obra própria, na qual era diretor, produtor, ator e roteirista. O que constitui em si mesma uma rota contrária à da modernidade que fraciona a produção, separa o sujeito de seus objetos e exige a produção contínua. Por outro lado, ao analisar os reveses financeiros de Tati, que limitaram seu trabalho, podemos nos perguntar o quanto seus filmes já não encontravam público para ver o que dizia.
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Jacques Tati dirige os atores em Meu tio (Mon oncle). Correio da Manhã
É comum escutar que o humor envelhece. No caso de Tati, a frase não se aplica. Seus filmes conduzem em seu ritmo o espectador a rir de – e refletir sobre – o que está na tela. E, por vezes, ainda o levam a rir de si mesmo.7
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uma possibilidade de resistência à moldagem do corpo pela tecnologia.
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5 KRÁL, Peter. Le burlesque ou morale de la tarte à la crème. Paris: Stock, 1984. 6 ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Ed. Unicamp, 1995. 7 Outras referências bibliográficas: BARRÉ, François et alii. Cités-cinés. Paris: Éditions Ramsay/Grande Halle, 1987; BELMANS, Jacques. La ville dans le cinema. Bruxelas: Éditions A. De Boeck, 1977; CHION, Michel. Jacques Tati. Paris: Cahiers du Cinéma/Seuil, 1987; LUCAS, Meize Regina de Lucena. Imagens do moderno: o olhar de Jacques Tati. São Paulo: Annablume, 1998.
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Edmilson Felipe da Silva Doutor e mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP.
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Oscarito e Violeta Ferraz integravam o elenco de O golpe (1956), filme dirigido por Carlos Manga. Correio da Manhã
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Eliana, a grande estrela da Atlântida, atuou nos filmes Nem Sansão nem Dalila (1955), Guerra ao samba (1956) e Vamos com calma (1956), de Carlos Manga. Correio da Manhã
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Carlos Manga e o universo cômico das chanchadas
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Sônia Mamede, uma das atrizes de De vento em popa (1957), ao lado de Oscarito, Cyll Farney e a cantora Dóris Monteiro. Correio da Manhã
A vida de José Carlos Aranha Manga, ou simplesmente Carlos Manga, conforme sugeriu Luís Severiano Ribeiro Júnior, presidente da empresa Atlântida, foi profundamente marcada por um círculo de artistas que participaram ativamente do cenário cultural carioca das décadas de 1940 e 1950. Estudante de Direito, aos 19 anos visita pela primeira vez os estúdios Atlântida, sob influência de Cyll Farney, grande galã das chanchadas, e conhece Watson Macedo, cenógrafo e diretor na empresa cinematográfica, segredando a inesquecível experiência: Eu era um menino que fazia show de amadores apaixonados por cinema. Um dia, consegui a oportunidade de conhecer a Atlântida, que era a Hollywood do nosso cinema. Foi o Cyll Farney quem me levou,
e eu estava muito emocionado, porque ia conhecer também Watson Macedo. Então, eu esperava entrar num estúdio maravilhoso, uma sala com tapete vermelho, oito secretárias, e encontrar o Watson Macedo em uma mesa enorme, lindíssima, cercado de garotas de shortinho.1
Porém, encontrou-o em pessoa serrando um pedaço de madeira para um cenário, testemunhando a distinta realidade dos bastidores do cinema brasileiro. E assim, sua trajetória pelo cinema tem início, primeiro observando filmagens, depois manuseando equipamentos, mexendo nas lentes e aprendendo sobre enquadramentos, com menor remuneração do que as anteriormente recebidas. Sua primeira atuação acontece em 1952, como assistente de montagem de J.B. Tanko em Areias ardentes, e em Amei um bicheiro, com direção de Jorge Ileli e Paulo Wanderley. No ano seguinte,
1 SILVA, Edmilson Felipe da. Por uma história do riso: Carlos Manga e a chanchada no Brasil. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2001. p. 62.
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trabalha com José Carlos Burle no filme Carnaval Atlântida, e dirige dois números musicais: Alguém como tu e Ninguém me ama, de Antonio Maria, interpretados por Dick Farney. É a primeira vez, na história do cinema brasileiro, que a vinculação de um número musical à estrutura ficcional da chanchada acontece. A partir de então, fascinado por diretores como John Ford, Michael Curtiz, William Wyler, Robert Wise, Billy Wilder, Frank Capra, Rossellini, Antonioni, Godard, entre outros, considerados inimitáveis, e diante de personagens ilustres como o argentino Palitos, Stan Laurel e Oliver Hardy, Jacques Tati, Buster Keaton e Harold Lloyd, Carlos Manga inicia seu voo solo como diretor acompanhado por aqueles com quem aprendeu o ofício, entre outras personalidades importantes como Oscarito, Grande Otelo e Cajado Filho. Essas influências marcaram uma carreira de destaque na história do cinema nacional e, sobretudo, na produção das chanchadas que, sem sombra de dúvida, marcaram uma época de riso solto como espécie de abstração e relaxamento para os problemas pelos quais passava a sociedade. Abstração que, segundo Manga, não se limitou ao simples “fechar os olhos” para as dificuldades, como queriam alguns críticos, mas aliviar-se assistindo ingênuas histórias sendo contadas. O deslumbramento com o cinema hollywoodiano, suas homenagens, premiações, orquestras e muito glamour, tal como confessa Manga, promoveu uma intensa apropriação de linguagens em produções paródicas como Matar ou correr e Nem Sansão nem Dalila. Observa-se nesse período uma aproximação da produção brasileira com a linguagem norte-americana, pelos seus gêneros de filmes
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Watson Macedo, diretor de grandes sucessos da Atlântida, como Carnaval no fogo (1949) e Aviso aos navegantes (1950), entre outros. Correio da Manhã
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como: musical, western, policial, reconstrução de época, entre outros. Ela se dá pela expansão do capitalismo no que diz respeito ao domínio do sistema de produção e distribuição. No entanto, esse olhar para o trabalho estrangeiro com a inserção do deboche foi justamente a razão do sucesso junto ao público apreciador de produções chanchadescas, ganhando projeção, ainda que tenham tido pequena distribuição. Pode-se afirmar que o fato dos filmes serem feitos com certo grau de ironia e paródia não significava desvalorização, muito pelo contrário, exponenciava o tom de crítica. Em filmes como Nem Sansão nem Dalila ou O homem do Sputinik, constata-se a presença de muitas peculiaridades da situação nacional e mundial da época. Podemos entender que existe uma relação de amor e ódio entre o diretor Carlos Manga e o cinema americano, pois, ao mesmo tempo em que idolatra a filmografia norte-americana, reconhece as dificuldades impostas por ela às películas nacionais. Segundo o diretor, a chanchada nunca foi analisada da maneira justa como a época de ouro do cinema nacional, onde há a presença de um riso espontâneo, imediato, articulado ao jeito de ser do povo brasileiro. Ao trazer à superfície particularidades do povo brasileiro e sua expressão do riso, as chanchadas mostravam uma parcela da sociedade, homens de bem, simples, defrontados com a vida urbana, apolíticos, operários resignados e completamente ingênuos. Esse casamento entre a ingenuidade projetada nas telas e o modo de vida dos indivíduos dessa camada pouco privilegiada possibilita ainda uma análise interessante sobre os paradoxos da nossa sociedade. Paradoxo, pois comédia e
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política participam do mesmo cenário de comunicação, testemunhando o distanciamento entre o poder e o povo e as mudanças necessárias em suas vidas.
nos arquivos. Conta com depoimentos de Anselmo Duarte, José Lewgoy, Inalda, Fada Santoro, Adelaide Chiozzo, Cyll Farney, Norma Bengell, Eliana e Grande Otelo.
Nesse sentido, temos um riso ingênuo que escapa do raciocínio sério e circunspecto de determinados problemas, mas propicia o gozo e o relaxamento diante das agruras do dia a dia.
Unindo o recorte das entrevistas com várias cenas em tom de espetáculo, o filme se assemelha a Era uma vez em Hollywood, resultado de uma seleção de velhos musicais da Metro, reunidos para salvar as finanças da companhia.
A atmosfera daqueles anos, considerados ingênuos, permite uma dinâmica que aproxima um pouco mais a realidade carioca da época e indica um estilo de vida distinto. Distinção esta que se aproxima muito mais da relação produtor-público, enriquecendo as relações sociais numa interação de códigos e diálogos que permitiram captar o desenvolvimento constante da vida em sociedade. O discurso chanchadesco revela a participação de um jeito de ser do carioca, marcado não só pela presença de tipos específicos da sociedade brasileira, mas também por elementos atuantes na cultura de massa. A comédia brasileira ganha uma complexidade no que diz respeito às peculiaridades do povo brasileiro quando intercaladas a elementos culturais mais gerais. Em produções chanchadescas não faltavam objetos como perucas e outros acessórios postiços para disfarces, danças, mímicas e gestos caricatos. A seguir, traremos informações sobre alguns filmes do diretor em questão para fins de análise de seu universo cômico chanchadesco: O CÔMICO E A REALIDADE Nem Sansão nem Dalila – 1954 O homem do Sputinik – 1959 De vento em popa – 1957 Assim era a Atlântida – 1974
Estes filmes trabalharam de forma crítica e realista os problemas da época, tais como a política, o imperialismo ou a bomba atômica. O filme Assim era a Atlântida é um compósito dos principais filmes rodados pela empresa cinematográfica, poupados das chamas de um incêndio que vitimou os estúdios da empresa em 1952 e de outra intempérie, uma inundação em 1971
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O CÔMICO E A AVENTURA A dupla do barulho – 1952 Matar ou correr – 1954 Colégio de brotos – 1956 Garotas e samba – 1957 Pintando o sete – 1961 O golpe – 1955 O cupim – 1959
Manga traz para as telas a questão moral em personagens binários já conhecidos nas histórias do cinema, como o vilão e o mocinho em O golpe, apresentados respectivamente como o malicioso e o ingênuo, o rico e o pobre, o artista e o cidadão comum. Porém, sempre com uma comicidade ímpar que deflagra em riso certo. Já no filme A dupla do barulho, é trabalhada a questão racial, sempre muito recorrente, inclusive nos dias de hoje. O CÔMICO E O POLICIAL Esse milhão é meu – 1958 Os dois ladrões – 1960 Entre mulheres e espiões – 1962
Nessas produções a temática principal é a questão do roubo. Os artifícios utilizados são característicos do gênero suspense: disfarces, perseguições, sequestros e assassinatos. Nota-se que, tanto nos filmes elencados em O cômico e a realidade como em O cômico e o policial, há a presença incontestável do recurso à paródia, pois ele serve como forma de apresentar a vida como ela é a partir da imitação. Nesse sentido é que podemos pensar um momento crítico da história cultural do país, no que diz respeito à questão nacional, em que é notório o domínio das produções estrangeiras em nosso
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cinema, nos remetendo à condição de colonizados mediante uma ideologia dominante. São inúmeras as fontes paródicas encontradas nas chanchadas. Por exemplo, em Nem Sansão nem Dalila, paródia alegórica do filme Sansão e Dalila (1949), de Cecil B. de Mille, temos a presença de um professor maluco com uma máquina do tempo, sua mais nova invenção, noticiada em jornais, evento este que deixa curiosos todos os funcionários do Salão de Beleza Dalila.
a sátira faz menção às benfeitorias criadas pelo governador de Gaza, como a aposentadoria, o incentivo à produção de eletrodomésticos, a criação de feriado todos os dias do ano, exceto no Dia do Trabalho, ou a diminuição do pão e do preço do farelo.
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A história é sobre o barbeiro Horácio, interpretado por Oscarito, sujeito simples, desajeitado e distraído com tudo o que vê pelas ruas, sempre se atrasando para o trabalho. Ele é um típico “personagem de costumes”, conforme observa Antônio Cândido ao analisar a situação do romance no século XIX e início do XX, contrapondo-o ao “personagem de natureza”. Ao primeiro, atribui a qualidade de observador superficial, de fácil assimilação, enquanto que ao outro, há a necessidade de um aprofundamento obscuro da alma. Segundo o autor, é nesse personagem que se observa o processo fundamental da construção caricata que o leva à comicidade, ao caráter pitoresco, invariavelmente sentimental ou acentuadamente trágico.2 Os objetos ganham a cena quando metaforicamente assumem um papel que alimenta a crítica, como a peruca que assombrosamente vem substituir a cabeleira de Sansão. Uma sátira muito acirrada aos problemas brasileiros é trazida à tona quando o populismo e os discursos presentes lembram a gestão do então presidente Getúlio Vargas. Noutros momentos,
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O ator Grande Otelo foi uma influência marcante na carreira de Carlos Manga. Correio da Manhã
No filme O homem do Sputinik, a história retrata a vida precária de uma família do campo acompanhada dos acontecimentos gerais na política mundial. Anastácio, interpretado também por Oscarito, é um criador de galinhas, e sua esposa Deocleciana, interpretada por Zezé Macedo, vive a reclamar pela falta de atenção do marido. Após uma tempestade são surpreendidos por uma visita inusitada, o suposto satélite denominado Sputinik. As notícias divulgadas pelos jornais de que o Sputinik está com o casal se espalha, e Deocleciana acredita participar da high society ao descobrir que o satélite é todo banhado em ouro. Vemos nessa sátira a questão associada ao café, produto determinante nas questões econômicas do país naquela época. Os absurdos da Guerra Fria também são contemplados ao apresentar caricaturalmente os soviéticos escondendo suas garrafas de vodka em compartimentos secretos ou dentro da mesa. Ou ainda, quando Jô Soares, interpretando um americano, faz apologia ao refrigerante Coca-Cola mascando chicletes. Já para os franceses, Norma Bengell se apresenta como a Brigitte Bardot: sedutora, perfumada, modelo de exportação; finge se apaixonar por Anastácio ao exibir suas pernas e cantar para ele. Podemos observar nesse filme que a cultura estrangeira é representada debochadamente com o objetivo
2 CÂNDIDO, Antônio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1970. p. 62.
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de acentuar as diferenças a fim de atingir a comicidade. Ainda nesta linha, o filme: De vento em popa apresenta os personagens Chico (Oscarito) e Mara (Sônia Mamede), dois dançarinos a bordo de um navio esperando ansiosamente por uma oportunidade para se apresentar. Zezé Macedo é Madame FrouFrou, uma cantora lírica que também se encontra no navio. Sérgio (Cyll Farney) é um músico, boêmio, voltando dos Estados Unidos, onde, segundo acreditam seus pais, estudou física nuclear para desenvolver a bomba atômica brasileira. Na verdade, seus planos eram o de montar uma boate. Exagerados, ingênuos e mentirosos Assim podemos definir as características cômicas dos personagens das chanchadas, construídas a partir de sua gestualidade, na forma de seus diálogos, dando vida aos objetos, o que garante a explosão do riso nas mais variadas situações. A questão gestual quando é mostrado o jeito alegre de ser do carioca, estereotipado como malandro que “não marca bobeira” ao dar crédito às pessoas. É, na verdade, a demonstração de uma parcela da população que passa a vida buscando conquistar a felicidade, reconhecendo que não nasceu com “aquilo virado para a lua”, mas que se mostra feliz independentemente disso. Edgar Morin coloca em discussão o conceito Felicidade e suas variações nas diversas sociedades. Para ele, há sempre um vínculo entre a reflexão sobre a cultura de massa e suas conexões com os seres no mundo como uma espécie de mito, almejado e renovador para a vida incipiente dos indivíduos, privados das possibilidades de ação criadora.3 Nessa identificação com o jeito de ser do malandro, podemos observar malícia, ginga e perfeita conexão entre o falar e o caminhar despreocupadamente. Mostra a calma esmerilhada do personagem para enrolar as pessoas e driblar as dificuldades. O olhar desconfiado e, por vezes, atento faz desse personagem chanchadesco um
perfeito flâneur, direcionando olhares às beldades que desfilam sobre a passarela de concreto, mas que logo cai na real, percebendo-se do atraso que merecerá as devidas justificativas. Os conflitos são tratados na dicotomia entre vida privada e vida pública. Na primeira, o indivíduo mantém-se fiel àquilo que tem: família, casa, emprego. Na segunda, sonha em fazer parte de um espaço público que, segundo seu imaginário, é pré-requisito para a felicidade: vícios, mulheres, dinheiro e jogos. Vinculado à obtenção de ideal de felicidade, reside a ideia de consumo que elimina toda e qualquer possibilidade deste flâneur se adaptar. Quando experimenta uma vida hedônica, ou seja, regada pelos prazeres que tanto almejou, percebe que ganhou novos problemas. Nesse momento, a comicidade traz à cena seus comportamentos antes não existentes na composição moral do personagem, como a irresponsabilidade, o egoísmo, a avareza e a mentira. Em vários filmes de Carlos Manga, o uso do gesto é tão ou mais forte que o diálogo em cena. Tomadas do personagem agindo destrambelhadamente, fazendo caretas ou apenas gesticulando com as mãos garantem a presença do cômico e a satisfação com a cena. Entretanto, o segredo é trabalhar os elementos que possam levar à comicidade sem exageros para que não tenha efeito contrário: o sofrimento do espectador. Ao protagonista, no entanto, toda a representação moral negativa é trazida com parcimônia, representando um jeitinho malandro e perdoável de se dar bem e que provoca o riso. Suas mentirinhas para a esposa são somente para que o malandro tenha espaço para uma merecida farrinha. Já ao vilão, toda imoralidade é mostrada intencionalmente para sua condenação, podendo culminar em assassinato. Dicotomias entre o bem e o mal, mocinho e bandido, inocente e culpado, moral e imoral são trazidas à cena. O mocinho pensa poder encarnar o papel do esperto, golpista ou vilão quando pensa que
3 MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1967. vol. 1 e 2. p. 67.
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engana a todos sem deixar qualquer pista, mas é justamente a impressão de sua ingenuidade quase infantil e de forma intensamente trabalhada que não permite que seja nivelada ao mal e agrade ao público quando o faz rir. Nos filmes de Carlos Manga podemos ressaltar o passeio de efeitos cômicos por temáticas diversas, construções de sentido ao trabalhar aspectos minúsculos da vida cotidiana sem expressão, como no filme O cupim, no qual a questão do ciúme é tratada como elemento de deterioração do casamento. As crises conjugais são satirizadas quando parodiam momentos cruciais da história mundial por trazerem elementos existentes nos dois tipos de situação: obsessão e poder. É o caso de O homem do Sputinik, que satiriza a dinâmica de um mundo cada vez mais impregnado de irracionalidade, no qual a ganância e a luta armamentista são colocadas em destaque quando, em uma cidade do interior do Rio de Janeiro, é encontrado um objeto que pode ser a solução dos grandes problemas. Do micro ao macro, da janela da vizinha ao espaço sideral, do quarto da empregada ao espetáculo por várias cidades, do elevador ao avião, da fuga dos rolos de macarrão aos olhares gulosos lançados às coxas das vedetes, a comicidade passeia pelo cinema revelando uma carga identitária que veio ao mundo para divertir seu público ao tratar do sério pelo viés cômico. Carlos Manga soube apresentar o lado ingênuo e lúdico nas suas projeções, soube lançar a possibilidade de rir de um mundo desprovido de riso, afogado num mar de guerras e destruições. Não que o riso seja a profunda ausência de qualquer consciência que possa se manifestar, mas o riso como fonte inesgotável de saber, como um antídoto particular direcionado a um povo que nunca esteve inserido em um projeto político mais consistente. O homem que se projeta nas telas tem na dinâmica popular seu enraizamento. Inspiração, quando resgata a arte circense apresentando espetáculos de variedades em festas com elementos cômicos.
A palavra de ordem é alegria, sempre articulada à desconstrução e à elaboração de um novo significado para as maneiras singelas de uma classe social que deposita suas tradições nos palcos e praças públicas, com o intuito de mostrar ao mundo sua própria existência.
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A marca profunda na alma de um tempo em que acertar na loteria, beijar um rosto ou dançar com uma vedete eram os sonhos mais compartilhados pelo público da época. O mergulho na brincadeira, no jogo lúdico entre prazeres e tarefas, entre cantadas e golpes, eram peripécias ingênuas, mas significativas ao espaço público, bem como a projeção nas telas. Os tipos de risos possíveis de presenciar durante as projeções dos filmes de Manga seriam: o alegre, quando provocado pelo personagem que busca de uma maneira ingênua encontrar a felicidade no ambiente em que vive, ainda que não seja propício ao riso; o de zombaria, quando contrastes depreciativos entre os personagens são estrategicamente usados. O cinema da época de ouro das chanchadas permite afirmar que não se difere muito do panorama da época atual. Aliviando a dor, o riso adormece todo o inconformismo e libera a sensação de prazer a que todos têm direito. O ingresso a ele vem embalado pela projeção da luz em tela compartilhada em público, acionando o olhar, a memória, o corpo e o sonho: espaço lúdico e cognitivo que estabelece relação entre o indivíduo e a arte, passível de promover o registro de uma nova subjetividade a partir da qual flui magia e mito, presente no imaginário. Carlos Manga, a Atlântida e o estrelado cômico dos filmes registram um tempo em que o passado e o presente se alteram na fluidez dos sentidos e na embriaguez de uma lembrança. Um fluxo ideativo que aciona o riso e permite o gozo nos estertores da vida. O espírito do tempo circula entre o ritmo frenético da vida real e o silêncio poético da imaginação, por onde passeiam os mitos que fazem do homem um ser. E na infância do amanhecer, ele ri.4
4 Outras referências bibliográficas: CATANI, Afrânio Mendes; e SOUZA, José Inácio de Melo. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1983; PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.
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Ana Lúcia Andrade Doutora em Ciências da Comunicação (Cinema) pela Universidade de São Paulo e mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora de Cinema do Departamento de Fotografia, Teatro e Cinema da Escola de Belas Artes da UFMG. Autora dos livros O filme dentro do filme: a metalinguagem no cinema (Ed. UFMG, 1999) e Entretenimento inteligente: o cinema de Billy Wilder (Ed. UFMG, 2004).
Billy Wilder,
ardiloso articulador do riso “Uma das fontes do cômico: tomar um clichê disseminado e mostrar o outro lado da moeda.”
Tony Curtis e Jack Lemmon em Quanto mais quente, melhor (Some like it hot, 1959). Estrelado também por Marilyn Monroe, o filme de Billy Wilder é considerado a melhor comédia do cinema pelo American Film Institute. Correio da Manhã
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Um homem está regando plantas num jardim quando, por detrás dele, entra em cena um garoto que sorrateiramente pisa na mangueira para impedir o fluxo de água. O homem estranha e olha a ponta da mangueira, tentando verificar o que haveria de errado, quando o garoto retira o pé, fazendo jorrar um jato d’água que lhe molha o rosto, tirando seu chapéu. Percebendo o gracejo do garoto que tenta escapar, o homem corre em seu encalço, agarra-o pela orelha e castiga-o com palmadas pela travessura, retornando em seguida à sua atividade interrompida, enquanto o garoto deixa o enquadramento. O filme L’arroseur arrosé (França, 1895), de Louis Lumière, além de pioneiro como narrativa de ficção, pode ser considerado precursor da comédia no cinema – um gênero com características difusas e que se dividiu em inúmeros subgêneros ao longo dos anos. O curta, de menos de um minuto de duração, foi um sintomático sucesso, revelando o potencial do cinema como entretenimento popular. A cena do jardineiro levando o jato no rosto assistida por uma plateia sorridente numa sala de projeção chegou a ilustrar o primeiro cartaz (criado por Marcellin Auzolle) de divulgação do cinematógrafo dos irmãos Lumière. A eficácia dessa singela piada em estilo “pastelão” (slapstick) nesta primitiva, mas já germinada, modalidade dramática cinematográfica (derivada do teatro) encontra-se exatamente em como é preparada para o espectador – que pode antecipar o que está por acontecer com o desavisado jardineiro, diante do sorrateiro e travesso garoto; esperando pelo riso, tão logo sua predição se confirme. E
eis aqui uma das principais estratégias narrativas do cinema de entretenimento, seja na comédia ou mesmo no suspense: o controle de informações em relação ao que o espectador sabe, mas o personagem desconhece, criando expectativa; assim como a contrapartida, buscando surpreender. Como afirma Billy Wilder:
Gary Cooper, Audrey Hepburn e Maurice Chevalier na comédia romântica Amor na tarde (Love in the afternoon, 1957). Correio da Manhã
A comicidade é a presciência do espectador. Ele é mais esperto que os personagens no filme, porque o filme o instruiu sobre seus truques. Essa superioridade lhe proporciona um sentimento de prazer. Mas tão importante quanto isso é que o espectador seja instruído somente em parte sobre os truques do diretor, isto é, que não os conheça totalmente. O espectador é mais esperto que os personagens na tela, mas menos esperto que o diretor, que sempre está um passo adiante e sabe manter a surpresa. A comicidade dos espectadores que sabem mais, que foram iniciados nos truques e se tornaram cúmplices, é seguida da comicidade da curiosidade, na qual os espectadores são pegos de surpresa.1
Consagrado como “mestre da comédia”, o diretor e roteirista austríaco Billy Wilder (1906-2002) foi um dos realizadores mais versáteis do cinema clássico hollywoodiano, trafegando por gêneros diversos em sua carreira, sempre aprimorando estratégias e combinatórias narrativas eficazes para o envolvimento do espectador, que garantiram seu sucesso tanto junto à crítica quanto ao grande público. Wilder aventurou-se pelo film noir (Pacto de sangue – Double indemnity, 1944); a aventura de guerra (Cinco covas no Egito – Five graves to Cairo, 1943; e Inferno nº 17 – Stalag 17, 1953); o drama social (Farrapo humano – The lost weekend, 1945; e
1 KARASEK, Hellmuth. Billy Wilder e o resto é loucura. São Paulo: Dórea Books and Art, 1998. p. 241.
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subgênero invariavelmente estão presentes em seus roteiros, independente da modalidade dramática predominante. Como uma variável da comédia de erros ou da farsa, a screwball costuma envolver identidades trocadas ou outras circunstâncias inusitadas em que os personagens tentam manter alguma informação importante em segredo, contribuindo para mal-entendidos que geram situações burlescas. A incursão por este tipo de comédia rocambolesca, permeada por diálogos ágeis e espirituosos, está presente desde seus primeiros roteiros para Hollywood, como A oitava esposa do Barba Azul (Bluebeard’s eighth wife, 1938) e Ninotchka (1939), ambos dirigidos por Lubitsch (1892-1947); Meia-noite (Midnight, 1939), de Mitchell Leisen (1898-1972), ou Bola de fogo (Ball of fire, 1941), de Howard Hawks (1896-1977); até em seus próprios filmes, como A incrível Suzana (The major and the minor, 1942), O pecado mora ao lado (The seven year itch, 1955), Beije-me, idiota (Kiss me, stupid, 1964), Uma loura por um milhão (The fortune cookie, 1966), A primeira página (The front page, 1974), Irma la douce (1963), Se meu apartamento falasse (The apartment, 1960) – quase uma tragicomédia –, além de Quanto mais quente, melhor (Some like it hot, 1959) – que ainda possui elementos do filme de gângster, mesclados de forma a engendrar uma comédia hilariante.
Kim Novak em cena de Beija-me, idiota (Kiss me, stupid, 1964). Correio da Manhã
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A montanha dos sete abutres – Ace in the role, 1951). Entretanto, seu nome é comumente associado à comédia, abordada em seus variados subgêneros, desde a comédia romântica, ao estilo sofisticado de seu mestre Ernst Lubitsch (Sabrina, 1954; Amor na tarde – Love in the afternoon, 1957; e Avanti... Amantes à italiana – Avanti!, 1972), passando pela sátira política (Cupido não tem bandeira – One, two, three, 1961), até a chamada screwball comedy (comédia excêntrica) – que se tornou popular a partir da Grande Depressão americana, na década de 1930 (quando Wilder se estabeleceu em Hollywood), e que, de certa forma, sempre permeou sua filmografia, sendo que algumas estratégias deste
A vasta experiência nesse subgênero permitiu a Wilder elaborar conflitos como “bolas de neve”: a partir de situações aparentemente simples, desencadeia-se uma série de reviravoltas cada vez mais mirabolantes. Nesse sentido, verifica-se a criatividade e o talento de Wilder como narrador ao imaginar as circunstâncias mais instigantes e contundentes para sua narrativa, que vai fornecendo informações de modo a lançar o espectador na expectativa. Wilder aprimora clichês e elementos surpresa combinados com maestria, buscando envolver o público num jogo que convida ao desvelamento de suas divertidas narrativas. Sua engenhosidade na escrituração fílmica pode ser exemplificada em Quanto mais quente, melhor, considerado pelo American Film Institute como a comédia nº 1 de uma lista de cem produções norte-americanas (The 100 funniest american movies
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of all time). O roteiro é desenvolvido com precisão, inicialmente aclimatando o universo em que se dará a história, apresentando-se para o espectador a época e o contexto em que os personagens estão inseridos para vivenciar sua insólita aventura; mas também a mixagem de gêneros e a estrutura de farsa, indo além do clichê de um gênero para surpreender ao adquirir elementos de outro.
de que outro modo poderia obrigar dois homens a se manterem disfarçados de mulher durante um filme inteiro – a não ser colocando-os em pânico diante da ameaça de morte, porque eram as únicas testemunhas do massacre que poderia trazer risco de vida aos gângsteres? [...] Somente daquela maneira a comédia teria a necessária coerção.2
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Como um narrador clássico, Wilder sabe ser fundamental a ordenação das informações para a eficácia da narrativa, assim como para o envolvimento do espectador. Entretanto, além da ordenação, o bom narrador deve atentar para a dosagem e a distribuição das informações entre personagens e espectadores – elemento crucial na construção da expectativa.
Logo após os créditos (que surgem ao som de um jazz animado), um carro funerário trafega lenta e silenciosamente pela noite no asfalto molhado. Um plano aproximado vai distinguindo, dentro do automóvel, um caixão rodeado por homens de traços rudes. Ouvem-se sirenes. Os homens se entreolham e observam pelo vidro traseiro. O automóvel acelera. Policiais começam a atirar no carro fúnebre. Os homens pegam armas escondidas no teto do carro, quebram o vidro traseiro e começam a atirar nos policiais. Há uma perseguição pelas ruas e troca de tiros. Ao despistarem a polícia, os homens olham apreensivos para o caixão. Dos furos de balas na madeira escorrem líquidos. Eles abrem o caixão, revelando-se garrafas de bebidas alcoólicas quebradas em seu interior. Sobre esta imagem, surge o intertítulo: “Chicago, 1929”.
Nas sequências seguintes, os protagonistas são apresentados tocando saxofone e contrabaixo numa boate clandestina (uma “casa funerária” para onde se dirigia o caixão com bebidas do prólogo) que logo é fechada por uma batida policial, fazendo com que os dois fujam correndo da confusão ali armada. Com frio e sem dinheiro, eles vão até uma agência de empregos, onde a secretária Nelly repreende Joe por ter faltado a um compromisso marcado com ela. Jerry pergunta se ela sabe de algum emprego para eles. Ela diz que estão justamente à procura de um contrabaixista e de um saxofonista para um trabalho de três semanas na Flórida e dá uma piscadela significativa para sua colega. Eles se animam e, enquanto aguardam para entrar na sala, lá dentro, o agente Poliakoff está ao telefone, procurando duas garotas que toquem contrabaixo e sax para a banda feminina
Jack Lemmon e Shirley MacLaine contracenam em Se meu apartamento falasse (The apartment, 1960). Correio da Manhã
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Desde o prólogo do filme, a farsa já é evidenciada numa narrativa sem diálogos que surpreende o espectador, estabelecendo as regras de um universo em que nada é o que aparenta: a comédia sugerida pelo tema de abertura dá lugar a um pretenso filme de gângster; agentes funerários são mafiosos disfarçados; o teto de um carro fúnebre esconde armas; um caixão oculta bebidas, na época da Lei Seca e da depressão econômica nos EUA, no final da década de 1920. Além de determinar o caráter farsesco, essa contextualização permite a Wilder alicerçar o plot que fará com que os protagonistas, os músicos desempregados Joe (Tony Curtis) e Jerry (Jack Lemmon) – não apresentados ainda na narrativa – tenham que se travestir de mulher para se esconder em uma banda feminina, ao testemunhar, mais à frente, um acerto de contas da máfia. Segundo Wilder,
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2 KARASEK, Hellmuth, op. cit., p. 161-162.
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Sweet Sue and her Society Syncopaters. Quando Joe e Jerry entram, dizendo estarem interessados no trabalho da Flórida, segue-se este diálogo que só se torna engraçado devido, precisamente, à presciência do espectador:
James Cagney flagrado em Paris, onde filmava a comédia de Billy Wilder Cupido não tem bandeira (One, two, three, 1961). Fotografia Europress/AGIP. Paris. Correio da Manhã
Jerry: Nellie nos contou sobre o trabalho. Chegamos tarde? Poliakoff: O que vocês são? Uma dupla de comediantes? Caiam fora daqui! Joe: Você precisa de um baixo e um sax, não é? Poliakoff: Sim, os instrumentos estão corretos, mas vocês não! Jerry: Espere um minuto! O que há de errado conosco? Poliakoff: Vocês têm a aparência errada. Adeus! Joe: O que está procurando? Corcundas ou algo parecido? Poliakoff: Não são suas costas que me preocupam. Joe: Que tipo de banda é esta, afinal?! Poliakoff: Vocês precisariam ter menos de 25 anos... Jerry: Nós poderíamos passar por... Poliakoff: Vocês teriam que ter cabelos louros... Jerry: Nós poderíamos tingir nossos cabelos... Poliakoff: Vocês teriam que ser garotas! Jerry: Nós poderíamos... Joe: Não! Nós não poderíamos, Jerry!
Neste diálogo imponderado, Wilder faz uma brincadeira com os ansiosos e desavisados protagonistas, que não imaginam que o emprego da Flórida é para mulheres, do mesmo modo que Poliakoff desconhece a traquinagem de Nelly com os músicos. Assim, quando Joe e Jerry finalmente entram na sala, o diálogo com o agente ganha força cômica para o espectador, onisciente de todo o mal-entendido. Deve-se destacar aqui a importância da concepção do diálogo cinematográfico para o estilo de Wilder, uma das marcas de sua versatilidade tanto em comédias quanto em dramas. Seus diálogos caracterizam-se essencialmente pela agilidade no ritmo, cinismo no conteúdo e sagacidade na forma de elaboração. Maliciosos, repletos de duplo sentido, apontam críticas mordazes ou ironias sutis, sem que a trama seja preterida; pelo contrário, acrescentam uma pitada mais saborosa à ação
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billy wilder, ardiloso articulador do riso
dialógica, de forma funcional ao que a narrativa propõe, oferecendo um prazer estético através de textos oblíquos tão perspicazes e marcantes. Alguns de seus diálogos tornaram-se antológicos na história do cinema – segundo consta no guia Filmgoer’s Companion, de Leslie Halliwell, “Wilder é o cineasta do qual se cita o maior número de frases engraçadas (e as melhores)”3 – como o da sequência final do próprio Quanto mais quente, melhor, pelo ritmo vivaz que conduz o espectador à saída inesperada, incapaz de prever o inusitado desfecho (não é preciso reproduzi-lo aqui e, assim, estragar a surpresa para quem ainda não conhece o filme). Wilder consegue finalizar de uma maneira bastante insólita, entretanto, completamente eloquente ao que sua comédia propõe. O dinamismo e precisão do diálogo são acompanhados com expectativa, de forma a evitar que o espectador adivinhe o próximo lance, sendo que a frase final, com brilhantismo e ironia, dispensa maiores explicações. Um dos desfechos mais engraçados do cinema. Aliás, “nobody is perfect” parece ser o leit motiv da cinematografia de Wilder, quando se considera
3 Ibidem, p. 326.
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que, através de suas fábulas acessíveis, das trajetórias de seus pobres diabos, o cineasta buscava um retrato cínico da realidade, utilizando-se muitas vezes da comédia para falar de coisas sérias como se estivesse brincando. Para Wilder, o cinema de entretenimento ofereceria uma possibilidade de se assistir ao patético do ser humano, de forma prazerosa, levando ou não a uma reflexão sobre a realidade.
Em comédias como Se meu apartamento falasse, Irma la douce ou Beija-me, idiota percebe-se a crítica desavergonhada aos princípios morais da sociedade – sendo que o primeiro foi um estrondoso sucesso, uma das obras-primas que ajudaram a consagrá-lo; enquanto os outros dois, principalmente o último, obtiveram comentários severos da censura quanto a suas temáticas consideradas “sujas”, principalmente à época (mesmo que o tempo tenha abrandado alguns tabus, seus filmes mantêm-se atuais, pelo que sempre haverá de imperfeito no homem e de hipocrisia no convívio humano em sociedade). “A censura moral considera ‘sujo’ aquele que apresenta um espelho onde a sociedade possa se ver”.5 Para Martin Esslin:
Fazer rir requer seriedade. Wilder falava direta ou indiretamente de questões contundentes, tocando em tabus sociais, fustigando aspectos patéticos e ridículos da natureza humana de forma acessível, divertida e satírica: um efetivo “entretenimento inteligente”. Assim, acabou legando para o cinema um acervo precioso. E embora seu estilo tenha inspirado e influenciado alguns de seus mais talentosos e sagazes seguidores – como Pedro Almodóvar, Francis Veber ou os Irmãos Coen –, infelizmente, a maioria das comédias atuais parece acreditar que a graça estaria apenas num abrupto jato d’água (ou pior) na cara, sendo que ela se encontra justamente no menino ardiloso (do qual somos cúmplices) que pisa na mangueira, sem o qual não haveria o riso. Muitas vezes, há somente o clichê, esquecendo-se de que é fundamental transcendê-lo, como Billy Wilder fazia tão sabiamente.7
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Maurice Chevalier e Gary Cooper se divertem na première de Amor na tarde (Love in the afternoon), filme de Billy Wilder em homenagem a Ernst Lubitsch, de quem foi colaborador. Fotografia Europress/AGIP. Paris, 1956. Correio da Manhã
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Tenho sempre em mente que, antes de tudo, nosso dever é oferecer aos espectadores duas horas e meia de distração, de prazer, de riso, e acidentalmente uma reflexão, sem forçá-los a engolir mensagens chatas e sentenciosas. Tudo isso deve, se possível, ser representado de maneira elegante, com uma boa interpretação e boa fotografia – espero. [...] Não há nada de mal em ser envolvido pela Nona sinfonia e sentir prazer com a Viúva alegre. [...] O público é muito mais informado do que antes, pode-se falar em um nível diferente, aprofundar os personagens, que não são mais bidimensionais, e pode-se desenvolver o pano de fundo sem, todavia, perder o ritmo, sem fazer pregação, sem se tornar estático, divertindo.4
comportamento, aos quais as pessoas podem ficar expostas por intermédio de vários tipos de tentação.6
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O riso é uma forma de liberação de ansiedades subconscientes. A farsa trata das ansiedades nutridas por muita gente em torno de possíveis deslizes de 4 CIMENT, Michel. Hollywood – Entrevistas. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 70-71. 5 KARASEK, Hellmuth, op. cit., p. 454. 6 ESSLIN, Martin. Uma anatomia do drama. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. p. 23-24. 7 Ver também: ANDRADE, Ana Lúcia. Entretenimento inteligente: o cinema de Billy Wilder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
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Glauco Barsalini Doutor em Filosofia e mestre em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Autor do livro Mazzaropi: o Jeca do Brasil (Átomo, 2002).
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Mazzaropi em O grande xerife (1972), dirigido por Pio Zamuner. Correio da Manhã
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Em cartaz no extinto cinema Polytheama no Rio de Janeiro, Betão Ronca Ferro (1970), filme em que Mazzaropi presta homenagem aos artistas de circo. Correio da Manhã
Na galeria dos grandes comediantes brasileiros toma assento, com destaque, Amácio Mazzaropi. Como ator, Mazzaropi passou por todas as formas de artes cênicas produzidas no Brasil de sua época: atuou no circo, no circo-teatro, no teatro, no rádio, na televisão e no cinema. Como produtor e diretor artístico, Mazzaropi esteve à frente de uma companhia de circo-teatro1 e, posteriormente, da PAM Filmes (Produções Amácio Mazzaropi). Foram 55 anos de carreira, uma trajetória de notável envergadura em que se construiu um artista completo, capaz de cuidar de uma gama muito diversificada de elementos típicos da produção artística, a começar pela construção da personagem e a continuar pela realização do argumento e do roteiro, pela direção ou codireção do produto artístico e pela produção (fosse ela de circo-teatro ou de filmes). Não bastasse todo esse conjunto de habilidades, Mazzaropi foi mais longe, enfrentando, com sucesso, um desafio que parecia inatingível para aqueles que faziam cinema no Brasil: realizar a distribuição das películas, driblando o poderoso esquema das distribuidoras norte-americanas. Tais características, associadas
ao enorme sucesso de bilheteria que o artista fazia,2 o colocam no patamar dos grandes comediantes mundiais, a exemplo de Cantinflas, Totó, Jacques Tati e Charles Chaplin. Mazzaropi deu vida própria à personagem caipira que criou. Longe dos estereótipos que podem marcar muitas das figuras literárias ou cênicas, o Jeca ganhou personalidade própria, encerrando em si mesmo uma infinitude de significações, tal como ocorre com qualquer um de nós, seres humanos de carne e osso. A naturalização do caipira representado por Mazzaropi permitiu que o criador estabelecesse uma rica e livre interlocução com o público, de modo que público e personagem passaram a “falar uma mesma língua”. Cabia ao artista manter-se afinado com o público, para que pudesse fazer de sua personagem o que dela se esperava: que fosse uma bem acabada e natural representação desse público, em outras palavras, que fosse tão humana quanto humanos eram os seus espectadores, que vivenciasse, na essência, o que aqueles seres humanos vivenciavam.3 A respeito dessa simbiose personagem/público, o ator diria: “O mais importante foi a experiência
1 Em 1935, Mazzaropi montou, no interior paulista, um Pavilhão. Os Pavilhões eram estruturas móveis de zinco, armadas de cidade em cidade, nos quais se encenavam peças teatrais, apresentações musicais e circenses. 2 No início da carreira no cinema, princípio dos anos 1950, Mazzaropi tornou-se uma das principais fontes de receita da Cia. Cinematográfica Vera Cruz. Posteriormente, enquanto produtor dos 24 filmes que protagonizou como ator, entre 1958 e 1980, chegou a marcas muito elevadas de bilheteria. Em seu livro Sai da frente! A vida e a obra de Mazzaropi, Marcela Matos registra parte da pesquisa relativa à bilheteria de filmes nacionais feita pela Ancine (Agência Nacional de Cinema), entre os anos de 1970 e 2006. Os números, no caso dos filmes feitos por Mazzaropi, de 1974 a 1980, revelam a soma de 27.294.885 espectadores, sendo que O Jeca macumbeiro, O Jeca contra o Capeta e Jecão, um fofoqueiro no céu acumularam, cada um deles, quase três milhões e meio de espectadores. (MATOS, Marcela Batista de. Sai da frente! A vida e a obra de Mazzaropi. Rio de Janeiro: Desiderata, 2010. p. 201). 3 A respeito da naturalização do Jeca de Mazzaropi, André Nóbrega Dias Ferreira afirma, referindo-se à atuação do ator nos Pavilhões: “O público via a apresentação do cômico e pensava que ele deveria ter vendido seu pedaço de chão para se lançar na vida artística, sendo apenas ele mesmo no palco. A ausência da ribalta aproximava ator e público da ‘verdade cênica’” (FERREIRA, André Nóbrega Dias. Jeca Tatu: de Lobato a Mazzaropi. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2001. p. 43). Ainda, sobre a questão, ao referir-se ao trabalho de Mazzaropi no cinema, o ator Ewerton de Castro, que atuou com ele, afirma: “O verdadeiro ator não interpreta, vivencia. E Mazzaropi vivenciava o personagem” (Ibidem, p. 41).
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de entender e de ser entendido pelo público. Foi nessa convivência com essa gente humilde que adquiri condições de entender o povo, graças ao que pude me lançar ao personagem que me consagrou”.4 É justamente esse caráter humano, conferido à sua personagem, que a imortaliza e que, em plano profundo, insere Mazzaropi como comediante de estatura universal. A respeito da comicidade, o filósofo Henri Bergson afirmará: Não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano. Uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; nunca será risível. Rimos de um animal, mas por termos surpreendido nele uma atitude humana ou uma expressão humana. Rimos de um chapéu; mas então não estamos gracejando com o pedaço de feltro ou de palha, mas com a forma que os homens lhe deram, com o capricho humano que lhe serviu de molde. Como um fato tão importante, em sua simplicidade, não chamou mais a atenção dos filósofos? Vários definiram o homem como “um animal que sabe rir”. Poderiam também tê-lo definido como um animal que faz rir, pois, se algum outro animal ou um objeto inanimado consegue fazer rir, é devido a uma semelhança com o homem, à marca que o homem lhe imprime ou ao uso que o homem lhe dá.5
Mazzaropi sabia fazer rir. Movendo-se no terreno do conflito, insistindo na oposição campo versus cidade, caipira versus homem urbano, arcaico versus moderno, Mazzaropi acendia a faísca da consciência. Pelo Jeca de Mazzaropi, os trabalhadores da cidade, outrora trabalhadores do campo ou, então, descendentes destes, podiam ver a si mesmos, reconhecer-se e refletir sobre a sua própria condição de vida – tanto ou mais que social – humana. Mazzaropi fazia rir de coisas risíveis, ao colocar às vistas de todos, com absoluta naturalidade, aspectos denunciadores de nossa condição, a condição humana. Tais aspectos se revelavam justamente no choque que o inespe-
rado gerava, no contraste que o artista promovia entre o esperado (o modo de vida urbano) e o inesperado (a espontaneidade do caipira); porque do esperado não se ri, dada a sua previsibilidade, mas, com o inesperado, tudo é diferente, ainda que ele corresponda, fundamentalmente, a uma infindável repetição – repetição da mesma coisa em contextos ou situações diferentes, repetição da mesma história, com invólucros diferentes. Vale, aqui, novamente, remissão a Bergson: [...] encontro um dia na rua um amigo que não vejo há muito tempo; a situação nada tem de comicidade, mas, se no mesmo dia eu o encontrar de novo e mais uma terceira e uma quarta vez, acabaremos por rir juntos da “coincidência”. Imagine-se então uma série de acontecimentos imaginários que transmita suficiente ilusão de vida, supondo-se, no meio dessa série que progride, uma mesma cena a reproduzir-se, seja entre as mesmas personagens, seja entre personagens diferentes: haverá também uma coincidência, porém mais extraordinária. Tais são as repetições apresentadas no teatro. Elas são tanto mais cômicas quanto mais complexa é a cena repetida e quanto mais naturalmente é conduzida, duas condições que parecem excluir-se e que deverão ser conciliadas pela habilidade do autor dramático.6
A genialidade do ator Mazzaropi se demonstrava na refinada capacidade que tinha de repetir com naturalidade o caipira em inúmeras e diversificadas situações (em um contexto cênico complexo), conciliando duas condições aparentemente excludentes entre si. Mas genialidade maior ainda estava no fato de que essa repetição não era rasteira ou superficial. Mazzaropi cavoucou, até o último dos estratos, a cultura de raiz do interior brasileiro, mais identificada com a figura do caipira. Deu, com isso, vida a uma personagem genuína: o Jeca, o qual, ganhando nomes diversos ou assumindo diferentes papéis, de filme a filme, fosse no contexto rural, fosse no contexto urbano, não deixava, nunca, de ser o mesmo caipira, a representação de um homem
4 Ibidem, p. 43-44. 5 BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. Trad. Ivone Castilho Benedetti. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 2-3. 6 Ibidem, p. 67.
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Cena de O grande xerife. Correio da Manhã
do povo, de um trabalhador que transpirava, por todos os poros, a totalidade do universo caipira. A respeito de Mazzaropi, o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes afirmou: “O segredo de sua permanência é a antiguidade. Ele atinge a fundo o arcaico da sociedade brasileira e de cada um de nós [...] Mazzaropi é estimulante precisamente porque repete e se repete incansavelmente e sem nos cansar”. 7 A repetição ou, parafraseando os existencialistas, o retorno do mesmo: eis aí, talvez, a mais profunda chave do sucesso de Mazzaropi. Repetir-se, fazer retornar o mesmo, “sem nos cansar”. Repetir o que o público gostaria que fosse repetido, repetir o que, para os fãs de Mazzaropi, era tão precioso, aquilo que não queriam de modo algum perder – esta era a melhor maneira de continuar resistindo. E aí estava a graça (da vida): na resistência contra o fim das tradições, dos valores e sentimentos que identificavam o seu público como seres sociais e como seres humanos.
Mas o Jeca de Mazzaropi, no passado como no presente, não se limita a um segmento específico de espectadores. Ele vai muito mais longe, ele transborda. Se assim não fosse, a personagem não teria brilhado sempre com enorme sucesso por mais de cinquenta anos (no cinema, por 29 anos). Foram, só no cinema, três gerações de espectadores que guardavam entre si flagrantes diferenças, embora nunca substanciais. E, mais de trinta anos após a morte do artista, podemos constatar a sua permanência; observar que o sucesso não o abandonou: sua memória continua a habitar a mente coletiva. As películas ganham novos espectadores, jovens e mirins, muitos dos quais à semelhança daqueles que associavam a imagem do caipira com a do Jeca Tatu de Monteiro Lobato, no passado, agora o fazem com o Jeca de Mazzaropi. Mazzaropi continua a ser identificado diretamente com sua personagem e passa a ser sinônimo, hoje, de caipira, para inúmeros jovens e crianças. E, em um tempo em que muitos dos aspectos da cultura popular e da cultura erudita se mesclam, ganhando novo corpo dentro de formas pré-
7 GOMES, Paulo Emílio Sales (manuscrito). Mazzaropi no Largo Paissandu. In: BARSALINI, Glauco. Mazzaropi: o Jeca do Brasil. Campinas: Átomo, 2002. Contracapa.
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estabelecidas pela indústria cultural, os filmes de Mazzaropi passam a ser objetos de ressignificação, sendo disponibilizados e ganhando visibilidade nos mais diversos lugares, que vão das bancas de jornais às megastores, das locadoras de vídeos e DVDs aos centros culturais em que, de quando em vez, se promovem temporadas de exibição das películas de Mazzaropi, por vezes acompanhadas de debates promovidos entre críticos de cinema e acadêmicos. Mazzaropi, hoje, transita entre o popular e o cult, e continua. Nunca é demais recordar a observação de Miroel Silveira a respeito de Mazzaropi: Havia no ator uma preocupação inteligente de preservar a empatia, com o público, de defender a situação humana sem perder o resultado cômico. É nessa postura simples e simpática que ele vai permanecer na memória de nossa gente. Como alguém que deu a volta por cima de nossas infelizes estruturas sociais utilizando a arma pacífica de sua divertida matreirice.8
Pensamos, a partir da observação de Silveira, que, no fundo, Mazzaropi, como todo grande comediante, brincava – habilmente – com o mundo, o que revela não somente um grande ator ou um grande cineasta, mas um ator e um cineasta universais. Pois, como Umberto Eco, em sua obra O nome da rosa,9 põe às claras, não há arma mais poderosa contra o poder do que o riso. Não há, pois, meio mais potente para questionarem-se “as infelizes estruturas sociais” do que o humor, no caso de Mazzaropi, um humor matreiro. O caipira “está fora”, não pertence ao universo do convencional, do padrão que se estabelece na modernidade. Não se encaixa em seu conjunto de valores e nem sequer no compasso de seu tempo. O Jeca de Mazzaropi, emblema cênico desse caipira, não é um ingênuo e nem tampouco um leso – como o senso comum urbano costuma definir o caipira. Ele é, muito ao contrário, sagaz e matreiro. Personifica a
forma pela qual o povo brasileiro, historicamente sujeitado a uma estrutura de poder econômico e político visceralmente desigualizadora, busca resistir a esse poder, “dando a volta por cima” das infelizes estruturas sociais, ao fazer perpetuar as suas tradições, recriando-as e garantindo, com isso, a permanência de sua identidade cultural. E, como já foi dito, não existe melhor fórmula para se combater o poder do que a comédia, a brincadeira – terreno da liberdade, espaço da repetição do prazer e dos feitos heroicos, universo em que se reproduz, sempre e sempre, aquilo que já se produziu em tempos remotos, tempos em que o poder ainda não se institucionalizara, em que as instituições não haviam sido criadas e em que os homens ainda não tinham descoberto a infelicidade. Vale, pois, aqui, uma remissão a Walter Benjamin que, a respeito da brincadeira, dirá: [...] a grande lei que, além de todas as regras e ritmos individuais, rege o mundo da brincadeira em sua totalidade: a lei da repetição. Sabemos que a repetição é para a criança a essência da brincadeira, que nada lhe dá tanto prazer como “brincar outra vez” [...] Com efeito, toda experiência profunda deseja, insaciavelmente, até o fim de todas as coisas, repetição e retorno, restauração de uma situação original, que foi seu ponto de partida. “Tudo seria perfeito, se pudéssemos fazer duas vezes as coisas”: a criança age segundo essas palavras de Goethe. Somente, ela não quer fazer a mesma coisa apenas duas vezes, mas sempre de novo, cem e mil vezes. Não se trata apenas de assenhorear-se de experiências terríveis e primordiais pelo amortecimento gradual, pela invocação maliciosa, pela paródia; trata-se também de saborear repetidamente, do modo mais intenso, as mesmas vitórias e triunfos. O adulto alivia seu coração do medo e goza duplamente sua felicidade quando narra sua experiência. A criança recria essa experiência, começa sempre tudo de novo, desde o início. Talvez seja esta a raiz mais profunda do duplo sentido da palavra alemã Spielen (brincar e represen-
8 SILVEIRA, Miroel. Jeca-Mazzaropi, uma síntese de culturas. In: BARSALINI, Glauco, op. cit., p. 80. 9 ECO, Umberto. O nome da rosa. Trad. Homero Freitas de Andrade e Aurora Fornoni Bernardini. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. Em O nome da rosa, Umberto Eco aborda uma gama de questões típicas do universo religioso e filosófico medievais. O ápice da história está em um diálogo ocorrido entre um monge beneditino e um frei, momento em que o primeiro fala sobre o perigo da comédia, como o antídoto, por excelência, contra o temor a Deus (e, claro, ao poder, naquele caso, da Igreja).
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Mazzaropi com Odete Lara no filme O gato de madame (1957), de Agostinho Martins Pereira. Correio da Manhã
tar): repetir o mesmo seria seu elemento comum. A essência da representação, como da brincadeira, não é “fazer como se”, mas “fazer sempre de novo” [...]10
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Narrar novamente a experiência do povo brasileiro, a experiência da luta pela sobrevivência, da resistência popular à disciplina impessoal imposta ao trabalhador comum pelo sistema de hierarquias capitalista, da resistência popular contra as agruras geradas pelo sistema econômico de exclusão, contra a perda da dignidade humana, eis a oportunidade de se lembrar ou de se refazer, simbolicamente, o grande feito heroico. Eis
10 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 252-253.
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a oportunidade de se representar aquilo que nem a mais opressora de todas as forças conseguiu debelar – aquilo que se constitui como a mais preciosa de todas as coisas, dada a sua absoluta originalidade: a tradição popular. Sob aparente aceitação das estruturas sociais, tais como se apresentam no mundo moderno capitalista, a personagem de Mazzaropi, pela matreira capacidade que possui de inverter sua condição de submissão em relação ao status quo existente, subverte a ordem do poder instituído, solapando as estruturas de um sistema de dominação. Afinal, tal como a criança, o caipira representado por Mazzaropi é um distraído, um gracioso distraído. Ele não se preocupa com as convenções (sociais e estatais) e não se importa com os patrões, com os políticos e nem tampouco com o direito criado pelos homens. O seu senso de justiça passa muito ao largo do direito estatal, dado que as soluções para os seus problemas são, invariavelmente, colocadas nas mãos de Deus. O caipira simplesmente não legitima as formas convencionais de poder. Então, ele nos liberta.
Mazzaropi impõe a lei em O grande xerife (1972). Correio da Manhã
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Marcelo Nogueira de Siqueira Mestre em História Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Arquivista e historiador. Coordenador de Documentos Audiovisuais e Cartográficos do Arquivo Nacional. Membro da Comissão Técnica de Avaliação de Arquivos Privados de Interesse Público e Social do Conselho Nacional de Arquivos. Presidente da Câmara Técnica de Documentos Audiovisuais, Iconográficos e Sonoros do Conselho Nacional de Arquivos.
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algumas reflexões
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A memória, elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, procura pensar o passado para compreender o presente. Sem memória não há passado, e é através do testemunho que ela se transforma em história.1 Maurice Halbwachs, em seu estudo sobre memória coletiva, destaca que a ideia de memória individual, absolutamente separada da memória social, é uma abstração desprovida de significado.2 Para Jacques Le Goff, “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação, e não para a servidão dos homens”.3 Pierre Nora denomina como “lugar de memória” o espaço de guarda e preservação desta memória: Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não existe memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter os aniversários, organizar as celebrações, pronunciar as honras fúnebres, estabelecer contratos, porque estas operações não são naturais [...] Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se em compensação, a história não se apoderasse deles para deformálos, transformá-los, sová-los e petrificá-los, eles não se tornariam lugares de memória. É este vai e vem que os constitui: momentos de história ar-
rancados do movimento de história, mas que lhe são devolvidos [...]4
Os arquivos são tradicionalmente identificados como esses lugares de memória. Por sua constituição e finalidades, além de serem instituições de gestão, guarda e preservação, também são responsáveis pelo processamento técnico de acervos documentais, permitindo ao Estado, às instituições e à sociedade o acesso, a recuperação e o uso de seu conteúdo informacional para fins administrativos, gerenciais, acadêmicos, culturais e de construção, ou reafirmação, de aspectos de pertencimento e identidade. Em precisa análise, Rousso ressalta as características singulares de cada arquivo, sempre únicos e carregados de intenções: Escrito, oral ou filmado, o arquivo é sempre o produto de uma linguagem própria, que emana de indivíduos singulares ainda que possa exprimir o ponto de vista de um coletivo (administração, empresa, partido político etc.). Ora, é claro que essa língua e essa escrita devem ser decodificadas e analisadas. Mas, mais que de uma simples “crítica interna”, para retomar o vocabulário ortodoxo, trata-se aí de uma forma particular de alteridade [...], portanto a possibilidade de um documento original resistir ao tempo e acabar um dia sobre a mesa do historiador não confere a esse vestígio particular uma verdade suplementar diante de todas as outras marcas do
Fachada da sede do Arquivo Nacional no Rio de Janeiro vista do Campo de Santana
1 Conceitos de memória desenvolvidos por Michael Pollak, Jacques Le Goff e Paul Ricoeur. 2 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. 3 LE GOFF, Jacques. Memória. In: ENCICLOPÉDIA EINAUDI. Memória – História. vol. 1. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. p. 47. 4 NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993. p. 13.
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arquivo e memória: algumas reflexões
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passado: existem mentiras gravadas no mármore e verdades perdidas para sempre.5 Sala de consultas ao acervo do Arquivo Nacional
Na Arquivologia, disciplina que estuda as funções do arquivo e os princípios e técnicas a serem observados na produção, organização, guarda, preservação, processamento e utilização de conjuntos documentais, compreende-se por documento toda informação registrada em um suporte material, suscetível de ser utilizada para consulta, estudo, prova ou pesquisa. Portanto, a informação sem o suporte, bem como o suporte sem informação não são documentos. Ainda hoje se confunde documento com o artefato de
papel, oficial, que prova ou informa algum fato, como uma certidão, um diploma, uma carteira de identidade ou um memorando. Ora, todos esses exemplos são corretos, mas com base na definição de documento entendida pela Arquivologia, os mapas, as fotografias, os registros sonoros, as imagens fixadas em filmes e fitas videomagnéticas, as músicas gravadas em discos, os dados contidos em HDs, as pinturas, desenhos, cartazes, livros, os microfilmes gravados, tudo isso é documento. Tal palavra origina-se, etimologicamente, dos termos latinos docere (ensinar) e documentum (aquilo que ensina), assim, podemos compreender o documento como algo que pode ensinar alguma
5 ROUSSO, Henry. O arquivo ou o indício de uma falta. Revista Estudos Históricos, CPDOC-FGV, Rio de Janeiro, v. 9, n. 17, p. 8591, 1996. p. 4.
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coisa a alguém, com objetivo probatório, jurídico, cultural ou histórico. Existe uma diferença, tênue, mas fundamental, entre documento e documento de arquivo. Para serem considerados documentos de arquivo, eles devem ter sido criados ou acumulados na consecução de algum objetivo, guardando relações orgânicas com os outros documentos produzidos e/ou acumulados pela mesma entidade, seja ela pública ou privada, individual ou coletiva, no transcurso de suas funções e atividades, ou seja, o que determina se o documento é arquivístico é a forma, o objetivo e, principalmente, o contexto de sua criação. Uma fotografia achada na rua, uma à venda num antiquário ou aquela colada num mural são apenas documentos, mas uma fotografia de casamento que uma pessoa guarda com outras de sua história, uma fotografia que uma empresa tira de seus funcionários para a ficha funcional ou a fotografia de uma obra que consta num processo judicial, essas são documentos de arquivo.
Na segunda metade do século XIX surge, nos arquivos, a pesquisa realizada por historiadores no contexto da história positivista, em que o valor dado às informações contidas em documentos de arquivo era a base e praticamente a única referência para análise. É nesse período que surgem as primeiras salas de consulta em arquivos. No século XX se desenvolve, em paralelo, o aperfeiçoamento dos arquivos administrativos, correntes, ligados à administração pública e pri-
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Técnica do Arquivo Nacional trabalha na restauração e conservação de documentos
Cícero Bispo
Os arquivos não são invenções modernas, eles existem como instituição desde as primeiras civilizações orientais (sumérios, egípcios, assírios e babilônios), servindo às autoridades como local de guarda de leis, normas e preceitos. Na Antiguidade Clássica (Grécia e Roma), os arquivos continuaram a serviço das autoridades, mas o cidadão começou a ter a possibilidade de consulta no que diz respeito a documentos notariais. O direito romano, por sua vez, imprimiu grande relevância ao arquivo, por causa da importância do ato escrito. Na Idade Média, os arquivos se limitam às autoridades feudais e, sobretudo, à Igreja. Com o advento do Estado Moderno e a centralização do poder, passam a existir os grandes arquivos reais e arquivos notariais organizados, contudo seu uso ainda é restrito às questões jurídicas e administrativas, não havendo utilização para fins de pesquisa histórica e muito menos cultural. A Revolução Francesa representou um marco na história dos arquivos e de sua compreensão, pois o entendimento de um arquivo geral do país como elemento de identidade e unidade nacional promoveu a reunião da documentação oficial dispersa e propiciou ao cidadão certa liberdade para consultar informações administrativas.
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arquivo e memória: algumas reflexões
Biblioteca do Arquivo Nacional
vada, e dos arquivos históricos, ligados à pesquisa e à cultura. Diversas áreas do conhecimento passam a utilizar os documentos de arquivo em suas pesquisas e, na década de 1920, os historiadores franceses da Escola dos Annales propõem que qualquer tipo de documento, incluindo as fotografias e os filmes, possam ser utilizados como fontes e evidências na pesquisa histórica, a percepção do que é um documento começa a ser repensada, da mesma forma que o uso dos arquivos é redimensionado. Surgem os cursos superiores e de especialização em Arquivologia, e em 1948 é criado o Conselho Internacional de Arquivos, no rastro da chamada “explosão documental” registrada após a Segunda Guerra Mundial, quando a produção de documentos, em seus mais diversos suportes e formatos, é incrivelmente aumentada. Surgem os congressos internacionais e as associações nacionais de Arquivologia. No Brasil, a profissão de arquivista é regulamentada em 1978, e 13 anos depois, em 1991, é sancionada a lei nº 8.159, a
chamada Lei de Arquivos. O Conselho Nacional de Arquivos é criado e passa a ser o órgão que irá definir a política nacional de arquivos. No final do século XX e início do XXI, surgem novas abordagens no pensar e fazer arquivístico, refletindo a produção e o processamento documental de forma integrada e contínua. A informação se sobrepõe ao suporte e torna-se o principal objeto da Arquivologia. As novas tecnologias, o universo digital e a necessidade de gerenciar uma crescente e ampliada produção documental fizeram com que a Arquivologia buscasse outras áreas do conhecimento, e que estas buscassem nas práticas arquivísticas a possibilidade de um melhor gerenciamento de sua produção, guarda, preservação e acesso. Como observamos, os arquivos, como instituição, não foram criados pensando em historiadores e pesquisadores em geral, mas em benefício dos
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administradores e do Estado. Entretanto, ao longo dos séculos outros usos foram incorporados à sua constituição e demandas diversas foram modificando seu estatuto, transformando-o em um inegável lugar de memória e cidadania. Outras instituições também são percebidas e identificadas como lugares de memória, como bibliotecas, museus e centros de documentação. Pela função que desempenham, os meios de comunicação também se constituem em lugares de memória, pois trabalhando com o tempo presente produzem uma noção de contemporaneidade histórica. A mídia, principalmente a jornalística, indica entre os fatos da atualidade aqueles que devem ser memoráveis no futuro, reinvestindo-os de relevância histórica.6 Torna-se quase impossível pensar uma história da sociedade contemporânea sem utilizar como fonte os documentos de imprensa, como as reportagens, as fotografias, as gravações em áudio e em imagens em movimento, bem como das produções televisivas e cinematográficas, impregnadas de informações a respeito da sociedade e de quem as produziu. Através dessas produções (novelas, humorísticos, séries, documentários, filmes etc.), podemos perceber aspectos culturais, ideológicos,
econômicos, políticos e relativos à estética, moda, costumes e pensamento de cada época.
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Toda instituição produz registros, documentos que acompanham seu desenvolvimento, que atestam seus atos, que demonstram seus objetivos. Esses arquivos, presentes em todos os segmentos da sociedade humana, são espaços de memória constituídos de um amplo manancial de possibilidades, muito além daquelas tradicionalmente percebidas em suas funções probatórias e acadêmicas. O arquivo como local de cultura, como espaço de lazer, como ativo econômico, ferramenta de pertencimento, elemento de identidade, polo de difusão intelectual, provedor de conhecimento e lugar de (re)construção de memória e (res)significados. Todavia, para que o arquivo se consolide nesse plural lugar administrativo, cultural, histórico e de memória, sua percepção, interna e externa, deverá ser (re)pensada pelo Estado, sociedade, usuários e profissionais. E de nada adianta as políticas de preservação e a construção de belos prédios se o acesso e o uso dos documentos não forem plenos, livres e democratizados.7
6 RIBEIRO, Ana Paula Goulart; e FERREIRA, Lúcia Maria Alves (Orgs.). Mídia e memória: a produção de sentidos nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. p. 7. 7 Outras referências bibliográficas: BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivística: objetos, princípios e rumos. São Paulo: Associação de Arquivistas de São Paulo, 2002; HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006; MARIZ, Anna Carla Almeida. A informação na internet: arquivos públicos brasileiros. Rio de Janeiro: FGV, 2012.
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Antonio Laurindo dos Santos Neto Arquivista, mestrando em Ciência da Informação pela Universidade Federal Fluminense. Supervisor da Área de Imagens em Movimento do Arquivo Nacional. Mariana Lambert Passos Rocha Historiadora e pesquisadora do Arquivo Nacional.
Arquivo em movimento:
o uso de imagens de arquivo nas oficinas de vídeo do REcine
A partir da década de 1980, o Arquivo Nacional começa a atuar na área de preservação e disponibilização de imagens em movimento, seguindo a tendência mundial de conferir crescente importância aos arquivos de filmes. O acervo tomou corpo com o recebimento de matrizes cinematográficas de diferentes órgãos do governo federal, com destaque para Agência Nacional, além de cinejornais da empresa César Nunes Produções Cinematográficas e programas da TV Tupi do Rio de Janeiro. Falamos de cinejornais, documentários, programas de TV, filmes de animação, publicitários e institucionais, registrados em películas cinematográficas e fitas videomagnéticas de diversas bitolas e formatos. Com o passar dos anos outros acervos foram destinados à instituição por meio de recolhimentos de documentos de órgãos públicos, através de doações de particulares, além dos que vieram sob regime de comodato. Quando se tinha notícia de que um acervo estava em risco, buscava-se tomar as providências cabíveis para que pudéssemos recebê-lo, proceder ao tratamento técnico adequado e disponibilizar para acesso. Em 2002, tendo em vista a divulgação do conjunto de imagens em movimento do Arquivo Nacional, e de outras instituições nacionais e estrangeiras, foi criado o REcine. Primeiramente, como uma Mostra de Cinema de Arquivo, que em seguida se transformou em um Festival Internacional de Cinema de Arquivo. De acordo com Clóvis Molinari Jr., idealizador e curador do evento durante dez anos, “o REcine surgiu com o objetivo
de tornar as imagens das instituições de arquivo mais acessíveis aos pesquisadores, cineastas e ao público em geral, estimulando a reutilização desse material na produção de novos filmes, além de discutir temas ligados à conservação e guarda de imagens em movimento”.1 Já em sua terceira edição (2004), o REcine ofereceu a primeira oficina de vídeo, que pretendia estimular a utilização de imagens de arquivo em novas produções cinematográficas. Dezenas de alunos tiveram a oportunidade de utilizar os documentos do Arquivo Nacional, principalmente as imagens em movimento, para a realização de seus filmes, sob a orientação de renomados cineastas e professores de cinema. Entre eles, Sílvio Tendler (2004), Sílvio Da-Rin (2005), Arthur Omar (2006), Vladimir Carvalho (2007), Eduardo Escorel (2008), Carlos Alberto Mattos (2010) e Luiz Carlos Lacerda (2011), além dos professores do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense: Nelson Pereira dos Santos, Aída Marques, Elianne Ivo, Cezar Migliorin, João Luiz Vieira e Fernando Morais (2009). O resultado é uma produção extremamente diversificada, de curtas documentais a filmes ficcionais – reconhecidos os limites cada vez mais tênues entre estas categorias –, dos narrativos aos experimentais, verificando uma ampla possibilidade de uso das imagens de arquivo. Optamos neste artigo por analisar alguns desses filmes, que a partir do desafio comum de reutilizar imagens, construíram narrativas representativas de variados gêneros cinematográficos.
1 Extraído do texto de apresentação do catálogo de comemoração dos dez anos de REcine (2011).
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Uso ficcional e experimental Nos usos ficcional e experimental de imagens documentais observamos uma dessacralização das imagens, de seu caráter habitual de vestígios da história, ao serem retiradas do seu contexto original e inseridas em uma nova montagem, por princípio descompromissada com a realidade, conferindo-lhes novo significado. O compromisso que lhes é usualmente atribuído como instrumento de prova é reduzido para que assumam o papel de registros potenciais para a criação artística. Jamer G. Mello (2011), em análise do filme Viajo porque preciso, volto porque te amo, explica qual tem sido a tendência na utilização de imagens de arquivo: No cinema contemporâneo os cineastas costumam se valer de material de arquivo em circunstâncias de recontextualização das imagens – um uso afastado daquele que é feito normalmente pelo documentário expositivo clássico, por exemplo, em que as imagens de arquivo servem como documento em sentido mais estrito. O arquivo tem aparecido em experiências audiovisuais recentes como parte de algo em construção, uma busca do próprio realizador da qual o espectador é convidado a participar e acaba se tornando cúmplice.
O curta A rainha e a cuíca (2005), de Felippe Mussel, menção honrosa no REcine do mesmo ano, exemplifica bem o caso de construção de uma história de ficção a partir de imagens documentais. A rainha e a cuíca utiliza como material bruto a reportagem original do Repórter Esso (TV Tupi) sobre a visita da rainha da Inglaterra ao Brasil em 1968. Sob as imagens de arquivo constrói uma narrativa fictícia sobre a passagem de Elizabeth II por terras brasileiras. A reportagem original, de
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viés jornalístico, é subvertida, uma vez que suas imagens são emprestadas a uma narrativa ficcional de caráter cômico na qual a rainha teria desaparecido na companhia de um malandro da Lapa.
Aula inaugural de Nelson Pereira dos Santos na oficina de vídeo do REcine 2009
Nesse caso, o som será o veículo de resignificação das imagens. Simulando o formato televisivo no qual foram produzidas as imagens, o curta estrutura-se como um programa de televisão, onde a matéria sobre o desaparecimento da rainha é interrompida por comerciais. Para confecção dos comerciais, mais uma vez toma as imagens de arquivo da TV Tupi e, novamente, lança mão do recurso de sobrepor a estas uma trilha sonora, com a dublagem dos personagens, conferindo-lhes um tom cômico. Ao optar por manter o formato original de apresentação das imagens, simulando um programa jornalístico, e através da trilha criar uma dissonância com estas, um dos efeitos é colocar em questão a própria veracidade da proposta das reportagens da TV Tupi, de informar. O trabalho de montagem insere a imagem/documento em um novo discurso, dando-lhe outro sentido, ou simplesmente relativizando, ou esvaziando, o seu sentido primeiro. Entretanto, ainda que ressignificada e relacionada a outro contexto, a fonte permanece como ícone do seu tempo, não deixa de dialogar com o seu locus de produção. A edição de imagens de arquivo assemelha-se, portanto, à prática dos historiadores, como sugerem Consuelo Lins, Luiz Rezende e Andréa França: A mesa de trabalho de um pesquisador, o atelier de um artista, a sala de montagem. Espaços de desmontagem e remontagens, de desordem e de reordenações provisórias, de reflexão e de produção de obras fecundas. A prática de desmontar/remontar
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jornalística ou governamental. Inseridos em novas montagens, que os desconstroem e reconstroem, os documentos perdem seu estatuto de verdade, e, por conseguinte, a autoridade dos lugares de produção é questionada. Ao desconstruir-se o passado, o evento histórico, reconfigura-se o passado.
O professor de cinema da UFF Cezar Migliorin (de camisa clara) foi um dos orientadores da oficina de 2009
documentos transcende o trabalho exclusivo dos historiadores. Muitos artistas e cineastas a tem realizado por outros meios e em outros campos, mas com fundamentos teóricos e metodológicos similares.2
Eleito o melhor curta do Festival em 2007, O alerta, de Raquel Gandra, por sua vez, constrói uma narrativa de ficção científica a partir, essencialmente, das imagens em movimento da Agência Nacional. O alerta para ataque de discos voadores é a manchete dos principais meios de comunicação. Imagens das conversas e reuniões de autoridades são intercaladas com imagens de uma galinha, ao som de cacarejos, relevando um tom irônico e debochado. Depois disso, uma ofensiva dos humanos contra os discos voadores tem início. As imagens de combates, guerras e destruição, que originalmente são fontes de prova de algo já ocorrido, ganham outros sentidos nessa história de ficção. O componente sonoro atribui um caráter de suspense ao filme. Não por coincidência a diretora se apropriou de três músicas do compositor Bernard Herrmann, que fez trilhas sonoras para vários filmes de Alfred Hitchcock. Ambos os filmes, A rainha e a cuíca e O alerta, inserem em um contexto ficcional imagens originalmente associadas à versão oficial dos fatos, fosse
Demonstrando as grandes possibilidades artísticas e filosóficas que se abrem com o uso de arquivos, verificamos em alguns vídeos das oficinas do REcine, um uso experimental do acervo, colocando novas questões à linguagem cinematográfica e propiciando experiências estéticas inovadoras. Inspirado no poema Mapa, de Murilo Mendes, o filme Influxus (2006), de Aline Paiva, apresentase como uma poesia visual, aproximando-se do cinema de tendência experimental. Serão as pontas de filmes, os “restos” do cinema, mesclados com imagens de ginastas fazendo acrobacias no ar, que ditarão o ritmo do filme acompanhados por trilha sonora incidental. O corpo humano em movimento funde-se com as pontas, mergulha na imagem, sendo mais um elemento a dar ritmo ao curta. Flashes de imagens de arquivo irrompem na tela, a ponto de serem percebidas, mas sem que possam ser contempladas, ou refletidas. Alguns starts nos prometem um início que nunca se realiza, uma vez que não se trata de um filme narrativo, em um eterno retorno aos restos, às pontas, ao movimento puro do cinema, do corpo humano, da história que insiste em infiltrar-se no movimento do cinema. Trata-se de uma experiência poética, que demonstra ser possível refletir sobre o cinema de arquivo, a partir de uma linguagem não representativa, não narrativa. Já em Obra do acaso (2006), dirigido por Renata Than, como o nome já indica, utilizou-se a montagem de imagens de alguns filmetes com áudio de outros, de forma aleatória, sem intencionalidade, conforme nos alerta a cartela: “Todas as imagens deste filme foram capturadas com o áudio de outros documentários. Sem querer”. O resultado
2 LINS, Consuelo; REZENDE, Luiz Augusto; e FRANÇA, Andréa. A noção de documento e a apropriação de imagens de arquivo no documentário ensaístico contemporâneo. Revista Galáxia, São Paulo, n. 21, p. 54-67, jun. 2011. Disponível em: <http://revistas. pucsp.br/index.php/galaxia/article/download/5597/4598>. Acesso em: 28 abr. 2012.
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é o flagrante contraste entre uma narração sóbria sobre intervenções cirúrgicas e equipes médicas com imagens de cultos religiosos, perseguições policiais, bichos de pelúcia e bonecas, causando mais uma vez estranhamento ao áudio original. A menção a Buñuel na última cartela aponta para uma simpatia com a proposta surrealista, que coloca o real em questão, abrindo caminho à livre imaginação do espectador. Propõe desta forma uma brincadeira com as fontes, mostrando que a subjetividade do espectador pode conferir novos sentidos a uma montagem aleatória, como a dizer que não há limites para a produção de novos filmes, uma vez que qualquer combinação servirá de substrato para o ilimitado da imaginação humana. Uso documental A despeito das novas possibilidades de utilização de imagens de arquivo nos domínios ficcional e experimental, o uso mais recorrente permanece entre produções de caráter documental, em abordagens de temas ligados à realidade. De acordo
com Lins e Rezende (2009),3 “a retomada de imagens de arquivos – públicos, privados, pessoais, televisivos, anônimos – é um procedimento cada vez mais recorrente na produção artística contemporânea, das artes visuais aos produtos midiáticos, especialmente no documentário”. No caso de Carcará (2006), dirigido por Gabriela Brazil, a temática da imigração é apresentada através da edição de imagens do sertão nordestino e de famílias sertanejas em situação miserável, com paisagens do Rio de Janeiro e das favelas cariocas costuradas por uma música, trilha sonora do filme. Os filmetes produzidos em momentos diferentes, com propósitos igualmente distintos, são conectados pela canção Carcará, de João do Valle, que trata da ave de mesmo nome cuja rudeza, de quem “pega, mata e come”, se adéqua à paisagem sertaneja. No fim, a cantora menciona estatísticas de imigração da população nordestina nos anos 1950, enquanto assistimos a famílias desembarcarem de ônibus, aspectos das favelas cariocas e por fim um menino pedindo esmolas
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O curador do REcine 2010, Clovis Molinari Jr., conversa com os oficineiros
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3 LINS, Consuelo; e REZENDE, Luiz Augusto. O audiovisual contemporâneo e a criação com imagens de arquivo. 13° Encontro Socine – Escola de Comunicação e Artes/Universidade de São Paulo, 2009.
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nas ruas. O curta demonstra a possibilidade de abordar um tema, de forma narrativa, através da conexão de imagens produzidas para outros fins, neste caso, utilizando-se da trilha sonora como fio condutor da trama. Já em Conexão subúrbio 56: Tijuca – RJ (2009), de Túlio Bambino, uma montagem rápida alterna imagens de arquivo de locais da cidade do Rio de Janeiro, em especial do bairro da Tijuca, com outras contemporâneas, dos mesmos lugares, em tomadas bastante semelhantes, evidenciando as modificações ocorridas ao longo do tempo. O diálogo entre imagens passadas e presentes, evidencia o discurso do filme, onde é discutida a ideia de passagem de tempo e de como as pessoas relacionam-se com o mesmo. Refém da montagem acelerada e, por consequência, do próprio tempo, o espectador experimenta a intenção do autor, corroborando com a tese do filme de que na sociedade atual não se consegue parar para pensar a cidade, a vida etc. Em Conexão subúrbio 56: Tijuca, o tempo é o próprio tema do documentário. Entretanto, a análise de filmes que usam material de arquivo nos permite observar que quando imagens produzidas em diferentes épocas são colocadas lado a lado com outras, através de uma montagem por oposição, o espectador experimenta a passagem do tempo por meio da dissonância estética entre as imagens. São diferentes os formatos de captação da imagem e variados os suportes – em geral, carregando as marcas dos anos. O tempo está inscrito no suporte, mesmo que não seja objeto da narrativa fílmica. Assim, ao utilizar imagens de arquivo, não só a história dos homens ganha voz, mas a história do cinema, que através de imagens arranhadas, de diferentes texturas, testemunha a evolução dos meios de filmagem. Crítica ao documento – “Falso documentário” Seguem por um terceiro caminho alguns filmes cujo foco é o questionamento direcionado às próprias fontes utilizadas. Pretendem manter
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a relação dos documentos com seu contexto original, já que o que interessa é justamente empreender uma crítica ao documento. É o caso, por exemplo, do curta dirigido por Aline Baldez, Conversa para boi dormir (2006). O filme expõe a contradição entre o áudio de um filmete institucional produzido pela Agência de Propaganda do Governo sobre a importância da educação básica com imagens de diversos filmetes que mostram crianças em situação de miséria. O título irônico já demonstra a posição do diretor em relação à narrativa original da Agência Nacional, que foi o principal veículo de divulgação institucional dos atos oficiais e das realizações do governo federal no período de 1945 até 1979. Os cinejornais da Agência Nacional construíam uma determinada visão da realidade – defendida e veiculada pelo Estado – imposta à sociedade como verdadeira, a versão oficial dos fatos. Também nesta linha temos Canção dos oprimidos (2004). Em um primeiro momento, o diretor Pablo Cunha fez um grande mosaico de imagens em movimento (Agência Nacional, TV Tupi e IPÊS) e fotografias de diferentes acervos ilustrativos da repressão da ditadura militar no Brasil. Conduzidas ao som do registro sonoro do ato institucional nº 5 (Agência Nacional), de dezembro de 1968, buscando representar o olhar dos agentes da repressão. Já em um segundo momento, um clássico da cantiga de roda, Atirei o pau no gato, passa a dar narrativa ao filme. A versão utilizada lembra as músicas das paradas militares e nesse momento as imagens assumem um caráter de denúncia. Depois, a cantiga é apresentada no ritmo de funk (“atiraram o pau no gato”) juntamente com a cantiga Marcha soldado. O diretor de forma muito criativa passa a conduzir a história a partir do olhar das vítimas da repressão. Charges retratando Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Fidel Castro e Zé do Caixão passam a dar um tom crítico e irônico ao mesmo fato. Os mesmos documentos ganham interpretações diferenciadas, criando uma distinção entre os olhares do repressor e do reprimido. A diversidade de tipos documentais utilizados – imagens em movimento, fotografias, charges e registros sonoros – contri-
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buiu na construção de diferentes perspectivas e interpretações da repressão militar.
desavenças e afinidades, emergem subitamente e desaparecem sem deixar vestígio.4
A reutilização dessas mesmas imagens em novos arranjos, editadas, ressignificadas ou apenas esvaziadas de seu sentido original, seja com propósitos artísticos, ficcionais ou até mesmo documentais, ganha, desta forma, uma função política, ainda que não seja essa a intenção do diretor. Como já falamos, a montagem, ao alterar a ordem de uma sequência de planos, ao mudar o som, multiplica as possibilidades de dar novos sentidos a uma imagem, ou de esvaziar seu sentido original. É nesse diálogo entre passado e presente que a imagem de arquivo ressignifica-se ela mesma e também ao presente.
Desde 2004, os selecionados para participar das oficinas de vídeo do REcine estão aprendendo, sob a orientação de renomados cineastas e professores de cinema, e brincando de recortar e colar documentos de arquivo. Além dos “brinquedos institucionais”, alguns alunos das oficinas têm incorporado os seus próprios, e ainda os “brinquedos” criados, adquiridos e acumulados por suas famílias para produzir e contar através da linguagem cinematográfica suas histórias.
Considerações finais O Arquivo Nacional e a Rio de Cinema Produções Culturais, por meio do REcine, especificamente com as oficinas de vídeo, ampliam a finalidade de uma instituição arquivística pública ao incentivar a produção de conhecimento científico e cultural, estreitando os laços entre a arquivologia, cinema e história. A disponibilização das imagens de arquivo para acesso e uso é uma tarefa fundamental e proporciona novas leituras e interpretações de um valioso patrimônio documental. Maurício Lissovsky acredita que
A pequena amostra de filmes analisados e as reflexões e referências expostas neste artigo comprovam que as possibilidades de utilização de imagens de arquivo não se esgotam. Com pesquisa, criatividade e suporte dos aspectos teóricos acerca da produção de filmes, podemos ter contato com um singular patrimônio cinematográfico que nasce a cada edição do REcine. Assim como o cinema, as imagens de arquivo podem estar sempre em movimento. Serão sempre passíveis de novas e diferentes leituras, interpretações e reinterpretações.5
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O cineasta Luiz Carlos Lacerda (o sétimo da esq. para a dir.) posa com seus alunos da oficina de 2011 Flávio Lopes
a manifestação mais evidente de que o futuro é a alma dos arquivos é que os documentos estão sempre ‘rearranjando-se’, independentemente do trabalho dos arquivistas e de seu esforço para consolidá-los nos modos úteis da recuperação de informações (organização, catalogação, indexação etc.). Os arquivos, de fato, são como os brinquedos que uma criança tem em seu quarto, sobre as prateleiras ou dentro do armário. Durante a noite – e disso dão testemunho os sonhos, as lendas natalinas e muitas histórias infantis – eles se animam, cultivam
4 LISSOVSKY, Maurício. Viagem ao país das imagens. In: FURTADO, Beatriz (Org.). Imagem contemporânea: cinema, TV, documentário, fotografia, videoarte, games... vol. 1. São Paulo: Hedra, 2009. p. 125. 5 Outras referências bibliográficas: MELLO, Jamer G. Elogio à desarmonia: criação e manipulação de imagens de arquivo no filme Viajo porque preciso, volto porque te amo. Artifícios: revista do Difere – Grupo de Pesquisa Diferença e Educação, UFPA, Belém, v. 1, n. 2, dez. 2011. Disponível em: <http://www.artificios.ufpa.br/Artigos/a%20jamer.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2012; MUNIZ, Nancy A. Campos. O símbolo e a construção imaginária de uma instituição. In: MANINI, Miriam Paula; MARQUES, Otacílio Guedes; e MUNIZ, Nancy Campos (Orgs.). Imagem, memória e informação. Brasília: Ícone, 2010. p. 125-145.
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Entrevista com João Luiz Vieira
Na comédia ou em qualquer gênero, não faltam
diversidade, ousadia e audácia
no cinema brasileiro BR_RJANRIO_PH FOT_0_FOT_37753_003
Doutor em Cinema pela New York University e professor do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense, o pesquisador João Luiz Vieira é uma das maiores referências quando se tratam de estudos sobre a história e a estética do cinema brasileiro. Em entrevista à Revista REcine, o autor dos livros D.W.Griffith and the Biograph Company (Scarecrow Press, 1985), Cinema Novo & Beyond (MoMA, 1998) e Câmera-faca: o cinema de Sérgio Bianchi (Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira, 2004) e curador de mostras e retrospectivas, como a do cineasta Roberto Farias no Centro Cultural Banco do Brasil (2012), analisa a vocação do cinema nacional para o humor e os meandros dessa indústria que, à custa de muita criatividade, vem conquistando há décadas seu espaço na preferência dos brasileiros. Grande Otelo em Moleque Tião (1943), de José Carlos Burle. O primeiro sucesso da Atlântida Cinematográfica foi inspirado na biografia do ator. Correio da Manhã
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Essa vontade de se ter uma indústria nos remete ao período de consolidação dos estúdios norte-americanos no primeiro pós-guerra, com a consciência muito clara do filme como um produto inserido num sistema de relações econômicas envolvendo a produção, no sentido estrito, aliada à distribuição e exibição. Ou seja, o filme tal e qual qualquer bem de consumo dentro de uma linha fordista, como um carro ou uma geladeira, gerado numa fábrica (os galpões dos estúdios de Hollywood copiam esse modelo), com trabalhadores mantidos sob regime de trabalho contratual, como técnicos, diretores, atores, roteiristas etc. O conceito chega ao Brasil no final da década de 1920 e ganha momentum no primeiro governo Vargas, cujo incentivo à modernização do país era objetivo perseguido por uma política mais agressiva em defesa de uma indústria nacional. O cinema brasileiro estava na agenda. Tivemos várias experiências anteriores ou simultâneas à da Atlântida, com maior ou menor presença e continuidade no mercado (Phebo Brasil Film, Sonofilms, Brasil Vita Filmes, Companhia Americana, Maristela, entre outras), mas foi mesmo a Cinédia, de Adhemar Gonzaga – que havia feito visitas aos Estados Unidos e experimentado de perto o contato com esse modelo matricial –, nossa primeira experiência que permitiu um certo joão luiz vieira:
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grau de comparação com o modelo hollywoodiano de sucesso. O cinema norte-americano é forte porque construído dentro de uma economia igualmente forte. Hoje, apesar dos EUA não estarem também com toda essa bola, seu cinema parece mais forte do que nunca, e as relações completamente assimétricas nesse mercado dominado não é privilégio do Brasil. O mesmo acontece, com maior ou menor grau, mas mantendo-se a hegemonia audiovisual norte-americana, em países de economia mais forte que a nossa, como a Alemanha, a França, o Japão, a Inglaterra. A concorrência com o produto importado me parece que só pode ser encarada mesmo a partir de mecanismos mais eficazes de proteção ao produto brasileiro (como em qualquer outro produto, já que estamos falando de indústria). Sei que os tempos são outros, o público também, o mercado exibidor mudou sua configuração, mas, respondendo estas perguntas ainda sob o impacto da revisão dos filmes e do papel de Roberto Farias no conjunto das atividades e agenciamentos do cinema brasileiro, não há como olhar com certa nostalgia para um par de anos ali entre 1974 e 1979, quando os filmes brasileiros ocuparam quase 40% do mercado, fazendo-nos crer a todos que sim, era possível uma indústria de cinema no Brasil. O enorme sucesso dos filmes da Atlântida hoje em dia pode ser vislumbrado, talvez, numa pulverização de conteúdos que se espalham pela televisão brasileira e podem ser observados, por exemplo, na comicidade de um Zorra Total, nas paródias de um Casseta & Planeta, em números musicais de um Domingão do Faustão, mais ou menos por aí.
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Leonardo Lara/Acervo Universo Produção
Cinédia, Atlântida e Vera Cruz. Os três grandes estúdios cinematográficos brasileiros buscaram um padrão de qualidade no cinema nacional inspirados em Hollywood. Havia entre os anos 1930 e 1950 uma pretensão de se criar no país uma indústria cinematográfica razoavelmente sofisticada. A Atlântida teria sido a mais bemsucedida nessa missão, por apostar muito mais nas comédias, tendo também uma boa distribuição, mas sabe-se que poucos recursos eram investidos na produção dos filmes, embora estes gerassem excelente lucro para a empresa. Na Vera Cruz, ao contrário, muitos recursos e um retorno apenas razoável, o que contribuiu, entre outros fatores, para o enfraquecimento da companhia. Você acredita que num país como o Brasil é possível haver uma indústria cinematográfica realmente importante, capaz de concorrer com o cinema americano em território nacional? A popularidade alcançada pelos filmes da Atlântida é possível hoje?
recine:
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João Luiz Vieira
recine: Visto com muitas reservas pela crítica e pelos intelectuais da época, o cinema produzido pela Atlântida poderia ser considerado o mais autêntico cinema brasileiro, por mostrar coisas tão nossas e também por conquistar o público?
Falar de autenticidade é essencializar a questão, definir o que seria um caráter brasileiro, uma identidade nacional, algo que acho arriscado. Olhando retrospectivamente dados de mercado referentes aos maiores sucessos de público do vieira :
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Na comédia ou em qualquer gênero, não faltam diversidade, ousadia e audácia no cinema brasileiro
no caso de Xica da Silva. Há exceções que fogem desse padrão dominante, como Marvada carne, O homem que copiava, Eu, tu, eles. A música tem exemplos icônicos como Roberto Carlos e o diamante cor de rosa e Dois filhos de Francisco. E a paródia manteve presença em meados dos anos 70 com três exemplares: Bacalhau, Costinha e o King Mong e A banana mecânica, apesar de que neste último filme a referência é mesmo mais ao título do original de Stanley Kubrick (Laranja mecânica) do que ao filme propriamente dito. Sobre o cinema produzido pela Atlântida, é sempre bom relembrar que, apesar de seu nome ter ficado para sempre associado à chanchada, os estúdios também mantinham uma linha de realizações diversificadas que incluía adaptações literárias (como Terra violenta, de 1948, ou Escrava Isaura, de 1949, ou ainda A sombra da outra, de 1950, este considerado um competente melodrama dirigido por Watson Macedo, nome emblemático da chanchada), o policial noir Amei um bicheiro e o pioneiro melodrama racial Também somos irmãos, de 1949, dirigido por José Carlos Burle, outro realizador também identificado com a chanchada. recine: Cinema e música popular, uma combinação irresistível que atraiu o público para as salas de exibição entre as décadas de 1930 e 1950. Sem a presença das estrelas do rádio, teriam os filmes da Cinédia e da Atlântida feito o sucesso que fizeram?
Enquanto a Laranja mecânica de Stanley Kubrick era censurada no Brasil, Carlos Imperial produzia e protagonizava A banana mecânica (1974), comédia erótica de Braz Chediak. Correio da Manhã
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cinema brasileiro, conforme pesquisa realizada por João Carlos Rodrigues ainda na Ancine, publicada na Filme Cultura nº 52, numa lista que compreende quase quatro décadas (1970-2007), percebe-se que, em termos de gênero, tanto na faixa que vai de quinhentos mil a um milhão de espectadores quanto na dos filmes que fizeram mais de um milhão de espectadores, a ênfase cai indiscutivelmente nas comédias (Se eu fosse você I e II, Os normais I e II, A partilha, O auto da compadecida, Deus é brasileiro, entre muitos outros títulos) ou em títulos que combinam humor com sexo e erotismo (Dona Flor e seus dois maridos, A viúva virgem, Como é boa a nossa empregada, Eu dou o que elas gostam, Guerra conjugal, As secretárias que fazem de tudo etc.) ou ainda tudo isso com História, como
vieira : O surgimento desses filmes no cinema brasileiro está relacionado com uma conquista técnica perseguida pelo cinema desde sempre e atingida no final da década de 1920, que é o som. Com a voz, vieram também os ruídos e a música. No cinema norte-americano, dois gêneros se destacaram com força nesses primeiros anos do filme sonoro, que foram os filmes de gângster (o fascínio pelo rajar de metralhadoras...) e, claro, o musical. Mas em diversos outros países musicalmente já fortes, o filme sonoro será muito bemvindo porque apoiado, inclusive, em uma crença de que os poderes da língua nativa e de sua música pudessem fazer frente à dominação já consolidada do cinema norte-americano e, com isso, pudesse alavancar o desenvolvimento de uma indústria nacional centrada nos poderes da língua. Por aí
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aparecem, por exemplo, o “filme de tango”, na Argentina, o “filme de fado”, em Portugal, e aqui no Brasil, os primeiros filmusicais com os astros e as estrelas do rádio e de uma indústria fonográfica em plena efervescência. Um esquema narrativo inicial também se desenvolve a partir de matrizes de enredos ambientados em espaços relacionados com a música e o espetáculo, como estações de rádio, cassinos, teatros. O público conhecia o áudio, mas faltava o visual, e o cinema veio preencher essa necessidade muito bem, ora ilustrando o que poderia perfeitamente ser ouvido num programa de rádio, ora buscando e experimentando outros caminhos, ao combinar números musicais com pequenos esquetes cômicos, muitas vezes de forma autônoma entre uma passagem de diálogo com outra de música, ora buscando algum tipo de entrelaçamento, como no clássico Alô alô Carnaval, de Adhemar Gonzaga, que felizmente sobreviveu e pode ser apreciado por espectadores de hoje.
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Essa ligação inseparável entre música e humor (e romance, suspense, correrias e confusões) modelou uma forma e construiu um gênero em nosso cinema, de longa duração.
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recine: A Atlântida é sempre lembrada pelas comé-
dias, mas também foram produzidos nos estúdios dramas e adaptações literárias. O mesmo pode-se dizer sobre a produção da Cinédia. O que ficou na memória do público foram as comédias musicais. A que se deve essa falta de reconhecimento nas décadas seguintes? Por que o cinema brasileiro padece desse lapso de memória?
Em boa parte, acho que esse esquecimento acontece porque, se comparado com as comédias, sobraram poucos dramas disponíveis hoje para nossa revisão e conhecimento. Dois exemplos da própria Atlântida são o mítico Moleque Tião, de 1943, cuja narrativa é baseada em alguns dados biográficos de seu ator principal, Grande Otelo, cuja inexistência de cópia muito já se lamentou, e outro filme já citado aqui, A sombra da outra, de 1949, que parece ainda existir e nos dá alguma esperança de que um dia seja efetivamente restaurado e disponibilizado. Mas tivemos sim (melo)dramas de enorme popularidade como o retumbante sucesso de O ébrio, produção da Cinédia, de 1946, que, curiosamente, também se apoiou no sucesso de uma peça teatral e na música homônima cantada por Vicente Celestino. Com a possibilidade de recuperação do que ainda existe em nossas cinematecas e arquivos públicos e privados, e também nas mãos de dedicados colecionadores, é bem possível que, não digo reverter essa preferência pelas comédias musicais, possamos um dia nuançar e reequilibrar um pouco essa balança. Nesse aspecto, a excelente retrospectiva da Cinematográfica Maristela apresentada em 2011 revelou, ao lado de comédias como Vou te contá, de 1958, dramas competentes como Meu destino é pecar,
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O cantor, compositor e ator Chocolate estava no elenco de Vou te contá (1958), de Alfredo Palácios, produção da Cinematográfica Maristela. Correio da Manhã
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Mãos sangrentas ou Presença de Anita. Ou ainda, o filme de aventura Arara vermelha, completamente desconhecido de plateias contemporâneas. recine: Mazzaropi construiu seus próprios estúdios, além de produzir, atuar e roteirizar dezenas de filmes bem-sucedidos. Existe possibilidade de alguém conseguir repetir esse talento e empreendedorismo no Brasil de hoje? vieira: Acho muito difícil, até porque também internacionalmente a era dos estúdios já foi há muito tempo. Vivemos um período de terceirização e você pode, como produtor, produzir seu filme ou qualquer outro produto audiovisual sem necessariamente possuir infraestrutura de estúdio. Até Hollywood, mesmo mantendo o nome de suas grandes fábricas de filmes, como Warner, Fox ou
Mesmo em época de produção mais regular e demanda – como, por exemplo, nos dois breves anos já citados do período Embrafilme –, produtores poderosos do perfil de um Luiz Carlos Barreto, ou dos irmãos Farias, ou ainda Jece Valadão, Massaini ou Galante, nunca foram donos de estúdios no sentido estrito aqui colocado.
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Maria José de Macedo, ou simplesmente Zezé Macedo, uma das maiores comediantes do cinema, rádio e TV brasileiros, com participação em mais de cem filmes ao longo da carreira. Correio da Manhã
Paramount, há muito contrata serviços e competências especializadas, como na prolífica área dos efeitos especiais. Aqui, como em qualquer outro lugar, esse conceito de estúdio só se justifica, e em parte, apenas quando há a continuidade regular de produção, demanda e mercado. E, no Brasil, isso só é possível, no audiovisual, na televisão. Nesse sentido, estúdio aqui é alguma coisa como o Projac, da Globo. E só.
Talvez comparado a Mazzaropi, quem poderia ter tido uma experiência parecida com a do realizador/ator paulista, poderia ser um Renato Aragão, com certeza. Mas assim mesmo não aconteceu. O caso Mazzaropi é singular na cinematografia brasileira. O cinema marginal, nos final dos anos 60 e no decorrer da década de 70, no período mais duro do regime militar, trouxe de volta o humor ao cinema brasileiro após um período de desprezo ao gênero na fase do Cinema Novo, que enfrentava a forte censura da ditadura militar. O humor do cinema marginal, ácido e corrosivo, foi influenciado pelas chanchadas? Se houve essa influência, esse retorno aos preceitos da chanchada, nos filmes de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, por exemplo, não teria sido uma necessidade irreprimível de chegar ao público, se expressar e tornar o cinema nacional novamente atraente para as massas, tal como aconteceu com Macunaíma? recine:
vieira: A questão aqui é bem complexa e envolve diversos aspectos, estratégias, atitudes, desafios, ressentimentos. De um lado, temos a expressão de um desejo subterrâneo (no sentido underground – ou, melhor, udigrúdi mesmo) de buscar, por oposição, a afirmação de um outro cinema distanciado do Cinema Novo naquilo que, na visão dos jovens marginais (especialmente Sganzerla e numa primeira fase de Reichenbach, entre outros),
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Com a elitização do cinema e as leis de incentivo à cultura a partir dos anos 90, as exigências das empresas patrocinadoras acabaram prevalecendo, e o cinema brasileiro não teve outra saída a não ser investir mais em profissionalização e tentar fugir do preconceito que as classes mais intelectualizadas tinham em relação aos filmes produzidos aqui. O resultado é uma produção um tanto uniforme, que parece só apostar nas mesmas fórmulas, especialmente quanto às comédias, salvo um ou outro filme mais experimental. O cinema brasileiro teria perdido a ousadia? Mazzaropi e Dercy Gonçalves seriam audaciosos demais para os dias de hoje? Se olharmos o conjunto da produção contemporânea, com mais de uma centena de títulos produzidos anualmente nos últimos dois,
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José Lewgoy irreconhecível em Roberto Carlos e o diamante cor de rosa (1968), de Roberto Farias. Correio da Manhã
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significava um elitismo cinemanovista, um cinema que havia se aburguesado, virado mercadoria valiosa num circuito internacional de “cinema de arte”, reconhecido em festivais de prestígio na Europa. Um cinema que, muitas vezes apoiado na literatura, reiterava a imagem de um país rural, arcaico, folclórico, em certo sentido exótico aos europeus (especialmente os franceses), que curtiam e aguardavam essa imagem para eles inédita, além, claro, da potência política de sua linguagem revolucionária e inovadora também por eles reconhecida e principalmente necessária num momento de intensas transformações culturais e políticas motivadas pelo período em torno de 1968. Como o “velho” cinema dos estúdios havia sido naturalmente execrado dos objetivos políticos e estéticos dos jovens realizadores do Cinema Novo (e não apenas no Brasil, mas também na França, claro, no Leste Europeu, na Alemanha, Inglaterra e até no Japão, em contextos específicos), a tentativa de resgate de alguns conteúdos e formas desse velho cinema era, mais que estratégia de mercado, também uma atitude de provocação. Buscava-se propositadamente absorver e reciclar um cinema “mal feito”, “mal acabado”, de “mau gosto”, “pobre de ideias e ambições estéticas”, realizado de forma rápida (e nunca menos criativa) e que pudesse chegar ao público na medida do possível. Mas que fosse ao mesmo tempo muito sofisticado e avançado em termos de linguagem, provando que pesquisa de linguagem e experimentação não precisam ser incompatíveis com um cinema que também fale a um público mais popular. O bandido da luz vermelha sempre foi exemplar nesse sentido. Mas o dito cinema marginal é algo também de complexa definição, com muitos caminhos, escolhas, propostas particulares, não dá para resumir ou sintetizar aqui em rápidas pinceladas. Tentar responder esta pergunta merece um curso de um ou dois semestres no mínimo... Mas gostaria apenas de lembrar aqui de atores como Pagano Sobrinho no Bandido, ou das diversas aparições de Grande Otelo (O rei do baralho, em especial), Wilson Grey, Zezé Macedo, entre outros.
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recine: Entre as décadas de 70 e 80, os filmes de comédia com teor erótico, as pornochanchadas, com seu humor escrachado e cenas de sexo, atraíram milhões de espectadores às salas de cinema.
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Ankito atuou nos filmes De pernas pro ar (1956), É de chuá (1958), Um candango na Belacap (1961), entre outros. Correio da Manhã
três anos, não dá para afirmar que se trata de uma experiência, afirmou que todas essas expressões produção uniforme. Muito pelo contrário. Contisão importantes e válidas e que, principalmente, nuamos produzindo um cinema de muita diversielas dependem umas das outras em diversos dade, tanto temática quanto formalmente. Lado sentidos, sejam estéticos quanto, principalmente, a lado com a produção mais visível, ligada aos econômicos. Ninguém melhor do que ele para, esquemas da televisão, por exemplo (um “cinema com segurança, fazer tal afirmação, já que viveu de televisão”, talvez forçando um pouco a barra na pele essas tensões entre a comédia mais segura na comparação, muito dependente do que foi um de Rico ri à toa ou Um candango na Belacap e a expe“cinema de rádio” no passado), testemunhamos riência de Selva trágica. expressões sempre mais à margem da televisão recine: Os filmes recentes que mais arrecadam nas (como os filmes de Cláudio Assis ou Sérgio Bianbilheterias são comédias, geralmente produzidas chi, para citar apenas dois exemplos muito fortes pela Globo Filmes e estreladas por atores de e particulares que ainda conseguem uma certa sucesso na TV. Esses filmes são vistos com um visibilidade em circuitos mais tradicionais de exicerto preconceito, pois acredita-se que se utilibição como salas de cinema). E especialmente vale zam da linguagem da televisão e não são cinema a pena destacar o cinema feito por novas gerações de fato. Essas críticas aos filmes da atualidade que, felizmente, ainda buscam saídas e caminhos podem ser comparadas com as críticas direcioalternativos para o trabalho com o audiovisual – nadas aos filmes da era de ouro da Atlântida? O seja em termos de linguagem e de temas, seja nos que faz sucesso tende quase sempre a ser visto esquemas de produção digital, de distribuição e visibilidade, seja, principalmente, pela potência que se vislumbra em outras BR_RJANRIO_PH FOT_0_FOT_08904_003 regiões, num cinema vigoroso que nos chega de Pernambuco ou do Ceará, de Minas Gerais, de grupos que se associam em cooperativas nesses estados, e também no Rio e em São Paulo. Ousadia, audácia, inovação, surpresas não faltam no audiovisual brasileiro, conforme testemunhamos em diversos festivais país afora (o de Tiradentes se destacando em especial) e em mostras importantes como a Mostra do Filme Livre e o chamado Cinema de Garagem, no interesse provocado pela Semana dos Realizadores e na revelação de expressões realmente marginais como o chamado Cinema de Bordas. Por outro lado, também não dá para ficar demonizando o tempo todo esse cinema de televisão mais visível e que ainda consegue levar multidões aos cinemas. Relembro aqui as palavras sábias de Roberto Farias há poucos dias em sua Aula Magna no CCBB, dentro da retrospectiva a ele dedicada, quando, com toda a sua
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como comercial, sem valor artístico? O tempo se encarregaria de fazer justiça a essas obras, como aconteceu com as chanchadas? O desconforto crítico contra a comédia (poderíamos chamar de preconceito, sim) é um fato histórico que não é privilégio nosso e nem é novo. Está arraigado na cultura através de séculos de entronização do drama como hierarquicamente superior. Para isso, basta relembrar premiações em festivais nacionais e internacionais sempre que se colocam lado a lado comédias e dramas. As atribuições do Oscar, inclusive, não deixam dúvidas com relação a esse embate. No caso do cinema, a realização de um filme dramático parece se colocar como a demonstração da competência máxima de um realizador e, vale lembrar de novo, da frustração sempre reconhecida por Watson Macedo dentro da Atlântida pelas dificuldades impostas pelo patrão em dirigir um drama (daí o interesse crescente pela possibilidade de se rever um dia o já citado A sombra da outra – ele que era um excelente diretor de chanchadas e que realizou, em 1962, um ótimo filme policial chamado Um morto ao telefone). José Carlos Burle e Carlos Manga tiveram mais sorte nesse aspecto, assinando produções como Também somos irmãos, Maior que o ódio, O marginal ou adaptações teatrais, no caso de Manga, que não eram necessariamente chanchadas (Cupim, Papai fanfarrão). Acho que esse preconceito explica o desconforto com algo sempre considerado menor, desvalorizado. É provável que sim, com o tempo, especialmente a partir de outros olhares de novas gerações, consigamos um dia rever toda a produção contemporânea de comédias de “cinema de televisão” e descobrir outros valores e qualidades. vieira:
recine: Observando os maiores sucessos na história do cinema nacional, em sua opinião, o humor continua sendo o caminho mais seguro para chegar ao grande público no Brasil? vieira: Não há caminhos certos nesse calcanhar de Aquiles que é chegar ao grande público no Brasil hoje. Esse impasse entre produção e exibição tradicional (em salas de cinema) passa por questões mais problemáticas do que apenas a aposta em qualquer gênero, não importa se o filme
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brasileiro da hora for uma comédia, um drama ou um filme policial. Envolve a priorização do tema como pauta de um governo forte o suficiente para enfrentar pressões externas e internas. Como, por exemplo, manter um filme brasileiro de sucesso em cartaz se a data de estreia do último Homem Aranha já foi definida há muito tempo nesse mercado globalizado? O filme brasileiro, por mais espectadores que esteja conseguindo, terá que sair de cartaz para dar espaço ao cinema hegemônico. Não temos mais mecanismos regulatórios como aqueles que determinavam a dobra de semana a partir de uma certa previsão de público obtido na primeira semana. Faltam mais salas que pudessem ser ocupadas pelo filme brasileiro nesse jogo desigual? Com certeza. Mas acho que a solução também não será apenas por aí, de novo, se não tivermos uma política mais forte e afirmativa para o setor de exibição.
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Recentemente, o sucesso de Cidade de Deus e, depois, dos dois Tropa de elite esboçou um possível nicho genérico que parecia garantir um lugar para o filme brasileiro. Também, há pouco tempo, filmes como Chico Xavier, Bezerra de Menezes e Nosso lar chegaram a projetar um possível ciclo de filmes de espiritismo que, afinal, não se concretizou. Mas talvez, se pensarmos em fórmulas de sucesso, é possível que mais uma vez a combinação entre humor e música dê certo. Como está dando no momento na televisão com a divertida novela Cheias de charme. Quem sabe, neste ciclo de “cinema de televisão”, algum produtor não se anima a realizar alguma coisa motivada pela aceitação desse folhetim? Quais são, em sua opinião, as melhores comédias do cinema brasileiro de todos os tempos?
recine:
São muitas, mas, sem ordem de preferência e assim de sopetão, lembro de Aviso aos navegantes, Carnaval Atlântida, Rico ri à toa, Garotas e samba, Sinfonia carioca, Rio fantasia, O homem do Sputnik, Samba em Berlim, A baronesa transviada, É de chuá, De pernas pro ar, os clássicos Matar ou correr e Nem Sansão nem Dalila, Depois eu conto, Mulheres à vista, tudo o que sobrou de Carnaval no fogo... e mais 007 ½ no carnaval chegando até O segredo da múmia, entre muitas outras. vieira:
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Mestrando em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas. João Paulo Putini
“Quebrando o gelo” da Guerra Fria: humor e política em Os russos estão chegando e Doutor Fantástico
“Mas o cinema está doente.
O capitalismo atirou pó dourado em seus olhos. Hábeis empresários o conduzem pela mão nas ruas. Ganham dinheiro comovendo corações com intrigas chorosas. Isso precisa acabar [...]
”
Vladimir Maiakovski1
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Desfile militar na Praça Vermelha, em frente ao Kremlin, em Moscou, sede do governo da antiga União Soviética. A Guerra Fria (1945-1991), disputa política, econômica, militar e ideológica entre os EUA e a União Soviética, em alguns momentos deixou o mundo em estado de tensão, quando se acreditava que a ameaça de uma Terceira Guerra poderia se concretizar. Correio da Manhã, 1967
1 Apud SOUSA, Antonio Cícero C. Cinema e política: o anticomunismo nos filmes sobre a Guerra Fria (1948-1969). Tese (Dou-
torado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2002. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/14667396/ Cinema-no-Contexto-da-Guerra-Fria->. Acesso em: 8 abr. 2012.
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Dois polos A chamada Guerra Fria, disputa política, econômica e ideológica envolvendo Estados Unidos e União Soviética após o fim da Segunda Guerra Mundial, foi um período conturbado na história do século XX. A iminência de um conflito de proporções gigantescas, capaz de dizimar toda a humanidade, pairava como ameaça constante, insistente, incubada nos imaginários, nas posturas, nos comportamentos. Queda-se o plural, o diverso, o múltiplo: o globo se torna polarizado. Num canto, os capitalistas; no outro, os comunistas. O mundo multifacetado precisa ser acomodado a esta lógica binária, a esta dicotomia. É necessário criar zonas de influência; é necessário convencer. Podemos procurar traços desse convencimento nos foguetes lançados ao espaço, nas intervenções armadas em áreas estratégicas, nas figuras de grandes líderes... mas o conflito também foi desenhado e combatido numa outra arena fundamental: “não se vence uma guerra somente no campo militar. É preciso vencer também na mídia”.2 Interessa-me, no esforço do presente artigo, observar um pouco como a produção cinematográfica dos EUA esteve instrumentalizada pelo capital como dispositivo eficaz de persuasão. Seria ingênuo pensar no cinema como arte purista, desvinculada de interesses ideológicos e políticos. Por ser um meio de comunicação massivo, elaboramse estratégias para atingir estas massas, estratégias muitas vezes imperceptíveis, mas que contaminam paulatinamente a memória e o imaginário coleti-
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O presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, e o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, em agosto de 1941, na Conferência da Carta Atlântica, primeiro documento que precedeu a criação das Nações Unidas e que já antevia o mundo pós-Segunda Guerra. Correio da Manhã
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vos. Assim se molda uma comunidade partilhada, terreno onde se busca legitimação e alicerce para atos muitas vezes questionáveis, sobretudo em tempos de guerra. Desse modo, refletindo o conflito bilateral da Guerra Fria, muitos filmes desse momento apresentam a polarização como base narrativa: o herói romantizado, defensor do american way of life, íntegro, racional e individualista – sendo James Bond uma encarnação bastante exemplar (a despeito de ser um personagem inglês, representa o ideal americano) –, versus a ameaça comunista, voraz e destruidora, normalmente representada por um complô antiamericano por excelência. Assim, configuram-se polos e desenham-se conflitos, no qual necessariamente um dos lados – o americano – se sobressairá, sairá vencedor, oferecendo a tranquilidade e o conforto tão necessários em tempos de guerra. Verifica-se, portanto, a construção de um anticomunismo – ora sutil, ora explícito – no qual “o modo de vida capitalista é apresentado de forma [...] paradisíaca [...]. Por sua vez, o homem comunista é tão robotizado, no sentido de ausência de emoções, que apontaria para um homem destituído de parte essencial da humanidade”.3 A Guerra Fria não foi um período de tensão homogênea; por algumas vezes, essa tensão se aliviou e aproximações ocorreram. A linguagem cinematográfica do período acompanhou tais oscilações, contudo com fortes permanências, como “o uso
2 Adriana Viana, professora do Departamento de História da PUC-Rio. Apud ALVES, Anelise; BRITO, Fernanda; e FARIAS, Rosana. Batalha de símbolos: a Guerra Fria no cinema. Eclética: revista do Departamento de Comunicação Social da PUC do Rio de Janeiro, n. 6, p. 6-8, jan./jun. 1998. 3 SOUSA, Antonio Cícero C., op. cit., p. 257.
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“Quebrando o gelo” da Guerra Fria: humor e política em Os russos estão chegando e Doutor Fantástico
constrói de fato a ação política. Tomás Gutierrez Alea,6 cineasta cubano, revelou com extrema contundência a importância de tal operação: Os mitos são uma força inamovível. É preciso exercer a violência contra eles. E qualquer operação desmistificadora implica numa ruptura. Por isso, o espetáculo que se lançar por esse caminho tem de fazer algo mais além de enunciar seu propósito: tem de conduzir o espectador a um questionamento de si mesmo dentro de uma nova realidade – ou seja, a mesma, com novo significado – e isso deve comovê-lo. [...] De modo que o próprio espetáculo tanto pode servir para criar ou reforçar mitos como para destruí-los.
Estratégias de negociação ocorrem no interior da hegemonia. Não podemos pensar o público e os cineastas como seres alienados e inertes, prontos a receber passivamente a ideologia dominante. Lutas e apropriações, acomodações e tensões marcam o processo de comunicação. Assim também o cinema do período viu florescer alternativas profundamente contestadoras do mito e da visão de mundo anticomunistas. Os dois filmes que analiso a seguir são, a meu ver, exemplares no tocante a este aspecto. Vamos a eles. Paranoia vermelha Cidadãos norteamericanos saíram às ruas nos anos 60 e 70 para protestar contra a Guerra do Vietnã e lutar por direitos civis. Correio da Manhã, 1970
de estereótipos, fusão de elementos de gêneros diversos e o culto do herói individualista”.4 O inimigo comunista se converte em mito, utilizando aqui a acepção de Roland Barthes.5 Mito é fabricação, é construção; é uma fala despolitizada, porque naturaliza e normaliza os eventos contraditórios através dos quais se inscreve a história. É um processo reducionista, essencialista e falso, mas funciona como mito à medida que se apresenta como verdadeiro e inquestionável. Nada está mais longe da verdade do que o mito. Para destruí-lo, faz-se necessário desvendar suas contradições, mostrando que por trás da verdade oficial pode existir uma outra verdade; assim se
“– Há um grupo de nove homens saídos de um submarino russo encalhado. – Meu Deus! Está tudo acabado! Não temos a menor chance! Como pôde uma coisa tão horrível acontecer?”
No filme Os russos estão chegando! (The russians are coming, the russians are coming, de Norman Jewison, EUA, 1966), vemos um comandante russo que, com muita vontade de dar uma espiada na América, encalha seu submarino próximo de uma ilha da Nova Inglaterra, nos Estados Unidos. O imediato da embarcação, o tenente Rozanov (Alan Arkin) sai à procura de ajuda, acompanhado de oito tripulantes. Os habitantes da
4 Ibidem, p. 260. 5 BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. 6 ALEA, Tomás Gutierrez. Dialética do espectador. São Paulo: Summus, 1984. p. 64.
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ilha, numa série de confusões e mal-entendidos, julgam estar sendo invadidos, causando pânico e alarde. O filme é adaptado de uma novela de Nathaniel Benchley, The off-islanders, de 1961; mas no romance, os “invasores” eram alemães. Através desta sutil, mas significante alteração, o longa satiriza a propaganda anticomunista nos EUA e, através da comédia, denuncia a tensão provocada pela Guerra Fria, quando esta estava no auge. É uma crítica profundamente direcionada a seu tempo e a sua sociedade. Logo nos créditos iniciais, o grafismo das bandeiras russa e estadunidense já demarca a construção da “ameaça” soviética, cuja bandeira se intromete, aparece sem ser convidada, buscando um espaço. A trilha sonora, cujo tom é marcadamente infantil, entretanto, não sugere terror ou ameaça, ao contrário, a desmente. E o filme faz esse desnudamento o tempo todo, brincando com a paranoia que ronda o imaginário da Guerra Fria, com vistas a destruir esses pavores e mostrar quão ridículos e risíveis são. A intolerância é exagerada a ponto de tornar-se caricata, sobretudo na figura do filho do protagonista Walt Whitaker (Carl Reiner), em cuja casa os russos se abrigam a princípio. Apesar da pouca idade, o menino já é um reacionário de marca maior, exigindo do pai patriotismo e, se necessário, o sangue dos russos. Se uma criança ainda sem valores completamente formados já manifesta tamanho extremismo, isto pode ser explicado por uma pedagogia de intolerância que lhe é inculcada. Acionando esta chave de leitura, podemos interpretar que a sátira à criança se dirige a toda uma mentalidade social, sedimentada numa cultura de massa, da qual o menino é mero reflexo. Uma mentalidade calcada em ódios e preconceitos, com a qual o filme brinca, mas também sugere, nas entrelinhas, que poderia provocar catástrofes, como uma Terceira Guerra Mundial. O humor vem do mal-entendido – situação, aliás, muito propícia à comicidade, de acordo com Propp7 –, e se potencializa através do recurso da ironia dramática, elemento de roteiro que denota uma situação conhecida pelo espectador, porém
desconhecida pelo(s) personagem(ns) em cena. Nós sabemos o que os russos fazem ali, mas os habitantes da ilha não sabem, e engendram teorias tão absurdas que, inevitavelmente, fazem rir. A população da ilha é composta por tipos muito caricaturizados; as figuras que representam a autoridade são patéticas, irresponsáveis, verdadeiras crianças crescidas. A política é a dos faroestes clássicos: “atire primeiro, pergunte depois”. Ao ridicularizar tais intolerâncias e preconceitos, o filme reflete sobre essa falta de consciência por parte da população. Cada um dos habitantes aumenta mais a história que ouviu do outro – a clássica brincadeira do “telefone sem fio” – e chega-se numa versão absolutamente deturpada da verdade. É justamente o que acontece quando se fabrica inimigos: maniqueísmos, falsidades e manipulações, com o objetivo de legitimar atos e ódios. No filme, acontece através do boca a boca; no mundo histórico, com o apoio da cultura de massa. A fabricação de medos e de inimigos tem justificado consideráveis atos de violência na história da humanidade, mas não é meu objetivo traçar um quadro completo sobre isto. Não neste artigo.
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A obra convida a uma tomada de consciência a respeito dessa verdade oficial, atentando para o que está escondido debaixo dos véus da representação. A população sequer analisa as motivações dos russos, ou procura saber quem são, sua história, seus conflitos e motivações. Só de vê-los, projetam neles todas as suas falsas formulações e infundados pavores, ou melhor, toda a “mitologia” da Guerra Fria. Esta mitologia foi construída e disseminada com propósitos ideológicos; é necessário questioná-la para destruí-la. Isto é possível quando se ri das próprias paranoias, reconhecendo-se naquele filme, encarando os medos e os pânicos injustificados, percebendo como são estúpidos, adquirindo consciência sobre sua falsidade, sua construção ideológica, sua imposição. O final do filme salienta esse aspecto: americanos e soviéticos se unem, com o intuito de resgatar uma criança em perigo. A mensagem de otimismo é mais que evidente. Uma solução pacífica não só é possível: é a melhor possível.
7 PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.
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“Quebrando o gelo” da Guerra Fria: humor e política em Os russos estão chegando e Doutor Fantástico
Fazer festa deste “medo mitológico”, que tanto assombrou a Guerra Fria, mostra que a ameaça não são os russos, mas a própria sociedade, sugestionável, tola e incapaz de se organizar de maneira consciente. Hecatombe anárquica “É a posição oficial da Força Aérea Estadunidense que suas salvaguardas prevenirão a ocorrência de tais eventos, como são descritos neste filme.” Cartela antes dos créditos iniciais de Dr. Fantástico
Adaptado do romance Alerta vermelho, de Peter George, Doutor Fantástico (Dr. Strangelove or: how I learned to stop worrying and love the bomb, de Stanley Kubrick, EUA/Inglaterra, 1964) é uma demolição cruel e hilariante da cultura e do imaginário da Guerra Fria, já em seu título hiperbólico e sarcástico (algo parecido com “Como eu aprendi a parar de me preocupar e amar a bomba”). O paranoico e extremamente patriótico general Jack D. Ripper (Sterling Hayden), que enxerga um complô comunista até na água que bebe, dá ordens irreversíveis para que uma esquadra de bombardeiros lance mísseis nucleares na Rússia. Tal ação, inevitavelmente, acionaria a Máquina do Juízo Final, um dispositivo automático que provocaria um apocalipse nuclear. Preocupados com tal possibilidade, autoridades máximas dos EUA se reúnem para impedir que essa hecatombe ocorra. O ator Peter Sellers mostra toda a sua versatilidade e brilhantismo interpretando três papéis: Lionel Mandrake, um oficial que tenta impedir os planos do general Ripper, procurando obter o exclusivo código de comunicação que permitiria contatar os aviões e anular o ataque; o presidente Merkin Muffley, que, pateticamente, procura nas relações diplomáticas a solução para deter o ataque; e o Doutor Fantástico do título, um ex-
nazista, conselheiro político especialista em guerra nuclear. Logo na caracterização desses personagens notamos como a comicidade é construída, sobretudo nesta última – uma espécie de pastiche de cientistas alemães como Wernher von Braun e estrategistas nucleares como Herman Kahn, Edward Teller (o pai da bomba de hidrogênio), e talvez até mesmo o líder do Projeto Manhattan, John von Neumann:8 No personagem Dr. Fantástico (Peter Sellers), o humor está em seu rosto, em sua deformidade, em suas expressões congeladas (referência automática ao Nazismo) onde não se pode mais observar a espontaneidade do que é vivo. Esse congelamento da expressão é tão mais cômico quanto mais essa parcela de automatismo puder ser depreendida, arremedada, reproduzida, repetida.9
Como bem salientou o filósofo Henri Bergson, autor de obra seminal sobre o riso, “as atitudes, os gestos e os movimentos do corpo humano são risíveis na exata medida em que esse corpo nos faz pensar numa simples mecânica”.10 Além desse automatismo cômico evidente, Dr. Fantástico, em sua cadeira de rodas e com seu patético braço mecânico que insiste em fazer a saudação nazista, simboliza o fascismo caduco, decadente e retrógrado. Em seu discurso final – quando, a despeito dos esforços das autoridades, o apocalipse nuclear realmente acontece –, ele prega que é possível repovoar os EUA, selecionando um grupo de amostras que pudesse ser mantido em minas até que a radiação passasse. As mulheres seriam selecionadas por suas características sexuais, e os homens, com base na sua força física, capacidade intelectual, juventude, saúde, fertilidade e importância nos negócios de governo. Eis, portanto, a utopia ariana reencarnada, o sonho de uma raça pura, com todos perfeitos; tal colocação, porém, é proferida por um homem ridículo, que mal consegue controlar seu braço. Como dar valor a estes ideais? Como temer este homem, se
8 SMITH, Peter D. Doomsday Men: the real Dr. Strangelove and the dream of the superweapon. New York: St Martin’s Press/ Macmillan, 2007. p. 424-426. 9 DIAS, Luana Brasil. O riso negro de Kubrick: uma análise da elaboração estética do cômico no cinema de Stanley Kubrick. 2010. 50 f. Relatório de pesquisa. PUC-RS, Porto Alegre, p. 28. Disponível em: <http://pucrs.academia.edu/documents/0079/1269/O_ riso_negro_de_Kubrick.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2010. 10 BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Lisboa: Relogio D’Água, 1991. p. 22.
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[...] é uma comédia clássica [...] A começar pela situação Bola de Neve da devastação da humanidade. É a impotência sexual de um tenente que deflagra o fim do mundo. São cômicas as situações em que uma causa inicial ínfima, ao se desenrolar, vai agregando elementos e causando efeitos progressivamente maiores e mais devastadores até uma catástrofe final [...] Será igualmente cômico um esquema em que uma grande causa produza efeitos mais que pequenos: efeitos nulos. Bergson parafraseia Kant para explicar esse fenômeno – o riso provém de uma expectativa que se resolve subitamente em nada.12
mal conseguimos olhar para ele sem rir? Assim, o discurso se anula, ou melhor, se controverte. Eis a caricatura, que nada mais é que “a destruição dos ídolos pelo riso, sua redução ao estado de patifes [...] A sua função essencial é a dessacralização, o rebaixamento dos antigos valores, dos antigos mestres, dos antigos ídolos”.11 Dito de outra forma, é a aniquilação do mito. A hipocrisia das relações internacionais também é satirizada, sobretudo na conversa de telefone entre os presidentes russo e estadunidense, onde reina uma imbecilidade sem tamanho, absolutamente superficial. Os dois são infantilizados por completo; retoma-se, assim, a representação dos líderes como crianças crescidas, que não amadureceram, como salientamos sobre os habitantes da cidade no filme anteriormente analisado. Doutor Fantástico derruba por terra, através do riso, as teorias conspiracionistas e as paranoias a respeito dos comunistas, fazendo piada através do absurdo e do inverossímil:
Na figura do desconfiado general Buck Turgidson (George C. Scott) e seus exageros anticomunistas, é destilado um humor negro ácido, quando ele sugere que o ataque é uma boa alternativa, avaliando que “não morrerão mais que dez ou vinte milhões”. Assim, se desmascara a insensibilidade e a irresponsabilidade nos altos escalões do poder. “Enfim, foram variados os recursos cômicos [...] os quais Kubrick utilizou em Dr. Fantástico para satirizar o absurdo da corrida armamentista e a iminência da aniquilação nuclear”. 13
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Manifestação da Poor People’s Campaign (Campanha dos Pobres), em frente ao Lincoln Memorial, em Washington D.C., 1968. O movimento liderado por Martin Luther King defendia a justiça social e econômica nos EUA. Correio da Manhã
Doutor Fantástico, acima de tudo, é uma obra que se dirige a seu tempo, fazendo-o através do exagero cômico e mostrando a implausibilidade de medos e loucuras que estavam disseminados e arraigados. O filme é um excelente exemplo de como a sátira pode responder a questões que são facilmente disseminadas pelo establishment como ingênuas, mas que permanecem como absolutamente cruciais para o futuro da humanidade.14 Desse modo, ilumina o problema, refletindo sobre o verdadeiro perigo dessas falsas conjecturas, propagadas pelos meios de comunicação de massa. É o cômico que torna viável essa tomada de consciência; se o filme adotasse o tom sério e solene, ratificaria e solidificaria a paranoia, ao invés de questioná-la.
11 MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Ed. Unesp, 2003. p. 469. 12 DIAS, Luana Brasil, op. cit., p. 26. 13 Ibidem, p. 29. 14 STOTT, Andrew. Comedy. New York: Routledge, 2005. p. 110.
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as convenções e normas daquilo que é aceitável ou “politicamente correto”. Estas comédias mostram que “é possível rir de tudo, e, de certa forma, isso é bom. Duas guerras mundiais não aniquilaram o senso do cômico”.15 Salientes articulações entre humor e crítica política podem ser encontradas nesses filmes. As críticas fazem a provocação, ousam, polemizam, possibilitam novos olhares, mexem em vespeiros perigosos e propõem maneiras inusitadas de se fazer cinema.
Peter Sellers interpreta três papéis em Doutor Fantástico (Dr. Strangelove or: how I learned to stop worrying and love the bomb, 1964). Na foto, o ator britânico no filme O abilolado endoidou (I love you, Alice B. Toklas!, 1968), onde homenageia os comediantes Stan Laurel & Oliver Hardy, mais conhecidos no Brasil como O Gordo e o Magro. Correio da Manhã
Carnaval e consciência: considerações finais “Mas do que o homem ri? Ri do que é ridículo.” Vladimir Propp “O que se tornou ridículo não pode ser perigoso.” Voltaire
Por contradizerem uma espécie de “tratamento padrão”, uma moldura através da qual os inimigos comunistas podiam – e deviam – ser acessados, as comédias supracitadas assumem uma postura revolucionária, criativa e questionadora, fazendo uma crítica feroz e contundente à sua época. Apesar de a linguagem e a estrutura narrativa não apresentarem rupturas significativas com o cânone clássico, essas obras fogem aos lugares comuns, adotando uma estratégia de infiltração, se assim podemos chamar, na qual se faz a denúncia utilizando as armas daquele que é denunciado. Esse modo de operação não deixa de ser particularmente interessante e eficaz. O desafio delas está em trabalhar a comicidade onde esta não é comumente pensada; em rir do que não se pensa como risível; em romper com
Sobre a potencialidade revolucionária do riso, o célebre pensador russo Mikhail Bakhtin foi o que com mais perspicácia a desvendou, estudando a cultura popular na Idade Média e no Renascimento sob o prisma do carnaval.16 Este seria um espaço de escape, no qual a ordem social se inverte, as estruturas rígidas se tornam instáveis, e existe a possibilidade de renovação. No carnaval, o popular se manifesta, a sátira e o riso reinam, as máscaras permitem que se faça qualquer coisa, sem medo da retaliação. É o local no qual se afrontam ditames, se brinca e se ousa com a linguagem, se desafia tudo aquilo que está posto, em suma, um espaço de subversão, de libertação por excelência. Segundo as palavras mais precisas do pensador russo, o carnaval, ao contrário da festa oficial, [...] era o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a autêntica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e renovações. Opunhase a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um futuro ainda incompleto.17
Enxergo tais comédias como um resgate deste carnaval bakhtiniano, enquanto autêntico espaço
15 MINOIS, Georges, op. cit., p. 554. 16 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Brasília: Ed. Uni-
versidade de Brasília, 1987.
17 Ibidem, p. 8-9.
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de liberação do cotidiano e de supressão de interdições. Contra as imposições estereotipadas e maniqueístas do anticomunismo, precipita-se um riso consciente, livre e crítico – o riso do carnaval medieval. Afinal, toda imposição é autoritária, e o verdadeiro riso subverte, abala as estruturas do poder.
ideológica. Quem ri destrói o medo e se torna livre; e só podem construir a ação política os que são verdadeiramente livres.
Carnavalizar, pelo riso, é romper com qualquer espécie de paralisia, de imobilidade. Portanto, rir pode conclamar a ação política; rir pode revolucionar.
o verdadeiro riso, ambivalente e universal, não recusa o sério, ele purifica-o e completa-o. Purifica-o do dogmatismo, do caráter unilateral, da esclerose, do fanatismo e do espírito categórico, dos elementos de medo ou intimidação, do didatismo, da ingenuidade e das ilusões, de uma nefasta fixação sobre um plano único, do esgotamento estúpido. O riso impede que o sério se fixe e se isole da integridade inacabada da existência cotidiana.18
18 Ibidem, p. 105. 19 Ibidem, p. 239. 20 Ibidem, p. 41. 21 Griffiths apud STOTT, Andrew, op. cit., p. 115. 22 Ibidem, p. 116. 23 Bakhtin apud PROPP, Vladimir, op. cit., p. 169. Grifos
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Assim, é a atitude existente por trás do cômico o que realmente interessa; não o entretenimento, mas sua função redentora e reveladora.21 Uma verdadeira piada faz mais do que aliviar a tensão; ela libera a vontade e o desejo, instiga à mudança de situação, converte o riso em uma “energia política positiva”.22
Nessas verdadeiras comédias festivas, portanto, procurou-se mobilizar esse riso destruidor, e não o mantenedor da ordem vigente, contemplando um tema denso e conturbado, ou melhor, rindo dele. Isto não esvazia essa problemática de sua profundidade, como podem afirmar os mais conservadores. Afinal,
Que possamos atribuir ao riso – ao verdadeiro riso – a mesma força e importância que a cultura popular medieval lhe atribuía. Façamos como eles, que compreendiam que atrás do riso não se escondia nunca a violência, que o riso não levanta fogueiras, que a hipocrisia e o engano nunca riem mas vestem uma máscara de seriedade, que o riso não erige dogmas e não pode ser autoritário, que o riso não significa medo, mas a consciência da força.23 BR_RJANRIO_PH FOT_0_FOT_41638_007
Logo, a carnavalização do mundo, proposta em que estas comédias podem ser enquadradas, seria esta “libertação total da seriedade gótica, a fim de abrir o caminho a uma seriedade nova, livre e lúcida”.19 Uma seriedade desatada dos piores medos, que nos impedem de caminhar rumo a uma ação política contundente e efetiva. Este medo, fanático, “é a expressão extrema de uma seriedade unilateral e estúpida que no carnaval é vencida pelo riso. A liberdade absoluta [...] não seria possível num mundo dominado pelo medo”.20 Tentei mostrar como esses medos, muitas vezes infundados, são fabricados, transformados em mitos e utilizados como estratégia de manipulação
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George C. Scott é o General ‘Buck’ Turgidson em Doutor Fantástico. Ao lado, o ator em cena do filme Esse louco me fascina (They might be giants, 1971). Correio da Manhã
meus.
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Flávia Seligman Doutora em Artes pela Universidade de São Paulo. Professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPMSul) e da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Cineasta e produtora audiovisual.
As coisas nossas:
o humor popular no Brasil dos anos l970
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Clássico da comédia dos anos 1970, O enterro da cafetina, de Alberto Pieralisi, em cartaz no extinto cinema Império, na Cinelândia carioca. Correio da Manhã
Este trabalho faz parte da pesquisa Globo Filmes para um público global: estudo da configuração de um padrão de qualidade técnico-estético televisivo no mercado cinematográfico brasileiro, desenvolvido junto ao Núcleo de Pesquisas e Publicações/NuPP/RS da Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM-Sul, no período 2011-2012, e retoma o assunto desenvolvido em tese de doutorado sobre a pornochanchada e a comédia popular.1 A comédia de costumes se constitui como um dos gêneros mais populares da produção artística
brasileira. Do folhetim ao teatro de revista, das chanchadas às pornochanchadas, e ainda hoje num humor rápido da televisão e de filmes feitos para agradar o público dito “popular”. Mas, afinal, o que são comédias de costumes? A chamada comédia de costumes ridiculariza os modos, costumes e aparência de um determinado grupo social ou de uma determinada sociedade. A visão satírica da sociedade muitas vezes impregna nestas obras um caráter ideológico de fácil acesso ao público, uma vez que o próprio gênero comédia já é tradicionalmente de
1 SELIGMAN, Flávia. O Brasil é feito de pornôs: o ciclo da pornochanchada no país dos governos militares. Tese (Doutorado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2000.
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Tanto a chanchada dos anos 40 e 50 quanto a pornochanchada e as comédias populares contemporâneas utilizaram dessa estratégia para encantar o público. Piadas de duplo sentido (sempre observando os códigos morais da época), elementos de identificação imediata, como atores conhecidos e cenários usuais, foram a moeda de troca com o espectador ávido por um filme que o divertisse muito, e o filme brasileiro nunca esteve tão próximo do público quanto naquela época. Vamos agora focar nas comédias eróticas, ou como eram chamadas: pornochanchadas. Foram anos de abundância para o cinema feito para a classe C, com filmes de humor rápido, estrelados por rostos conhecidos e que faziam sucesso nas calçadas, principalmente da região central das grandes cidades do país. A época, imediatamente pós-revolução sexual, pedia um pouco mais de sensualidade nas histórias cotidianas. Por outro lado, a ditadura brasileira, instalada em 1964, controlava a moral e os bons costumes ceifando roteiros e cópias que pudessem afrontar as famílias nacionais. Contudo, o jeitinho brasileiro conseguia burlar os censores e, uma vez que estavam estes mais preocupados com a cena política do que com a nudez das atrizes, alguma coisa sempre acabava passando.
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o casal, um vilão, muita correria e muitas piadas. A grande diferença é que, se as chanchadas ficaram na dupla humor-musical, a pornochanchada desenvolveu todo um primeiro período no chamado soft-core, ou seja, nas comédias mais ingênuas, e “evoluiu” para um segundo momento denominado hard-core, com o apelo às cenas de sexo explícito. Resumindo: primeiro, mais chanchada do que pornô; segundo, mais pornô que chanchada; e por fim, apenas a pornografia abandonando de vez a comédia de costumes já tradicional da cultura brasileira. A primeira fase da pornochanchada abrange o período de 1969 a 1972, compreendendo a fase de produção carioca, classificada por outros teóricos, inclusive Abreu,3 como soft-core, ou seja, a fase branda, onde as cenas de sexo ainda eram meras insinuações e a primazia era dada para as piadas envolvendo fatos cotidianos – por isto também chamada de comédia do cotidiano. Este primeiro bloco vem de encontro à política estabelecida para a produção cultural: uma
A fórmula era mais ou menos a mesma das chanchadas, um casal, um ou mais cômicos que ajudavam
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fácil entendimento, para ser apreciado por um público cada vez mais abrangente.2
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Reginaldo Farias e Adriana Prieto em Os paqueras (1969), filme precursor das comédias eróticas brasileiras da década de 70. Correio da Manhã
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Sob direção de Pedro Camargo, Sandra Barsotti e Fernando Torres numa cena do filme Eu transo... ela transa (1972). Correio da Manhã
2 SELIGMAN, Flávia. A tradição cultural da comédia popular brasileira na pornochanchada dos anos 70. In: XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação/IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom, Porto Alegre, RS, 2004. 3 ABREU, Nuno César. O olhar pornô: a representação do obsceno no cinema e no vídeo. Campinas: Mercado das Letras, 1996. Citado pela autora.
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cultura de mercado, para o mercado. Os primeiros filmes foram realizados por diretores experientes e ainda com certa dose de sofisticação.4
As pornochanchadas foram um reflexo da situação social do país durante o período de censura. Produções direcionadas para um público amplo – parcela da produção audiovisual que busca o divertimento e o prazer ficcional. Essa produção de imagens ficcionais integra a ‘cultura popular de massa’: “O termo cultura popular de massa tornase útil, portanto, para denominar essa produção que conecta os elementos presentes no universo popular, elementos, às vezes, persistentes, e a produção industrial da cultura moderna”.5
Carlos Imperial e Adriana Prieto no set de filmagem de A viúva virgem (1972), de Pedro Carlos Rovai. Correio da Manhã
Matrizes da cultura popular: narrativa oral, melodrama, comicidade, romance policial; todos estes elementos característicos aparecem nos filmes do ciclo da pornochanchada. No filme Ainda agarro esta vizinha (1974), de Pedro Carlos Rovai, há um mocinho, uma mocinha, um vilão, uma tia e um bobo – um cômico, que ajuda o mocinho a ficar com a mocinha no final. Esta fórmula além de ter sido utilizada na chanchada, também apareceu em outras manifestações ficcionais populares vistas no país, como o teatro, os números de circo e mesmo a televisão.
Hoje em dia, a mesma fórmula é repetida por algumas telenovelas de exibição nacional, em horários específicos (principalmente o horáBR_RJANRIO_PH FOT_0_FOT_26404_014 rios das 19 horas, com certas doses de comicidade), sempre abordando a cultura pequeno-burguesa, acompanhando a urbanização da própria sociedade. Também é uma forma de humor fácil que foi levada para as comédias de costumes do cinema, principalmente com a assinatura da empresa Globo Filmes. As comédias eróticas trabalhavam basicamente com insinuações de nudez, grosseria e piadas de baixo
calão. As primeiras pornochanchadas apresentavam um nível mais elevado, pois deram emprego para diretores e produtores tarimbados que viam nessa alternativa um modo de continuar fazendo cinema, já que a produção anterior havia sido bloqueada pela censura. Quando a fórmula deu certo, as pornochanchadas passaram a ser produzidas num ritmo mais acelerado, o que provocou uma considerável queda no nível de qualidade. Transformaram-se em meros filmes pretensamente eróticos e pretensamente de humor, garantindo um público nas classes mais populares, mas tornando-se impenetráveis nas camadas sociais mais altas. A pornochanchada apresentava uma questão inerente à cultura nacional, a forte presença do humor na produção ficcional audiovisual brasileira. O humor apareceu sempre nos principais momentos de êxito e de diálogo com o público: chanchada nos anos 40/50; Mazzaropi nos anos 50/80, realizando 32 filmes; comédia erótica/pornochanchada nos anos 70; e Trapalhões no período 65/91, realizando 36 filmes. Os filmes também trabalhavam com elementos bastante característicos da tradição ficcional e popular brasileira, tais como a padronização, com tipos repetitivos e histórias conhecidas do público – uma característica sempre apontada como sinal da deterioração da produção cultural industrializada –, e a repetição de estruturas, elementos e situações, a narrativa e alocação dos personagens com modelo fixo: o herói/cômico contra o vilão, a mocinha/ heroína por quem o herói se apaixona. As comédias populares fizeram uma escola no país e foram interrompidas apenas pelo aparecimento dos filmes estrangeiros de sexo explícito, no início dos anos de 1980, aproveitando a abertura política que iniciava. Com isso, mudou o público e mudou a abordagem. De um filme pretensamente familiar (sim, no início as comédias eram destinadas às famílias de classe média, embora a censura não permitisse que menores de 18 anos pudessem assisti-las), passou para uma produção destinada basicamente ao público masculino. Nem o nome característico “pornochanchada” assentava-se mais aos filmes, embora muitos
4 SELIGMAN, Flávia, 2000, p. 46. 5 RAMOS, José Mário Ortiz. Televisão, publicidade e cultura de massa. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 132.
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críticos e teóricos do cinema brasileiro insistam ainda hoje em classificar as duas fases como sendo uma só. Ora, se a matriz da pornochanchada era a comédia e não o sexo, inclusive porque sexo mesmo não havia, como chamar de pornochanchada filmes baseados única e exclusivamente em sexo e sem nenhuma preocupação com humor? Frustrando a cultura nacional que esperava da abertura política uma volta aos temas sociais, os filmes eróticos apelavam para o mais rápido e usual, cenas de sexo envolvendo duas ou mais pessoas, em lugares comuns e depois em lugares bizarros, e até a utilização de animais (e crianças, como na cena de sexo em que a Xuxa, a Rainha dos Baixinhos, aparece com um menino menor de idade, em Amor estranho amor, de Walter Hugo Khouri, 1982, mas isto seria outro texto...). Dos títulos dúbios, porém quase ingênuos da primeira fase, como A viúva virgem, Ainda agarro esta vizinha, Luz, cama, ação, as produções passam para um apelo direto como A b... profunda, As colegiais do sexo explícito e As cangaceiras eróticas. Nesse momento, as comédias começaram a cair em desuso por vários motivos: os produtores voltaramse quase que exclusivamente para o filme de sexo explícito, mais barato, mais rápido de ser feito (com uma qualidade infinitamente menor, mas não era a qualidade cinematográfica que aquele público queria) e com um lugar certo na programação das salas populares; a evolução da televisão e o acesso ao público popular, que junto com o aumento do preço do ingresso de cinema, contribuiu para deixar o espectador em casa; e, por fim, o próprio esvaziamento do gênero, que não evoluiu nem narrativamente nem tecnicamente, produzindo um conteúdo audiovisual
inferior à televisão e, principalmente, anos-luz de distância do filme estrangeiro.
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Hoje em dia, a matriz da comédia de costumes reina absoluta em programas de televisão, como shows de humor, seriados, séries e algumas telenovelas. Com a fundação da Globo Filmes, em 1997, a produção de comédias de costumes requintadas passou da televisão para o cinema e conseguiu acertar em cheio um público acostumado com a qualidade que a TV tem oferecido. O filme Sexo, amor e traição, dirigido por Jorge Fernando em 2004, apresenta os mesmos elementos elencados nos ciclos anteriores: romances que não dão certo, cômicos que ajudam os mocinhos, cenas de insinuação sexual e até mesmo cenas um pouco mais tórridas, porém conta com um elenco prime time de televisão e um apuro técnico que o diferencia dos filmes feitos correndo contra o relógio. A fita fez mais de dois milhões de espectadores nas salas de exibição.
David Cardoso e Marisa Woodward contracenam no episódio dirigido por Aníbal Massaini Neto em A infidelidade ao alcance de todos (1972). Correio da Manhã
Este é apenas um dos tantos exemplos de atualização do gênero na produção audiovisual brasileira. O importante é que os elementos se perpetuam e sempre tem boa aceitação do público. Comédia é fato e faz parte da tradição cultural brasileira. Para a questão do sexo, deixo as palavras de Jece Valadão6 (1930-2006), ator, diretor e participante ativo de todos os ciclos do cinema brasileiro, com vários títulos eróticos no currículo: “Nós somos sexuais por natureza e o cinema brasileiro não poderia ser diferente do que o povo é”.7
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Vera Fischer e Sérgio Hingst em Sinal vermelho – As fêmeas (1972), de Fauzi Mansur. Correio da Manhã
6 Fala durante o Seminário O Império dos Sentidos, que abordou a representação do erotismo no cinema, reunindo nomes como Jece Valadão, Aldine Müller, Jairo Bouer, Inácio Araújo, Djalma Limongi Batista e Bernardo Carvalho, realizado em 1999 pela Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, na Usina do Gasômetro. 7 Ver também: SELIGMAN, Flávia. A comédia de costumes e a sexualidade no cinema brasileiro: três ciclos de boa bilheteria. Trabalho apresentado ao NP Audiovisual do IX Encontro dos Grupos/Núcleos de Pesquisa da Intercom, evento componente do XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Curitiba, PR, 2009.
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Sonia Cristina Lino Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. Professora associada da Universidade Federal de Juiz de Fora.
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o humor antropófago vai ao cinema “...a alegria é a prova dos nove” Manifesto Antropófago, 1928
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O humor tem várias formas, diferentes tempos e espaços. A classificação de filmes por gêneros apenas aponta, levemente, para a intenção dos realizadores. Drama, comédia, suspense, são apenas indicativos do tipo de reação esperado do público pelos realizadores. Do que se ri hoje, pode não ter provocado o riso ontem. O que se ri aqui, pode não ter nenhuma graça em outro contexto, lugar ou cultura. Este texto analisa o filme Estômago, dirigido por Marcos Jorge, e que estreou mundialmente no Festival do Rio de 2007, utilizando como referência o humor antropofágico inspirado nas ideias do grupo modernista paulista liderado por Oswald de Andrade na década de 20 do século passado e que tem no Manifesto Antropófago de 1928 seu estatuto. O filme Estômago se inspirou no conto Presos pelo estômago, de Lusa Silvestre, e conta a história de Raimundo Nonato, um migrante nordestino que como muitos outros desembarca em São Paulo para fugir da fome e da falta de oportunidades. Torna-se cozinheiro de um restaurante internacional, mas interrompe sua carreira na gastronomia ao ser preso por homicídio. Um tema que, utilizando a linguagem culinária, apresenta “ingredientes” bastante explorados pelo cinema nacional: migração interna, desigualdade social, pobreza, marginalidade, violência social. Este fato, no entanto, não interferiu no destaque que foi dado ao filme e que se refletiu em sua tra-
jetória de sucesso, tendo ganhado vários prêmios nacionais e internacionais, inclusive o de melhor filme no júri popular do festival de estreia.1 Estômago conta a história de Raimundo Nonato ou “Alecrim”, como é chamado por alguns companheiros de cela, ou ainda, “Nonato Canivete”, como se autodenomina quando chega à cadeia; estabelecendo um paralelo entre dois momentos da história do personagem: a chegada a São Paulo e a chegada à penitenciária onde cumpriria pena. A narrativa construída por uma equipe de roteiristas que incluiu Lusa Silvestre, autor do conto que inspirou o filme, alterna dois momentos da vida de Raimundo Nonato, o personagem central, que faz as vezes de narrador. Assim, o filme se constrói em torno da forma como o personagem entende e reage aos desafios do seu contato com espaços diferentes, a cidade grande e a cadeia. A inteligência e capacidade que Raimundo Nonato apresenta de se apropriar e traduzir o grande número de informações que recebe, convertendo-as em favor de sua sobrevivência e ascensão social, é o tema central do filme. Com cuidado e intuição o personagem vai deglutindo os preconceitos e rejeições com relação a sua origem nordestina, selecionando as informações que recebe, sobretudo, no que diz respeito a seu trabalho na cozinha, transformando-as em ações que vão além do ato de cozinhar.
João Miguel interpreta o cozinheiro e retirante nordestino Raimundo Nonato no filme Estômago, de Marcos Jorge. Zencrane Filmes
A escolha da forma narrativa em dois tempos deve-se, em parte, ao filme contar duas histórias que se entrelaçam no mesmo personagem. O
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roteiro, parte original e parte adaptação literária, se entrelaça criando o suspense.2 O roteiro do Estômago nasceu de um modo interessante e que vale a pena ser contado. Em meados de 2003, o escritor Lusa Silvestre enviou para Marcos Jorge três contos inéditos, todos centrados no argumento comida. Um deles chamou-lhe logo a atenção, e narrava a história de um homem que aumentava seu prestígio numa prisão cozinhando para seus companheiros de cela. Marcos gostou muito do conto e sugeriu ao Lusa que o adaptassem. Mas como o conto era curto e insuficiente para embasar um longa, era necessário inventar mais coisas. E assim, juntos, Lusa e Marcos foram criando toda uma história para o protagonista “antes” de ir para a cadeia e desenvolvendo a história dele na prisão, e o roteiro foi sendo escrito.3
Por outro lado, os dois momentos na vida de Nonato podem ser subdivididos. Do primeiro contato com os lugares, a chegada em São Paulo e na prisão, passando pelo estranhamento e a percepção da diferença, até a criação de estratégias de sobrevivência baseadas na observação e conhecimento adquirido na relação com os outros. Na rua, este aprendizado tem seu auge quando seu tempero chama a atenção de Giovanni, italiano dono de um restaurante situado no mesmo bairro do bar do Zulmiro, seu primeiro endereço na cidade grande. Zulmiro, homem rude e desiludido que vive no andar superior de seu botequim, que atende até altas horas da madrugada os personagens da noite que circulam pela região, prostitutas, malandros, bêbados, retirantes. Este é o primeiro abrigo de Nonato, que passa a ocupar os fundos do bar e pagar a comida e a moradia com seu trabalho. Lá, ele descobre sua vocação para a culinária. Posteriormente, quando se transfere para o restaurante de Giovanni, a culinária, exercida
intuitivamente no bar do Zulmiro, ganha status de saber, tornando-se, sob a orientação do patrão, “gastronomia”. Na prisão, já mais experiente, Raimundo Nonato, ou “Nonato Canivete”, chama a atenção do líder da sua cela, sugerindo que podia melhorar a comida dos companheiros, se dispusesse de alguns ingredientes e temperos que conhecera com o italiano. A partir do uso que fará do saber adquirido fora da cadeia, inicia sua ascensão dentro dela. Quando o personagem, de posse dos ingredientes e tendo adquirido o saber para transformá-los, cria seu próprio prato ou, ressignifica os conhecimentos adquiridos, o filme nos apresenta dois desfechos inusitados, tanto o que o leva a prisão quanto o que lhe permite ter mais poder dentro da cadeia. A narrativa em tempos alternados estabelece o suspense e coloca para o espectador a questão de descobrir o crime que teria levado Raimundo Nonato para a prisão, uma vez que o criminoso se confessa desde o início: (Cena em que Raimundo Nonato chega ao presídio) NONATO (voz em off ) Raimundo Nonato era antes... Esse nome não vai funcionar aqui na cana não... Depois da merda que eu fiz, tem que ser um nome de homem do cangaço mesmo... Nonato Canivete...
O suspense se estabelece não em torno de ‘quem’ cometeu o crime, mas do ‘porque’ e ‘como’ o cometeu. Suspeita-se desde o início que Raimundo Nonato teria cometido um homicídio, embora a informação não seja explicitada até o final. Apresentado o personagem em sua ingenuidade e ignorância com relação aos códigos de conduta e relações de poder da cidade, a dúvida se instala e reforça a curiosidade em torno de outros aspectos; a motivação para o crime e a forma como foi realizado.
2 A história de Raimundo Nonato antes da prisão é original, enquanto a da prisão é adaptada do conto Presos pelo estômago, de Lusa Silvestre. 3 O filme: roteiro. Disponível em: http://www.estomagoofilme.com.br/roteiro1.htm.
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É neste ponto que a relação com o humor proposto pelo movimento antropofágico se apresenta como uma chave para a interpretação de Estômago, ou, parafraseando Oswald de Andrade, é aí que antropofagia pode nos unir. Só a antropofagia nos une (Manifesto Antropófago, 1928) O movimento antropofágico, vertente do modernismo brasileiro da década de 1920 e que teve no escritor Oswald de Andrade sua personificação, advogava a necessidade de deglutição metafórica da cultura do outro “externo” (leia-se o eurocentrismo da cultura norte-ocidental) e do outro “interno” (leia-se indígenas, negros e migrantes de qualquer origem) para a identificação das características socioculturais brasileiras. O movimento teve no Manifesto Antropófago de 1928 sua “certidão de nascimento”. Escrita em linguagem metafórica e bem-humorada, o manifesto pretendia repensar a questão da dependência cultural do Brasil em relação à Europa e recontar a história da colonização ibérica do ponto de vista da América. Não se tratava apenas de estabelecer uma oposição à civilização moderna industrial em favor de um ingênuo e idealizado primitivismo local, mas de distinguir os elementos positivos da civilização ocidental moderna, ressignificando e eliminando o que não interessava, apontando para o que chamou de “Revolução Caraíba” ou, o aparecimento de um novo homem, o “bárbaro tecnizado”,4 produto das várias influências técnicas e filosóficas devoradas, com a permanência de traços do ritualismo considerado “primitivo”.
O caráter metafórico da palavra “antropofágico”, entendido como digestão cultural, apropriação e transformação dos elementos de várias culturas que fortaleçam a unidade do corpo social através da criatividade e da síntese, é a utopia antropofágica.
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Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida... Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.6
Estômago e antropofagia O título escolhido para o filme, Estômago,7 é não só o vocábulo que denomina o principal órgão do sistema digestivo como também uma palavra utilizada em múltiplas expressões metafóricas no português do Brasil. Como quando a palavra se refere a todo o abdome na expressão “dor no estômago”, ou para descrever a sensação de ansiedade que precede um acontecimento importante, “frio no estômago”, ou ainda para definir a sensação de abalo emocional, “soco no estômago”, ou a sensação de desconforto indefinido como em “me faz mal ao estômago”.8
Oswald de Andrade, o grande articulador do Movimento Antropofágico, vertente do modernismo brasileiro na década de 1920. Correio da Manhã
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Tupi or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.5
4 DOMINGUES, Beatriz Helena; e LINO, Sonia Cristina. Oswald de Andrade: utopia antropofágica e espiritualidade. In: AMARAL, Leila; e GEIGER, Amir. In vitro, in vivo, in silício: ensaios sobre a relação entre arte, ciência, tecnologia e o sagrado. São Paulo: Attar, 2008. 5 ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropofágico, 1928. 6 Idem. 7 Título original porque nos mais de cem anos de história do cinema, não há registro de filme com este título. Ver http://www. estomagoofilme.com.br/roteiro1.htm. 8 Segundo o Dicionário Aurélio: estômago = 1. Víscera que recebe e digere os alimentos. 2. Parte exterior do corpo correspondente ao estômago. 3. [Figurado] Apetite; faculdade de digerir; ânimo, disposição; paciência; bojo.
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No filme, a referência à comida, ao ato de comer e à digestão aparece em sentido literal não apenas no título, mas também em outras partes da história. Desde a profissão do protagonista, cozinheiro; passando pelo apetite insaciável de Íria, prostituta namorada de Raimundo Nonato; até a forma que Nonato se utiliza para cometer os assassinatos. Numa referência explícita ao canibalismo, Nonato cozinha e come partes do corpo da amante e, posteriormente, envenena a comida de seu adversário como forma de ganhar respeito e ascender na hierarquia de poder da cadeia. No primeiro caso, a morte da amante, são os instintos primitivos do personagem que reacendem a “lembrança desagradável do canibalismo, transformada em possibilidade permanente da espécie”.9 No segundo, a transmutação e dissimulação do instinto reprimido pela sociedade civilizada que o havia levado à cadeia, garantindo a Nonato um novo lugar de poder em meio à “selvageria” da comunidade carcerária. Esta relação entre o filme e o tema da culinária e do ato de comer não é, no entanto, a única aproximação possível entre o filme e a Antropofagia. A forma como o personagem se utiliza das informações e conhecimentos que adquire ao longo da história é também uma metáfora digestiva. O filme mostra cenas nas quais os personagens se comportam completamente fora dos padrões civilizados, desde comer com as mãos e com a boca aberta, a exposição dos corpos em lugares públicos, ou imagem de corpos dilacerados pela faca do cozinheiro, ou ainda a cena na qual Íria faz sexo com Nonato enquanto come uma macarronada. Cenas de um comportamento marginal, que a maioria dos espectadores só conhece através da tela do cinema ou do monitor da televisão.
Um comportamento que, explícito e sem filtros, é considerado de mau gosto, incômodo e até mesmo repulsivo para os padrões civilizados. Apenas aceito quando se estabelece a delimitação entre o “eles” e o “nós”. “Eles” os pobres, os ignorantes, sujos, bárbaros, vilões ou vítimas da desigualdade social; e o “nós” finos, de bom gosto, discretos, civilizados. Delimitar espaços suaviza o desconforto. Entretanto, Estômago leva o espectador a outros caminhos; provoca o riso. E o riso, ainda que nervoso ou silencioso, subverte a delimitação, estabelece outro tipo de relação entre o espectador e o que está sendo mostrado na tela. O riso cria uma cumplicidade com o outro de quem se ri. Faz com que o espectador se reconheça no personagem que lhe provoca o riso, mesmo que se negue ao reconhecimento. Diante dos corpos em atos vitais como comer, fazer sexo, sentir raiva, medo, dúvida etc., traços da sua própria natureza cotidianamente escondidos e controlados, mas mostrados livremente na tela, o espectador ri.10 A inadequação e incoerência entre o cotidiano dos personagens e o discurso civilizador a que estão submetidos,11 ao contrário de provocar horror à violência instintiva da natureza humana, provoca o riso e, com ele, o alívio diante da possibilidade de sobrevivência do primitivo como escudo protetor, defesa contra a opressão exercida pela racionalidade moderna eurocêntrica e ordenadora dos sentidos. Alívio que se concentra no personagem de Raimundo Nonato, um anti-herói que sobrevive graças a sua capacidade de apropriação do saber e de recriação antropofágica de significados. O “ato gratuito” de Gide é a marca do antropófago que faz sua declaração de direitos. A “vida autêntica” de Heidegger é a vida do antropófago que resiste no homem vestido.12
9 NUNES, Benedito. A antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, Oswald. A utopia antropofágica. Rio de Janeiro: Globo, 1995. p. 5-39. 10 LACAN, Jacques. O estado do espelho como formação da função do Eu. Disponível em: http://www.bsfreud.com/jlestadioespelho.html. 11 Sobre “processo civilizador”, ver NORBERT, Elias. O processo civilizador: uma história dos costumes. vols. 1 e 2. Rio de Janeiro: Zahar, 1995; BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987. 12 ANDRADE, Oswald de. Mensagem ao antropófago desconhecido. In: ______. Obras completas: estética e política. Rio de Janeiro: Globo, 1992. p. 285.
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Raimundo Nonato, antropófago Raimundo Nonato é preso pelo assassinato da namorada Íria e do patrão Giovanni, ao descobrir que fora traído pelos dois. Íria é prostituta e trabalha na região onde estava situado o bar do Zulmiro. Dona de um apetite insaciável, Íria faz amizade com o cozinheiro que a atrai com sua habilidade culinária em troca da companhia feminina. Desde o primeiro diálogo entre os dois, entretanto, a incomunicabilidade se insinua, anunciando o desfecho trágico da relação. ÍRIA: Essa coxinha, tá boa? NONATO: Tá boa sim, fiz hoje. ÍRIA: Joga uma na minha. NONATO: Como faz? ÍRIA: Me dá uma, hôme.
Nonato a serve. Ela morde a coxinha, e fala: ÍRIA: Porra, que puta coxinha! Foi você mesmo que fez? NONATO: Eu sim senhora. ÍRIA: Ih, olha o cara, me chamando de senhora. Prazer, Íria. NONATO: Raimundo Nonato. ÍRIA: Puta, essa coxinha tá de comê gozando. Olha, Raimundo Nonato, se eu soubesse cozinhar assim, tava noutra vida. Com certeza. NONATO: A senhora não sabe cozinhar nada? ÍRIA: Umas besteirinhas, só. Ovo, queijo quente, chá... NONATO: Ih, não dá prá casá, então. ÍRIA: Foda-se. Não sei cozinhá, mas eu adooooro comida.Outro dia vi na televisão, [...] um macarrão que é a minha cara. Vai tomate, vai alcaparra, aliche, só coisa boa. Cê não faz aqui não? Faz um dia, conversa com o dono aqui pra ele servir. [...] Chama macarrão à putanesca. NONATO: Puta vesga? ÍRIA: Que puta vesga o quê... PutaNESCA. É italiano, não tem nada a ver com puta, não. É italiano, é chique prá caralho!
Giovanni, imigrante italiano era dono de um restaurante de cozinha internacional, o Boccaccio. Ao experimentar a comida de Nonato, percebe a capacidade intuitiva dele para escolher e combinar ingredientes e lhe oferece emprego em seu restaurante. Estabelece-se entre os dois uma relação de mestre e discípulo que perdura mesmo após a traição. O primeiro contato entre os dois se dá no bar do Zulmiro:
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GIOVANNI: Catso, essa coxinha me abriu o apetite. Não tem nada aí que não seja fritura, quitute, essas coisas que engordam pacas? NONATO: Tem a carne de panela que eu fiz pro almoço. Acho que sobrou um prato, quer? Só pegar lá dentro. Trago com batata. Foi cozinhado junto, é umas batata bonita, corada. GIOVANNI: Traz, então... GIOVANNI: Hummm, o que você pôs aqui? É alecrim? NONATO: Um pouquinho, pus sim. Carne, né. Fica gostoso. Seu Zulmiro nem percebeu. GIOVANNI: Que carne que é? Músculo? NONATO: É músculo, sim. Fiquei um tempão batendo antes de ponhar na panela. GIOVANNI: Cê precisava trabalhar com alguém que te ensinasse, alguém que entenda de cozinha... Escuta, quer trabalhar pra mim? NONATO: Ih, tem que ver; tou muito bem aqui,
Raimundo Nonato é um migrante que chega a São Paulo em busca de oportunidades. Zencrane Filmes
A marca dos diálogos é a incomunicabilidade, a ausência de um sentido comum nos diálogos entre o cozinheiro e a prostituta.
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GIOVANNI (quase gritando): Pensa, Nonato, pensa senão não vai dar. Esquece esse Nonato que veio da casa do caralho num pau de arara. Esquece a tapera que você tinha, esquece a Maria Bonita, esquece. Agora você está em outra, e se não se ligar nas coisas, ah, não vai dar, tá me ouvindo? NONATO: Tou, nem precisa falar alto assim, que eu tô pertinho.
Os personagens Íria (Fabíula Nascimento) e Raimundo (João Miguel) em cena do filme. Zencrane Filmes
seu Zulmiro me paga um bom salário, benefício... NONATO: Sei não. Seu Zulmiro paga a moradia também, sabe? Uma casa boa..., TV colorida... GIOVANNI: Nem o Zulmiro mora bem, quanto mais você. Conheço... Eu te pago um salário decente, você arranja um lugar melhor para morar. Mas se não quiser, tudo bem. NONATO: O senhor dá isso tudo mesmo?
No diálogo acima, somos apresentados a uma outra característica do personagem. Nonato tenta enganar Giovanni a respeito de suas reais condições de trabalho no bar do Zulmiro, numa tentativa de tirar vantagem da proposta de trabalho que recebera. Diante do fracasso da tentativa, cresce a admiração pelo italiano. Já preso, ele apresenta Giovanni aos espectadores: NONATO (voz em off ) Já esse aí na mesa é o seu Jovani. Ah, esse sim, merecia o beliche de cima, e até uma lanterna pra faze palavra cruzada quando apaga as luz... Seu Jovani entende tudo de cozinha, moço. Parece até que primeiro inventaro a comida, e depois perguntaro assim – e agora, que que a gente faz com isso? – e então inventaro o seu Jovani, pra orientar...
Desde que Nonato vai trabalhar com ele, Giovanni assume o papel de mentor do cozinheiro transmitindo-lhe seu conhecimento com rigidez e arrogância. A hierarquia se estabelece a partir do saber. Nonato respeitosamente não se intimida.
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As cenas de Giovanni acontecem sempre em locais relacionados com os ensinamentos que quer passar para Nonato: na cozinha do Boccaccio, na adega, no mercado municipal, no açougue. As “lições”, permeadas por metáforas, pontuam a importância de seu saber e a hierarquia de poder entre eles. Por exemplo, quando Nonato é apresentado ao queijo gorgonzola, trava-se o seguinte diálogo: NONATO: Tá estragado, ó. Cheio de bolor. GIOVANNI: Não, não, é assim mesmo. Queijo gor-gon-zo-la. Um dos queijos mais antigos que tem. É embolorado mesmo, um tesão. Nonato come um pedaço do queijo. NONATO: Parece manteiga estragada.
Giovanni se irrita com Nonato e inicia uma lição sobre o requinte do queijo e a possibilidade que o ingrediente lhe dá de oferecer uma sobremesa simples como queijo com goiabada aos clientes de seu restaurante, sem perder a sofisticação e ainda cobrar um alto preço por uma pequena porção do queijo. Depois inicia um discurso no qual compara a gastronomia a uma arte, e ele próprio a um pintor. Fala do baixo custo das tintas quando comparado com o preço final de uma obra de arte. Quando Nonato lhe pergunta em que momento deve jogar a tinta no prato, Giovanni se retira da cozinha com ar desolado pela ignorância do pupilo. Quando ele sai, Nonato expressa: “ARTE... Pode ser arte, mas é fedido prá caralho”. E começa a decorar o prato com mel, como um pintor diante de uma tela, cria sua primeira receita. Esse tipo de compreensão em que Nonato interpreta livremente os ensinamentos de Giovanni se repete em todos os locais para onde é levado pelo patrão. Nonato reinterpreta e cria sobre
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toda a informação que recebe. É, no entanto, no açougue que se trava o diálogo que será a chave para responder uma das questões feitas no início: “como” Raimundo Nonato mata a mulher e o patrão? GIOVANNI: Isso aqui, Nonato, isso aqui é a arte da arte. Separar a carne do boi. Cê olha a peça, e pensa: porra, tudo carne. Verdade. Mas, veja, isso aqui é coxão duro. Carne boa, mas logo aqui, na continuação, o que tem? A picanha. Coxão duro, oito paus o quilo, e vinte centímetros mais prá baixo, a picanha: quinze paus o quilo. Tá vendo? É arte. Bater o olho e ver que ali tem carne boa, aqui não. É que nem olhar pra uma mulher na rua, uma dessas magra, a falsa magra, e perceber que embaixo da roupa, tem uma mulher gostosa. Prá cortar carne tem que ter esse olho clínico. GIOVANNI: Ah, e isso aqui, esse pedaço aqui, é o filé mignon, o que tem de melhor na carne. Que nem a bunda é na mulher, o filé mignon é o melhor do boi. NONATO: O filé mignon é na bunda do boi, é isso? Na bunda e é caro? GIOVANNI: Eu falei que o filé mignon é o “correspondente” à bunda da mulher. O melhor. Cê não gosta de bunda de mulher? NONATO: Ô. GIOVANNI: Então. É o filé mignon. Quando você comer uma bunda, pense: é o filé. NONATO: Bom, eu também gosto do peito. GIOVANNI: Boa. Frango. Vam vê o frango.
À medida que Nonato ganha segurança e estabilidade no novo restaurante, os encontros com Íria tornam-se mais frequentes, mas a comunicação entre eles não se altera e Nonato, na sua compreensão solitária, propõe casamento à prostituta na cozinha do Boccaccio. A resposta não vem. Ela se assusta com a inusitada pergunta e engasga. Ele, pela primeira vez, perde o ponto do cozimento do macarrão. Numa noite de folga, Raimundo Nonato procura por Íria sem sucesso. Ao perceber luzes no restaurante, encontra-a jantando com Giovanni no salão principal. Nonato espreita-os detrás do
fogão, vê quando após a sobremesa, Íria permite que Giovanni a beije, carícia que nunca havia permitido a ele, alegando a “ética da profissão”. Nonato percebe que se enganara sobre a natureza de sua relação com Íria. Sem diálogos, a sequência termina com o casal se dirigindo ao andar superior do restaurante sob o olhar decepcionado e nervoso de Nonato.
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O desfecho deste momento da história de Raimundo Nonato acontecerá algumas sequências depois quando o cozinheiro é mostrado abrindo o vinho mais caro do restaurante, a rolha quebra e ele a empurra para o fundo da garrafa, contrariando as instruções que recebera de Giovanni. Bebe com crescente nervosismo levando a garrafa à boca. Em seguida, Nonato é visto temperando uma carne gorda e suculenta na frigideira enquanto bebe mais vinho, a câmera se afasta da cozinha e do personagem e se dirige para o andar superior do restaurante; num sofá-cama aberto no escritório de Giovanni jazem nus os corpos dos amantes em meio ao sangue que toma conta de todo o cômodo. Íria está de bruços e de suas nádegas falta um pedaço de carne. A ausência de diálogos marca as sequências finais desta parte da história de Raimundo Nonato. Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.13
O impacto das sequências que mostram o assassinato de Íria e Giovanni é atenuado pela alternância com as cenas da prisão, onde se desenrola o outro desfecho. A história na prisão segue a mesma ordem da descrita anteriormente. Na chegada à cela, o personagem passa pela rejeição dos outros a sua presença, pelo reconhecimento do espaço e suas péssimas condições, pela identificação dos companheiros de cela antes da integração desconfiada ao ambiente e finalmente pelo reconhecimento de seu lugar no novo ambiente. A apresentação
13 Manifesto Antropofágico, 1928.
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que Nonato faz dos companheiros de cela aponta para as escolhas que fará depois:
Raimundo almoça com seus colegas na prisão. Zencrane Filmes
NONATO (voz em off ) É bom explicar umas coisa de poder aqui nesse xadrez. Esses dois que eu tava conversando é o Guentaí e Boquenga. O Guentaí era o faxina, daí cheguei, pronto, virei eu o faxina. O Boquenga não faz nada, nem tomar banho toma. Só dá palpite. Do lado deles, no canto, tem esse aí, quietão, o Sequestro. O nome diz tudo, né? Não dá papo pra ninguém, então deixa ele quieto. Esse com cara de quem comeu e não gostou é o Magrão. Coitado, o Magrão era mula. Não é xingo não; é que ele era daqueles que leva tóchico na barriga, engole os bagulho pra não pegarem. Fez tanto isso que pegou dor de estômago, e veve engolindo aquelas pastilha branca de azia. Que ele compra do Lino, esse aí. O Lino é o correria do xadrez; o cara que arranja as coisas pro resto da rapaziada. E cobra, né. Esse fumando e pensando na merda que é a vida é o Valtão. Laranja, ele. Deu merda, ele levanta o dedo e diz: fui eu. E, bom, esse negão suado é o dono do laranja, e do xadrez todo. Manda nos outros porque faz umas coisas que nem sendo bem cruel mesmo a pessoa faz. Bujiú, o nome dele. Tem celular, tem visita de mulher – e não é só a dele não. É um sujeito do poder, percebe? Ele sabe convencer as pessoa do que quer, bem dizendo. É por causa disso que o xadrez aqui tem poucas pessoa, enquanto os de lá tem pra mais de trinta. Bujiú. Beliche de cima.
O “beliche de cima” funciona como uma espécie de trono, alcançá-lo significa conquistar o lugar máximo na hierarquia do xadrez. Ao chegar à
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cela, Nonato é ignorado pelos companheiros que ocupam todos os espaços, inclusive no chão, só encontra lugar ao lado do buraco que serve de latrina para os encarcerados. Sua função é determinada por Bujiú: “Você vai para a faxina!”. A situação de Nonato começa a mudar quando chega o primeiro almoço. Diante da péssima qualidade da comida e da insatisfação dos companheiros diante da necessidade de comer aquela “gororoba”, Nonato arrisca uma solução: “Sabia que se ponhar um alecrim e pimenta do reino, melhora?” É ouvido por Bujiú. A partir daí, começa sua ascensão para o “beliche de cima”, tentando adaptar o conhecimento adquirido com Giovanni às necessidades básicas dos companheiros de cela. No início, Nonato se encanta com a nova posição, ganha confiança e arrisca novos pratos na posição de “mestre.” Porém, diante da ameaça que este conhecimento significa para a hierarquia da cela, é logo reprimido por Bujiú. O limite é imposto quando Nonato, influenciado por Magrão, resolve utilizar as formigas, abundantes no local, como ingrediente de um novo prato. Quando Bujiú descobre o que estava comendo, apesar do elogio inicial, (“Ô do Alecrim, gostoso essa porra. Que que é, hein?”), espanca o cozinheiro e manda-o fazer uma comida decente. Nonato obedece e graças a essa atitude respeitosa, recupera seu prestígio com Bujiú, que em seguida lhe oferece um gole de “Maria Louca”, cachaça produzida na cadeia. Ao provar a cachaça, Nonato engasga e se torna motivo de riso. Sem perder tempo, devolve com ares de especialista: “Acho que ficaria melhor com um tico de angostura. Parece um pouco com o ‘negrone’”. Bujiú manda buscar a angostura para misturar na cachaça. O saber e a capacidade de usá-lo no momento certo permite que Nonato recupere a confiança de quem pode garantir sua sobrevivência. Estes episódios marcam o lugar que Nonato passa a ocupar no xadrez, o lugar do saber, não o saber da forma como lhe foi ensinado por Giovanni, mas adaptado à realidade selvagem da cadeia, onde a sobrevivência fala mais alto e o instinto é fundamental. Nonato descobre o caminho para o “beliche de cima”.
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NONATO (voz em off ) O ser humano fraqueja, acostuma com os conforto. Amolece que nem músculo de boi em bife borguinhone. Falando nisso, preciso arrumar umas erva. Vou arranjar com o Vagnão Carcereiro um pouco de tomilho, alecrim tem ainda, salsinha fresca. Segura nós, vamos arranjar salsinha e cebolinha. E sálvia...
A história caminha para sua conclusão. Bujiú recebe a notícia que Etecetera, bandido descrito por ele como “o chefão, o cara que manda nos caras”, seria transferido para o presídio em que se encontram. Decide preparar um banquete de recepção para impressionar o chefão. Nonato se encarregaria do comando da cozinha e seria o responsável pelo banquete. No dia marcado, Nonato assume o poder na cozinha do presídio. Dá ordens, fiscaliza o cozimento das carnes, trata os ajudantes, companheiros de cela, com a mesma autoridade arrogante que aprendera com Giovanni. Sua sobrevivência dependia do sucesso do evento. No entanto, adapta a etiqueta aprendida no restaurante ao gosto e hábitos dos comensais sem maiores questionamentos. Ao apresentar o vinho, por exemplo, descreve o aroma da bebida como “cheiro de cachorro molhado”. Diante da recusa de Etecetera e Bujiú em beber algo com aquele aroma, aceita servir “Maria Louca” como acompanhamento dos pratos. Ao servir carpaccio, aceita a descaracterização do prato ordenada por Bujiú: “Frita essa carne, Paraíba, que isso faz até mal...”
necessária. Uma volta ao bárbaro original, lapidado pela técnica adquirida e o senso de oportunidade. Na última sequência do filme, deitado no beliche de cima, Nonato filosofa:
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NONATO: Médico é um troço que eu não entendo direito, percebe? Você vai lá com febre, intestino totalmente desgovernado, e ele fala: virose. Vai com dor de garganta, é virose. Aparece com tosse e olho vermelho: virose. Quer dizer, os caras passam duzentos ano estudando gente morta e gente viva, e tudo que acontece é virose? Por mim, tudo bem. Os médico olharo o Bujiú gordo, azulado, e pronto, pensei: vão falar que é virose. Não era. Indigestão, foi o que falaram. Quer dizer que se morre disso, é? Achei que era o veneno que eu pus no prato de feijão, pra ele. Bom saber...
E começa a planejar a conquista do lugar de Etecetera, novo chefe da cadeia e que tinha uma cela só para ele... o ser humano fraqueja, acostuma com os conforto.(Nonato) Quando o saber, por si só, não é capaz de garantir a sobrevivência e o conforto, ele precisa ser deglutido e adaptado à realidade sem preconceitos porque afinal... Só a antropofagia nos une.14
Cartaz do filme. Zencrane Filmes
BUJIÚ: Alecrim, pra que essa frescura de servir as coisa de pouco de cada veiz? Primeiro, o bife cru... NONATO: Carpacho. BUJIÚ: Isso, depois o peixe, e agora o porco. Põe tudo na mesa de uma vez, e senta, caceta.
Nonato obedece a todas as exigências, inclusive a de servir feijão para Bujiú, que não come sem o acompanhamento. Percebe que seu saber gastronômico naquele ambiente não lhe garantiria por muito tempo a sobrevivência, nem o levaria para o “beliche de cima”. Uma mudança de estratégia era 14 Outras referências bibliográficas: NUNES, Benedito. Oswald canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979; SILVESTRE, Lusa; JORGE, Marcos; e NATIVIDADE, Cláudia da. Roteiro de Estômago. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008; DVD Estômago. Europa Filmes, 2008.
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Cantinflas estrela O patrulheiro 777 (El patrullero 777, 1978), de Miguel M. Delgado. Divis達o de Censura
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Golias contra o homem das bolinhas (1969), de Victor Lima, com Ronald Golias. Correio da Manh茫
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(2007): o humor antrop贸fago vai ao cinema
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22/11/2012 09:52:16
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